
RESENHAS
232 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280
Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva
Em outras palavras, percebe-se que os autores zeram uso do que é factual para se
simularem ccionalmente. Além do denominador comum que trata do processo de
ccionalização da realidade, que é uma das engrenagens do mecanismo auto ccio-
nal, em relação às duas obras aqui debatidas, desprende-se um outro denominador: o
luto. A pessoa enlutada passa por várias fases até que o trauma de perder um lho, por
exemplo, seja reelaborado, portanto, passe a ter um novo sentido. (NEVES, 2021, p. 17)
Esse processo de misturar fato e cção é o que se denomina escrita autoc-
cional, e é através dela que Simone de Beauvoir conseguiu expressar seu luto em
relação a Zaza, utilizando da literatura para demonstrar todo o seu sofrimento,
angústia e culpa. Seja em Memórias de uma moça bem comportada onde o texto
tem estruturas de um diário e se trata de uma autobiograa, ou até mesmo em
As inseparáveis, que tem o formato de cção e que inclusive os sujeitos assu-
mem outros nomes como se tratassem de outras personagens, Beauvoir invoca
Zaza em cada uma dessas obras tentando demonstrar o quão doloroso tem sido
ter que lidar com o luto da perda de sua melhor amiga, e não somente isso, mas
que isso também vem acompanhado do sentimento de sobreviver, e também por
possivelmente conseguir ter sua liberdade enquanto Élisabeth Lacoin teve sua
individualidade tão sufocada a ponto de ir morrendo aos poucos ao ser submeti-
da as obrigações e costumes exigidos na época.
Embora o luto tenha sido um dos principais motivos que levou Simone de
Beauvoir a ressuscitar Zaza em tantas obras, de acordo com Larissa Carolina de
Andrade em As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito do di-
zer, ao analisar o romance autobiográco pela ótica da losoa, ela armou que
Beauvoir não tinha como único objetivo retratar a morte da melhor amiga, mas
também buscava reetir a respeito de si mesma através dessa escrita do eu:
Nota-se, portanto, que essa narrativa não é nem nunca foi somente um memorial
dedicado a Zaza, pois, por meio desse discurso também sobre si mesma, Simone de
Beauvoir volta a refutar suas crenças passadas, condena um modo de existir apenas
aparente, submete-se a uma revisão, não atestando, para tanto, nenhuma máxima
conclusiva a respeito de um (im)possível encontro com sua identidade como manifes-
tação de um ser essencial; Sylvie é à medida que faz de si o que é, circunscrita pela
situação econômica de sua família, que fora denidora, em certa medida, de sua forma
de existir. Sylvie é no presente, enquanto manifestação da consciência discursiva de
Simone de Beauvoir, a qual, ao m de seu projeto autobiográco, arma-se inacabada.
(ANDRADE, 2022, p. 10)