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Karla Simone Willemann Schütz
ANDANÇAS PELOS “CAMINHOS DA NOITE”: EXPLORANDO ARQUIVOS PESSOAIS DE
MULHERES EM INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA EM SANTA CATARINA
WALKING THE “PATHS OF THE NIGHT”: EXPLORING WOMEN’S ARCHIVES IN
MEMORY INSTITUTIONS IN SANTA CATARINA.
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20095
Karla Simone Willemann Schütz
Universidade Federal de Santa Catarina
https://orcid.org/0000-0003-0177-078X
karlawschutz@gmail.com
Recebido em 23 de janeiro 2024
Aprovado em 04 de abril de 2024
RESUMO: O presente artigo analisa a
presença de arquivos pessoais de mulheres
em duas instituições de memórias do estado
de Santa Catarina. O estudo direciona seu
olhar metodológico para as práticas adjacentes
aos procedimentos de arquivamento dessas
instituições e as dinâmicas de construção da
memória, observando ao mesmo tempo os
contextos sócio-históricos e os conteúdos
desses conjuntos documentais. Por meio dessa
abordagem, observou-se o silenciamento
da presença de documentos e arquivos de
mulheres nos instrumentos de pesquisa de
ambos arquivos, bem como, a ausência de
ferramentas que auxiliassem a localização dessa
documentação.
Palavras-chave: Arquivos pessoais;
Arquivos de Mulheres; Instituições de
Memória; História das Mulheres.
ABSTRACT: This article analyzes the
presence of women’s personal archives in
two memory institutions in the state of Santa
Catarina. The study directs its methodological
focus to the practices adjacent to the archiving
procedures of these institutions and the
dynamics of memory construction, while
observing the socio-historical contexts and the
contents of these documentary sets. Through
this approach, we observed the erasure of the
presence of women’s documents and les in the
research instruments of both archives, as well
as the absence of tools that would help locate
this documentation.
Key words: Personal les; Women’s
Archives; Memory Institutions; Women’s
History.
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Introdução
Em seu artigo Tacit narratives: the meaning of Archives, o arquivista holan-
dês Eric Ketelaar (2001) arma haver, no interior das coleções que dão forma aos
arquivos, inúmeras narrativas que não são visíveis e que não estão concentradas
apenas nas informações que um documento carrega. Segundo ele, diversas ou-
tras histórias estão escondidas por trás dos procedimentos de tratamento que
visam tornar acessíveis os conjuntos documentais espalhados pelos mais diver-
sos locais do mundo, tais como os processos de classicação e descrição docu-
mental. Assim sendo, pelo que nos sugere Ketelaar, pode-se depreender que o
arquivista também é um criador de narrativas.
Esse mesmo autor defende que os arquivos e os registros que guardam são
objetos passíveis de “ativações” em todas as etapas de sua vida: desde o arquivo
corrente, passando pelo arquivo intermediário e, por m, no arquivo permanen-
te. Mas o que seriam essas ativações? De acordo com Ketelaar, ao longo do seu
ciclo vital, o documento é ativado (ou seja, criado, processado, revisitado, inter-
rogado) por seu criador, por seus guardiões, por seus usuários em potencial, e
claro, pelo arquivista que, por meio de seus pressupostos e ferramentas, torna o
documento passível de ser acessado. “Cada interação, intervenção, interrogação
e interpretação por parte de um criador, usuário e arquivista é uma ativação do
registro. O arquivo é uma ativação innita do registro” (KETELAAR, 2001, p.137,
tradução nossa).
Ao se fazer um cruzamento entre essa perspectiva apresentada por Ketelaar,
que traz à cena o entendimento da existência de narrativas tácitas, narrativas
subjacentes aos documentos e o diagnóstico de sub-representação da mulher
nos acervos de diferentes instituições de memória, propõe-se aqui uma reexão
sobre as “ativações” operadas por uma pesquisa que tem como objetivo identi-
car arquivos de mulheres espalhados por instituições catarinenses.
Inserida em um panorama atual de discussões (SIMIONI; ELEUTÉRIO, 2018)
que buscam observar as relações de gênero subjacentes também aos processos
de arquivamento de diferentes instituições de salvaguarda, a pesquisa denomi-
nada Jogos de sombra e de luz: a presença de arquivos de mulheres em instituições
de memória em Santa Catarina, desenvolvida em nível de pós-doutorado junto ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal
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de Santa Catarina, tem como objetivo mapear, catalogar e divulgar a existência
de arquivos em instituições de memória do estado de Santa Catarina que tenham
mulheres como titulares.
Ao m do projeto, com a publicação de um instrumento de pesquisa (um
guia) pretende-se visibilizar a atuação de diferentes mulheres da sociedade ca-
tarinense, em especial aquelas que tiveram papeis ativos em suas comunidades.
Em consonância com o que prevê Lei nº 18.226, de 13 de outubro de 2021 - a qual
inclui como conteúdo transversal, no currículo da educação básica de escolas
públicas e privadas do estado, a História das Mulheres do Campo e da Cidade -
objetiva-se contribuir com o reconhecimento das trajetórias e com a produção
de conhecimento sobre a história das mulheres no estado, o que pode fomentar
ainda um incentivo à participação e envolvimento de mulheres mais jovens em
suas próprias comunidades.
As ativações sobre as quais pretende-se reetir são um recorte da pesquisa
acima mencionada e se desenvolveram por meio de uma abordagem etnográca
dos arquivos, aqui entendida como um movimento metodológico que desloca a
atenção especicamente dos documentos para os processos que os salvaguar-
dam e os tornam acessíveis (HEYMANN, 2013). Ou seja, os arquivos que aqui o
objeto de análise foram observados a partir das histórias que os constituíram,
das políticas que deniram o que abrigam, dos instrumentos de pesquisa que
tornam acessíveis seus acervos e, por m, dos documentos que os integram.
Essa abordagem deseja entender suas lógicas de constituição, seus con-
textos, buscando ao longo desse processo as vozes não ouvidas nesses acervos,
especialmente, as narrativas tácitas de mulheres que eles possivelmente abri-
gariam. Na maioria das vezes soterradas pelas presenças masculinas, essas vo-
zes demandam um olhar cuidadoso, quase como se procurássemos uma agulha
no palheiro. Um cenário tributário não da falta de documentos sobre essas
mulheres, como ainda na década de 1980 armou a historiadora Michelle Perrot
(1989), mas também da ausência de instrumentos de pesquisa que pudessem
ajudá-las a “levantar suas vozes”, como se verá a seguir.
Como apontado anteriormente, a pesquisa investiga instituições de memó-
ria espalhadas por diferentes municípios catarinenses, porém, para reetir com
maior atenção sobre essas narrativas, foram escolhidas duas instituições onde
a busca foi em um primeiro momento nalizada. São elas: o Arquivo Público
de Santa Catarina (APESC) e o Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina,
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onde foram realizadas visitas semanais ao longo dos meses de junho e setembro
de 2023.
Antes de caminharmos pelos arquivos, vale enfatizar o porquê de entender
esse trajeto como um percurso no “breu”. Aqui, a andança pelos caminhos da
noite” é uma expressão metafórica que descreve uma exploração em meio à in-
certeza, sendo empregada para ilustrar a busca por algo que não é facilmente
visível ou compreensível. No contexto aqui observado, sugere a investigação
profunda e atenta nos arquivos, procurando desvendar e dar visibilidade a nar-
rativas e experiências de mulheres que historicamente foram negligenciadas ou
sub-representadas nos registros documentais. A ideia que quer se trazer é que
essa exploração que ocorreu em meio a desaos e diculdades, simbolizados
pela escuridão, buscou ao mesmo tempo trazer à luz histórias que ao longo do
tempo podem ter sido ignoradas ou obscurecidas.
Os espaços de observação
A iniciativa de criação do APESC remete a diferentes momentos da histó-
ria catarinense e as informações sobre sua emergência, em certos momentos,
parecem desencontradas. Algo que não é incomum quando tentamos buscar
a origem histórica de instituições, personagens ou eventos históricos, por sua
precisão e necessidade de encontrar fontes que a comprovem, esses dados são
diversas vezes difíceis de encontrar. Segundo o website do próprio APESC, a
idealização de sua construção já era um desejo manifestado pelo ex-governador
do estado de Santa Catarina engenheiro civil Hercílio Pedro da Luz em ns do
século XX (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO, 2023). de acordo
com (SOUZA; LEITE, 2014), o APESC teria um de seus primeiros atos de fundação
documentado no dia 26 de setembro de 1918, durante o mandato do governador
Felipe Schmidt, por meio da Lei n.º 1.196. Porém, naquele momento, nenhum di-
retor teria sido designado para administrá-lo, uma ocorrência que culminaria na
sua imediata dissolução. Duas novas tentativas teriam buscado recriá-lo, porém
ambas, mais uma vez, não obtiveram sucesso: a primeira em 28 de dezembro de
1931, por meio do Decreto n.º 186, no Governo do Interventor Federal Ptolomeu de
Assis Brasil, e a segunda em 1933, no Governo do Interventor Federal Aristiliano
Ramos, por meio do Decreto n.º 349, de 10 de maio (DEBATIN, s/d).
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A efetiva criação do APESC se concretizaria somente em 1960, por meio da
Lei n2.378 de 28 de junho. Naquele momento, sob a guarda da Secretaria de
Estado dos Negócios do Interior e Justiça (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMI-
NISTRAÇÃO, 2006). Atualmente, por meio da Lei 381 de 07 de maio de 2007 o
Arquivo mantém-se vinculado à Secretaria de Estado da Administração, em es-
pecíco da Diretoria de Gestão Documental, sendo um órgão normativo do Siste-
ma de Gestão Documental estadual.
A sede do APESC passou por diversos locais da cidade de Florianópolis. En-
tre os anos de 1960 e 1971 foi abrigado no Palácio do Governo, atual Museu Cruz e
Sousa; entre os anos de 1971 e 1972 compartilhava o prédio localizado na esquina
entre as ruas Tenente Silveira e Jerônimo Coelho com a Imprensa Ocial do Es-
tado IOESC; entre os anos de 1973 e 1976 foi instalado no Edifício das Direto-
rias localizado na rua Tenente Silveira; em 1976 foi brevemente transferido para
Rua Almirante Alvim e no mesmo ano para a Rua Felipe Schimidt, onde caria até
1992; entre 1992 e 2006 foi alojado na avenida Mauro Ramos; sua penúltima mu-
dança ocorreu em 2006, quando foi transferido para edifício no bairro Saco dos
Limões. Em 2022, por conta de problemas estruturais do prédio que o abrigava,
a documentação do Arquivo foi transferida temporariamente para edifício na ci-
dade de São José, no bairro Kobrasol.
Por se tratar de um arquivo vinculado à administração pública, o acervo do
APESC é composto por documentação em diversos suportes, tipos e gêneros
documentais relativos à processos administrativos governamentais, totalizando
aproximadamente 2.500 metros lineares. São documentos datados entre o início
do século XVI até o m do século XX tais quais: manuscritos, impressos, datilo-
grafados, cartográcos, iconográcos (principalmente fotos e cartazes doados
ao APESC por pessoas físicas e jurídicas). também coleções de leis, decretos-
-leis, decretos e portarias estaduais desde 1830 até os dias atuais (originais com
assinaturas e impressas em publicações), leis federais brasileiras datadas de 1811
até a década de 1980, além de leis portuguesas do período de 1791 a 1820 (SOUZA;
SILVA, 2014).
O segundo local de realização da pesquisa não teve o mesmo percurso do
APESC que, como se viu acima, foi “vítimade um itinerário repleto de mudanças,
as quais geram sempre uma preocupação em relação à integridade da informa-
ção que o arquivo tem o compromisso de preservar.
O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina foi criado por decreto
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datado de 25 de novembro de 1949 e assinado por Dom Joaquim Domingues de
Oliveira, naquele momento Arcebispo à frente da Arquidiocese de Florianópolis,
função que exerceria até sua morte em 1967. O Arquivo Eclesiástico é de res-
ponsabilidade da Mitra Metropolitana de Florianópolis, portanto, é o Arcebispo
Metropolitano o responsável por delegar prossionais responsáveis pela gestão
documental do acervo.
No momento de sua criação, o arquivo cava abrigado junto à Catedral Me-
tropolitana de Florianópolis, onde permaneceu até 1966 quando foi transferido
temporariamente para a avenida Rio Branco, em Florianópolis. Desde 1968 fun-
ciona em prédio anexo à Cúria Metropolitana, na Rua Esteves Júnior, também na
cidade de Florianópolis.
O Arquivo Histórico Eclesiástico reúne e preserva inúmeros documentos de
valor único, pois no período anterior à Proclamação da República todos os re-
gistros de nascimentos, casamentos e óbitos no Brasil eram feitos pela Igreja
Católica por meio das paróquias espalhadas por todo país. Sendo assim, a Arqui-
diocese de Florianópolis é responsável pela guarda de documentação referente
a nascimentos, matrimônios e falecimentos ocorridos na região entre os anos
de 1751 e 1889. Entre esses registros, é possível encontrar um livro de casamen-
tos que um dia pertenceu à Paróquia de Nossa Senhora do Desterro datado em
1714. Para além dessa documentação, associada ao cotidiano da população ca-
tarinense entre os séculos XVI e XIX, o acervo da instituição também é formado
por grande volume de documentação sobre a história da Igreja Católica em Santa
Catarina (DIBRARQ, 2023).
Esse breve histórico das instituições investigadas foi necessário para pos-
teriormente apresentar de que forma a busca foi nelas efetuada e os vestígios
documentais que elas preservam. Cada uma, a partir das atribuições e da docu-
mentação que abrigam, precisou de um roteiro de investigação individualizado.
Desenhando o “mapa da mina”
Os primeiros encontros com os arquivos sempre são reveladores de surpre-
sas boas, mas também de surpresas não tão positivas. Em relação aos arquivos
apresentados acima, foi uma grata surpresa encontrar alguns instrumentos de
pesquisa que permitiram fazer um recorte” na documentação que seria inves-
tigada. A disponibilidade dos funcionários de ambas as instituições também foi
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fundamental para elaborar um plano para as idas ao campo”. Pode parecer estra-
nho ressaltar a presença ativa desses servidores, porém o cenário nas institui-
ções arquivísticas não é sempre assim receptivo, não raro, o acesso à documen-
tação é negado aos pesquisadores por meio de justicativas como a ausência de
organização dos documentos.
Em relação ao APESC, as pesquisas puderam ser iniciadas em meio digi-
tal, que alguns dos instrumentos de pesquisa da instituição, bem como parte
do acervo, estão disponíveis à consulta por meio da plataforma AtoM1. Tendo es-
ses instrumentos em mãos, foi percebida a existência de fundos privados entre
a documentação abrigada. Como o interesse da pesquisa é tratar de mulhe-
res como titulares de arquivos, não seria relevante buscar por outros fundos do
acervo da instituição, que se referem a outras proveniências (seu “acumulador”
não foi uma pessoa física), sobretudo, da administração pública.
No total, segundo apontam os instrumentos de pesquisa, o APESC possui
sob sua guarda nove fundos privados: o Fundo Privado Monumento Vidal Ramos,
o Fundo Privado Álvaro Alves, Fundo Privado do José Vieira da Rosa (Gen.), Fundo
Privado Ferdinand Knoll, Fundo Privado Rogério Duarte de Queiroz, Fundo Priva-
do Candido Caldas (Marechal), Fundo Privado Aroldo Damiani Pessi e Alba Grisard
Pessi, Fundo Privado Haroldo Paranhos Pederneiras e o Fundo Privado Jorge La-
cerda. (APESC, 2018, p. 3-4)
Apesar de um inventário analítico da documentação presente nesses fundos
estar organizado em Catálogo disponibilizado à consulta, alguns detalhes dessa
documentação, como a procedência ou destinatário, não eram passíveis de ave-
riguação. Assim, após essa análise inicial, foi necessária a investigação em cada
item documental, em especial no Fundo relativo ao ex-governador do estado de
Santa Catarina, Jorge Lacerda, pesquisa que revelou algumas surpresas, como
se verá à frente.
A necessidade de fazer a observação documento a documento, remete, mais
uma vez, à perspectiva da etnograa nos arquivos, em especial, a partir da pers-
pectiva do “estar lá”. Nesse sentido, entende-se que a ida ao local de pesquisa foi
essencial não para investigar a fundo os conjuntos documentais, mas também
para realinhar as expectativas de pesquisa, bem como, as próprias práticas da-
queles que trabalham dentro desses arquivos.
1 Disponível em: https://acervo.arquivopublico.sc.gov.br/ Acesso em: 25 out. 2023
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Em relação ao Arquivo Histórico Eclesiástico, não havia instrumentos de
pesquisa tão detalhados como aqueles encontrados no APESC. Os contatos
iniciais foram feitos via e-mail com a funcionária responsável pelo acesso de
pesquisadores ao acervo. A partir da explicação do tema da pesquisa, essa mesma
funcionária apontou conjuntos documentais que poderiam servir ao objetivo
da investigação. Foram selecionadas dentro dessa coleção vinte e três pastas
plásticas onde estavam acondicionadas correspondências e documentação
trocada entre religiosas, congregações religiosas femininas, irmandades
religiosas e associações de mulheres católicas e a Cúria Metropolitana de
Florianópolis.
Como não havia nenhum inventário do conteúdo das pastas, o próximo passo
da pesquisa, assim como no caso do APESC, foi vericar um a um o seu cont-
do. Elas foram, portanto, analisadas por item documental, documento por docu-
mento, o que exigiu, novamente, um longo processo de idas e vindas ao arquivo.
Andando pelos “caminhos da noite”, mas com companhia
Ler nas entrelinhas é saber operar com escalas, a noção de “jogo de esca-
las” foi proposta por Jacques Revel (1998) na obra Jogos de Escala: a experiên-
cia da microanálise. Tal metodologia de análise busca romper com dicotomias
que opõem o individual ao coletivo, dando maior importância a uma dimensão ou
outra. A perspectiva do “jogo de escalas” demonstra que as abordagens que ora
observam as estruturas, ora observam o particular, não são antagônicas, mas
complementares, pois na “redução da escala de observação, em uma análise mi-
croscópica e em um estudo intensivo do material documental” (LEVI, 1992, p.136),
podemos observar como os indivíduos circulam entre as brechas, as rachaduras,
que existem nas grandes estruturas de poder ou dominação. A observação dos
arquivos aqui abordados se deu a partir de sucessivas aproximações e afasta-
mentos que vão do plano micro ao plano macro e vice-versa, ou seja, do enten-
dimento do contexto da instituição ao item documental, procurando as brechas
onde estariam as mulheres nesses conjuntos.
Uma abordagem antropológica, como mencionada anteriormente, vai ao en-
contro desse “jogo” que opera a partir de diferentes lentes, pois além de práticas
pontuais ou individuais, nela “devem ser considerados os contextos nos quais os
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conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-históricos mais amplos, de
uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados e dis-
ponibilizados, de outra (HEYMANN, 2013).
Para analisar mais de perto os acervos privados presentes no APESC, é
preciso antes de tudo reetir sobre o que representam os arquivos institucionais
públicos e a histórica cisão existente entre esse tipo de arquivo (público) e os
arquivos de pessoas, divisão que poderia ser pensada também por meio de
categorias como o ocial” e “individual”. Segundo Cook (1998), existe em muitos
países uma divisão incômoda entre tais tipos de arquivos e, por vezes, até mesmo
uma tensão que emerge do caráter dos documentos que abrigam e os objetivos
para os quais os documentos neles abrigados são criados e preservados.
Ainda de acordo com Cook (1998), via de regra, em diversas partes do
mundo, os arquivos nacionais não recolhem papéis de indivíduos particulares,
um padrão que também ocorre em arquivos estaduais, provinciais, regionais e
locais ou municipais. Em geral, os arquivos pessoais ou manuscritos privados,
acabam sendo adquiridos pelas bibliotecas nacionais, regionais, ou ainda
por universidades, museus e institutos de pesquisa ou de documentação
especializados. Um cenário que vem se modicando no cenário nacional brasileiro
nos últimos anos, à exemplo do Arquivo Nacional2, que institui em 2018 política de
aquisição relativa ao tema. Porém, mesmo nesse panorama de abertura, a guarda
desse tipo de documentação por arquivos públicos é aberta excepcionalmente
aos documentos de indivíduos que tiveram algum tipo de projeção pública,
normalmente, associada à prática política ou aos casos em que a ameaça de
destruição de algum conjunto documental, sendo assim, o arquivo é como um
guardião passivo, que se propõe a guardar tal documentação, pois nenhum outro
espaço tem disponibilidade para fazê-lo.
Os fundos privados encontrados no APESC parecem se encaixar no último
caso relatado acima. Os conjuntos analisados são em grande medida registros
que foram reunidos com objetivos diversos, mas que não tem nenhuma relação
com políticas de aquisição de acervos formalmente implantados pela instituição.
Sendo assim, esses acervos privados estarem guardados no APESC parece uma
2 Importante destacar que, no caso do Brasil, o Arquivo Nacional instituiu formalmente em 13 de
março de 2018 - 20 anos após a publicação do texto de Cook aqui usado como referência - a sua Polí-
tica de Aquisição de Acervos Privados. O trabalho foi iniciado ainda em 2017 por meio de um Grupo
de Trabalho criado pela portaria 477, de 11 de outubro 2017.
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obra do acaso”: alguém, em algum momento, não é possível detalhar, intermediou
as suas aquisições.
O Fundo Privado Jorge Lacerda se enquadra nesse cenário, de acordo com
o Catálogo dos Fundos Privados disponibilizado pela instituição, o acervo foi
incorporado ao Arquivo Público com a autorização da família do titular, através
do projeto Registro da Memória Pública de Santa Catarina, em meados de 19863.
Jorge Lacerda, registrado Jorge Cominos Lacerda e descendente de imigrantes
gregos, foi uma gura política inuente no estado de Santa Catarina sendo eleito
governador do estado nas eleições de 1955 e assumindo o mandato em 1956, após
duas legislaturas anteriores como deputado federal da bancada catarinense.
Lacerda foi vítima de um acidente aéreo em 1958 que matou também outros dois
políticos catarinenses ativos à época, Nereu Ramos e Leoberto Leal (MEMÓRIA
POLÍTICA DE SANTA CATARINA, 2023).
O fundo referente a Lacerda contém aproximadamente 20.000 documentos
entre cartas, ofícios, telegramas, cartões, certidões, discursos, projetos, ensaios,
fotograas, entrevistas, folhetos, artigos literários, plantas, desenhos, recibos,
recortes de jornais, diplomas, certicados, bilhetes etc. Os documentos estão
separados por tipo documental e ordenados pela ordem cronológica, dentro das
séries, subséries e dossiês.
Durante a pesquisa, as pastas e caixas foram observadas a partir da sequência
numérica denida pelo próprio arquivo, porém em sentido decrescente, ou seja,
começou-se pela pasta número “91” até chegar a pasta número “1” (além das pastas
nomeadas como “Publicações variadas”). Vale ressaltar que em nenhum momento
aparecem descritos nos conteúdos das mesmas a presença de documentos
relacionados a esposa ou às lhas de Lacerda: Kyrana Atherino Lacerda, Irene,
Cristina e Zoê, respectivamente. Porém, já na primeira pasta aberta essas vozes
femininas marcaram sua presença, por meio de um caderno escolar (referente
a disciplina de Língua Inglesa) pertencente a lha Zoê e a diversos cartõezinhos
com felicitações e convites para eventos endereçados a Kyrana.
Prestando atenção a este acervo e voltando às denições e normativas
3 Segundo Schütz (2020), que tratou da trajetória intelectual do historiador catarinense Carlos Hum-
berto Pederneiras Corrêa, coordenador do projeto supracitado, a iniciativa teve como resultado dois
livretos nos quais são elencados aspectos envolvendo as atuações políticas de governantes, bem como
a publicação de entrevista realizada com o personagem temas das publicações. Os livretos foram
lançados em 1986 e tiveram como guras centrais os ex-governadores Celso Ramos e Ivo Silveira.
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construídas a partir da Arquivística, emergiram algumas questões para reexão.
De acordo com a Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados no Brasil, são considerados arquivos
privados os conjuntos de documentos produzidos ou recebidos por pessoas
físicas ou jurídicas, em decorrência de suas atividades” (Brasil, 1991). Segundo
Heloísa Bellotto, uma das principais referências na área, essa denição dada
pela norma toca justamente em uma das características dos documentos
arquivísticos, a sua relação com o conjunto ao qual faz parte: sua organicidade.
Como tributária desse atributo advém a noção de fundo de arquivo, ou seja, o
aglomerado lógico, estruturado e indivisível, de documentos produzidos por
um órgão ou por entidade no decurso de atividades que justicam sua própria
razão de ser” (BELLOTTO, 2006, p. 253). Importante destacar, nesse sentido, que
o Dicionário de Terminologia Arquivística (1996) considera as noções de “arquivo”
– como um conjunto de documentos e não como instituição de guarda - e “fundo
como equivalentes.
Sendo assim, à denição proposta por Bellotto podemos acrescentar a
questão dos arquivos pessoais, ampliando a noção de arquivo privado, ou o
fundo privado acima apresentada, armando que ela corresponde ao conjunto
de documentos produzidos e acumulados por uma entidade, pública ou privada,
pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da
natureza do suporte” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996, p. 27, grifo nosso).
Tomando essas denições como um parâmetro para observar o Fundo
Jorge Lacerda, percebe-se duas inconsistências em relação a forma como é
apresentado o conjunto documental abrigado pelo APESC e entendido como
um “fundo”. Primeiramente, é possível notar que os documentos abrigados
representam somente uma parcela dos documentos produzidos e acumulados”
por Lacerda “no desempenho de suas atividades”, pois como dito, esse conjunto
chegou até o Arquivo por intermédio de um projeto de pesquisa, portanto, por um
recorte temático já denido anteriormente. Ainda, no que tange a expressão “no
desempenho de suas atividades”, um outro elemento a interrogar: a existência
de documentos posteriores ao falecimento de Lacerda, portanto, datados
posteriormente a 1958. Esses documentos, por sua vez, diversos telegramas e
documentos pessoais têm como titular a viúva de Lacerda.
Assim, nesse breve mirada, percebe-se que além da ausência das mulheres
da família nos instrumentos de busca relacionados ao fundo, pode-se questionar
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também a nomenclatura do fundo, que, se fosse levada à cabo a denição
acima descrita, não poderia ser denominado um “fundo”, mas sim uma coleção,
a qual deveria ter também como titular viúva de Lacerda, Kyrana. Conforme o
mencionado Dicionário de Terminologia Arquivística, uma coleção pode
ser denida como um conjunto de documentos com características comuns,
reunidos intencionalmente” (1996, p. 52), assim sendo, o fundo Lacerda, nada
mais seria que uma coleção de documentos reunidos intencionalmente com
objetivos de pesquisa, “papéis que se pretend[ia] analisar para elaborar trabalhos
historiográcos” (BELLOTTO, 2006, p. 253)”, o projeto Registro da Memória
Pública. Nesse caminho, portanto, se perderam tanto a organicidade dada por
seu titular, bem como, a presença das mulheres, em especial de Kyrana, que por
meio de seus papéis nesse conjunto foi percebida.
Ao longo dessas longas tardes de “mergulhonos documentos salvaguardados
no APESC, a partir de uma abordagem etnográca, foi possível tirar dos bastidores
do acervo de um homem público e colocar no palco da memória os vestígios
de mulheres que orbitavam esse personagem, mas que por conta de injunções
sociais tiveram sua atuação subsumida no meio dessa documentação. Como
apontam Cerchiaro e Alves (2022), a reexão sobre os silenciamentos que se
operam dentro dos acervos o pode estar desvinculada de processos sociais e
políticos mais amplos que denem os espaços de atuação de mulheres e homens.
Assim como a história tradicional privilegiou em suas narrativas grupos e pessoas
especícos, os acervos também o fazem em relação à salvaguarda documental”
(CERCHIARO; ALVES, 2022, p. 13).
Ainda vale destacar, tangenciando os debates que giram em torno daquilo
que é guardado e que é dado a ver”, especialmente ao considerar as políticas
de conservação e divulgação de acervos, é possível questionar quais vestígios
e agentes culturais recebem prioridade nesses processos. A partir dessa
perspectiva, se levanta uma pergunta crucial sugerida por Ana Maria Camargo
(2009, p.29): como evitar decisões de salvaguarda fundamentadas em cânones
estabelecidos, que tendem a privilegiar aqueles com reconhecimento acadêmico
e social? Ao estabelecermos outras prioridades de seleção, levando em conta a
transitoriedade dos valores a elas associados, quais seriam as consequências
futuras dessa escolha para os campos de preservação e pesquisa que diversas
instituições buscam atender? Nesse sentido, quais as repercussões das escolhas
tomadas pelo APESC? Dos nove fundos por ele abrigados vemos como titulares
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apenas uma mulher, Alda Pessi, ainda assim, em segundo plano e compartilhando
essa titularidade com seu marido. Doravante esse diagnóstico, pode-se pensar
que a lógica seguida pelo arquivo é aquela do reconhecimento público, um
movimento que de certa forma, continua a reproduzir no arquivamento a mesma
racionalidade do espaço público a ele exterior, o qual historicamente negou
às mulheres locais de protagonismo. Porém, essa dinâmica não é exclusiva do
APESC e outros exemplos ainda podem ser citados: dos 305 arquivos pessoais
mantidos pelo Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, apenas 26 pertencem a
mulheres. Na Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde 88 arquivos pessoais sob
a responsabilidade do Departamento de Arquivo e Documentação, somente seis
são de indivíduos do sexo feminino (HEYMANN, 2020).
Diferentemente do APESC, os arquivos eclesiásticos são considerados ar-
quivos privados e, dentro dessa denição, são entendidos como arquivos so-
ciais, os quais abrangem um grande número de arquivos importantes, sobres-
saindo-se os religiosos, os notariais e os de movimentos e entidades políticas”
(BELLOTTO, 2006, p. 255).
No caso brasileiro, como apontado anteriormente, os arquivos religiosos,
em certa medida, adquirem um caráter público, dado o valor jurídico dos docu-
mentos por eles lavrados no período anterior à Proclamação da República, quan-
do não havia no país o registro civil. Dessa forma, esses arquivos também me-
receram a atenção da Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que determina em seu
Artigo 16 que “Os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos
anteriormente à vigência do Código Civil cam identicados como de interesse
público e social”. Portanto, o Arquivo Histórico Eclesiástico tem tanto um caráter
público que obriga a Igreja Católica manter esse acervo protegido, mas também
tem um caráter privado que permite o controle sobre o acesso à documentação
que abriga.
É importante ainda não perder de vista, quando se trata de arquivos de insti-
tuições religiosas, o controle cuidadoso dessas organizações acerca de informa-
ções que remetam a elas, assim é possível perceber que esses arquivos têm uma
clara orientação institucional em relação àquilo que é preservado, que é excluído
ou que pode ser acessado (EPP, 1990). Além disso, como as instituições religiosas
têm seus cargos diretivos formados quase que integralmente por homens, como
consequência, há uma maior diculdade de encontrar vestígios documentais de
mulheres junto a essas instituições. Nesse caso, «é preciso então aprender a ler
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nas entrelinhas(EPP, 1990, p.167). Algo parecido ocorre com arquivos adminis-
trativos do poder público, como é o caso do APESC brevemente analisado acima,
como são poucas as mulheres que ascendem a quadros de relevância dentro da
estrutura hierárquica da administração pública, é sintomático que menos docu-
mentação referente a elas será possível encontrar nos acervos desses arquivos.
O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina apresenta essas caracte-
rísticas acima descritas: o grande controle sobre informação que pode ser aces-
sada, a orientação institucional e a obrigação em dar acesso aos documentos
referentes a registros de nascimento, casamento, óbito, por exemplo, que foram
produzidos em momento anterior à criação do Código Civil. No caso especíco
desse arquivo, como apontado, os documentos mais antigos são um livro de
registros de casamentos referente a Paróquia Nossa Senhora do Desterro, que
iniciou em 1714, e um livro de registro de batismo dessa mesma paróquia, iniciado
em 1751.
Os documentos analisados durante as visitas a esse acervo não eram anti-
gos como os acima citados e envolveram objetos documentais, datados entre o
início e o nal do século XX, referentes a congregações religiosas femininas, ir-
mandades religiosas e associações de mulheres católicas. O gênero e a tipologia
dos documentos é bastante variada, são cartas, ofícios, livros de contabilidade,
livretos, fotograas, convites para eventos, santinhos, lembranças da ordenação
de religiosas enviadas ao Bispo Arquidiocesano que estivesse à frente da Cúria no
momento, por exemplo. Por se tratar de documentação relativa a organizações
basilarmente femininas, é natural que se encontre nesse acervo documentos re-
lativos a mulheres, nesse sentido, é relevante destacar que não existe nenhum
fundo pessoal que tenha alguma mulher especíca como titular. No entanto, par-
tindo desse primeiro diagnóstico, foi possível perceber a presença recorrente e
o interesse especíco acerca da vida de algumas personagens, algo que foi
possível detectar por que se buscou “olhar nas entrelinhas”.
Entre as vozes femininas que se destacaram nessa documentação, está a de
Madre Benvenuta, religiosa vinda da Alemanha que teve uma atuação marcante
na administração e organização da Congregação das Irmãs da Divina Providência
em Florianópolis, o que legou a ela, inclusive, o nome de uma das principais ave-
nidas da Ilha de Santa Catarina, localizada no bairro Santa Mônica. À vista disso,
é interessante pensar que não foi possível localizar nenhum trabalho acadêmico
que tangencie a vida dessa religiosa e que pouca coisa sobre sua vida é divul-
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gada. Como exceções dentro desse cenário, podem ser citadas três reportagens
publicadas pelos periódicos virtuais ND Online4 e NSC Total5, nas quais a curiosi-
dade pela vida dessa personagem está justamente relacionada à existência de
uma rua com o seu nome. De acordo com essas reportagens, o grande terreno
que era posse da Congregação e que seria loteado - hoje correspondendo grosso
modo ao Bairro Santo Mônica - teria sido um processo que teve como principal
intermediadora a própria Madre Benvenuta. Porém, o que mais chama atenção
nesses relatos é a presença recorrente de uma religiosa que parece se colocar
como “voz autorizada” a falar sobre a vida de Madre Benvenuta: Irmã Enedina Sa-
cheti, cenário que remete, mais uma vez, ao controle da informação preconizado
nas políticas de instituições religiosas.
Nos documentos encontrados no Arquivo Histórico Eclesiástico, a imagem
de Madre Benvenuta diverge da representação laudatória trazida por Irmã Ene-
dina Sacheti. Entre essas duas narrativas a ocial e a do arquivo aquela que
se repete é a da sua atuação constante e da formação de uma sólida teia de re-
lacionamentos que permitiu entrever sua presença até mesmo em documentos
em que ela não estava diretamente envolvida, mas era mencionada. Esses ele-
mentos apontam para uma presença marcante de Madre Benvenuta dentro da
burocracia e administração da Congregação, mesmo que limitada àquilo que era
permitido a uma mulher exercer dentro da hierarquia da Igreja Católica. Nesse
cenário, é fundamental coomprender, como arma Nunes (1985), que no catoli-
cismo os homens não são apenas detentores do poder sagrado que faz a media-
ção entre o mundo terreno e o divino, mas são ]também as vozes autorizadas que
elaboram e reelaboram a narrativa ocial em que se naturalizam padrões sobre o
que seria inerente ao mundo feminino e o que pertenceria ao mundo masculino.
Outros documentos desse acervo também vão pouco a pouco revelando a
presença de diferentes mulheres. Alguns têm caráter biográco ou trazem dados
biográcos de religiosas, que são tomadas pelas próprias congregações como
mulheres de destaque e modelos a serem seguidas. Conjuntamente à documen-
4 STROISCH, Bruna. Além das placas: Conheça a história de três mulheres que dão nome a ruas de Florianópolis. ND+,
Florianópolis, 15 nov. 2019. Disponível em: https://ndmais.com.br/noticias/alem-das-placas-conheca-a-historia-de-tres-
-mulheres-que-dao-nome-a-ruas-de-orianopolis/ Acesso em: 16 nov. 2023. e PRADO, Windson. Madre Benvenuta:
quem foi a religiosa que dá nome a uma das principais vias de Florianópolis. ND+, Florianópolis, 13 set. 2023.Disponível
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-orianopolis/ Acesso em: 16 nov. 2023.
5 MARASCO, Carolina. Rita Maria, Madre Benvenuta e Antonieta de Barros: quem são as mulheres dos locais de Flo-
rianópolis. NSC Total, Florianópolis, 6 mar. 2020. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/rita-maria-ma-
dre-benvenuta-e-antonieta-de-barros-quem-sao-as-mulheres-dos-locais-de Acesso em: 16 nov. 2023.
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tação referente a Congregação das Irmãs da Divina Providência, da qual Madre
Benvenuta era parte, certo volume de objetos documentais pertencentes a
outras religiosas como Irmã Heriburga, Irmã Emanuelle, Irmã Alina e Irmã Júlia.
também alguns dossiês com documentos pessoais de duas religiosas: Irmã
Bernadette Ingelbeck e Irmã Demétria.
Nesses conjuntos referentes às mulheres que seguiram pela vocação reli-
giosa é possível visualizar diversos elementos e ações dessas personagens, como
por exemplo, aspectos relacionados às necessidades nanceiras ou estruturais
das congregações, certos conitos internos e até mesmo uma documentação
mais pessoal como cartas e fotograas.
em relação ao documentos de irmandades religiosas leigas, quando são
irmandades mistas, nas quais homens e mulheres são integrantes, as mulheres
emergem apenas em funções como zeladoras ou responsáveis pela organização
de espaços e eventos. Tais damas têm um maior protagonismo quando se tratam
de Ligas ou Legiões de Mulheres Católicas, agremiações que têm somente mu-
lheres participantes, como a Associação de Damas de Caridade ou a Legião Irmã
Bernwarda, ambas de Florianópolis e formadas por mulheres de classes mais
abastadas da cidade. Esses documentos foram importantes para demonstrar o
espaço de atuação e quem eram as vozes que agiam nessas coletividades.
Conclusão
Como se tentou demonstrar ao longo do exposto, a perspectiva abraçada ao
longo da análise, com o objetivo de tentar encontrar os vestígios de mulheres sal-
vaguardados nos arquivos aqui investigados, apontou para algumas das manei-
ras pelas quais as dinâmicas de gênero perpassam os processos de construção
da memória. Essas dinâmicas se deram de diferentes modos: seja por meio um
silenciamento, caso do Fundo Jorge Lacerda abrigado no APESC, que nos seus
instrumentos de pesquisa obliterou a presença das mulheres da família nessa
documentação, seja por meio das diferentes mulheres que estavam submetidas
a um ambiente onde as relações de poder apontam para um domínio eminente-
mente masculino, como é o caso do Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Ca-
tarina, espaço no qual não nem mesmo instrumentos de pesquisa que possam
localizá-las.
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Espera-se que, ao longo dessas andanças pelos caminhos noite”, tenha se
demonstrado a importância de olhar para os arquivos desde suas particularida-
des e, principalmente, nas suas entrelinhas, reetindo sobre seus contextos es-
pecícos e analisando as diferentes esferas que operam nas suas construções,
conservações e também difusões e que, muitas vezes, deixam silenciadas as vo-
zes das mulheres nesses espaços “guardadas”.
Aqui foram vistas diversas ativações do arquivo, como sugere Keteelar, ati-
vações que trouxeram à superfície os vestígios de algumas dessas mulheres pre-
sentes nesses acervos. Porém, o se pode perder de vista que essas ativações
são innitas e que novas visitas a esses arquivos, lançando novos olhares para a
documentação que abrigam, poderão trazer à tona outras vozes ainda silencia-
das.
Como apontado diversas vezes, as instituições arquivísticas reetem dinâ-
micas de poder, assim sendo, o silêncio e a invisibilidade de determinados temas
ou pessoas são produtos de operações que não são neutras e inferem diretamen-
te na construção de acervos. Por meio da interrogação dessas dinâmicas, é pos-
sível abordar questões como a negociação entre memória e esquecimento, a luta
por reconhecimento e prevalência de certos interesses coletivos em detrimento
de outros. Em um contexto em que as vozes femininas são frequentemente si-
lenciadas, muitas vezes de maneira coercitiva e violenta, destaca-se a importân-
cia dos processos de arquivamento de suas experiências como personagens his-
tóricas, assim como o papel desempenhado pelas instituições de memória, que
nas suas políticas determinam, por exemplo, quais os arquivos estão dispostas a
receber, salvaguardar e tornar disponíveis.
Por m, reitera-se que as linhas aqui descritas e o projeto de pesquisa do
qual elas são recorte, pretendem se articular às preocupações recentes que de-
terminadas instituições arquivísticas no país têm no sentido de valorizar acervos
femininos, tanto por meio do processamento e aquisição de arquivos de mulhe-
res, quanto através de projetos de difusão de fundos dessas titulares. O debate
ainda está em curso e, claro, não se esgota na presente análise. Existem ainda
muitas narrativas tácitas a serem tiradas da escuridão.
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