ARTIGOS LIVRES
123 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Claudelir Correa Clemente
DO COLONIAL AO CONTEMPORÂNEO: UMA RELEITURA DA OBRA DE ROGER BASTIDE
E FLORESTAN FERNANDES PARA REPENSAR A MEMÓRIA AFRO-PAULISTANA
FROM COLONIAL TO CONTEMPORARY: A REINTERPRETATION OF THE WORK OF
ROGER BASTIDE AND FLORESTAN FERNANDES TO RETHINK AFRO-SÃO PAULO
MEMORY
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20307
Claudelir Correa Clemente
Universidade Federal de Uberlândia
https://orcid.org/0000-0001-5126-6704
claudelirufu@gmail.com
Recebido em 29 de fevereiro de 2024
Aprovado em 18 de maio de 2024
RESUMO: Na pretensão de compor e
subsidiar o debate contemporâneo dos
movimentos negros e da pesquisa cientíca
sobre a memória afro-paulistana, este artigo
revisita a obra Brancos e negros em São Paulo, de
Roger Bastide e Florestan Fernandes, na versão
de 1959, e, por meio de suas fontes, busca
evidenciar aspectos relevantes da etnicidade e
dos modos de ser, agir e conviver de africanos
e afro-brasileiros que foram escravizados na
cidade São Paulo entre os séculos XVI e XIX.
Palavras-chave: Memória, Escravizados,
Etnicidade, Culturas afro
ABSTRACT: With the aim of composing and
contributing to the contemporary debate on
black movements and scientic research on São
Paulo African memory, this article revisits the
work Whites and Negroes in São Paulo by Roger
Bastide and Florestan Fernandes (1959), and,
through its sources, seeks to highlight relevant
aspects to ethnicity and ways of being, acting,
and coexisting of Africans and African Brazilians
who were enslaved in the city of São Paulo
between the 16th and 19th centuries.
Key words: Memory, Enslaved, Ethnicity,
African cultures
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INTRODUÇÃO
As reexões aqui apresentadas estão assentes na análise de fontes, docu-
mentos e etnograas que foram consultados por Roger Bastide e Florestan Fer-
nandes para realização da obra Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológi-
co sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de
cor na sociedade paulistana, que teve a primeira edição em 1955; para este artigo,
no entanto, leu-se a segunda edição, que data de 1959. Reconhece-se essa obra
como uma das poucas fontes que tratam da presença negra na cidade de São
Paulo, desde os primeiros anos de colonização.
As motivações para escrever este artigo surgiram em incursões antropoló-
gicas realizadas entre 2018 e 2023 em atividades de coletivos afro-paulistanos,
cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade. Pude acompanhá-las a partir
de ações empreendidas em dois bairros da capital paulista: Penha de França, na
zona leste da cidade, onde ca a Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha
de França; e Bixiga, na zona central, local da recente descoberta do Quilombo
Saracura e onde nasceu a Escola de Samba Vai-Vai.
A grande problemática para estes coletivos é que, neste século XXI, a ques-
tão da presença afro no período colonial paulistano é questionada, na sua exis-
tência e na sua validade, nos círculos de investidores que cobiçam principalmen-
te as áreas nobres da capital. em curso uma série de narrativas e ações que
buscam destituir as populações negras do direito de morar e conviver em bairros
paulistanos de classe média e alta. Isso se assevera em espaços que concentram
grupos mais organizados de expressões afro-brasileiras signicativas para a he-
terogeneidade cultural da cidade e em locais onde foram feitas descobertas de
bens materiais e imateriais que denotam a origem negra de São Paulo.
Nos últimos anos, em territórios devassados por grandes projetos metroviá-
rios e imobiliários, um conjunto de vestígios materiais de africanos e afro-brasi-
leiros escravizados no período colonial tem sido desenterrado.
Contrariando as elites empresariais, que apostavam num apagamento irre-
versível das culturas negras ancestrais da memória paulistana, eis que seus res-
quícios se apresentam à luz da contemporaneidade em bairros da capital paulis-
ta. É o caso do supracitado bairro do Bixiga, no qual foram encontrados vestígios
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do Quilombo Saracura1 em meio às obras de uma nova linha do Metrô, projeto li-
berado pelo grupo transnacional Acciona. Concomitantemente a esse importan-
te achado quilombola, outro símbolo afrocultural foi apagado no bairro: a sede
de uma das mais tradicionais escolas de samba paulistanas, a Vai-Vai, demolida
em 2021 para dar lugar a uma estação da nova linha metroviária. No vizinho bair-
ro da Liberdade, durante as escavações de um empreendimento imobiliário, em
2018, foram encontradas ossadas dos tempos de escravidão, o que comprova a
existência do Cemitério dos Aitos2, até então conhecido apenas por meio de
documentos.
Mesmo diante de evidências que certicam a presença negra na São Paulo
Colonial, o racismo perpetrado pelos setores mais abastados da sociedade pau-
listana manifesta-se em estratégias e narrativas de não reconhecimento desses
bens enquanto patrimônio municipal e estadual. É possível observar, em 2024,
uma morosidade explícita dos órgãos públicos municipais e estaduais, e mesmo
inércia no registro desse patrimônio e em demais ações políticas e educativas
para salvaguardar o espólio negro na capital paulista. Também se observa uma
exacerbada visão eurocêntrica e etnocêntrica de certos quadros prossionais
que atuam no patrimônio cultural lotados ou de prestadores de serviços em ór-
gãos com sede na capital paulista, sejam municipais, sejam estaduais, sejam fe-
derais.
Por parte desses quadros, há sempre ênfase no reduzido contingente popu-
lacional negro no período colonial paulistano, sem, contudo, que se aponte quan-
to era igualmente reduzido o contingente de brancos portugueses ou de outros
países da Europa que viviam então na cidade.
Sabe-se, histórica e cienticamente, que São Paulo é terra indígena (MON-
TEIRO, 1994; DOS SANTOS, 1998) e que africanas e africanos foram escravizados
nessa capital. Bens culturais dessas populações compõem o patrimônio de São
Paulo.
Ademais, não se questiona tecnicamente o patrimônio deixado pelas cul-
turas europeias, historicamente mais valorizado. Consequentemente, esse con-
1 (SILVA, 2023). Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quilombo-saracura-a-
-busca-pela-preservacao-das-memorias-encontradas-nas-obras-do-metro-em-sao-paulo. Acesso em:
21 jul. 2020.
2 (REIS, 2018) [on-line]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/06/
arqueologos-encontram-ossadas-da-epoca-da-escravidao-em-terreno-no-centro-de-sao-paulo.ghtml.
Acesso em: 27 abr. 2024.
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texto aumenta as diculdades da população organizada para conseguir o regis-
tro e o tombamento dos bens culturais indígenas, africanos e o afro-brasileiros.
Na cidade de São Paulo, esse fenômeno se deve a um apagamento constan-
te: das origens africanas; das culturas afro; do processo de escravização pelo
qual passaram negras e negros; e da memória e do patrimônio afro. Na contem-
poraneidade, há, por parte dos movimentos e diversos segmentos da população
negra, uma busca por reconhecimento do seu patrimônio cultural, ao qual é atri-
buído sentido identitário.
Por isso, revisitar a obra de Bastide e Fernandes, depois de quase 70 anos
de sua primeira publicação, e deter-se sobre suas fontes tem como um dos obje-
tivos fomentar um campo reexivo com informações antropológicas e históricas
para ser usadas pelos movimentos sociais negros que lutam pela memória afro
da cidade de São Paulo.
Buscou-se fazer uma releitura afrocentrada, orientada pela produção in-
telectual africana e afro-brasileira contemporânea. Notadamente, das contri-
buições africanas, as teorias do antropólogo costa-marnense, de ascendência
Akan, Georges Niangoran-Bouah (1978) e do historiador costa-marnense Pierre
Kipré (2010) apresentam um conjunto de estudos que buscam captar a visão in-
terna africana, o que, para a escrita deste artigo, foi de suma importância, permi-
tindo destacar a grande relevância dos povos Akan e Gã para a compreensão das
etnias que contribuíram para a formação do Brasil.
Neste artigo, pretende-se ir além do sistema de classicação étnica colo-
nial, que se baseia nas regiões africanas de procedência dos escravizados – An-
gola, Benguela, Guiné e Mina.
Acerca da intelectualidade afro-brasileira, recorremos aos pensamentos de
Beatriz do Nascimento (2021), Clóvis Moura (2021) e Lelia Gonzalez (1979), por suas
perspectivas afrocentradas e decoloniais e por reforçarem a importância da re-
sistência negra, criadora de quilombos e de formas de aquilombolamento desde
tempos imemoriais, seja no continente africano pré-colonial, seja no Brasil.
Beatriz do Nascimento abriu as miradas deste artigo com sua reexão ge-
nuína sobre a invisibilidade negra na historiograa brasileira. Certa vez, ela co-
mentou em uma entrevista:
A história do Brasil foi escrita por mãos brancas. Tanto o negro quanto o
índio não têm sua história escrita, ainda. Isso é um problema muito sério, porque
a gente frequenta universidade, frequenta escola, e não temos uma visão correta
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do passado do negro3.
Essa invisibilização do negro e do índio nas pesquisas históricas, como ar-
ma Nascimento, também incomodou Bastide e Fernandes (1959), como veremos
adiante, pois a historiograa consultada, à época, não apresentava informações
precisas sobre a importação de africanos nos primeiros 50 anos do descobri-
mento.
Um segundo objetivo que orienta as análises deste artigo é provocar o de-
bate cientíco em torno da presença de africanos na cidade de São Paulo, em es-
pecial nos períodos quinhentista e seiscentista. Sobre essa época, são escassas
as pesquisas históricas e, sobretudo, antropológicas que aprofundam reexões
sobre as origens étnicas dos povos africanos escravizados em solo paulistano.
Portanto, revisitar a obra de Bastide e Fernandes (1959), dando atenção às
suas fontes, possibilita o encontro de informações signicativas sobre a presen-
ça de africanos escravizados e seus descendentes no território paulistano dos
séculos XVI ao XIX.
As origens africanas da cidade de São Paulo
no início do capítulo I de Brancos e negros, Bastide e Fernandes (1959, p.
1) armam:
É impossível precisar a época em que se iniciou a importação do braço negro em São
Paulo. Presume-se que os primeiros africanos vieram para o Brasil entre 1516 e 1526.
No entanto, a partir dos meados do século XVII principiou o auxo regular e cons-
tante de africanos para a Colônia.
Mauricio Goulart (1975, p. 95), que é a fonte consultada por esses autores,
salienta:
Quem trouxe os primeiros africanos para o Brasil e quando, com exatidão, isso se deu,
são problemas que a investigação histórica, à mingua de documentos, não elucidou
ainda, e, quiçá, nunca elucide. Mas, talvez não erre muito quem faça coincidir a entrada
dos primeiros negros com a fabricação de açúcares no Brasil.
Foi na condição de escravizadas que as populações africanas conheceram
a perversidade da colonização europeia que as racializou como negras e as lan-
3 (RESÍDUO, 2023). Série documental, episódio 1. Trecho disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=xxkBDmWi_xM. Acesso em: 27 abr. 2024.
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çou além-mar, em navios negreiros, sequestrando-as majoritariamente para as
Américas:
[...] em proveito do tráco atlântico (século XV ao XIX), homens e mulheres originá-
rios de África foram transformados em homens-objecto, homens-mercadorias e ho-
mens-moeda. Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a ou-
tros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome ou língua própria
(MBEMBE, 2017 p. 12).
É sob esse contexto macabro que algumas fontes consultadas para escrita
do presente artigo indicam que no século XVI havia africanos em São Paulo.
Eram pessoas importadas da África Ocidental pela família Schetz de Antuérpia
(MONTEIRO, 1994). Tudo aponta para a presença na cidade de um ou outro mem-
bro de povos de culturas milenares, sendo mais provavelmente advindos dos rei-
nos de Akan, Mandingo e Angolares4 (DAVEAU, 1962; NIANGORAN-BOUAH, 1978;
KIPRÉ, 2010).
No século XV, os dois primeiros reinos estariam localizados na região que
cou conhecida como Costa da Mina, e os Angolares na ilha de São Tomé e Prín-
cipe, localizados no Golfo da Guiné. Região explorada por portugueses e demais
europeus, como a citada família Schetz de Antuérpia, pois como os demais
nobres europeus “[...] estavam imbricados nas redes mercantis que envolviam
Portugal e seus espaços ultramarinos desde ns do século XV”, como aponta Vi-
lardaga (2022, p. 185).
De acordo com Kipré (2010 p. 362), na costa atlântica africana:
De 1471 a 1480, a região que vai do cabo Palmas à foz do Volta foi explorada pelos
portugueses, que entraram em contato com as populações locais; em 1481
começaram a construir o forte de São Jorge da Mina (Elmina), que lhes garantiu o
controle efetivo sobre o comércio costeiro.
O comércio de escravizados em direção ao Brasil teria começado nesse lo-
cal. Mas, o tráco mais signicativo ocorreu a partir do século XVII, quando a ci-
dade de São Paulo se tornou negra. A polvorosa dos paulistas em torno das minas
de ouro supostamente descobertas por Afonso Sardinha, que morava próximo
ao rio Pinheiros (VILARDAGA, 2013), foi um dos fatos que abriram as negociações
4  É a denominação corrente entre os séculos XV e XIX para identicar grupo de africanos e afri-
canas que se insurgiram contra a escravidão na atual ilha de São Tomé e Príncipe, arquipélago do
Golfo da Guiné. Há, porém, outras versões que podem ser vericadas em Suzanne Daveau (1998).
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que promoveriam a vinda de africanos para a capital. Bastide e Fernandes (1959,
p. 7) conrmam este tornar-se negro paulista: “É pelos ns do século XVII, com a
localização de minas auríferas pelos paulistas, que começa a se formar o primei-
ro uxo regular e apreciável de escravos negros para estas regiões”.
Goulart (1975, p. 137), uma das fontes desses autores, ressalta:
Também em S. Paulo a situação era de penúria de africanos, como confessava em
1713 o governador da capitania, D. Braz Baltazar da Silveira, endossando junto ao rei o
pedido dos moradores: “...pretendem que V. M. lhes faça a mercê de permitir que à Vila
de Santos venham em direitura navios de Angola e Cabo Verde com escravos de que
necessitam, assim para o serviço das lavouras como para as minas”.
No século XVII, a Costa da Mina era a região provedora do comércio de es-
cravizados. Esse perl foi ampliado devido às disputas entre as nações europeias
por esse local, que acabou subdividido em Costa do Ouro, Costa dos Escravos e
demais “costas”, conforme demonstra o mapa.
Mapa - Costa da Guiné no século XVII.
Fonte: Práticas Religiosas da Costa da Mina/Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA.
O tráco de escravos teve grande impacto sobre os povos e culturas africa-
nas. Como destacou Mbembe (2017, p. 12), essas pessoas “[...] passaram a per-
tencer a outros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome
ou língua”. Ou seja, nos mercados de escravos instalados na proximidade do li-
toral africano elas tiveram suas origens desmerecidas. Foram classicadas de
acordo com a perspectiva ocidental que lhes conferiu origens vinculadas aos lo-
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cais onde foram mantidos em cativeiros por isso os termos de procedência de
escravizados Angola, Benguela, Guiné, Mina, que se referem ao porto ou à região
de captura e venda de africanos. Depois de um tempo nesses locais, essas pes-
soas eram transportadas em condições subumanas para o Brasil, sendo então
escravizadas.
Nesse sentido, para além das denominações ocidentais que identicaram
os escravizados, a costa atlântica africana, desde tempos imemoriais, atraiu
uma pluralidade de sociedades de culturas singulares. Entre elas, o cultivo da
mobilidade é algo antigo, congurando-se um dos preceitos que norteiam as
experiências socioculturais africanas.
No contexto pré-colonial muitos povos africanos migravam e se instalavam
por longos períodos nessa região. Entre eles destacam-se aqueles que se
encontravam na costa atlântica no período colonial cujos membros foram
capturados e escravizados na mineração do Sudeste brasileiro, incluindo a
cidade de São Paulo.
Assim, muitos escravizados classicados de forma genérica como escravo
mina” ou “negro mina”, podem pertencer a povos que estavam nas regiões
litorâneas da África entre os século XVI e XVII, constatamos que neste período
povoavam a região os povos Akan (PERSON, 2010, KIPRÉ, 2010) e , que no Brasil
foram vulgarmente identicados pelos brancos europeus como “escravos mina”.
A sociedade Akan, que atualmente é um grupo étnico signicativo em países
como Costa do Marm e Gana, merece aqui um breve destaque. Conhecidos pelo
culto ao ouro, os akan acumulavam muitos conhecimentos sobre esse metal
precioso, tendo contribuído para o sucesso da mineração brasileira. Desde que os
portugueses se instalaram na Costa Mina, no século XV, os akan negociavam com
eles5, mas também foram por eles escravizados. De acordo com o antropólogo
africano Niangoran-Bouah (1978, p. 127), para a sociedade Akan o ouro “[...] é
o metal dos metais, ele é mais nobre, inalterável e eterno (...Encontrar ouro na
natureza é um feliz presságio6 (NIANGORAN-BOUAH, 1978, p. 127).
Envoltos na limitante designação escravo mina”, sua contribuição na
formação das populações sudestinas foi invisibilizada, porquanto apagados os
seus conhecimentos sobre extração do ouro. Sobre esse processo, apontam
5 Sobre esse assunto ver Kipré (2010).
6 Tradução minha.
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Bastide e Fernandes (1959, p. 14):
Desde 1706 os negros importados se destinavam, na proporção de 20 para 3, aos tra-
balhos das minas; eles apenas transitavam por São Paulo, em sua maioria, ou eram
negociados por intermediários nas zonas de mineração. Os trabalhos nas minas eram
muito rudes, exigindo não trabalhadores robustos, mas ainda contínua renovação
de quadros humanos. Segundo documentos da época, os escravos mais debilitados
eram escolhidos para a lavoura, enquanto os mais fortes eram remetidos para os ser-
viços de mineração.
Na p. 14 de Brancos e negros a nota de rodapé 34 complementa a ideia da
citação acima:
Cf: Afonso E. Taunay, Subsídios para a história do tráco africano no Brasil, pág. 624-
626, este autor cita um exemplo: em Goiás acontecia morrerem 100 escravos no perío-
do de um ano, coisa nunca acontecida aos agricultores”. Além das próprias condições
de trabalho, terríveis e desumanas no começo, alguns autores mencionam a maligni-
dade do clima (cf, F. J. de Lacerda e Almeida, op. cit., pág. 64).
Salienta-se que do contingente africano empregado nas áreas de minera-
ção que se concentraram fora do perímetro de São Paulo, um número signicati-
vo para época seria escravizado no município, atuando na agricultura de subsis-
tência e em serviços domésticos.
Do contexto colonial paulistano do século XVIII, marcado pelo trabalho rural
e doméstico, há escassas informações quanto à presença africana; algumas es-
tão disponíveis na documentação depositada no Arquivo da Cúria Metropolitana
de São Paulo. É o que apontam as pesquisas de Fabiana Schleumer (2011), que
aprofundam estudos sobre africanos que são mencionados nos processos-cri-
mes de feitiçaria ocorridos na cidade. Por meio de seu artigo foi possível con-
jecturar a existência de algumas formas de sociabilidade afro na capital paulista
daquele período. Até porque aos escravizados era negada a possibilidade de vida
social, de convivências, sendo considerados apenas força de trabalho. Segundo
essa autora, é necessário olhar para a São Paulo colonial como
[...] um espaço não somente de práticas e vivências indígenas, como tem armado a
historiograa tradicional, mas também como centro de elaboração e reelaboração de
valores e práticas culturais africanas; áfricas que se criaram e se recriam no bojo da
sociedade paulistana colonial (SCHLEUMER, 2011, p. 9).
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De fato, no decorrer do século XVIII, o negro se tornou o principal instru-
mento da produção econômica. Numa passagem, Bastide e Fernandes (1959 p.17)
ressaltam:
Quanto à vila de São Paulo, que nos interessa particularmente por ser o próprio campo
dos nossos estudos, a documentação revela que se desenvolvera relativamente, be-
neciando-se particularmente com o comércio das minas de Goiás e Mato Grosso e
com a exploração em escala econômica da produção agrícola e da criação. Em 1766,
contaria 833 fogos e possuiria 3.820 habitantes. Os dados relativos a 1777 revelam que
a população aumentara, abrangendo 4.409 habitantes, dos quais 2.423 livres (brancos,
índios, mestiços e libertos) e 1.986 escravos (africanos e negros crioulos). Em média,
cada proprietário possuía de 1 a 5 escravos; mas, alguns possuíam mais do que isso:
havia os que tinham de 10 a 30 escravos e notam-se dois que contavam com 51 e com
104 escravos.
A tendência ao aumento da população africana iniciada nos ns daquele sé-
culo ganhou ímpeto, adentrando o século XIX com intenso crescimento, sobretu-
do devido à grande lavoura do café e sua surpreendente vitalidade.
O plantel de escravos domésticos dos moradores da cidade continuou crescendo na
primeira metade do Oitocentos, especialmente para os proprietários com negócios
urbanos e rurais, ou seja, todos os índices indicam que a riqueza dos moradores da
capital crescia ao mesmo tempo que se desenvolviam as novas fronteiras agrícolas
(ARAÚJO, 2003, p. 127).
O boom cafeeiro transformou a cidade de São Paulo num território de grande
efervescência, tornando-a, inclusive, centro comercial e bancário que adminis-
trava os lucros da grande lavoura.
Devido à decadência dos proprietários agrícolas das províncias do Norte
um contingente signicativo de sua escravaria seria comprado por cafeicultores
paulistas, que também comprariam no mercado ilegal “[...] comboios, que ali-
mentavam com os africanos importados ‘ilegalmentepelos tracantes e nego-
ciados no mercado do Valongo” (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 36).
Em tabela elaborada pela historiadora Regiane Mattos (2006 p.103), sobre a
origem de africanos batizados na capital paulista, no período de 1800 a 1850, foi
identicado um número considerável de pessoas procedentes da Guiné, desig-
nação geral para quem vinha da costa atlântica da África e da região Centro-Oci-
dental do continente.
Os estudos de (ARAÚJO, 2003; MATTOS, 2006) reetem questões discutidas
por Bastide e Fernandes (1959, p. 27):
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A expansão da grande lavoura” reetiu-se diretamente na composição da população
escrava, provocando, de modo bem nítido a partir do primeiro decênio do século, uma
elevação progressiva na importação de escravos negros (crioulos e africanos). Os da-
dos aqui expostos, considerando-se também os relativos a 1797 (cf. pág. 449), permi-
tem registrar que a média de aumento anual da população escrava, com referência ao
elemento negro, cresce continuamente, tornando-se esse crescimento verdadeira-
mente apreciável depois de 1815.
O adensamento da população negra no espaço urbano paulistano, obser-
vado na virada do século XVIII para o século XIX, signicou a ampliação de for-
mas de convivência social entre escravizados. Sabe-se que o sistema escravis-
ta apresentava determinadas regras e limites para essas pessoas, mas o que se
constata é que negras e negros paulistanos aprenderam a se mover no interior
dessas regras, de modo a criar alternativas de convivência e contestação.
A cidade quilombola
A visão que o mundo ocidental procurou transmitir da África
foi a de um continente isolado e bizarro, cuja história foi
despertada com a chegada dos europeus. (...) numerosas foram
as formas de resistência que o negro conservou ou incorporou
na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e
histórica.”
(Beatriz Nascimento)
A grande lavoura de café ampliou o contingente de escravizados no Estado
de São Paulo, constituído majoritariamente de africanos e afro-brasileiros ad-
quiridos pelos cafeicultores paulistas de fazendeiros das províncias do Norte. Ao
mesmo tempo, observa-se um crescente da resistência quilombola no território
paulista. De acordo Clovis Moura (2021), em São Paulo, como em outras capita-
nias:
Onde quer que o trabalho escravo se estraticasse surgia o quilombo ou mocambo de
negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, desgastando em diversos níveis as
forças produtivas escravistas, quer pela sua ação militar, quer pelo rapto de escra-
vos das fazendas, fato que constitui, do ponto de vista econômico, subtração com-
pulsória das forças produtivas da classe senhorial. Dessa forma, se o aquilombamento
não tinha um projeto de nova ordenação social, capaz de substituir o escravismo, em
contrapartida, tinha potencial e dinamismo capazes de desgastá-lo e criar elementos
de crise permanente em sua estrutura. (MOURA, 2021, p. 25-6)
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São vários os casos mencionados por Moura de resistência quilombola es-
palhados pela capitania de São Paulo.
No dia 12 de fevereiro de 1809, o capitão-mor de Itu, Vicente da Costa, comunicou ao
governador, capitão-general Franca e Horta, que os escravos daquela cidade e mais
os de Sorocaba, Campinas, Porto Feliz e Itapetininga revoltaram-se, (MOURA, 2021, p.
38) “fustigando os seus senhores e em quilombos e em quadrilhas armados de eixas e
outras armas, atacavam os viandantes, as fazendas, roubando, matando e praticando
outros insultos dentro da vila, e até mesmo formaram uma sedição na noite de Natal”
(RIBEIRO, 1981 apud MOURA, 2021, p. 38).
É importante considerar que esse tipo de resistência tinha lastro no
continente africano. De acordo com Beatriz do Nascimento (2021), na África
Centro-Ocidental, porém, existia entre povo Imbangala, de Angola, a institui-
ção kilombo. A historiadora acrescenta: “[...] o acampamento de escravos fugiti-
vos, como quando alguns Imbangala estavam em comércio negreiro com os por-
tugueses, também era kilombo” (NASCIMENTO, 2021, p. 157).
Bem perto de Angola, ainda nos primórdios da colonização portuguesa na
costa africana, a Ilha de São Tomé e Príncipe foi palco do mais célebre levante
contra a escravidão. No século XVI, as guerras do mato(SCHMIDT, 2007) opo-
riam no arquipélago portugueses e os quilombolas angolares. Nascimento (2021),
por sua vez, aponta que os portugueses, frente às insurgências nos quilombos
as primeiras em território africano e, depois, mais intensamente no Brasil do
século XVII, com Palmares (AL), e do XVIII, com o Quilombo do Ambrósio7 (MG)
–, deniram a seu modo, em 1740, o signicado de quilombo. A saber: “[...] toda
habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda
que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (NASCIMENTO,
2021, p. 152).
Para a autora, nisso se encontra, uma interpretação estereotipada de como
[se] constituíam os “quilombos”
7 Os estudos de Jeremias Brasileiro (2017) demonstram que, por volta de 1726, em Minas Gerais,
as terras de Cristais foram ocupadas por escravizados revoltosos, sob a liderança do rei Ambrósio. 
Àquela época, o município recebia o nome de Meia Laranja. Conta-se que esse quilombo chegou
a ter mais de 15 mil negros, tendo sido o maior e o mais duradouro da história mineira. Durante o
ataque pela milícia, em 1746, a mando da Coroa de Portugal, o rei Ambrósio foi morto. Os negros
sobreviventes fundaram, então, um segundo “Quilombo do Ambrósio”, localizado na divisa de Ibiá e 
Campos Altos, também em Minas, dizimado em 1759. 
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[...] reforçam-se as noções dos negros como seres primitivos, malfeitores e irrespon-
sáveis, e dos quilombos como bandos destituídos de caráter político (...) identica qui-
lombos como refúgios ou valhacoutos de negros, num sentido deveras depreciativo
(NASCIMENTO, 2021, p. 110).
Bastide e Fernandes (1959) não aprofundam a questão quilombola, mas tra-
tam da emergência do “protesto negro”, que, neste artigo, é interpretado a partir
da perspectiva de Nascimento e Moura, o que nos faz considerá-lo como uma
forma de aquilombamento.
O que se sabe por Bastide e Fernandes (1959) é que, na metade do século
XIX, a província de São Paulo assistiu paulatinamente à desagregação do regime
servil.
Se tomássemos os anos de 1850, em que o tráco africano foi suprimido efetivamente,
e de 1888, em que foi promulgada a abolição do cativeiro no Brasil, como pontos de
referência históricos, seríamos levados a convir que desagregação do regime servil
se consumara em menos de quatro décadas (...) se fez ouvir o protesto negro”, o “não
querodos escravos. A agitação abolicionista havia atingido as camadas populares e
as próprias senzalas, conferindo aos escravos, nos derradeiros anos da existência do
regime, uma ação decisiva no solapamento da ordem vigente (BASTIDE; FERNANDES,
1959, p. 46).
Muitos dos escravizados que haviam sido comprados das províncias do Nor-
te traziam em suas memórias as lutas e revoltas contra a escravidão. Desde a
insurreição malê, em 1835, quando escravos muçulmanos tomaram o centro da
cidade de Salvador, em confronto armado com forças policiais (REIS, 1986), as
autoridades imperiais e os membros da “boa sociedade imperial” temiam que
grandes concentrações de escravos pudessem gerar insurreições de proporções
avassaladoras.
São Paulo, não escapou a isso, como constata Bastide e Fernandes (1959, p.
47), “por meio de fugas em massa, ao mesmo tempo que desorganizavam os tra-
balhos nas fazendas, confundiam e dicultavam a repressão legal.”
Nas fugas muitos deslocavam para o centro urbano paulista, onde refu-
giavam-se. Na metade do século XIX, o centro urbano paulistano,
[...] se circunscrevia a algumas ruas da freguesia da Sé, que era, ao mesmo tempo, a
área em que moravam as famílias mais abastadas (em 1872, por exemplo, a metade da
escravaria da comarca estava nas mãos dos seus moradores e nada menos de 1.061 es-
cravos eram ocupados em “serviços domésticos”), e em que vivia o maior contingente
de pessoas livres da comarca (7.344 indivíduos, sobre 20.213, que residiam nas oito
freguesias restantes) (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 42).
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Os poucos e curtos contatos sociais estabelecidos por mulheres e homens
escravizados eram tecidos em suas convivências nas idas à rua para cumprir
obrigações do trabalho escravo abastecer as casas de seus escravizadores com
gêneros alimentícios, água etc. Nesses deslocamentos também os encontros e
as amizades entre negras e negros eram comuns.
De acordo com Maria Odila Leite da Silva Dias (1984, p. 114),
[...] alarmavam os moradores da cidade os contatos, que se estabeleciam, entre es-
cravos fugidos e quilombolas, que desde o início da escravidão urbana existiram nos
arredores da cidade, no vale do Anhangabaú, no Bexiga, em Pinheiros, em Santo Amaro
e nos matagais, que se entremeavam às áreas mais urbanizadas, um pouco por toda
parte.
Assim, nas margens, do centro urbano intensicou-se a vida comunitária
entre escravizados o que fez emergir formas de solidariedade entre negras e
negros, permitindo novos arranjos sociais. Aquilombando-se as margens do rio
Saracura, no atual bairro Bixiga, mas também em regiões longínquas do centro
urbano, a exemplo da Freguesia Nossa Senhora da Penha de França, cuja origem
remonta à ação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
da Penha (1755)
Na interpretação da historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998, p.
16), desde os anos que antecederam a abolição, assim como os que a sucederam,
a população negra de São Paulo já sofria preconceito racial.
Um clima acentuadamente discriminatório, uma política de vigilância constante inci-
diu sobre os escravos, para redobrar-se nos alforriados e negros livres. Os projetos de
modernização da cidade previam o afastamento dessas populações do núcleo central,
reservando a elas as primeiras áreas periféricas. (WISSENBACH, 1998, p. 16)
Esse projeto de segregação tem suas primeiras investidas ainda no século
XIX, na conguração de uma imagem nociva do negro: “Os escravos forros e ho-
mens livres negros, juntamente com os escravos fugidos que se abrigavam na
cidade e entornos, não eram somente tidos como desordeiros e indisciplinados,
mas também potencialmente perigosos” (WISSENBACH, 1998, p. 16).
É nesse contexto de crescimento de processos criminais contra a população
afro apontado por Wissenbach (1998) que encontramos mais informações sobre
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a condição negra na cidade paulistana. O que abre para este artigo mais algumas
fontes que permitem ir além de Bastide e Fernandes (1959) e revelam mais sobre
a vida social de negros e negras de São Paulo.
Pelos depoimentos arrolados nos processos criminais, é possível saber sin-
gularidades das vidas sociais de africanos e afrodescendentes anos antes da
Abolição: os bairros onde moravam, os lugares de que desfrutavam de alguma
convivência.
Nesses documentos vislumbra-se a região dessa vivência que na atualidade
corresponde a área do canteiro de obras da linha 6 do Metrô no bairro do Bixiga,
no distrito da Bela Vista, onde foram encontrados os vestígios arqueológicos do
Quilombo Saracura e local da tradicional sede da escola de samba Vai Vai, demo-
lida para dar passagem ao metrô. A área ca aos fundos do Museu de Arte de São
Paulo – MASP é cortada pela avenida Nove de Julho onde subterraneamente está
canalizado o rio Saracura.
De acordo com Wissenbach este espaço, outrora foi conhecido como bairro
Caaguaçu:
Situado no começo da Estrada do Santo Amaro, o bairro Caaguaçu ou altos do Caa-
guaçu demonstrava, na época, signicativa concentração de africanos, alguns forros
e outros emancipados durante os anos de 1860. No local que mais tarde passaria a ser
chamado de espigão da Paulista e se transformaria em zona nobre, por excelência, da
aristocracia cafeeira, em 1872, moravam numa mesma vizinhança: Margarida Azevedo
Marques, de nação mina (...) casada com Sabino José da Graça, liberto do Maranhão;
Antonio Mina (...); Elias Palhares (...) natural da mesma nação africana. (WISSENBACH,
1998, p. 137)
Em pesquisa de Francisco Scarlato (1988, p. 71), a região também é mencio-
nada como de forte concentração de população negra.
Os negros concentravam-se mais na parte baixa da região da Grota: nas casas de -
modos da Almirante Marques Leão. Segundo relatos encontrados na obra de Ernani
Silva Bruno, a região da Grota, desde o período escravagista, era procurada pelos
negros fugitivos, onde chegavam a formar “quilombos”. Essa tradição de lugar de ne-
gros marcou a rua Almirante Marques Leao, chegando a ser discriminada por muitos
moradores italianos arrivistas.
De acordo Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982, p. 15):
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Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente
separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar
natural do grupo branco dominante são as moradias amplas situadas nos mais belos
recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de
policiamento: desde os antigos feitores, capitães mato, capangas etc. (...) o lugar
natural de negro é o oposto, evidentemente as favelas, cortiços, porões, invasões, ala-
gados e conjunto habitacional.
Considerações finais
A obra pioneira Brancos e Negros em São Paulo de Bastide e Fernandes (1959),
já reete os processos de apagamento da herança africana na cultura paulistana
e as tentativas de destituir a negritude de uma humanidade devido seu passado
de escravizado.
É possível considerar que o privilégio racial dos brancos é um dos pontos-
-chave para entender o que se passa, neste ano de 2024, no campo do reconhe-
cimento das atuais lutas negras pela memória e patrimônio cultural afro. Neste
sentido, o pensamento de Lélia Gonzalez faz considerações importantes:
“[...] em todos os níveis, o grupo branco foi o beneciário da exploração dos grupos
raciais. Os aspectos culturais e políticos das relações raciais demonstram como o
branco armou sua supremacia às expensas e em presença do negro. Ou seja, além da
exploração econômica, o grupo branco dominante extrai uma mais-valia psicológica,
cultural e ideológica” (GONZALEZ, 1979, s.n. [mimeo]).
As incursões antropológicas realizadas entre 2018 e 2023, em atividades de
coletivos afro-paulistanos cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade,
revelaram a existência de resistência negra na atualidade. Buscam conhecer as
especicidades do povoamento negro da capital paulista desde o século XVI até
o século XIX. Os coletivos aspiram compreender as reais origens étnicas e não
se contentam em ter seus ascendentes identicados com locais que serviram de
cativeiros da escravidão.
O artigo é parte desta busca, destas aspirações. Ao reler Bastide e Fernan-
des, almejou dar os primeiros passos numa pesquisa que exigirá muito folego
e que não se esgota nesta escrita. No entanto, o objetivo foi provocar o debate
cientíco em torno da presença de africanos na São Paulo Colonial. O debate foi
instigado.
Quiçá, novas pesquisas venham preencher as lacunas desta escrita.
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