CADERNO ESPECIAL
305 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
QUEM TEM MEDO DE MADONNA?
WHO’S AFRAID OF MADONNA?
Antonio Ricardo Calori de Lion1
https://orcid.org/0000-0001-6746-2240
http://lattes.cnpq.br/8651248987276573
Recebido em: 08 de março de 2025.
Revisão final: 15 de março de 2025.
Aprovado em: 16 de março de 2025.
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22948
1 Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) - Câmpus de Rondo-
nópolis. Mestre e Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Professor da rede básica da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEDUC/SP).
É membro do LEDLin - Laboratório de Estudos em Diferenças e Linguagens (UFMS/Aquidauana).
E-mail: antonio.lion@unesp.br
RESUMO: Com o espetáculo The Celebration
Tour, Madonna levou para a praia de Copacabana um
espetáculo que transcendeu o mero entretenimento.
O seu show abordava sua carreira e vida, em
retrospecto, contendo muitos temas sociais e
políticos. O que se seguiu após sua passagem
pelo Brasil lançou luz em debates que, novamente,
tentaram ser monopolizados e polemizados pela
direita radical brasileira, mas que não foi bem-
sucedido. A crítica do texto se debruça, sobretudo,
sobre as dinâmicas em torno da artista e das
discussões em torno de gênero e sexualidade, em
perspectiva sociopolítica.
Palavras-chave: Madonna, The
Celebration Tour, gênero, feminismo.
ABSTRACT: With The Celebration Tour, Madonna
took to Copacabana beach a show that transcended
mere entertainment. Her show addressed his career
and life in retrospect, containing many social and
political themes. What followed after his visit to
Brazil shed light on debates that, once again, the
Brazilian radical right tried to monopolize and create
controversy, but were unsuccessful. The text’s
critique focuses on the dynamics surrounding the
artist and the discussions surrounding gender and
sexuality, from a sociopolitical perspective.
Key words: Madonna, The Celebration Tour,
gender, feminism.
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Então aqui está minha história
Sem risco, sem glória
Um pouco de sobe, e desce, e ao redor
É tudo uma questão de sobrevivência2
Dallas Austin e Madonna, Survival, 1994
“Uma festa. Um pandemônio. Tem público de todas as tribos, de todos os tipos”. Essa
frase poderia ter sido facilmente proferida pela passagem de Madonna com a The Celebration
Tour, no Rio de Janeiro, em maio de 2024, mas na verdade se trata de uma descrição sucinta
da repórter Sandra Moreyra, para o Jornal Nacional, em 06 de novembro de 1993, quando a
cantora se apresentou pela primeira vez, no Brasil, com a The Girlie Show Tour (Jornal
Nacional - Madonna no Maracanã...,1993). Entre 1993 e 2024, Madonna fez muitas coisas,
se reinventou, se transformou, mas a essência de estar em torno de grupos marginalizados e
de auxiliar a lançar luz sobre eles, jamais deixou de estar em seu horizonte e prática artísticos.
Figura 1 – Multidão assiste ao show de Madonna, destaque para adolescentes tentando ver o palco.
Fonte: Página Madonna Brasil, no Facebook. Foto Alexandre Woloch.
O espetáculo musical apresentado pela artista estadunidense na praia de
Copacabana, no Rio de Janeiro, foi um marco para a cidade, e também para sua
carreira com um público de 1,6 milhão de pessoas, superando as expectativas que
a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro tinha, em relação ao alto investimento no
2 No original, em inglês: “So here’s my story (my story)/No risk, no glory (no glory)/A little up and/
down and all around/It’s all about survival”.
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307 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
evento (Freire, 2024).3 O show tinha o claro objetivo de ser um marco econômico
para a cidade, no meio do entretenimento e do turismo cultural. Para a artista, se
tratava do encerramento de sua turnê comemorativa de 40 anos de carreira, em
que por meio do espetáculo multimídia, apresentava sua autobiografia em um
espetáculo musical único, um formato até então inédito de show entre popstars.
Figura 2 – Foto aérea da praia de Copacabana durante o show The Celebration Tour in Rio (2024)
Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro. Foto: Fabio Motta.
O objetivo deste texto não é discutir sobre as relações entre indústria cultural
e cultura de massas, ou ainda os recordes e afins conquistados pela artista e pela
Prefeitura do Rio de Janeiro, embora esses temas sejam transversais ao longo da
crítica, mas sim estabelecer uma reflexão em torno do debate iniciado, a partir
do show, em âmbito social.
Madonna sempre esteve na vanguarda do mainstream desde o lançamento
de seu segundo álbum Like a Virgin, em 1984. A artista conseguiu capitanear, por
décadas, o espírito juvenil disruptivo e transportar isso para videoclipes, músicas
e shows de forma sempre a provocar os limites em torno de um pretenso status quo.
A sua maior ousadia, no sentido do uso da imagem e da performance, sem sombra
de dúvidas foi o uso da conotação sexual e da liberdade feminina, com elementos
3 Embora tenha havido controvérsia em relação ao número de pessoas presentes no evento, os dados
oficiais apontam a superação de 1,5 milhão de espectadores. Cf. Nascimento, 2024.
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profundos do universo homoerótico, sobre qualquer outra coisa imposta por uma
sociedade conservadora, misógina, machista e cisheteronormativa.
A combinação de elementos sexuais à religião, seja em conteúdos líricos
ou na construção midiática de sua performance, a colocou como um modelo
de artista pop que vai além do mainstream, sem pudores pela indústria do
entretenimento, sem maneiras despolitizadas de transportar a realidade vivida
para os palcos. Foi nessa sintonia que, em 1993, Madonna criou um show erótico/
sensual transportando para o palco a dureza da repressão e medo da liberdade
sexual tocando em espinhosos assuntos “controversos” para uma sociedade
conservadora: epidemia de HIV/aids, diversidade sexual, empoderamento do
corpo feminino e fantasias sexuais. Esse coquetel explodiu em críticas quando
seu livro SEX foi lançado, em outubro de 1992, um ano antes de estrear The Girlie
Show, no Brasil.
Para bell hooks (2023, p. 40-41), no início dos anos 1990, Madonna transicionou
midiática e politicamente para um lado que se distanciava do feminismo mais
radical (pelo fim do sexismo e opressão sexista), deixando um ruído nas mulheres
que a viam, nos anos 1980, como uma mulher que não se reprimia e por atitudes
com riscos e rebeldia contra as opressões sexistas, traçava novos rumos para
uma geração de mulheres que não queriam mais se acomodar em padrões
machistas sociais e culturais.
Sob esse ponto de vista, a autora disseca uma fase “inglória” (do ponto de
vista social estadunidense) da cantora, quando estava trabalhando na divulgação
do álbum Erotica (1992) e de seu livro SEX (1992). As reflexões de hooks se baseiam,
sobretudo, na mudança de imagem de Madonna no âmbito da representação
feminina (ao qual a autora compara a um olhar pornográfico heterossexista guiado
por um estilo de “pornografia infantil”), dessa forma, isso “[…] expõe a maneira
como o envelhecimento da mulher em uma sociedade sexista pode comprometer
a fidelidade de qualquer uma às visões políticas radicais, ao feminismo” (hooks,
2023, p. 41).
A estrondosa primeira passagem, em novembro de 1993, com dois shows no
Brasil, causou muita controvérsia, confusão, mas sobretudo, interesse e reflexão.
Diferente do ponto de vista de hooks, no Brasil a passagem da cantora em meio ao
reboliço de sua carreira nas imagens envolvendo sexo e cultura sadomasoquista
homoerótica, teve outras impressões:
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Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaría-
mos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tem-
pos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as
formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de
revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de, diga-
mos, fazer a coisa da maneira mental, não física — e portanto sem riscos. Madonna faz
no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo — um
crioulo (sic) fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que
todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que
chuchu na cerca!” (ABREU, 1993).
As palavras de Caio Fernando Abreu enaltecem a coragem de Madonna em
levar para o palco o desejo, o tesão sem pudores em uma era em que o medo da
prática sexual (sobretudo entre homens gays, trans e travestis) imperava. O amor
contado de várias formas no palco colocava Madonna como uma contracorrente
impetuosa naqueles anos, naquele tempo. Isso era o determinante contra o tal
status conservador cisheteronormativo.
Nas críticas de hooks à Madonna, principalmente na fase de SEX, o
inconveniente está em como ela deixou de incorporar o subversivo vindo da
subjetividade, colocando o que fosse “subversivo” ou radical, diante de uma
cultura sexista e homofóbica, como entretenimento de voyerismo massificado,
em que o homoerotismo é visto, lido, consumido, mas jamais submetido a um
status político contra a homofobia: “apresentada dessa forma, sua presença
convida leitores do status quo a imaginar que também podem consumir imagens
de diferença, participar das práticas sexuais retratadas e ainda assim permanecer
intocados — sem mudanças” (hooks, 2023, p. 47).
Noticiado por Cid Moreira, no Jornal Nacional, em 04 de novembro de 1993, a
Justiça do Estado do Rio de Janeiro teria proibido Madonna de “exibir, ostentar e
utilizar a bandeira do Brasil de forma atentatória à moral” e que se descumprisse a
ordem judicial poderia ser presa com pena de 01 a 15 dias de detenção (MADONNA
- The Girlie Show Tour em São Paulo, 1993).
De fato, Madonna utilizou os símbolos nacionais do verde e amarelo, a
bandeira e até vestiu a camisa da Seleção Brasileira de futebol ao fim do concerto,
mas não foi presa. Em um país que celebra e brinca o carnaval como o faz, os strip-
tease do espetáculo e as simulações de sexo se tornavam ilustrações contidas.
Os mesmos elementos estéticos e simbólicos brasileiros foram utilizados pela
megastar, em 2024, tendo um valor sociocultural e político ainda maior.
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Figura 3 – Drag queens na fila para o espetáculo The Girlie Show, em São Paulo, 1993
Fonte: O Estado de São Paulo. Foto: Edu Garcia. Disponível em: https://www.estadao.
com.br/acervo/a-primeira-vez-de-madonna-no-brasil/. Acesso em: 01 fev. 2025.
As multidões que aguardavam para assistir ao show transformou o Centro de
São Paulo e arredores do Estádio do Morumbi em verdadeiras paradas de desfile
e celebração da diferença e da diversidade, com inspiração na diva pop, em uma
mistura de moda, comportamento, performance e música. Era um espetáculo à
parte que tomou as páginas de noticiários impressos e televisionados, colocando
um comportamento notadamente queer em perspectiva midiática. Uma drag
queen disse sobre Madonna, em reportagem de Glória Maria para o Fantático, em
1993: “ela é toda a inspiração desse mundo drag”.
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Figura 4 – Drag queens na fila para o espetáculo The Girlie Show, em São Paulo, 1993
Fonte: O Estado de São Paulo. Foto: Agliberto Lima. Disponível em: https://www.estadao.
com.br/acervo/a-primeira-vez-de-madonna-no-brasil/. Acesso em: 01 fev. 2025.
Na interpretação de bell hooks sobre a Madonna dos anos 1990, solteira,
sem filhos e arrastada para uma enxurrada de críticas a partir — justamente —
do seu livro SEX, se afasta sobre como a cantora era vista e referenciada por
drags no Brasil, em 1992. Se para hooks, drag era uma construção generificada
para que uma mulher assumisse uma persona mais masculina (hooks, 2023, p.
57), — no caso de a mulher parodiar uma figura masculina — a imaginação cultural
e social sobre o constructo performático de drags e transformistas se apoiam
não na ideia de se “passar por”, mas de reforçar ou se distanciar de padrões
de gênero. Da mesma maneira, talvez um pouco mais ácida, foi vista em 2024,
com seu espetáculo autocentrado, um show-biografia em que a vida, a morte,
a superação, os direitos, a luta contra o extremismo, e, sobretudo, a força do
feminino é cultuada em uma representação de quase exorcismo, pelo menos no
que tange o contexto brasileiro.
A meteórica passagem da artista com um grande produto cultural, como foi
seu espetáculo de divulgação do álbum Erotica, em 1993, lançado mundialmente
em outubro de 1992, lançou luz a muitos assuntos. Pautar sobre homossexualidade,
nudez feminina, aids, diversidade sexual e amor foi um escândalo para uma
sociedade muito “careta”, como diria Rita Lee.
Madonna parece ter encarnado a “vaca profana” e com suas divinas tetas
dos cones icônicos de Jean-Paul Gaultier, atendido o pedido de Caetano Veloso
e Gal Costa: derramou o leite bom em nossas caras que andavam angustiadas
pelo sequestro dos símbolos nacionais brasileiros por uma ala neofascista sul-
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312 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
americana, mas também derramou o leite ruim na cara dos caretas — e muito!
Figura 5 – Madonna durante apresentação do show Celebration Tour in Rio, 04 de maio de 2024.
Fonte: Live Nation. Foto: Kevin Mazur.
Da importância cultural e midiática que tomou forma com a passagem da
artista pelo Brasil, no início dos anos 1990, 30 anos depois voltou a ser um frisson
com a sua passagem, pelo Rio de Janeiro, com o show de celebração de sua
carreira. Nesse contexto, uma efervescência queer tomou conta de Copacabana
a um nível extraordinário levando diversas demonstrações de preconceito e ódio
contra o público majoritariamente LGBTQIA+:
Jesus, Copacabana tá chovendo viado. Viado e lésbica. Olha, tem mil viado por metro
quadrado, uma torre de viado! Tá subindo um em cima do outro e dando um prédio de
300 andares. O maior prédio do mundo, que está em Dubai... porque tá tendo que em-
pilhar. Deus me livre! (Fortuna, 2024).
Se em 1993 a concentração das narrativas midiáticas se dava pelos
jornais, revistas, rádio e televisão, em 2024 a polêmica ganhou dimensões
sem precedentes, por meio das redes sociais. No caso da mensagem acima
transcrita, de um suposto áudio postado por uma moradora de um condomínio em
Copacabana, em um grupo de moradores no aplicativo de mensagens WhatsApp,
é explícita o teor LGBTfóbica presente em sua fala. Contudo, o assunto “show da
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Madonna” extrapolou bastante os núcleos jornalísticos e de fãs, ao longo do mês
que sucedeu a sua transmissão televisionada, sendo comentado e tendo virado
polarização político-partidária em conversas cotidianas, nas ruas.4
Houve muita confusão em torno do que foi apresentado no show. Putaria?
Um Cabaré ao vivo? Suruba na TV aberta? Satanismo? Bruxaria? Ode ao demônio?
Todas essas acusações foram feitas e distribuídas em dezenas de páginas online,
depreciando a artista e a sua mensagem, utilizando a polarização política para
atribuir à esquerda o que essas pessoas (tal qual a senhora que disse a mensagem,
acima transcrita) classificou como “corrupção de menores”, “desperdício de
dinheiro público”, “culto ao inimigo”, “imoral”, etc.5
Durante o início da transmissão do show, pela Rede Globo, o apresentador
Marcos Mion disse que o clima na cidade e, em especial, em Copacabana e
imediações se parecia muito com o que tinha acontecido quando da primeira
passagem de Madona pelo Rio de Janeiro, em 1993. A festa, a liberdade entre
os fãs, a alegria, a celebração da vida cultural, colocavam o frisson novamente
em foco, pela mesma artista nessa situação, nos anos 1990. Contudo, os tempos
atuais são tão obtusos quanto o da época do auge da epidemia de HIV/aids.
Eu nunca tinha presenciado, em 10 anos de magistério, minhas alunas e
alunos começarem a debater sobre um show de maneira política. Tanto as crianças
do ensino fundamental do 6º e 7º anos, quanto os adolescentes da 2ª e 3ª séries
do ensino médio, começavam a debater — até a brigar verbalmente — por seus
pontos de vista. De um lado, aquelas pessoas que pensavam ser desnecessário
e completamente imoral um show mostrar “nudez”, palavras de baixo calão, e
símbolos religiosos de forma “desrespeitosa” em TV aberta, com “criança na sala”.
De outro, pessoas que diziam se tratar de um espetáculo artístico que falava sobre
a vida, sobre a carreira da artista, e que assistia quem queria e que o show não era
feito para crianças, portanto não eram para estar na sala no horário destinado a
transmiti-lo.
Por vezes, eu fiquei surpreso e amedrontado com as falas reacionárias e
conservadoras por parte de estudantes de uma geração muito mais conectada
4 É interessante notar que o local onde ocorreu o espetáculo de Madonna é historicamente um reduto
LGBTQIA+, sobretudo gay. Cf. GREEN, 2000, 263-264.
5 Como se pode notar, a desinformação e ignorância (ou a desonestidade) foram bem rasas, pois o
maior patrocinador do evento foi um banco privado, exaustivamente propagandeado ao longo do pe-
ríodo em que antecedeu o show.
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e atualizada do que a minha. Isso foi recorrente, e durou várias semanas. Mas
comecei a pensar em que realmente estava embutida a discussão, o que um
grupo — que não tinha assistido ou nunca tinha ouvido falar de como era uma
turnê da artista — detestava de fato, de onde vinha o ódio.
A resposta estava, sobretudo, em como a informação chegava para esse
grupo: TikTok e grupos do WhatsApp, com a desinformação. O que mais me
deixou surpreso e — devo dizer — muito entristecido foi em como as “críticas”
eram de cunho conservador e reacionário, pois o problema central era ter sido
um espetáculo que mostrava a realidade a partir de um ponto de vista claramente
progressista, no campo da esquerda.
Depois do último fim de semana, aquela analogia com a primeira vinda de Madonna ao
Brasil nos mostra que o mundo era, sim, outro — mas nem tão diferente quanto parece.
Algumas coisas continuam as mesmas, e Madonna, apesar da passagem cronológica
do tempo, é uma delas: aos 65 anos de idade, permanece perfeitamente capaz de em-
prestar sua própria jovialidade e desobediência a uma geração que, bem como em 93,
precisa dela. Sua rebeldia e vontade de mudar parecem se fazer particularmente ne-
cessárias para uma juventude que, carente de verdadeiros ícones, se torna cada vez
mais conservadora, complacente e, mais preocupante ainda, plenamente careta. Mais
espantosas e indecentes do que qualquer ato de Madonna, por sinal, foram as declara-
ções feitas por jovens influenciadores e políticos associando o espetáculo com a tra-
gédia climática que vem assolando o sul do país (Mothé; Rufino, 2024).
Todo o espetáculo levantou questões sobre resistência, liberdade, luta
e coragem, além de diversidade. Do elenco presente no palco, das imagens
selecionadas, das músicas e da performance, tudo foi um nó muito bem dado
num cordão que segurava a mensagem de celebração da vida e da batalha contra
a opressão. Dançarinos LGBTQIA+, corpos negros, coreografias que tem origem
em grupos marginalizados (como o voguing), e a própria performance de Madonna,
que vem lutando contra o etarismo há décadas.
Um momento em especial chamou a atenção para a perspectiva da artista
sobre a vida e a sociedade, no show. Enquanto cantava a canção Music (lançada
pela artista em 2000), a drag queen Pabllo Vittar subia ao palco para dançar
ao lado de Madonna e várias/os dançarinas/os, ao passo que no telão eram
mostradas imagens de pessoas que lutaram por direitos civis, liberdade de
expressão e tinham evidentemente seu posicionamento político à esquerda,
tais como Daniela Mercury, Gilberto Gil, Mano Brown, Marina Silva, Erika Hilton,
entre outras/os. Enquanto tudo isso ocorria, os versos da música escolhida
para o momento ressoavam por Copacabana: “a música une as pessoas/
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315 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
a música mistura a burguesia e os rebeldes”6.
Figura 6 – Mano Brown (esquerda) e Erika Hilton (direita) em fotos transmitidas no telão do palco principal
Fonte: Gshow. Foto: reprodução. Disponível em: https://gshow.globo.com/cultura-pop/noticia/fa-
mosos-homenageados-em-show-da-madonna-agradecem-por-serem-lembrados-que-honra.ghtml.
Acesso em 12 fev. 2025.
As referências sobre gênero no show, assim como a participação de pessoas
trans e as drags incendiou discursos sobre “falta de vergonha” em rede nacional.
O “perigo” representado por pessoas da comunidade LGBTQIA+ se transcreveu
em “homossexualizar” crianças e pessoas indefesas em suas casas, que não se
sabe porque estariam com a TV ligada assistindo a tudo (mesmo que tivesse o
medo de se “enviadescer”, como na canção de Linn da Quebrada) através de um
show de Madonna…Nesse caso, Judith Bulter (2024, p. 11-12) explica que:
Quando o “gênero” absorve uma série de medos e se torna um fantasma totalizante
para a direita contemporânea, as variadas condições que de fato dão origem a esses
medos perdem seus nomes. O “gênero” reúne e incita esses medos, impedindo-nos de
refletir mais claramente sobre o que há a temer e como, para início de conversa, surgiu
a atual percepção de que o mundo está em perigo.
O “pânico moral” em torno do gênero e de representações de vida outras que
não as cisheterocentradas em figuras estáticas e conservadoras de mulheres
cisgênero submissas e homens viris dominadores, foram colocadas a baixo no
6 No original: “music makes the people come together/ music mix the bourgeoisie and the rebel” (Madonna,
Ahmadzaï, 2000).
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316 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
espetáculo de Madonna, tendo ela como protagonista, mas por vezes, em muitos
momentos do show, outras/os sujeitas/os ganham a cena, e sempre contra o
pretenso cistema, mesmo que a artista seja uma mulher branca, cisgênero e
tendo por sua casa os Estados Unidos.
O “fantasma do gênero”, como Bultler trata (2024, p. 12-13), consume de
religiões, principalmente nos discursos papais católicos, grande energia na
comparação como “armas de destruição em massa”, causando esse pânico
contra toda e qualquer ação progressista que alinhe políticas públicas de grupos
marginalizados por séculos. Madonna já foi tida como “o diabo loiro” pela Igreja por
ser e representar a mulher subversiva, radical, da qual bell hooks havia adorado,
durante os anos 1980.
Agora, novamente, provoca arrepios com sua “radicalidade” no palco, em
que gênero e modos de vida se tornam “armas” de destruição em massa… do ódio
causado pela direita. Os perigos de um mundo assombrado por um fantasma não
estão no gênero, mas sim no neofascismo e na radicalidade de grupos políticos
ultraconservadores que angariam projetos para um “Estado forte”, em que o
maior objetivo, em verdade, é querer ganhar lucro acima de tudo — e de todos.
O projeto de reconduzir o mundo a um tempo anterior ao “gênero” promete o retorno
a uma sonhada ordem patriarcal que pode nunca ter existido, mas que ocupa o
lugar da “história” ou da “natureza” – uma ordem que apenas um Estado forte pode
restaurar (Bultler, 2024, p. 12-13).
O show traz muitas referências, muitas conexões e apropriações de
subculturas LGBTQIA+, sobretudo gay e trans, dos Estados Unidos e de imigrantes
radicados em Nova Yorque. O protagonismo de Madonna é óbvio, centralizando
tudo em sua própria perspectiva. Contudo, a situação narrativa do show é
diferente das já abordadas por ela outrora, o fio condutor (puxado por um mestre
de cerimônia tal qual os antigos “compadres” dos espetáculos de teatro musical
do século XIX e XX, vivido por Bob the Drag Queen) de sua própria história é a
mensagem principal após sua quase-morte, em 2023: ela ainda está viva, ainda
está por aí e ainda pode falar por si mesma e lutar. No caso, a maior injustiça posta
nos últimos anos contra ela é o etarismo. Disso, ela tem sido figura importante
no entretenimento de massa, diante de padrões midiáticos no mainstream pop
que ela mesma posicionou dos quais bell hooks comentou e analisou, no início da
década de 1990.
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317 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
Figura 7 – Madonna e Pabllo Vittar performando Music, no palco da Celebration Tour in Rio, vestindo cami-
setas inspiradas na Seleção Brasileira
Fonte: FeedTV. Foto: reprodução. Disponível em: https://feedtv.news/musica/pablo-vittar-
-se-derrama-apos-participacao-no-show-de-madonna-sempre-serei-grata/. Acesso em: 12
fev. 2025.
O espetáculo todo serviu para unir boa parte de grupos que andavam bem
enfraquecidos culturalmente, colocando muita visibilidade — certamente
— sobre causas e efeitos sociais de gênero e sexualidade, mas também
propiciou um ato político simbólico ao trazer as narrativas de vidas e pessoas
no campo progressista, pelo conjunto de imagens e enunciados construídos nas
performances, conquistando, assim, um lugar político interessante. A celebração
era da carreira da artista, mas acabou sendo também uma imensa festa de
reapropriação de símbolos nacionais e que, felizmente, não se deixou cair nas
estratégicas de geração de polêmicas online agitadas e disseminadas pelo
bolsonarismo. Concluo com Caio Fernando Abreu (1993), com uma percepção
sobre Madonna que se encaixa, novamente, muito bem ao nosso tempo:
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente
precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados
(as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a
Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saú-
de, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada:
viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela
também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não
bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo
da luz, compreende?
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318 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280
ABREU, Caio Fernando. Na cama por causa da Madonna. Folha de São Paulo, 14
de novembro de 1993. Disponível em:
https://semamorsoaloucura.blogspot.com/2013/08/na-cama-por-causa-de-ma
donna.html. Acesso em: 10 fev. 2025.
BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? Tradução de Heci Regina
Candiani. São Paulo: Boitempo, 2024.
FORTUNA, Maria. 'Torre de viado': áudio que critica público de Madonna viraliza e
inspira meme com nome de bloco de carnaval Rio de Janeiro. O Globo, Rio de
Janeiro, 06 maio 2024. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/05/06/recebido-do-zap-audio-v
iraliza-e-inspira-meme-com-nome-bloco-de-carnaval-fora-de-epoca.ghtml.
Acesso em: 10 fev. 2025.
FREIRE, Tâmara. Madonna supera expectativa de público e encerra turnê em
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