ARTIGOS LIVRES
141 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO FEMININA
NO CONTEXTO DO CONFINAMENTO COMPULSÓRIO
THE COLÔNIA DE ITAPUÃ HOSPITAL AND THE PROCESSES OF FEMALE
SUBJECTIVIZATION IN THE CONTEXT OF COMPULSORY CONFINEMENT
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20370
Rafaela Limberger
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
https://orcid.org/0000-0002-2850-824X
rafaelalimberger@edu.unisinos.br
Camilo Darsie de Souza
Universidade de Santa Cruz do Sul
https://orcid.org/0000-0003-4696-000X
camilodarsie@unisc.br
Recebido em 23 de abril 2024
Aprovado em 10 de junho de 2024
RESUMO: O estudo discute processos de
subjetivação vividos por mulheres que foram
internadas compulsoriamente no Hospital
Colônia de Itapuã, o primeiro a receber pacientes
com hanseníase no Rio Grande do Sul - Brasil.
Diante disso, tensiona os modos pelos quais
foram educadas para serem um determinado
tipo de mulher considerado ideal no contexto
deste ambiente. A investigação foi feita a partir
de um documentário e um website, de 2012,
baseada em uma perspectiva qualitativa, a
partir de depoimentos, orientada por referencial
teórico foucaultiano. Observou-se que as ex-
pacientes constituíram-se enquanto parte do
lugar que viveram/vivem por anos. Além disso,
foram educadas na direção de serem boas
esposas, contudo, jamais mães, visto que eram
proibidas de criarem os lhos. Conclui-se que
essas mulheres foram moldadas pelo ambiente
hospitalar, mas também demonstraram
resistências.
Palavras-chave: Hospital Colônia de
Itapuã; Relações de Gênero; Relações de
poder; Subjetivação Feminina.
ABSTRACT: The study discusses processes
of subjectivation experienced by women who
were compulsorily admitted to the Hospital
Colônia de Itapuã, the rst to receive patients
with leprosy in Rio Grande do Sul - Brazil.
In view of this, it puts tension in the ways
in which they were educated to be a certain
type of woman considered ideal in the context
of this environment. The investigation was
carried out based on a documentary and a
website, from 2012, based on a qualitative
perspective, based on testimonies, guided by
a Foucauldian theoretical framework. It was
observed that the former patients constituted
themselves as part of the place they lived/live
for years. Furthermore, they were educated to
be good wives, but never mothers, as they were
prohibited from raising children. It is concluded
that these women were shaped by the hospital
environment, but also demonstrated resistance.
Key words: Colônia de Itapuã Hospital;
Gender Relations; Power Relations; Female
Subjectivization.
ARTIGOS LIVRES
142 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
Introdução
O Hospital Colônia de Itapuã (HCI) foi inaugurado na década de 1940, em
Viamão, cidade vizinha à capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Trata-se de
uma estrutura clínica organizada para simular um pequeno município, localizada
a, aproximadamente, 48 km dos centros urbanos mais próximos. Tal formato se
deu em função da necessidade de isolamento de seus antigos pacientes e da in-
tenção de oferecer modos de vida parecidos com os que existiam para além de
seus muros.
De acordo com Fontoura, Barcelos e Borges (2003), esses hospitais surgi-
ram no Brasil no início do século XX, quando grupos benecentes arrecadavam
recursos para a construção de instalações de cuidado permanente para pessoas
empobrecidas que viviam com hanseníase - ou lepra - em áreas periféricas ou ru-
rais. O poder federal passou a atentar contra a doença durante a Era Vargas, por
meio do decreto nº 1.473, de 1937, que declarava de utilidade pública a Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra.
O documento facilitou acordos e parcerias entre as instituições benecentes
e o Departamento Nacional de Saúde. “Assim, as associações que buscavam
estabelecer hospitais-colônias através de campanhas de arrecadação de
recursos passaram a contar com verbas estaduais e federais para a realização
dos projetos”. Em 1944, “o decreto nº 15.484 aprovou o Regimento do Serviço
Nacional de Lepra do Departamento Nacional de Saúde” que deniu as atribuições
do serviço em assuntos relativos ao combate à hanseníase, incluindo-se aí os
hospitais-colônias (FONTOURA, BARCELOS, BORGES, 2003, p. 399).
Após o enfrentamento de diculdades emergentes dos modos como a doença
era compreendida pela sociedade e de tentativas associadas ao estabelecimento
de uma área considerada segura para a construção do Hospital, optou-se por
um terreno em Itapuã - distrito de Viamão - nas margens da Lagoa Negra. Para
o seu funcionamento, “sem uma estrutura anterior que permitisse a colocação
de quadros de pessoal especializado para atuar em novas instituições públicas
[...] o governo estadual recorreu ao auxílio de entidades religiosas” (FONTOURA,
BARCELOS, BORGES, 2003, p. 401).
Assim, inicialmente, o HCI contava com a força de trabalho das Irmãs Fran-
ciscanas de Penitência e Caridade Cristã, as quais residiam no local e ajudavam
ARTIGOS LIVRES
143 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
no tratamento de pacientes, na manutenção dos ambientes e na scalização das
regras institucionais. As vidas dos pacientes eram constantemente controladas
e todas as suas atividades demandavam autorização dos administradores. Alguns
trabalhavam em serviços associados à manutenção da Instituição, enquanto ou-
tros apenas passavam os dias à mercê das regras e tratamentos estipulados.
Neste contexto, os internos eram separados por gênero (homens e mulheres) e
os grupos podiam se encontrar, quando solteiros ou solteiras, apenas nos perío-
dos e local de refeições, na rua e durante alguns eventos. Contudo, casamentos
e relacionamentos amorosos eram permitidos, desde que aprovados pelo diretor
da instituição, o que oportunizou a constituição de histórias afetivas e formação
de núcleos familiares.
Diante dessa dinâmica, o presente artigo problematiza, por meio de refe-
rencial teórico de inspiração foucaultiana, alguns dos processos de subjetivação
vividos por mulheres que foram internadas no HCI e que ainda vivem, enquanto
moradoras, em suas instalações. O foco da investigação procurou entender como
essas mulheres eram educadas como tais, diante do diagnóstico da doença em
um ambiente marcado pelo connamento compulsório e relações de gênero de
uma determinada época.
Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, com metodologia de
análise documental baseada em depoimentos registrados em um documentá-
rio digital e em um website multimídia. Cellard (2008) aponta que a compreensão
do que são fontes históricas e documentos de análise alterou-se no contexto da
elaboração de pesquisas que envolvem experiências vividas. É nessa perspec-
tiva que “tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é
considerado como documento(p. 296), inclusive os de natureza cinematográca
e iconográca, desde que problematizados pelos pesquisadores. Segundo Luca
(2021) um documento torna-se fonte de pesquisa através de seus pesquisadores
e essa escolha não é mero acaso, visto que possui “vínculos com os desaos do
seu próprio tempo” (p.45). Este é o caso da presente pesquisa, por se tratar de
uma instituição com características especícas e estatal.
Desse modo, foi utilizado o documentário A Cidade (2012), dirigido e pro-
duzido pela cineasta gaúcha Liliana Sulzbach. Nele é mostrado o cotidiano dos,
até então, moradores da estrutura que compunha o HCI e que hoje é organiza-
da enquanto uma vila residencial em processo de desativação, já que, no início
de 2024, teve seus últimos moradores removidos. Por meio de depoimentos, um
ARTIGOS LIVRES
144 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
grupo de idosos tornam públicas algumas de suas histórias de vida no contexto
da instituição, permitindo observar os modos como eram atravessados por dis-
cursos que envolveram suas existências em situação de connamento e de pos-
sível adoecimento. Além disso, articulou-se à análise o material complementar
do website1 A Cidade Inventada, onde se encontra disponível o documentário. Sua
interface de navegação é interativa, permitindo que internautas visitem diferen-
tes ambientes que compõem a estrutura do antigo hospital, bem como tenham
acesso a fontes complementares como fotograas, documentos institucionais e
outros depoimentos.
A escolha por analisar um projeto transmídia pautou-se, por um lado, na di-
culdade de acesso ao HCI, que pode ser feito através de autorização do setor
de pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul e, por ou-
tro, na possibilidade de problematizar histórias que são postas em circulação por
meio das atuais tecnologias de informação e arte. O uso do método qualitativo,
através da análise documental com foco nas falas dos antigos pacientes, tem
como intenção explicar os modos como os acontecimentos ocorreram dentro do
Hospital, por meio das formas de ver dos antigos pacientes, buscando tensionar
as maneiras como as internas foram educadas para serem “mulheres” de acordo
com as normas da instituição.
Desse modo, primeiramente, foi realizada a transcrição dos depoimentos do
cotidiano das mulheres participantes do documentário e website, bem como de
alguns homens. Isso tornou possível pensar sobre a relação entre esses sujeitos
e o recorte espacial vivido por eles. Após, as transcrições foram separadas em
eixos temáticos que oportunizaram tensionamentos sobre as relações de gêne-
ro e subjetivação, buscando compreender como ocorriam esses processos. His-
toricamente, os movimentos de “tornar-se” e “ser” mulher são perpassados por
questões sociais e relações de poder que também se encontravam presentes
1 O documentário A cidade, e o website foram produzidos no ano de 2012. Possui roteiro, produção e
direção de Liliana Sulzbach, fotograa de Francisco Alemão Ribeiro, montagem de Angela K. Pires,
som direto de Cléber Neutzling, direção de produção Josie Demeneghi e Leilanie Silva, música de
Carlos Badia, edição e mixagem de som kiko Ferraz Studios, nalização de imagem de Luis Otávio
Feldens e empresa produtora Tempo Porto Alegre. Além do documentário que foi exibido em diversos
festivais de cinema, o projeto conta com um DVD com material complementar e um website com o
título A cidade inventada, no qual é possível fazer uma visita ao local do hospital de forma interativa.
Trata-se de um projeto jornalístico que nasceu pela vontade da diretora em documentar o cotidiano
dos moradores na época e igualmente para questionar “a representação do real” na instituição. http://
www.acidadeinventada.com.br/#presents.
ARTIGOS LIVRES
145 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
nas práticas hospitalares.
A seguir, portanto, são apresentadas cinco seções: 1) A hanseníase e o
encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã, que contextualiza a doença
e os processos de encaminhamento para o connamento compulsório; 2) A
docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã que discute os processos de
disciplinamento sob connamento e tensiona a produção dos sujeitos enquanto
parte do ambientes vivido; 3) Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas
não mães, focada na discussão sobre os processos de subjetivação feminina no
HCI; 4) Subjetivação, Resistências e Reexistências que apresenta pequenos, mas
relevantes movimentos de resistência às normas do hospital; 5) Considerações
nais, onde encerra-se o argumento.
A hanseníase e o encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã
A hanseníase2 é uma doença infectocontagiosa e suas manifestações ocor-
rem principalmente na pele, por meio da proliferação de lesões e perda da sen-
sibilidade que resultam da predileção do Mycobacterium leprae. Ela agride as cé-
lulas cutâneas e nervosas periféricas, além de ter potencial para atingir órgãos
internos do corpo humano e causar deformações permanentes da pele (BRASIL,
2024).
Os primeiros casos no Brasil foram registrados em 1600, no Rio de Janeiro,
e logo se espalharam para outras regiões. No sul do país, onde se localiza o HCI,
foram identicados casos da doença em imigrantes portugueses, espanhóis,
franceses e russos. Contudo, foi a chegada e permanência signicativas de imi-
grantes alemães e italianos que pode ser apontada como um dos motivos para os
primeiros focos da enfermidade no Rio Grande do Sul (EIDT, 2004).
É importante destacar que existem relatos sobre a doença desde a
antiguidade, pois como Eidt (2004) refere, há registros de casos de 4.300 anos
antes de Cristo. Ainda, é possível identicar registros da “lepra” e dos “leprosos”
na bíblia, como ocorre na passagem “Impuro! Impuro! Enquanto tiver a doença
será impuro” (BÍBLIA, lev.13:45-46). Diante disso, foi a partir do discurso religioso
2 A lei n°9010/95 muda a nomenclatura da doença no Brasil para Hanseníase, não sendo mais ade-
quado o termo “lepra”. Atualmente o tratamento é feito no Sistema Único de Saúde, sem necessidade
de internação. Ver mais em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/h/hanseniase/
tratamento.
ARTIGOS LIVRES
146 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
da igreja católica que, inicialmente, se estabeleceram regras sociais relaciona-
das à doença, sustentadas por uma lógica de pureza ou impureza moral.
Desse modo, o entendimento sobre a hanseníase foi fortemente construído
dentro de um imaginário fantasioso e religioso. Segundo Sontag (1984) qualquer
doença cujas causas e tratamentos sejam desconhecidos é carregada de signi-
cação, o que corrobora o estigma a ela imposto. Partindo disso, passaram a ser
criadas instituições que buscavam manter afastados os doentes da sociedade
considerada sadia - ou pura.
Essas instituições representam o que Goffman (2019) denomina como insti-
tuições totais, as quais funcionam com o fechamento de determinados sujeitos
sob uma ótica administrativa. Para além do fechamento, o autor refere que tais
doentes eram atravessados pelo estigma associado ao adoecimento, especial-
mente pelas marcas das doenças em seus corpos. Goffman (2008) diz que o con-
ceito de estigma emergiu da cultura grega, sendo utilizado para designar alguém
com marcas corporais, o que permaneceu, posteriormente, na era cristã, espe-
cialmente associado aos casos de hanseníase.
Neste contexto, diante de discussões estabelecidas em nível internacional,
e das manifestações da doença em território brasileiro, deniu-se que o isola-
mento compulsório seria a melhor maneira de controlar o surgimento de novos
casos. Emergiu, portanto, a necessidade de criação e construção de instituições
baseadas em hospitais europeus que simulavam cidades em menor escala, nas
quais viviam pessoas acometidas pela doença. O Brasil deu início à construção
de aproximadamente 30 instituições de isolamento, a partir da década de 1930
(BORGES; SERRES, 2012).
Borges e Serres (2012) referem que no Rio Grande do Sul, o HCI foi a insti-
tuição que representou tal modelo de estrutura de internação, sendo o último
hospital a ser inaugurado no país, em 11 de maio de 1940, cercado por uma grande
área de mata, distante do convívio social. A instituição contava com moeda pró-
pria, escola, igreja, espaço de lazer e uma espécie de cadeia para os pacientes
que tentavam fugir do local.
Pessoas que viviam com hanseníase eram diagnosticadas pelo Serviço de
Prolaxia da Lepra e, posteriormente, encaminhadas ao HCI. Eram separados
entre homens e mulheres e esses grupos se encontravam apenas nos espaços
destinados às refeições, na rua e durante alguns eventos organizados pelas ir-
mãs franciscanas. Era permitido que se casassem, porém as crianças que nas-
ARTIGOS LIVRES
147 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
ciam no Hospital eram encaminhadas para o preventório Amparo Santa Cruz, na
cidade de Porto Alegre, já que era proibida a permanência de crianças saudáveis
no ambiente hospitalar. Construídos em 1940, os chamados preventórios eram
locais especiais para crianças com certa disposição para determinadas doenças
ou para lhos de portadores de hanseníase ou tuberculose, longe dos pais, a m
de evitar contágios e infecções.
Eidt (2004) explica que a partir de 1960, a doença passou a ser tratada de
forma ambulatorial devido à descoberta da sulfona, medicamento ecaz para a
sua cura, não sendo mais necessária, portanto, a internação compulsória dos
pacientes. Porém, alguns dos pacientes que já haviam criado vínculos de afeti-
vidade com o local e, em muitos casos, perdido o contato com suas famílias ou
enfrentando medos relacionados ao contato com pessoas de fora, resolveram
permanecer em suas instalações. Por isso, foi concedido o direito de ocuparem
as acomodações do HCI permanentemente.
Se em um primeiro momento, abrigou pessoas que viviam com hansenía-
se, posteriormente, a partir da década de 1970, passou a receber pacientes que
necessitavam de tratamentos relacionados a transtornos mentais, conforme as
práticas e diagnósticos correntes à época. Segundo Medeiros e Serres (2020) no
ano de 1972 além dos hansenianos o HCI passou a receber pacientes do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, localizado na cidade de Porto Alegre - RS. O estado, com
o intuito de aproveitar o espaço, transferiu alguns pacientes considerados mais
calmos” para o HCI. Criou-se um centro de tratamento agrícola no local, mas,
isso durou até meados do início da década de 1980. Mesmo não contando mais
com desenvolvimento estrutural, o HCI continuou ativo, transformando-se, gra-
dativamente, no lar dos antigos pacientes que ainda permaneceram vivos.
Diante dessas questões, observa-se que um dos principais fatores relacio-
nados ao connamento dos pacientes relaciona-se com dinâmicas de circulação
e de relação com o espaço. Tanto no caso dos hansenianos quanto dos internos
por questões de saúde mental, o connamento produziu importantes efeitos so-
bre os sujeitos por meio de suas relações com o espaço.
ARTIGOS LIVRES
148 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
A docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã
Os leprosários ou hospitais colônia tinham formato de pequenas cidades di-
vididas em três zonas: 1) sadia; 2) intermediária onde moravam funcionários e
se desempenhavam atividades administrativas; 3) doente para os pacientes.
A estrutura contava com áreas de lazer, igrejas, prefeitura, cadeia, cemitério,
alojamentos, refeitórios, enm, todos os ambientes considerados necessários
para dar conta de vidas humanas desde o nascimento até a morte (ANDRES; MI-
CHELETTI, 2020).
No HCI, o refeitório era o local em que eram promovidos encontros cotidia-
nos entre pacientes, em função da obrigatoriedade de as refeições serem feitas
em seu interior. Conforme relata uma de suas antigas pacientes, “aquele refei-
tório lá era cheinho. Aquelas mesas compridas eram de ponta a ponta cheias de
gente. ‘Tudo faziam’ a refeição lá. Porque naquele tempo a gente não fazia nada
no quarto. Não deixavam fazer. Era tudo no refeitório3.
O local foi um dos únicos ambientes do HCI em que homens e mulheres po-
diam desempenhar atividades no mesmo horário. Contudo, entendia-se que era
preciso que se mantivessem afastados, mesmo quando estabeleciam algum vín-
culo afetivo. Ao se colocarem no refeitório, nos horários das refeições, era pre-
ciso que respeitassem a divisão entre a ala masculina e a ala feminina. Segundo
Eva4,
Não podia ter gato, nem cachorro. E nem pessoas ‘amigadas’. Pessoas que tinham as-
sim às vezes... vinham pra cá e cava a mulher lá, né. E aqui se arrumava outro parceiro,
abandonado pela família, né. E vice-versa. Tanto a mulher como o homem, né. Quando
eles vinham no refeitório, era cada um pra um lado.
A praça do Hospital Colônia de Itapuã era outro ambiente em que ocorriam
encontros sociais, entre homens e mulheres. Mais uma vez, os encontros se-
guiam rígidas regras de convivência impostas pela instituição. Os pacientes se
encontravam constantemente monitorados pelos guardas do local e pelas irmãs
franciscanas. Seguindo as mesmas regras do refeitório, mesmo em um ambiente
ao ar livre e público, como a praça, homens e mulheres que viessem a namorar,
3 Através do áudio disponível no website não foi possível identicar de qual paciente é este relato.
4 Eva, paciente residente no hospital desde 1959.
ARTIGOS LIVRES
149 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
ao se encontrarem na Avenida Getúlio Vargas onde cava a praça –, durante
a semana, cavam separados pelo canteiro, conforme indica o seguinte depoi-
mento: “Tinha essa avenida aqui, a avenida Getúlio Vargas, o rapaz era do lado de
cá e a namorada do lado de lá do canteiro. Tinha sempre o canteiro no meio. Era
severo mesmo. Muito severo”.
Os casais do hospital podiam se encontrar aos sábados, na praça, sendo
permitido sentarem-se em alguns bancos até o nal da tarde. Após, era preciso
que todos voltassem aos seus pavilhões. Conforme conta Eva,
[...] entre o pavilhão 12... 12 e 13. Nós não podia cruzar, porque do lado de cá moravam
os rapazes, né. Então as irmãs não gostavam de a gente passar ali. Os meninos mexiam
com as gurias e ... as freiras eram muito “enjoadas” nessa coisa. Porque pra namorar
aqui tinha que primeiro assim, ó: O rapaz ia lá no diretor pedir se podia namorar fulana
de tal. E a moça, tinha que pedir pra Madre. “Madre tem um rapaz...Posso namorar, ou
não.” Ia ver, se tinha condições, né.
Além dos espaços de socialização, dentro da estrutura do hospital havia um
pavilhão de diversões chamado de “Cassino”. Esse lugar era destinado ao lazer
dos pacientes. Ali eles podiam ver a projeção de lmes, noticiários, peças de
teatro encenadas pelos próprios internos, bailes e festas. Esse pavilhão permitia
aos pacientes alguns momentos de lazer. Contudo, conforme ocorria em outros
momentos, era necessário que tudo fosse feito sob o olhar atento das irmãs fran-
ciscanas. Os pacientes do HCI eram constantemente vigiados para que seguis-
sem as regras de convivência, instituindo-se assim, uma verdadeira instituição
de sequestro.
Conforme apresentado no documentário, o pavilhão permaneceu sendo uti-
lizado para eventos de lazer, como a apresentação de bandas escolares. Nestas
ocasiões, pelo que pode ser compreendido, as vidas se organizam em torno das
atividades que são programadas, mesmo que simples, pois representam a possi-
bilidade de quebra da rotina e convívio entre moradores e visitantes. Isso é des-
tacado por meio da produção documental, pois seus primeiros minutos parecem
demarcar a constância de rotinas diárias monótonas que é quebrada pela pers-
pectiva de algo novo, ou diferente daquilo que se tornou cotidiano.
A preparação para a “apresentação da banda” é marcada por cenas que de-
monstram certos rituais de organização pessoal para o “novo” e ansiedade, ou
seja, expectativa relacionada à participação em uma atividade que parece de-
saar algumas das normas que outrora moldaram aqueles sujeitos. Mesmo que
ARTIGOS LIVRES
150 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
simples, a quebra das normas é marcada pela presença de pessoas externas,
sem medo de serem infectadas ou prejudicadas pelos moradores.
Conforme aponta Foucault (2004), essas ações caracterizam-se por meio de
relações de poder disciplinadoras, desempenhadas a partir de práticas de vigi-
lância e cercamento de ambientes. A vigilância promove o constrangimento dos
sujeitos às boas maneiras: “o condenado à boa conduta, o louco à calma, o ope-
rário ao trabalho, o aluno à aplicação e o doente à observação das ordens, deixa
de ser necessário o uso da violência” (CANDIOTTO, 2012. p. 21-22).
Ao serem connados em ambientes propícios à observação, os sujeitos têm
seus comportamentos moldados pela visibilidade, deste modo, o poder se torna
múltiplo, automático e anônimo. Trata-se de uma dinâmica que mesmo silencio-
sa, se torna presente em todos os aspectos da vida, pois o poder se encontra nas
múltiplas relações e múltiplos momentos e lugares. “Ele pode, ainda, ser pensado
como um poder do olhar calculado, porquanto a disciplina se faz funcionar por
seus próprios mecanismos. Segue-se que a vigilância hierárquica é eminente-
mente uma estratégia de distribuição do olhar” (CANDIOTTO, 2012, p. 22).
Com isso, são utilizadas ferramentas sutis para moldar os sujeitos quanto
a seus comportamentos, desejos e experiências. “A disciplina fabrica assim cor-
pos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do
corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2004, p. 119). A disciplina, conforme
mencionado, às vezes exige a cerca, ou seja, os pacientes do hospital estavam
conforme aponta o autor, cercados e connados.
Assim, mesmo considerando que, nos dias atuais não sejam mais controlados
pelas normas hospitalares ou pelas cercas que os connaram em outro momento,
suas maneiras de portarem-se permanecem marcadas por elas. É possível pensar
que a própria câmera que os lmam ainda representa um mecanismo de controle,
que conduz a determinadas falas e posturas relacionadas ao lugar do qual fazem
e se sentem parte.
O fato de os pacientes terem estado reclusos em um determinado ambien-
te contribuiu para que fossem disciplinados, docilizados, pois com o passar dos
anos, modos de vida foram construídos no contexto do isolamento compulsó-
rio, fazendo com que o passassem a avaliar suas situações a partir daquilo que
conheciam enquanto realidade. A internação compulsória, por meio do discurso
atuante no HCI, era compreendida como positiva e, até mesmo, prazerosa. As-
ARTIGOS LIVRES
151 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
sim, dentro de determinado espaço foi mais fácil fazer com que uma determina-
da maneira de vida fosse considerada adequada a todos.
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda
mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multipli-
cá-las e utilizá-las num todo (FOUCAULT, 2004, p. 143).
Neste contexto, é possível pensar que tais sujeitos foram forjados a partir
do espaço. Destaca-se que tornaram-se responsabilidade do poder público, es-
pecialmente por terem sido internados compulsoriamente, mas, principalmente,
por sentirem-se excluídos das relações que acontecem no exterior do ambiente
em que passaram grande parte de suas vidas. Sobre isso, é importante reetir
sobre o fato de que os sujeitos são subjetivados por meio de dinâmicas que en-
volvem, também, as transformações e signicações espaciais. Nesse sentido,
não podem ser considerados, apenas, indivíduos que habitaram/habitam suas
instalações. Eles fazem parte dos signicados atribuídos à ela por meio das es-
pacialidades que os conformam em quem são e que balizam suas falas e modos
de entender o mundo.
Nesta perspectiva, reetir sobre essas pessoas implica reetir sobre os
processos que as envolveram em conjunto com o recorte espacial - HCI - que
ocuparam e ocupam até os dias atuais (DARSIE, 2024; WEBER e DARSIE, 2019).
É a partir desses processos – múltiplos – que os sujeitos são produzidos e reproduzidos
por dinâmicas de subjetivação ocasionadas, conforme argumentamos, pelas recon-
gurações espaciais que eles mesmos operacionalizam. Trata-se, no limite, de pro-
cessos indissociáveis que, ao mesmo tempo em que subjetivam sujeitos, transformam
estruturas espaciais que não se desvinculam das transformações que os envolvem,
individual e coletivamente (SANTOS; DARSIE, 2024, p. 229).
Portanto, se atualmente usufruem do direito à residência em casas que, an-
tigamente, abrigavam dezenas de “pacientes”, essa lógica pauta-se nas dicul-
dades que foram estabelecidas em relação aos ambientes externos - medos e
evitação de situações vexatórias - e os vínculos que criaram com o lugar e seus
outros moradores. Ainda, orientam-se pelas forma.
ARTIGOS LIVRES
152 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas não mães.
Scott (1995) aponta que existem construções sociais ao longo da história que
denem as diferenças sociais entre homens e mulheres, construídas em cima de
um corpo sexuado. Assim o conceito de gênero torna-se importante por separar
as questões relacionadas às práticas sexuais das que são implicadas nos proces-
sos de subjetivação das identidades masculinas e femininas, ao longo do tempo.
o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” - a criação
inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres.
Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta denição, uma cate-
goria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre
sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece
um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos
homens (SCOTT, 1995, p. 75).
Partindo da mesma perspectiva, Perrot (1992) refere que as mulheres fre-
quentemente aparecem como invisíveis, pois estão atreladas às tarefas domés-
ticas e à vida privada, enquanto os homens aparecem como protagonistas no
espaço público. “A distinção entre público e privado implica uma segregação se-
xual crescente no espaço. Uma das suas chaves talvez seja a denição de espaço
público como espaço político reservado aos homens” (PERROT, 1992, p. 218). Fica
estabelecido um discurso sexuado referente aos ofícios de homens e mulheres.
O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. Cada sexo tem
sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predetermina-
dos, até então seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios que faz da
linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis (PERROT, 1992, p. 178).
As mulheres no HCI, a começar pelas irmãs franciscanas, por exemplo, apa-
recem associadas a tarefas relativas ao cuidado. Eram elas que tomavam con-
ta dos pacientes em suas demandas clínicas e de manutenção e organização do
ambiente em que viviam. Ainda, conforme pode ser observado por meio das his-
tórias contadas, tanto no documentário quanto no website, as pacientes eram
tidas como ameaças à ordem - por serem mulheres - e, portanto, precisavam ser
contidas e separadas dos homens.
É contado que as mulheres ocupavam cargos de auxiliares de serviços
gerais, em que havia pouco contato com outras pessoas, enquanto os homens
assumiam as tarefas consideradas públicas. As pacientes mulheres, por exemplo,
ARTIGOS LIVRES
153 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
ajudavam na limpeza do hospital apenas quando os ambientes estavam vazios.
Isso corrobora com Scott (1995) quando argumenta que através do conceito de
gênero” ressaltam-se as diferenças sociais existentes entre homens e mulheres,
baseadas no sexo.
Analisar aspectos referente às mulheres é necessariamente analisar aspec-
tos referentes aos homens, pois um está relacionado ao outro, “o mundo das mu-
lheres faz parte do mundo dos homens, ele é criado nesse e por esse mundo mas-
culino” (SCOTT, 1995, p. 75). O uso do termo destaca todo um sistema de relação
que pode incluir o sexo, mas não está abertamente ligado a ele e nem determina
a sexualidade do indivíduo.
Minha denição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter-
-relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da denição
repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos
e (2) o gênero é uma forma primária de dar signicado às relações de poder (SCOTT,
1995, p. 86).
Através dos apontamentos de Scott (1995), é possível compreender como
ocorriam as relações de poder na instituição e de que modo estavam emaranha-
das às normas que inuenciavam os processos de subjetivação das pacientes
mulheres. Nas palavras de Eva, ao contar sobre como conheceu seu esposo Dar-
cy, ca clara a inuência que a irmã exercia sobre os pacientes: “Vai buscar
aquele rapaz, que aquele lá é o teu”.
Destaca-se a autoridade da religiosa em escolher o marido para a pacien-
te. Entendia-se que era necessário que as mulheres encontrassem maridos HCI,
pois deste modo não estariam soltas e oferecendo perigo à ordem da instituição.
Era naturalizada a ideia de que a gura da mulher devia estar atrelada ao matri-
mônio. Cabia também às mulheres se aproximarem dos homens, dando-lhes a
atender que se encontravam abertas para um futuro relacionamento. Destaca-
-se, contudo, que mesmo as irmãs e o caráter religioso ter forte inuência no
HCI, tudo igualmente passava pela administração da instituição, incluindo a au-
torização para os casamentos.
As irmãs escolhiam pacientes considerados “sicamente perfeitos” para
trabalharem no refeitório, privilegiando pacientes que não eram atingidos com
a forma mais severa da hanseníase. Assim, surgiam também aproximações ma-
trimoniais entre pessoas consideradas mais saudáveis que trabalhavam na co-
ARTIGOS LIVRES
154 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
zinha e no refeitório. Eva, que sicamente não era tão marcada pelas feridas e
cicatrizes da doença, foi estimulada a casar com outro paciente que também não
as tinha. A partir destes encontros, os casamentos eram ocializados no próprio
hospital.
Uma das pacientes, cuja voz não possibilitou a identicação de seu nome,
descreve o dia do seu casamento:
O dia que eu casei era de manhã cedo. Aprontaram a noiva, né. Primeiro o escrivão
do Itapuã vem aqui. Aqui no consultório onde tem consulta, né. E lá nós ‘casemo’. E
saímos de reto pra igreja. E igreja ‘saímo’ então caminhando. Até lá na chácara,
os noivos. E a orquestra atrás de nós. Era bonito até.
Conforme a descrição, o escrivão realizava a formalização da união civil den-
tro do mesmo consultório em que os pacientes recebiam atendimento médico.
Após formalizada esta questão, eram encaminhados para a igreja para a ocia-
lização de caráter religioso e por m havia uma confraternização para os noivos
e amigos no hospital. Os pacientes usavam trajes típicos da união, mulheres de
vestido branco e homens de roupa social.
As mulheres no HCI constituíram-se por meio das regras de convivência do
hospital, pela autoridade das irmãs franciscanas e pelo ambiente. Eram subjeti-
vadas nos procedimentos de manutenção da vida privada, sendo dóceis, úteis e
contidas. O casamento no hospital aparecia como uma estratégia sutil de contro-
lar seus corpos, pois ao se casarem passavam a ser controladas. Foucault (2015),
na perspectiva de controle sexual, apresenta algumas análises que aproximam o
sexo às relações de poder. Ele diz que o sexo é usado para controlar os sujeitos
através da relação negativa, da instância da regra, do ciclo da interdição, da lógi-
ca da censura e da unidade do dispositivo.
Conforme o autor, na relação negativa o poder diz não ao sexo, pois a rela-
ção que se estabelece reforça a “rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda,
mascaramento e ocultação” (FOUCAULT, 2015, p. 91). As relações de poder não
podem exercer determinado poder referente ao sexo e ao prazer, apenas a nega-
ção e de maneira geral, colocando-se limites. A instância da regra se coloca no
sentido em que o poder é o que dita as regras referentes ao sexo.
[...] que o poder age pronunciando a regra: o domínio do poder sobre o sexo seria efe-
tuado através da linguagem, ou melhor, por um ato de discurso que criaria, pelo próprio
fato de se enunciar, um estado de direito. Ele fala e faz-se a regra. A forma pura do po-
der se encontraria na função do legislador; e seu modo de ação com respeito ao sexo
ARTIGOS LIVRES
155 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
seria jurídico-discursivo (FOUCAULT, 2015, p. 91).
Bem como a instância da regra, o ciclo da interdição funciona através da
proibição, o não faça para não deixar de existir. “Tua existência só será mantida à
custa da tua anulação.” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Assim o poder resulta na opres-
são do sexo por meio de uma interdição que cona entre o existir e o não existir.
A lógica da censura supõe que essa interdição tome três formas: armar que não
é permitido, impedir que se diga, negar que exista” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Já na
unidade do dispositivo, o poder sobre o sexo acontece do mesmo modo em todas
as instâncias:
Em fase de um poder, que é lei o sujeito que é constituído como sujeito – que é “sujei-
tado” e aquele que obedece. À homogeneidade formar do poder ao longo de todas
essas instâncias, corresponderia, naquele que o poder coage – quer se trate do súdito
ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da criança ante os pais, do discípulo ante o
mestre – a forma geral da submissão. Poder legislador, de um lado, e sujeito obediente
de outro (FOUCAULT, 2015, p. 93).
Ao analisar as abordagens das relações de poder sobre o sexo, observa-se
como esses aspectos eram presentes no hospital: a negação em relação ao sexo,
para que os pacientes se controlassem; a separação constante entre homens e
mulheres em locais de convívio geral; a censura dos corpos, o não tocar, man-
ter-se afastado e o casamento como forma de controle do sexo e também como
forma de diminuir o desejo de fugir da instituição. O casamento era apenas um
dispositivo de controle, nem mesmo considerado uma instituição de família, pois
os pacientes que tivessem lhos dentro do hospital não poderiam car com eles.
As crianças eram encaminhadas aos preventórios. Em função de não haver in-
formações sucientes sobre o contágio da doença na época, era obrigatório a
separação dos lhos “saudáveis” de seus pais logo após o seu nascimento, sendo
desencorajado o contato.
Nair5, mais uma antiga paciente que relata sua história, ao falar sobre seu
casamento conta: “vai fazer 46 anos que nós estamos casados, dia 13 de abril do
ano que vem. Daí, eu tive as lhas que foram tiradas, né... não podiam car junto.
Eu sofri bastante assim, né. Mas tá, tá tudo bem, né. São coisas que passam com
o tempo”. Sua história conrma que ela viveu 46 anos casada sem ter tido o direi-
to de ser mãe. Pode-se observar o quanto as irmãs franciscanas inuenciaram a
5 Paciente Nair, residente desde 1956.
ARTIGOS LIVRES
156 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
vida dos pacientes e, principalmente, das mulheres no que diz respeito aos seus
comportamentos.
O discurso é partido do sujeito detentor do poder dentro da instituição, in-
terferindo assim no processo de subjetivação das pacientes. O discurso se arti-
cula ao poder e ao saber.
Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder,
nem oposta a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso
pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, esco-
ra, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso vei-
cula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo.
Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, xam suas interdições,
mas também afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscu-
ras (FOUCAULT, 2015, p. 110).
O discurso vai além da linguagem, já que age como abertura para os pro-
cessos de subjetivação. Também está relacionado ao que os sujeitos pensam
e fazem, se constituindo através da inuência dos discursos. A subjetivação é
admissível dentro de relações de poder/saber, sendo assim, os pacientes do HCI
não se constituíam à margem, pois foram produzidos enquanto parte das relações
de poder na instituição.
Sua principal asserção foi que ser um sujeito, um indivíduo socialmente reconhecível
com intenções, desejos, e ações inteligíveis, só era possível dentro das redes de po-
der/saber de uma sociedade. Na sua visão, todas as identidades eram criadas por meio
de práticas de poder e saber. As relações de poder não existem entre sujeitos com
identidades predeterminadas, mas são constitutivas dos próprios sujeitos, moldam
condutas e instigam formas de autoconsciência. Os sujeitos em relação aos quais a
rede de poder é denida não podem ser concebidos como existindo à margem dela
(OKSALA, 2011, pp. 74-75).
Desta forma, as pacientes mulheres do Hospital Colônia de Itapuã se cons-
tituíram pelas regras em torno do sexo, separação de homens e mulheres e con-
trole quanto a aproximação dos corpos. Também se constituíram inuenciadas
pela ideia do casamento, como tarefa imbuída às mulheres que não poderiam ser
mães.
Subjetivação, Resistências e Reexistências
Apesar de todos os movimentos de vigilância e disciplina, observa-se por
meio de suas narrativas movimentos contrários às imposições do local e da épo-
ARTIGOS LIVRES
157 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
ca. Mesmo quando as histórias se alinham às normas do lugar, é possível observar
sinais de resistência e de reexistência, ou seja, de modos de tornarem-se mulhe-
res a partir de outros atravessamentos, outras vivências. Na história contada por
Elma6, por exemplo, destaca-se um posicionamento diferente daqueles apresen-
tados por outras pacientes, o qual se congura enquanto uma verdadeira resis-
tência às normas vigentes.
Aqui era campo de concentração. Tudo fechado. Cerca, arame. Era ali. Tinha uma rua
pra ir no refeitório. Quem não era casado, quem era solteiro. Preconceito rolava aqui. A
gente... custou muito... Mas ainda...Sai ali fora tem gente que não olha pra ti. Namoro
dos nossos lhos fora, quando sabem que...tem um familiar aqui dentro a coisa com-
plica. Preconceito acho que não termina.
Juraci7, que também reside no hospital, concorda com a fala da amiga: “Pre-
conceito tem em tudo. É com aidético, é com a cor. Com tudo. Mas ninguém pede
para nascer assim, né”. Ao comparar as narrativas anteriores com as de Elma e
Juraci, observa-se que são compostas por enunciados conitantes, pertencen-
tes a um mesmo discurso. Apesar dessas mulheres serem moldadas pela insti-
tuição, resistem ao modelo ao qual foram submetidas ao terem posicionamentos
diferentes daqueles impostos pelos tempos de maior atuação do hospital. A ideia
de um HCI “bom de se viver” não as comove, pelo contrário, as produz a partir das
brechas que o envolvem.
Eva ao contar como foi parar no hospital, deixa claro que sentia medo de ir
para um lugar totalmente novo e desconhecido e que acreditava que pudesse ser
morta, porém, após anos dentro do hospital, entendeu que aquele era o melhor
lugar para ela viver:
Eu tava ali em Esteio. Quando foi desconado da doença. Eu não me lembro bem se foi
em 1958 ou 59. Por aí, nessa data. Meu avô... nós tinha criação [de cavalo]. Era raça, né,
colono. Meu avô adotivo. E um dia eu ouvi meu avô falando pros rapazes. “Bah”, ele
disse, “aquele cavalo que eu comprei tá leproso, tem lepra”. Aí eles mataram o cavalo,
. Mataram pra não alastrar. Quando eu ouvi o doutor dizer aqui que o que eu tinha era
lepra. “Bah, paguei a doença do cavalo.” Digo. “Tá, tô ralada agora. Vai sobrar pra mim...
porque se eu tenho essa doença eles vão me matar.” E me trouxeram pra cá. E mato,
e mato, não se via uma casa. Lá de vez em quando que se via uma casa. Digo: “vão me
matar bem longe”. Numa caminhoneta preta, ainda. Então ralada, era. Mas não,
cheguei aqui, no paraíso. Meu eu acho que até o “velhinho” lá já me deu lucro. Ele já me
deu lucro. Eu vim pra cá pra durar só 3 meses, imagina. Tô com toda essa idade. Com 66
anos, né. E os que acharam que iam durar mais, já foram. Pra mim Itapuã é meu hotel 5
estrelas. Minha casa. Aqui eu tenho tudo que eu preciso. E tudo que me faz bem.
6 Paciente Elma, residente desde 1949.
7 Paciente Juraci, residente desde 1958.
ARTIGOS LIVRES
158 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
É possível pensar que suas lembranças trazem questões íntimas que
servem como verdades individuais e que, talvez, escondam feridas que devem
ser esquecidas. Certamente elas não fogem dos processos de subjetivação
ocasionados por sua vivência no HCI, mas parecem concorrer com outras
verdades que envolvem a situação. Ao considerar determinados relatos, pode-
se dizer que o HCI foi descrito e produzido como um verdadeiro hotel de luxo.
O enquadramento da narrativa das pacientes, com o passar dos anos de vi-
vência no hospital, se reconstruiu. Eva, por exemplo, traz detalhes riquíssimos
sobre o ambiente de vigilância do hospital, das regras e do poder das irmãs, mes-
mo assim constrói sua narrativa apontando o hospital como um bom lugar. Outro
depoimento que chama a atenção é de Valdeci8.
Eu cheguei aqui nesse lugar, eu tinha 16 anos. Primeiro me casei com aquele ali da ar-
vorezinha né. Aquele morreu com vinte e oito anos. Depois me casei com este aqui. Vivi
um ano e sete meses junto com ele. Não deu certo porque ele me “pauleava” muito, né.
“Se separemo”. Depois que deixei esse aqui, me casei com aquele outro, né. quei
44 anos com aquele. “Moremo” junto. Tive oito lhos dele, e três lhos do primeiro, né.
Desse aqui eu não tive nenhum. No m, tive um caso, não deu certo. ‘Separemo’. Fiquei
viúva, tô viúva. Não tenho mais substituto. Não quero mais, complicação. Porque é bra-
bo, né. A gente fazer loucura. Mas não era loucura, né. Era a vida [...].
Esta mulher se casou quatro vezes, mas em seu segundo casamento sofreu
agressões físicas por parte do esposo. Pode ser entendido como um ato de re-
sistência e de reexistência a decisão de Valdeci de abandonar o ex-marido em
um tempo e num espaço onde havia relações de violência e o abandono de um
homem por uma mulher não era aceitável e igualmente por se casar quatro vezes.
Contudo, a história de vida da paciente ajuda a pensar outra astúcia ao casar-se
quatro vezes. Pacientes casados tinham o direito de ter uma casinha dentro da
instituição, nos demais casos precisaria morar nos pavilhões com os demais pa-
cientes do mesmo sexo.
Outra questão que pode ser observada como ação de resistência, por parte
das pacientes, são as suas relações com os lhos que eram concebidos dentro
do hospital e separados das mães logo após o seu nascimento. Os “preventórios”,
como eram chamados, abrigaram os lhos dos casais portadores de hanseníase,
mais detidamente, os que nasceram dentro do Hospital Colônia de Itapuã. Após
o nascimento, a criança deveria ser imediatamente encaminhada ao preventório,
8 A paciente Valdeci chegou no hospital com 16 anos, sem mencionar o ano.
ARTIGOS LIVRES
159 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
sendo proibido o contato físico entre pais e lhos. Limberger (2022) traz que tais
instituições seriam responsabilizadas pela educação das crianças até a maiori-
dade caso o paciente não contasse com familiares que pudessem car responsá-
veis por seus lhos. Em alguns casos, as crianças eram colocadas para adoção.
Marleci, lha de um casal de pacientes do HCI que, logo após seu nascimento, foi
enviada ao preventório e, conforme conta, não teve contato com seus pais nos
primeiros dias de nascimento, nem mesmo para ser amamentada por sua mãe.
[...] De vez em quando a gente ia fazer visitas. Era um portão enorme, um portão gran-
de. Eles cavam de um lado, e nós, cávamos do outro lado. Aí eu me lembro que as ir-
mãs, muito queridas as irmãs lá do hospital. Elas diziam: “Aquela fulana lá é tua lha”.
nós assim, quando a gente já tinha 7 ou 8 anos, a gente cava olhando uma pra outra e
dizia: “Mas como é que ela vai saber, lá de onde ela está...” Porque nós estávamos todas
com uma roupinha igual. Vestidinho igual. O cabelinho, o corte de cabelo normalmente
era a mesma coisa, né. Um dia nós até chamamos a irmã. “Tia, mas como é que ele vai
saber que sou lha deles se todas estão com a mesma roupa. E o corte de cabelo é pra-
ticamente o mesmo.” Aí ela disse assim, “Não, pode deixar que eles sabem.” Daí a gente
levantava a mãozinha, algum sinal a gente fazia. Mas eu me lembro assim, do meu pai,
mesmo de ter visto ele 4 vezes na minha vida. Foram só essas vezes. Porque o meu pai
era bastante doente. Meu pai, a lepra tinha pegado ele assim, bem. Ele ainda não tinha
ainda atingido aquela deformação nas mãos. Mas ele tinha, assim, diculdade de
andar. Aparecia muito. E daí quando a pessoa tá muito assim, atacada da doença, eles
não deixavam se aproximar muito. Então eu abanava, ou ele abanava. E a gente só sa-
bia, né. “Aquele lá é teu pai.” E a gente abanava e cava nessa. E daí chegou uma época
em que houveram diculdades para manter o orfanato e para que os lhos cassem lá.
E daí foi que então denido pelo governo estadual, de as crianças serem adotadas por
algum parente ou pra casas de famílias. E eu me lembro assim que a gente...Tinha dias
da semana que a gente parava em la, um do lado do outro. E daí vinham as pessoas
escolher as crianças. Os meus pais tiveram muita diculdade de achar alguém com
quem eu casse. Aí no m das contas um irmão dela disse.Aí eu nunca me esqueço. A
minha tinha era costureira. E o meu tio trabalhava também numa empresa. Aí eu lem-
bro assim que...Ele olhou, assim, pra mim,ele me olhou com um olhar tão terno, tanto
ele como ela. E disse, “Onde comem 3, comem 4. Mulher, tu bota um pouquinho mais
de água no feão. E é com nós que ela vai car. Vai ser criada como nossa lha, e é aqui
que ela vai car. Daí eu lembro assim, no momento que me deu uma explosão de emo-
ção. Eu disse: “Puxa vida, nalmente. Que bom.” E daí quei com eles. Anos mais tarde,
quando eu tinha saído já do orfanato. Eu lembro que a minha mãe resolveu... mais pra
frente assim... Ela resolveu me tirar da casa dos meus tios. E eu não aceitava de forma
alguma. E daí eu sei que no m das contas ela acabou me levando. E me levou pro
hospital. Mas me levou as escondidas. As autoridades não chegaram a ver. Eu lembro
que a gente entrou escondida. Ela me puxava, me agarrando rme pela mão. E tinha
uma guia, inclusive, até muitos doentes que a gente sabe que saiam lá do hospital, eles
não saiam pelo portão da frente. Eles saiam muitas vezes escondidos. Eles não pode-
riam fazer isso, mas saiam escondidos pelo mato. Eles já tinham uma trilha de acesso
ao hospital, né. Eu era a única lá dentro. No meio daquele pessoal “tudo”. E eu lembro,
assim, que a minha mãe sempre tinha o cuidado... Eu não podia sair muito do pavilhão.
E era sempre assim: cuidando, porque eu estava irregular lá dentro. E aí eu me lembro
que todos os anos eles tinham um baile. E todos os anos eles tinham também o time
de futebol. A rainha. E existe essa foto. Está documentada, né. Onde eu fui (a rainha).
Então nunca me esqueço da data. De quando foi e o canto. Eu tinha que cantar. Assim
como o Internacional que é o meu time de coração, tem o hino deles. O Grêmio. Aí eu
também tive que cantar o hino lá pra eles. E aí eu fui eleita a rainha do clube. “Hoje é dia
24 de julho, hoje é dia da inauguração. Nós todos só desejamos a amizade e cooperação.
ARTIGOS LIVRES
160 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
São estes os votos sinceros do Esporte Clube Itapuã. São estes os votos sinceros do Es-
porte Clube Itapuã.” Lembro tão bem desse cantinho. Eu quei dias e dias cantando e
decorando no quarto pra cantar. E daí foi bacana. Isso foi um momento que me marcou
também. A minha estadia lá, no caso, né.
Alguns anos após, Marleci foi morar com os tios e sua mãe resolveu levá-la ao
hospital. Conforme relata, ela morou escondida, na instituição, junto de sua mãe,
por dois anos. Após a descoberta foi encaminhada a outro orfanato, mas um tem-
po depois pode voltar a conviver com os tios. De modo que, neste depoimento o
que chama a atenção é o fato da paciente levar às escondidas a lha para morar
com ela dentro do hospital, revelando de certo modo uma resistência às normas
e de igual modo uma necessidade de vínculo com a lha. Conforme Souza (2015),
na perspectiva foucaultiana, as relações de poder nos atravessam enquanto su-
jeitos, nos constituindo ora submissos, mas, também, ora resistentes:
De um modo ou de outro, o estudo do poder ou dos micropoderes, na perspectiva Fou-
caultianas, indica que o poder nos atravessa e nos constitui enquanto sujeitos, ora
submissos, ora resistentes, mas sujeitos que se reconhecem neste ou naquele lugar,
pois somos governados pelos outros e por nós mesmos e estamos totalmente inseri-
dos em uma complexa rede de poderes da qual e pela qual não podemos escapar (SOU-
ZA, 2015, pp. 177-178).
Assim, em toda relação de poder há “forçosamente” resistência. Caso não
houvesse possibilidade de certa liberdade, não seria uma trama de poder. Enten-
de-se desse modo que os processos de subjetivação das mulheres no Hospital
Colônia de Itapuã foram por vezes associado à submissão e à resistência. Mesmo
se tratando de uma instituição com características de fechamento, as pacientes
mulheres podiam exercer certa liberdade em questões especícas e até mesmo
burlar as regras.
Entendendo que as pacientes foram internadas compulsoriamente e que se
constituíram dentro da instituição sendo constantemente perpassadas pela vi-
gilância e por práticas disciplinares, ainda que sutilmente se tenham mostrado
resistente a elas. Seja quando um depoimento revela os aspectos negativos da
instituição, quando se casa mais de uma vez, ou quando escapa às regras e es-
conde a lha por dois anos na instituição.
ARTIGOS LIVRES
161 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
Considerações finais
Partindo do estudo apresentado, entendendo que as análises se deram cen-
tralmente através um material cinematográco, que foi produzido e editado den-
tro de um jogo de intenções e interesses, destaca-se sua potência para a escrita
da história do Hospital Colônia de Itapuã. Igualmente sua contribuição para en-
tender o modo de ser e estar dos seus pacientes no cotidiano da instituição, com
destaque aqui para as pacientes mulheres.
Desse modo, evidencia-se que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã
eram subjetivadas por meio de relações de poder que pautavam-se em verdades
associadas ao connamento e às relações de gênero. Ao serem internadas com-
pulsoriamente tiveram seus modos de ser moldados. A inferioridade era imputa-
da às pacientes mulheres que deviam ser reservadas ao privado e destinadas às
tarefas relacionadas à limpeza e cozinha, de modo a aparecer o menos possível,
enquanto aos homens não havia o mesmo tratamento. Além disso, eram direcio-
nadas ao casamento, para que desta forma pudessem ser controladas quanto
aos seus desejos de fugir da instituição e comportamentos sexuais. Também,
por conta disso, pode-se reetir sobre como estes corpos eram censurados e
como o sexo e o matrimônio tornou-se um dispositivo de controle dentro do hos-
pital. Entretanto, estas mulheres estavam sujeitas a atos de violência física e
emocional e de repressão.
Dentro das relações de casamento, o interesse da madre de que pacien-
tes considerados menos atingidos pela doença se casassem entre si, trata-se de
uma política eugenista. Funcionando assim, como uma espécie de seleção, pes-
soas doentes relacionam-se com outras pessoas doentes, e dentro dessa lógica
ainda se aplicavam o estímulo ao casamento entre pacientes em que a hansenía-
se fosse menos branda, e por m, pessoas sem a doença deveriam se relacionar
com pessoas sem a doença.
Aponta-se juntamente com os conceitos foucaultianos, o conceito de gêne-
ro de Joan Scott, que deixa claro que as questões de gênero eram impostas den-
tro do hospital, havendo desigualdades entre homens e mulheres. Procurava-se
evitar o contato físico entre os pacientes, as mulheres em virtude de sua sub-
missão construída historicamente, deveriam ser sujeitos dóceis dentro do HCI.
O ideal ao sexo feminino dentro do hospital seria o casamento, que conforme as
ARTIGOS LIVRES
162 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
análises feitas, tinham o aval para “seduzir” os pacientes homens. Apesar de to-
das as regras de convivência dentro da instituição e das regras impostas a todos
os pacientes, bem como os discursos que os atingem, observa-se que, mesmo
assim, temos narrativas diferentes dentro do hospital. Mesmo quando o depoi-
mento é percebido como construído socialmente pelo lugar de convívio destes
pacientes, é possível observar sinais de resistência.
Destaca-se, desta forma, que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã se
constituíram dentro de processos de subjetivação do hospital, enquanto sujeitos
dóceis, e que seus discursos são produzidos de uma maneira geral de uma forma
positiva sobre o Hospital. Estas mulheres foram subjetivadas a não questionar
as regras de convivência, nem as regras de reclusão e connamento do espaço.
Porém, como toda dinâmica de poder produz resistência, tais mulheres também
encontraram em seus movimentos de resistência modos de reexistirem.
Por m, levando em conta que historicamente as mulheres são tidas como
sujeitos esquecidos da história, as narrativas destas pacientes salientam o quão
importante é contar essas histórias, para que se entenda determinados espaços
e suas relações de gênero, além dos sentimentos e relatos desses sujeitos.
Referências bibliográficas
ANDRES, Silvana Carloto; MICHELETTI, Vania Celina Dezoti. Conhecendo a história e estrutura
do Hospital Colônia Itapuã, antigo leprosário: um relato de experiência. J. Nurs. Health, v. 10,
n. espec. e20104019, 2020.
BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Disponível em: <https://www.bibliaon.com/>. Acesso em: 15 mar.
2024.
BORGES, Viviane Trindade; SERRES, Juliane Conceição Primon. Narrativas sobre o velho le-
prosário: as entrevistas realizadas com pacientes/moradores do Hospital Colônia Itapuã (Via-
mão/RS). Boletim da Saúde, v. 16, n. 2, p 116-124, 2012.
BRASIL. Hanseníase. Ministério da Saúde. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/
pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/h/hanseniase. Acesso em mar. de 2024.
CANDIOTTO, Cesar. Disciplina e segurança em Michel Foucault: a normalização e a regulação
da delinquência. Psicol & Soc., v. 24, n. espec., p. 18-24, 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
71822012000400004.
CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa:
ARTIGOS LIVRES
163 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008.
DARSIE, Camilo. Geobiopolítica: relatos sobre um percurso de pesquisa em educação, des-
locamentos teóricos e a proposição de um conceito. In: Betina Hillesheim; Camilo Darsie de
Souza; Mozart Linhares da Silva; Willian Fernandes Araujo. (Org.). Temas, conceitos e percur-
sos metodológicos: possibilidades da pesquisa em educação. 1ed.São Carlos: Pedro e Joào,
2024, v. 1, p. 37-60.
DUBY, George; PERROT, Michelle. (Coord.). História das mulheres no Ocidente: O século XX. 5.
ed. Porto: Afrontamento, 1990-1991.
EIDT, Leticia Maria. Breve história da hanseníase: sua expansão do mundo para as Américas, o
Brasil e o Rio Grande do Sul e sua trajetória na saúde pública brasileira. Revista Saúde e Socie-
dade, v. 13, n. 2, p. 76-88, maio-ago, 2004.
Fontoura A de A da, Barcelos AHF, Borges VT. Desvendando uma história de exclusão: a expe-
riência do Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital-Colônia Itapuã. Hist cienc sau-
de-Manguinhos [Internet]. 2003;10:397–414. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-
59702003000400018
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2015.
_____________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro: LTC, 2008.
_____________. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2019.
LIMBERGER, Rafaela. Educandário Amparo Santa Cruz: “O lugar onde os lhos choram e as
mães não escutam”, Porto Alegre (1940-1950). 177 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 2022.
Disponível em:http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/11805.
LUCA, Tania Regina de. Práticas de pesquisa em história. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2021.
144p.
MEDEIROS, Helena Thomassim ; SERRES, Juliane Conceição Primon. Prisão ou lar? A Dualida-
de de Representações no Memorial do Hospital Colônia Itapuã. In: SERRES, Juliane Conceição
Primon; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. (coord). Memória & patrimônio [vol.2] : identi-
dade, emoção e ditaduras. Pelotas: Ed. UFPEL, 2020. 333p.
OKSALA, Johanna. Como ler Foucault. São Paulo: Zahar, 2011.
PERROT, Michelle. HISTÓRIA da vida privada. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989-
1992.
____________. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1992.
ARTIGOS LIVRES
164 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Rafaela Limberger / Camilo Darsie
SANTOS, B. C. ; DARSIE, C. Arquitetura, Geograa e Educação: a produção de sujeitos por meio
de ambientes, paisagens e heterotopias. In: Betina Hillesheim; Camilo Darsie de Souza; Mozart
Linhares da Silva; Willian Fernandes Araujo. (Org.). Temas, conceitos e percursos metodoló-
gicos: possibilidades da pesquisa em educação. 1ed.São Carlos: Pedro e Joào, 2024, v. 1, p.
227-248.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v. 20, n.
2, jul/dez, p. 71-99, 1995.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
SOUSA, Katia Menezes de; PAIXÃO, Humberto Pierres da. Dispositivos de poder/saber em Mi-
chel Foucault: biopolítica, corpo e subjetividade. Intermeios. 2015.
SULZBACH, Liliana. A cidade. Disponível em: http://www.acidadeinventada.com.br/. Acesso
em mar. de 2024.
WEBER, D. L. ; DARSIE, Camilo . Vidas Clandestinas: Espacialidades que produzem/educam
migrantes. In: Eder da Silva Silveira; Cheron Zanini Moretti; Marcos Villela Pereira. (Org.). Edu-
cação e Clandestinidade v.1 - Educação e Clandestinidade. 01ed.Porto Alegre: EdiPucrs, 2019,
v. 1, p. 115-128.