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Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva
UMA HISTÓRIA DE AMIZADE & AMOR: QUESTÕES DE LUTO E GÊNERO EM “AS
INSEPARÁVEIS” DE SIMONE DE BEAUVOIR
A STORY OF FRIENDSHIP, LOVE, AND GENDER ISSUES IN “THE INSEPARABLES” BY
SIMONE DE BEAUVOIR
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21235
Jessica Ferreira Alves
Universidade Federal de Mato Grosso
https://orcid.org/0000-0002-4073-6608
alves.jessica12@hotmail.com
Róbson Pereira da Silva
Universidade Federal de São Carlos (DCSo/UFSCar)
https://orcid.org/0000-0001-6517-0842
rpsilva@ufscar.br
Recebido em 10 de fevereiro de 2024
Aceito em 20 de abril de 2024
BEAUVOIR, Simone de. As inseparáveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
(Poema de Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski -
Tornado canção por Caetano Veloso / Ney Costa
Santos Filho)
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“Tem pessoas que a gente
Não esquece nem se esquecer.”
(Rita Lee)
a amizade é o espaço em que a maioria de nós tem
seu primeiro vislumbre de amor redentor e comuni-
dade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos
fortalece de formas que nos permitem levar esse
amor para outras interações com a família ou com
laços românticos.
(bell hooks)
As inseparáveis é um romance póstumo autobiográco que foi escrito em
1954, no qual Simone de Beauvoir remonta memórias de sua juventude e amizade
com Élisabeth Lacoin (Zaza). Publicado em 2021, pela editora Record, o livro conta
com 127 páginas, sendo que dentre elas está também uma seleção de fotograas
da própria Beauvoir que contam sobre algumas das personagens que zeram
parte desta história.
A obra incluí um prefácio breve, mas também rico e esclarecedor, que foi es-
crito por Sylvie Le Bom de Beauvoir, lha de Simone de Beauvoir. Logo de início
Sylvie Le Bom narra a forma como as duas amigas se conheceram, que foi ainda
durante a infância quando Simone tinha apenas nove anos e uma garotinha se
sentou ao seu lado na escola católica Adeline Desir. Apenas alguns dias mais ve-
lha que Beauvoir, Zaza contrastava com aquele ambiente e pessoas, pois era uma
garota ousada, espontânea, divertida.
Não demorou muito para que as meninas se aproximassem bastante, logo
as duas começaram a disputar o primeiro lugar na classe e algumas professoras
estavam as denindo como as inseparáveis. Embora não fosse triste com sua
família, Simone passa a nutrir um forte sentimento por Zaza e, então, passa a
venerá-la, a querer sempre agradá-la. As suas conversas com a amiga eram de
grande importância para:
[...] O que é esse sentimento inominado que, sob o rótulo convencional da amiza-
de, abrasa seu coração jovem no deslumbramento e nos transes, senão o amor?
Bem depressa ela entende que Zaza não sente um apego análogo, nem descona da
intensidade do seu, mas que importa, diante do êxtase de amar? (BEAUVOIR, 2021, p.
06)
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No dia 25 de novembro de 1929, um dos maiores medos de Beauvoir se tor-
nou realidade, Zaza faleceu, repentinamente, um mês antes de completar 22
anos de idade. Foi totalmente imprevisível, essa tragédia viria a assombrar Si-
mone por muitos anos, e a forma que ela encontrou para não deixar com que a
amiga caísse no esquecimento foi utilizando a literatura. Deste modo, Beauvoir
tentou “ressuscitar” Zaza por meio de quatro de suas obras, em romances de sua
juventude, na sua coletânea Quando o espiritual domina, bem como em um trecho
suprimido de Os mandarins. No ano de 1954, a lósofa tentou reviver” a amiga
em uma novela que cou sem título e que, posteriormente, viria a ser publicada
como As inseparáveis, em 1958. Zaza também apareceu no texto autobiográco
de Simone chamado Memórias de uma moça bem-comportada, no qual acrescen-
tou a história da falecida amiga.
Sylvie Le Bom de Beauvoir relata no referido prefácio que o fato de Simone
ter sobrevivido fez com que ela desenvolvesse uma espécie de culpa. Um
quadro desencadeado e sustentado pela culpa de quem sobreviveu a uma perda
inestimável. Além disso, a visão que ela tinha em relação ao falecimento de Zaza é
de que a garota foi assassinada pela vida social, pois em meio a pressão de forçá-
la a se encaixar naquele padrão exigido para a época, isso foi a desgastando até
matá-la: “[...] Zaza morreu porque tentou ser ela mesma e foi convencida de que
essa pretensão era um mal.” (BEAUVOIR, 2021, p. 08)
Quanto a escolha de Beauvoir pela cção para narrar a história desta
amizade, foi necessário que várias modicações e transposições fossem feitas.
Sendo que uma delas é a mudança de nomes dos personagens, pois Simone de
Beauvoir passará a ser Sylvie Lepage, Élisabeth Lacoin dá lugar a Andrée Gallard,
demais nomes e lugares também sofrem modicações, e não menos importante,
Maurice Merleau-Ponty recebe uma nova identidade na narrativa, passando a se
chamar Pascal Blondel.
Antes do início do primeiro capítulo, Beauvoir escreveu uma dedicatória para
Zaza, onde ca evidente o sentimento de tristeza com o qual ela estava lidando
desde a partida da amiga, e não se limitando a isso. Em poucas palavras, ca bem
óbvio a forma como ela se culpa por estar viva, e que somente a literatura tornou
possível para que lhe falasse, embora Élisabeth não pudesse ler. E por m, reforça
que não se trata da história de Zaza, é apenas uma história inspirada nelas, pois
no m, Sylvie e Andrée não são de fato seus nomes.
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Simone de Beauvoir inicia o primeiro capítulo narrando a história de uma
Sylvie de apenas 9 anos de idade, que segundo ela, se tratava de uma garotinha
muito comportada. Mas que isso nem sempre foi assim, pois na primeira infân-
cia tinha um gênio que muitas vezes era considerado como difícil, chegando ao
ponto de uma vez até mesmo uma de suas tias declarar seriamente que Sylvie
estava possuída pelo demônio”. (BEAUVOIR, 2021, p. 17).
Como foi exposto no prefácio, a história de As inseparáveis e Memórias de
uma moça bem comportada se conectam em vários pontos, deste modo, Beauvoir
relata em sua autobiograa como se deu essa passagem da primeira infância
para uma garota bem comportada: “Eu me metamorfoseara denitivamente
em menina bem-comportada. No início, criara articialmente a personagem:
valera-me tantos elogios, de que tirei tão grandes satisfações, que acabei me
identicando com ela: tornou-se minha única verdade” (BEAUVOIR, 2018, p. 33) .
Grande parte da razão desta mudança acontecer foi por causa da religião,
guerra e a relação familiar de Sylvie/Simone com os seus pais. Assim, quando
Andrée aparece no Colégio Desir, ela imediatamente chama atenção por seu jeito
espontâneo e personagem que até mesmo parecia impertinência.
Sylvie a descreve como uma garotinha de cabelo curto, liso e preto, com
olhos brilhantes e escuros que a olhava com intensidade, seu rosto era magro e
ela parecia ser mais nova, fato este que logo em seguida foi esclarecido por An-
drée, ao relatar que ela tinha crescido pouco e também parecia mais nova do que
realmente era, graças a um acidente que aconteceu ainda na infância, do qual
resultou uma queimadura profunda em sua coxa direita a ponto de chegar até o
osso.
Ao explicar para Sylvie que foi preciso interromper seus estudos por cerca
de um ano, Andrée pede o caderno da garota emprestado sob o argumento de
que haviam lhe informado de que ela era a aluna número um da sala. Foi a partir
disso que surgiu a amizade das duas, ainda que logo de início foi possível notar
grandes diferenças em relação a elas. Enquanto Sylvie tinha uma família menor,
estudava no colégio já a algum tempo e que a mãe tinha cuidado de buscá-la to-
dos os dias após a aula, Andrée vinha de uma família maior e graças a isso sua
educação até então tinha sido toda dentro de casa, com uma grande quantidade
de irmãos, isso fazia com que a sra. Gallard permitisse que a garotinha fosse em-
bora sozinha, pois não poderia car se dedicando a ir busca-la na escola. Com
receio de uma menina tão nova estar andando sozinha, Sylvie e sua mãe passam
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a acompanhar Andrée por grande parte do caminho.
A amizade das meninas foi se fortalecendo, a ponto de elas também mante-
rem o contato mesmo durante as férias, onde trocaram correspondências.
O carinho que Sylvie sentia por Andrée aumentava cada vez mais, em diver-
sas situações perguntava-se se era correspondida por ela igualmente, ou se a
amiga também tinha medo de algum dia perdê-la também. Devido a admiração
e o afeto que tinha pela outra, a jovem sentia cada vez mais necessidade de a
agradar, presentear. E foi em meio a uma dessas situações, que ao dar uma bolsa
a Andrée pelo seu aniversário em que ela mesmo zera e sua mãe a ajudou, Syl-
vie pôde notar pela reação da sra. Gallard diante do presente que agora ela tinha
deixado de gostar dela.
No entanto, Sylvie demonstra admiração pela perspicácia da sra. Gallard,
pois naquele momento a mulher tinha notado que ela estava mudando. Com
uma personalidade mais atrevida, passou a ter diculdades em simplesmente
aceitar tudo que lhe era dito e imposto na igreja, se até algum tempo atrás ela via
a imagem do padre como o representante direto de Deus, agora já conseguia ver
também a hipocrisia que vinha dele. Então se reconfortou ao perceber que não
só seu próprio pai, mas também vários autores que admiravam não acreditavam
em Deus, então não estava de fato errada. Porém, com isso vinha outro temor, de
que Andrée em algum momento descobrisse seu segredo. Seu único conforto em
relação a isso é que elas não costumavam conversar a respeito de sexualidade ou
religião, portanto, pelo menos por enquanto seu segredo estava seguro, embora
o medo de ser descoberta ainda lhe aterrorizava.
A medida que foram envelhecendo, as garotas tinham perspectivas diferen-
tes sobre a vida, enquanto Andrée tinha se acostumado com a ideia de se casar,
embora ela armasse que não o faria antes dos 22 anos, Sylvie ainda preferia se
manter focada nos estudos, nos livros, sem ter que se preocupar com quem iria
casar e se teria que casar.
No capítulo dois podemos notar que após muita insistência a sra. Gallard
permitiu que Andrée estudasse três anos na Sorbonne, então a garota escolheu o
curso de letras e Sylvie o de losoa. Ainda que estudassem juntas na biblioteca
por várias horas, nas aulas, Sylvie permanecia sozinha, e foi aí que ela descobriu
ter anidades com um rapaz chamado Pascal Blondel (Maurice Merleau-Ponty),
que após várias horas de conversa, por m decidiram formar uma equipe.
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Essa proximidade de Sylvie e Pascal foi o que tornou possível a aproxima-
ção dele e de Andrée, que acabaram se apaixonando. No entanto, dada a idade
dela e o fato de pertencer a uma família tão grande, os deveres que ela tinha que
cumprir estavam a deixando desgastada e exausta, dores de cabeça se tornaram
comuns e até mesmo a sua amizade com Sylvie passou a ser vista como um pro-
blema, pois agora elas nem mesmo poderiam compartilhar um quarto sozinhas
durante a temporada de férias.
Isso foi deixando Andrée tão desesperada que na tentativa de obter um pou-
co de paz, a garota cortou o próprio com um machado, mas que de acordo
com Sylvie, após um pouco de repouso, a amiga parecia realmente melhor e até
mais corada, era como se tivesse se recuperando parcialmente de toda aquela
exaustão.
Essa mudança que aconteceu na vida de Andrée se deve a passagem da in-
fância para a adolescência. Sobre essa fase, Beauvoir aborda essa questão em O
segundo sexo em um capítulo intitulado “A jovem”:
Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se
como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus es-
tudos e jogos, descobria-se então como uma transcendência: nada fazia senão so-
nhar com sua futura passividade. Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima,
instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. [...] Já desligada de seu
passado de criança, o presente só lhe aparece como uma transição; ela não descobre
nele nenhum m válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos
velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. (BEAUVOIR, 2019,
p. 75)
Ainda que Sylvie tivesse vindo de uma família com status parecido com o da
família de Andrée, o fato de seu pai ter perdido parte da fortuna e não ter condi-
ções de oferecer bons dotes para casar as lhas fez com que ela não vivenciasse
essa situação da mesma forma que a amiga, que já temia desde cedo acabar em
uma situação semelhante com a da irmã mais velha que aos 28 anos ainda era
uma “solteirona”, e naquele período isso era considerado como fracasso, portan-
to, seria necessário um bom casamento para livrá-la desse “terrível destino”.
A infelicidade de Andrée não parou por aí. Depois de muita luta para que
seus pais aceitassem Pascal como um pretendente, uma vez que ele pertencia
a uma posição social um pouco inferior se comparada com a da família Gallard,
ainda assim o rapaz não quis noivar com ela naquele momento mesmo dizendo a
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amar muito. A tristeza, decepção aliadas aos exaustivos deveres de casa foram
minando toda a felicidade da jovem, que nem mesmo podia se dar ao luxo de car
mais do que cinco minutos conversando com a amiga de infância.
Andrée adoeceu e sua piora aconteceu durante a visita a casa de Pascal em
busca da aprovação do pai dele. Diante do seu estado, o médico prescreveu cal-
mantes, falou de meningite, encefalite, mas não se deniu o diagnóstico preci-
samente. Após uma noite de delírios, a sra. Gallard informou que a lha precisou
ser isolada por ordem médica. Após três dias internada e acompanhada por uma
enfermeira, em meio as divagações ela pedia sempre por: Pascal, Sylvie, o violino
dela e champanhe. (BEAUVOIR, 2021, p. 126)
Pouco antes de falecer, a jovem apertou a mão da mãe, que era uma das
pessoas que ela mais admirava e lhe disse a seguinte frase: “Não que triste. Em
todas as famílias alguém o presta: quem não presta sou eu.” (BEAUVOIR, 2021,
p. 126)
Andrée que era uma moça tão viva, espontânea, faleceu em uma clínica, em
meio as paredes brancas e sufocada por elas.
Esse sentimento da perda é constantemente abordado também em Me-
mórias de uma moça bem-comportada, onde Beauvoir não só descreve todos os
acontecimentos, mas também detalha como a morte de Zaza lhe afetou e as re-
exões resultantes disso:
Os médicos falaram de meningite, de encefalite, nada se soube ao certo. Tratava-se de
uma doença contagiosa, de um acidente? Ou Zaza sucumbira a um excesso de fadiga e
angústia? Muitas vezes à noite ela me apareceu, toda amarela sob o chapeuzinho cor-
-de-rosa, e me olhava com reprovação. Juntas havíamos lutado contra o destino abjeto
que nos espreitava, e pensei durante muito tempo que pagara minha liberdade com a
sua morte. (BEAUVOIR, 2018, p. 313)
Para Simone de Beauvoir não foi possível superar a morte tão repentina da
amiga, e como dito anteriormente, foi através da literatura que a lósofa mante-
ve a memória de Zaza viva, a ressuscitando em várias obras, mas sendo As inse-
paráveis totalmente dedicada a história delas. Isso foi possível pois ela utilizou a
literatura para corporicar parte da sua dor. Neste sentido, André Salomão das
Neves em sua monograa intitulada A escrita autoccional como estetização do
luto e da dor, ao analisar duas obras, que são intituladas Fora do Tempo (2011) de
David Grossman e O pai da menina morta (2018) do autor Tiago Ferro, com as quais
os pais lidam com a dor de perder os lhos, arma que:
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Em outras palavras, percebe-se que os autores zeram uso do que é factual para se
simularem ccionalmente. Além do denominador comum que trata do processo de
ccionalização da realidade, que é uma das engrenagens do mecanismo auto ccio-
nal, em relação às duas obras aqui debatidas, desprende-se um outro denominador: o
luto. A pessoa enlutada passa por várias fases até que o trauma de perder um lho, por
exemplo, seja reelaborado, portanto, passe a ter um novo sentido. (NEVES, 2021, p. 17)
Esse processo de misturar fato e cção é o que se denomina escrita autoc-
cional, e é através dela que Simone de Beauvoir conseguiu expressar seu luto em
relação a Zaza, utilizando da literatura para demonstrar todo o seu sofrimento,
angústia e culpa. Seja em Memórias de uma moça bem comportada onde o texto
tem estruturas de um diário e se trata de uma autobiograa, ou até mesmo em
As inseparáveis, que tem o formato de cção e que inclusive os sujeitos assu-
mem outros nomes como se tratassem de outras personagens, Beauvoir invoca
Zaza em cada uma dessas obras tentando demonstrar o quão doloroso tem sido
ter que lidar com o luto da perda de sua melhor amiga, e não somente isso, mas
que isso também vem acompanhado do sentimento de sobreviver, e também por
possivelmente conseguir ter sua liberdade enquanto Élisabeth Lacoin teve sua
individualidade tão sufocada a ponto de ir morrendo aos poucos ao ser submeti-
da as obrigações e costumes exigidos na época.
Embora o luto tenha sido um dos principais motivos que levou Simone de
Beauvoir a ressuscitar Zaza em tantas obras, de acordo com Larissa Carolina de
Andrade em As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito do di-
zer, ao analisar o romance autobiográco pela ótica da losoa, ela armou que
Beauvoir não tinha como único objetivo retratar a morte da melhor amiga, mas
também buscava reetir a respeito de si mesma através dessa escrita do eu:
Nota-se, portanto, que essa narrativa não é nem nunca foi somente um memorial
dedicado a Zaza, pois, por meio desse discurso também sobre si mesma, Simone de
Beauvoir volta a refutar suas crenças passadas, condena um modo de existir apenas
aparente, submete-se a uma revisão, não atestando, para tanto, nenhuma máxima
conclusiva a respeito de um (im)possível encontro com sua identidade como manifes-
tação de um ser essencial; Sylvie é à medida que faz de si o que é, circunscrita pela
situação econômica de sua família, que fora denidora, em certa medida, de sua forma
de existir. Sylvie é no presente, enquanto manifestação da consciência discursiva de
Simone de Beauvoir, a qual, ao m de seu projeto autobiográco, arma-se inacabada.
(ANDRADE, 2022, p. 10)
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Essa escrita do eu de Beauvoir se dá por meio de um sujeito constituído na
alteridade, na internalização dos amores perdidos e na própria exibição da expe-
riência da perda. Pela literatura, a lósofa faz do enfrentamento da experiência
do luto para fora da vida privada de uma amizade, mas torna o amor um instru-
mento de criação de laços sociais e comunitários de luta contra a precarização
da construção mortífera de gênero, sobretudo, quando narra os motivos que
mataram a amiga além da doença, ou seja, quando expõe a violência social e de
gênero vivida por uma mulher. Segundo Carla Rodrigues (2021), ao dialogar com
Judith Butler, o luto produz uma zona de indeterminação do sujeito a partir da
condição de despossuído;
Eis o argumento de que a função do luto na losoa de Butler é a de constituir um
laço social a partir da experiência de perda. Há uma zona de indeterminação no sujeito
constituído pela alteridade, mas é como se essa indeterminação se tornasse mais ex-
plícita na experiência da perda. Aqui é importante observar a dimensão de um segredo:
não somos capazes de saber o que perdemos no objeto perdido, e a sua incorporação
não se dá completamente. Quando perdemos alguém, nem sempre sabemos o que se
perdeu daquela pessoa, mas fazemos a experiência de nos tornar despossuídos. E a
despossessão é uma maneira de politizar a perda e o luto, como ela argumentará em
2013, ao publicar Dispossession: The Performative in the Political.
Assim, o luto se faz como uma política de memória, na qual nos damos conta
de nossa construção social e subjetiva que se apresenta por meio da alteridade,
segundo Carla Rodrigues (2021):
Eu como aquele que se constitui na relação com o outro. Minha vida começa antes e
continua depois de mim, de tal modo que a própria noção de indivíduo autônomo ca
abalada. Somos feitos e desfeitos uns pelos outros, numa rede de relações que nos
antecedem, das quais dependemos mesmo sem saber, e continuamos a existir em um
trabalho de luto como política de memória.
A obra, As inseparáveis, trata então de tornar o luto de duas amigas em
uma espécie de totem da complexidade de tornar-se mulher na companhia de
outra mulher, mesmo com a perda de uma delas. Assim, quando se manifesta
a experiência de perda de uma amiga, a morte se torna um absoluto na
conguração de um laço social que, anteriormente, enquanto se construía, o
amor era o sustentáculo desse respectivo laço. Assim, escrever sobre esse
amor que sobrevive a morte é ingressar numa política de memória. Outrossim, é
através dessas reexões que Beauvoir faz, ao longo de As inseparáveis e também
em Memórias de uma moça bem comportada, que podemos observar o quanto
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ela não sofreu com o luto pela morte de Zaza, mas que também se culpa por
projetar que possivelmente foi graças a tudo que aconteceu que ela pôde ter
um destino diferente e, com isso, ter sua liberdade, objeto de suas reexões
estéticas e losócas, se tornando posteriormente uma mulher independente1
através dos estudos e o trabalho, o que não pôde ter acontecido com o destino
trágico de Zaza. Aqui deixamos um convite para a leitura de uma obra que retrata
a relação complexa de duas mulheres e um futuro interrompido pela morte de
uma delas, mas que sobreviveu e ressuscitou constantemente nas obras de
Simone de Beauvoir, contra a possibilidade do silenciamento de uma vida em
seus segredos indecifráveis, na busca constante do que está perdido no objeto
perdido” (RODRIGUES, 2021, p. 128).
Referências
ANDRADE, Larissa Carolina de. As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito
do dizer. Revista Água Viva, [S. l.], v. 7, n. 3, 2023.
BEAUVOIR, Simone de. A Força das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
BEAUVOIR, Simone de. A Força das idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
BEAUVOIR, Simone de. As inseparáveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
BEAUVOIR, Simone de. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2018.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – A Experiência Vivida. 5. ed.Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
NEVES, André Salomão das. A escrita autoccional como estetização do luto e da dor (Monograa
em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021.
RODRIGUES, Carla.O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Autêntica
Editora, 2021.[e-book]
1 Simone de Beauvoir na segunda parte de O Segundo Sexo dene que a mulher não consegue sua
independência somente com o direito de votar ou pelas liberdades cívicas, pois não são elas que vão
trazer autonomia a mulher. Assim, a mulher só conseguiu cobrir a maior parte da distância que a se-
parava do homem através do trabalho, então é somente o trabalho que possibilita a uma mulher a real
possibilidade de se tornar independente. (BEAUVOIR, 2019, p. 503)