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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA ABJEÇÃO RACISTA NO BRASIL

THE HISTORICAL CONSTRUCTION OF RACIST ABJECTION IN BRAZIL

Cassio Rodrigues da Silveira1

https://orcid.org/0009-0007-3104-3360
http://lattes.cnpq.br/4683142165747767

Recebido em: 01 de março de 2025.
Aprovado em: 16 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22930

Resenha de: BENTO, Berenice. Abjeção: a construção histórica do racismo. São
Paulo: Cult Editora: 2024. 349 páginas.

O livro Abjeção, de Berenice Bento,
publicado pela Editora Cult em 2024, analisa,
como o próprio subtítulo deixa claro, a
construção histórica do racismo
no Brasil.
Com uma organização coerente, a autora
divide a obra em três partes. Na primeira
parte, um capítulo é dedicado à apresentação
de suas fontes centrais, que são os discursos
parlamentares produzidos durante a discussão
do Projeto de Lei do Ventre Livre, de 1871, e
outro, à apresentação dos principais conceitos
elaborados pela autora a partir de seus estudos.


1  Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2003), instituição na qual
também cursou o mestrado em História, cujo título foi obtido em 2008, e o doutorado, defendido em
2015. E-mail: cassiofil@gmail.com

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No primeiro capítulo, Lei do ventre livre: Política de promoção da morte, os
discursos dos parlamentares contrários à implementação da Lei que daria fim
ao princípio romano adotado no Brasil partus sequitur ventrem (o parto segue o
ventre), são ilustrativos de uma diversidade de lógicas que atravessaram nossa
história. Em primeiro lugar, uma preocupação em apresentar a escravidão no
Brasil como mais branda do que a que ocorreu em outros países, menos violenta,
imagem que estaria presente, inclusive, em teorias relevantes produzidas no país,
como as imagens do “homem cordial”, forjada por Sérgio Buarque de Holanda, ou
do “mito da democracia racial”, produzido, sobretudo, a partir de algumas leituras
de Gilberto Freyre. Daí a ideia de que não seria tão urgente aprovar uma lei que
interferisse de forma tão acintosa no direito de “propriedade” (assim os escravos
eram compreendidos) dos indivíduos, bruscamente.

Nesse ponto, um segundo elemento importante na estrutura da nossa
história, qual seja: a necessidade de que a abolição fosse realizada de forma
controlada e gradual, para que pudesse ser segura. A autora nos mostra que,
desde sempre, as camadas dominantes da nossa sociedade estiveram no
controle das transformações sociais para que fossem realizadas da maneira mais
segura possível para elas mesmas, ou seja, para que não produzissem mudanças
significativas nas estruturas de poder. O mesmo discurso viria a ser usado, como
sabemos, no nosso processo recente de redemocratização.

Um terceiro elemento interessantíssimo apresentado por Berenice Bento
como um traço de continuidade em nossa estrutura política é o medo da
implementação do comunismo no país, que poderíamos erroneamente vincular à
divisão posterior do mundo em dois blocos, ocorrida no século XX. A autora nos
mostra, a partir dos discursos dos parlamentares, que esse medo nos chegou em
função da implementação, na França, da Comuna de Paris, que ocorreu durante
a discussão do projeto de Lei do Ventre Livre no nosso parlamento, e reforçou
a percepção dos escravizados compreendidos como propriedades, ameaçadas
pelas percepções comunistas vindas da Europa. Tal fantasma vem nos assolando
desde então, sendo utilizado nas mais diversas ocasiões para justificar toda sorte
de autoritarismos.

Um quarto elemento, que fornece o gancho para o segundo capítulo, é o
discurso dos parlamentares de que a escravidão acabaria por si mesma, sem a
necessidade de legislação específica sobre isso, dados os índices de mortalidade
da população negra e o impedimento legal de substituição dessa mão-de-obra.

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O que eles omitem, propositadamente, e Bento discutirá posteriormente, é que
a mortalidade absurda das crianças negras se devia, entre outros fatores, à falta
de leite e cuidado maternos, já que os corpos das mulheres escravizadas eram
utilizados para amamentar as crianças brancas, dos seus proprietários. A partir
das falas dos parlamentares, portanto, a autora mostra qual era o verdadeiro
projeto de Brasil que se desenhava, e que nunca deixou de se implementar: o
genocídio da população de origem africana, em nome do embranquecimento
populacional do país, por meio do ingresso de trabalhadores brancos europeus
que viriam a ocupar os postos de trabalho livre.

Nesse ponto adentramos naquele que é, a meu ver, o capítulo central da obra,
o segundo, A guerra demográfica: Genocídio, genocidade e necrobiopoder. É nessa
parte do texto que Berenice nos oferece as principais contribuições conceituais
para a compreensão da questão do racismo no Brasil. As leis aprovadas antes da
abolição no país, Ventre Livre e Sexagenário, tiveram como resultado o oposto do
que aparentavam ser. Na aparência seriam leis para beneficiar os negros recém-
nascidos e idosos. Na prática, serviram para deixar desprotegidos os indivíduos
mais vulneráveis dessa população no Brasil. Os parlamentares falavam dos altos
índices de mortalidade da população negra, mas nenhum discurso apontou
formas de amenizar esses números trágicos.

É nesse momento do texto que Berenice nos apresenta o conceito de
genocidade, para que possamos compreender as políticas adotadas com
relação à população negra no país, e que a autora define como uma “microfísica
da produção continuada da morte” (p. 100), que não se diferencia do genocídio
em seus fundamentos, mas em seus mecanismos atualizados para a produção
da morte. Segundo a autora, são três as suas características: “1) atua com uma
temporalidade alargada; 2) volta-se, principalmente, para as relações que se
dão na esfera micro; 3) combina múltiplas técnicas de produção continuada
de sofrimento físico e psíquico” (p. 100). Tais técnicas são mais nítidas quando
percebemos a falta de cuidado deliberado por parte do Estado brasileiro com
as populações negras mais vulneráveis, ainda antes da abolição, mas que
seguiram sendo realizadas na perseguição constante a práticas culturais de
origem especificamente africanas, historicamente criminalizadas, e persistem
até hoje no tratamento diferenciado das forças policiais aos diferentes espaços
das nossas cidades, aplicando uma violência desmedida nas periferias mais
afastadas, espaço hegemônico de habitação dos descendentes dos indivíduos

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escravizados na história do país.
É a partir desse tratamento diferenciado às populações que a autora

nos apresenta o segundo conceito fundamental do capítulo, qual seja, o de
necrobiopolítica, que articula as noções de biopolítica (Michel Foucault), de
necropolítica (Achille Mbembe) e de Homo sacer (Giorgio Agamben). Retornando
aos discursos dos parlamentares na ocasião da discussão sobre a Lei do Ventre
Livre, Berenice nos mostra que, enquanto essa ideia de deixar morrer (necro)
os descendentes de africanos para substitui-los por mão-de-obra branca era
debatida de um lado, diversas políticas de cuidado (bio) com as populações
brancas, os proprietários de escravos, assim como os imigrantes, também eram
debatidas e implementadas.

É nesse ponto que a autora chega ao centro de sua argumentação: foi
produzida, ao longo da história do Brasil, por meio de uma infinidade de técnicas,
práticas e discursos, uma relação de abjeção das populações em geral com
relação aos africanos, em um primeiro momento e, posteriormente, aos seus
descendentes. Tal relação insere os corpos negros fora das relações “eu/outro”,
que caracterizam a composição das subjetividades humanas. Os africanos e seus
descendentes, ao serem, na maior parte da história do Brasil, compreendidos como
propriedade, energia, energia, peça, sofreram um processo de desumanização
que é central para que compreendamos o racismo e a naturalização da violência e
da morte dos corpos negros na nossa sociedade ao longo de toda a nossa história.

Na segunda parte, dividida em três capítulos, é apresentada outra das
teses centrais da autora na obra, qual seja: a insuficiência da categoria gênero
na análise da condição das mulheres escravizadas na história do Brasil. A partir
disso, nos capítulos Gênero: uma categoria útil de análise e Diferença sexual e
abjeção: Qual o gênero das negras escravizadas
é realizada uma crítica aos limites
da própria noção de interseccionalidade, tal como vem sendo operada, por mera
adição de componentes identitários (gênero, raça e classe, por exemplo). Isso
porque, para Berenice Bento, as negras/escravizadas/propriedades/peças
não se encontravam nas mesmas condições de gênero das mulheres/brancas/
proprietárias. O corpo coberto e honrado da mulher branca, sua fragilidade,
passividade, ingenuidade, seu potencial para a maternidade, nada disso é
considerado atributo das negras escravizadas. Estas teriam os corpos fortes
para o trabalho duro e cotidiano, incapaz para a maternidade, daí ser utilizado
para amamentar os filhos das brancas/proprietárias e, em função de sua

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sensualidade “natural”, inverteriam o jogo de forças com os homens/brancos/
proprietários. Estes, evidentemente mais fortes que as mulheres/brancas/
proprietárias, suas esposas, eram fracos diante da lascívia e poder sedutor dos
corpos desnudos das negras escravizadas, o que inclusive seria um elemento
“amenizador” da responsabilidade da infinidade de estupros realizados, elemento
também, infelizmente, aparentemente estruturante da nossa cultura, assim
como a facilidade que homens têm de não assumir a paternidade dos filhos das
mulheres negras. Havia, portanto, um pacto óbvio entre as mulheres/brancas/
proprietárias e os homens/brancos/proprietários, articulado em torno do
sentimento de abjeção com relação aos corpos das negras escravizadas, que
resultava na negação de qualquer componente significativo de humanidade.
Elas eram meras peças, bios, energia, e mesmo seus componentes biológicos
femininos eram considerados a partir de avaliações de caráter utilitário, ancas
largas para procriar, seios para amamentar, braços fortes para realizar as tarefas
que lhes eram atribuídas.

A partir dessa reflexão, de forma bastante coerente, a autora nos conduz ao
terceiro capítulo da segunda parte, Guerra feminista: Limites das categorias de
gênero e patriarcado
, para fazer uma análise dos dilemas dentro do feminismo
contemporâneo. A autora contrapõe, nesse momento, o que ela denomina
de feministas patriarcalistas, que trabalham com o “patriarcado” como uma
categoria universal (como é típico de teorias eurocentradas) que atingiria todas
as mulheres, de qualquer etnia, da mesma maneira, ao feminismo negro, que
coloca necessariamente em evidência a categoria raça. Em função de tudo que
foi apresentado anteriormente, no sentido de que não foi permitido à negra
escravizada efetivar uma vivência do feminino nos mesmos moldes daqueles
que eram vivenciados pela mulher branca proprietária, Bento nos mostra porquê
existem limites para a associação de mulheres brancas e mulheres negras,
e porquê essas últimas precisam evidenciar a categoria raça, muitas vezes,
antes da categoria gênero, fazendo, inclusive, alianças com homens negros
incompreensíveis para mulheres que elegem o patriarcado como elemento central
de articulação da luta. Para mim, sobretudo, essa parte do livro foi extremamente
esclarecedora de questões que, por vezes, acompanhamos na prática concreta
dos movimentos sociais, mas que são de compreensão complexa quando não
nos inteiramos de elementos fundamentais para a reflexão.

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A terceira parte tem dois capítulos. No primeiro, Quando a história começa?
Lutas e revoltas negras durante a escravidão no Brasil
, a autora retoma as lutas
políticas dos negros na história do Brasil, na busca de questionar uma certa
percepção defendida por intelectuais brasileiros, tais como Caio Prado Júnior,
citado por ela, de que essa população, ao longo da maioria de sua trajetória no
país, não poderia ser compreendida como dotada de protagonismo histórico,
dada uma pretensa passividade desses sujeitos ou uma dificuldade de adotar
condutas disciplinadas, o que dificultaria a organização coletiva. Ora, se assim
era, o Estado ou os proprietários não teriam questões colocadas de fato por
essas populações às quais se deveria dar respostas. A autora demonstra, por
meio da apresentação de processos judiciais, lembrando as fugas isoladas, os
suicídios, chegando à organização complexa dos Quilombos e ao movimento
abolicionista, que esses sujeitos jamais estiveram passivos diante de sua
situação. Portanto, ao apresentá-los dessa maneira, a intelectualidade brasileira,
assim como na concepção de “homem cordial” ou de “mito da democracia racial”,
propositadamente ou não, acabou por reforçar estereótipos que colaboraram
com a manutenção da abjeção e do racismo no país.

O último capítulo, denominado Qual a família da psicanálise? Entre a abjeção
e a psicose cultural, é uma reflexão sobre os limites dessa linha de pensamento,
corrente que orientou e ainda orienta em grande medida as percepções intelectuais
no ocidente, para compreender as questões concernentes às populações negras
na história do Brasil. Um primeiro dado apresentado pela autora é a ausência
perceptível de pessoas negras atuando como psicanalistas ou inseridas no
tratamento psicanalítico, o que ela articula muito bem no primeiro subtítulo do
capítulo, “Racismo e psicanálise ou o racismo da psicanálise”. Berenice Bento
insere uma questão fundamental para que consideremos os limites da psicanálise
para compreender as famílias negras, sobretudo no contexto da escravidão, que
consiste na centralidade da figura paterna na composição da subjetividade,
sendo ela a responsável pelo segundo corte do cordão umbilical, separando
definitivamente criança da mãe por meio da castração. Tal centralidade é
problemática quando nos lembramos que à negra escravizada era negado o
direito de ser mãe, e que seu filho jamais seria assumido por uma figura que
ocuparia o lugar de pai. Compreendendo que a estrutura familiar utilizada por esta
corrente para a compreensão da formação da subjetividade não se aplicou aos

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negros na maior parte da nossa história, ainda hoje há problematizações a esse
padrão vertical de família. Enquanto a psicanálise não se propuser a reavaliar as
ferramentas, inserindo o elemento raça como categoria importante, ela pode ser
um instrumento de reforço das percepções racistas na nossa sociedade.

Após essa breve explicitação da estrutura da obra, espero ter demonstrado
a relevância dos objetos e conceitos apresentados por Berenice Bento para a
compreensão da construção do racismo em nossa sociedade, da normalização
da violência sobre os corpos negros, e dos limites de certas categorias e
ferramentas de tendência universalizante, seguindo tendências de explicação
europeias, para a compreensão da complexidade das relações de dominação
seculares que marcam a história do Brasil.