GOVERNAMENTALIDADE E EDUCAÇÃO INCLUSIVA EM TEMPOS NEOLIBERAIS GOVERNMENTALITY AND INCLUSIVE EDUCATION IN NEOLIBERAL TIMES

Thelma Bergamo1

https://orcid.org/0000-0002-9532-2322 http://lattes.cnpq.br/0108721244666715


Laís Alice Oliveira Santos2

https://orcid.org/0000-0002-4226-486X http://lattes.cnpq.br/5021603348570433


Recebido em: 02 de junho de 2025. Revisão final em: 16 de agosto de 2025. Aprovado em: 24 de agosto de 2025.


 https://doi.org/10.46401/arec.2025.v17.23484


  1. Doutora em Educação Brasileira, na área de Fundamentos dos Processos Educativos, pela Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em História e Pedagogia pela Universidade Estadual de Goiás e Especialização em Filosofia Po- lítica PuC e Informática em Educação (UFLA). Mestre em Educação Brasileira (UFG). É professora efetiva do Instituto Federal Goiano - Campus Morrinhos com atuação principalmente nos cursos de Licenciatura em Química e Pedagogia. E-mail: thelma.moura@ifgoiano.edu.br

  2. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, Mestre em Educação pela UFU, Especialista em Educação Especial e Atendimento Educacional Especializado pelo CEPAE/UFU, Especialista em Transtorno do Espectro Autista - TEA pelo Instituto Líbano, especialização em andamento em Alfabetização para Educandos com Deficiência pela UFSCAR, e graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia - FACIP/UFU. Professora efetiva do Instituto Federal Goiano - Campus Morrinhos, atuando no curso de Pedagogia. E-mail: lais.santos@ifgoiano.edu.br


    RESUMO: Com o avanço do neoliberalismo, a educação tem se configurado como espaço privilegiado para a efetivação da inclusão por meio de políticas, discursos, estratégias e tecnologias de saber- poder. Nesse contexto, o Estado governamentalizado assume especial interesse pela população, elaborando e circulando práticas que moldam formas de vida orientadas à competitividade, à eficiência e à autorresponsabilização. As reformas neoliberais instituem normas que posicionam os sujeitos em redes de saberes e espaços mercadológicos, convertendo-os em capital humano normalizado e adaptado às demandas do sistema econômico. Este artigo tem como objetivo problematizar a educação inclusiva enquanto recurso estratégico de normalização e produção de subjetividades úteis ao mercado, articulando-a aos conceitos de governamentalidade e biopolítica. Trata-se de um estudo exploratório de caráter bibliográfico, desenvolvido por meio de análise qualitativa de obras de referência e produções acadêmicas de Michel Foucault e de autores que discutem a interface entre neoliberalismo e educação inclusiva. Os resultados indicam que, embora amparada por marcos legais, a inclusão escolar é fragilizada por racionalidades neoliberais que reduzem seu potencial emancipatório e reforçam processos de in/exclusão, exigindo uma abordagem crítica capaz de tensionar discursos hegemônicos e fomentar práticas pedagógicas que valorizem as diferenças como potência transformadora.


    Palavras-chave: educação inclusiva, biopolítica, normalização, neoliberalismo.


    ABSTRACT: With the advance of neoliberalism, education has become a privileged arena for implementing inclusion through policies, discourses, strategies, and technologies of power-knowledge. In this context, the governmentalized State takes a special interest in the population, developing and circulating practices that shape ways of life oriented toward competitiveness, efficiency, and self-responsibility. Neoliberal reforms establish norms that position individuals within networks of knowledge and market-oriented spaces, converting them into normalized human capital adapted to the demands of the economic system. This article aims to problematize inclusive education as a strategic resource for normalization and the production of market-oriented subjectivities, linking it to the concepts of governmentality and biopolitics. It is an exploratory bibliographic study, developed through qualitative analysis of reference works and academic productions by Michel Foucault and other authors who discuss the interface between neoliberalism and inclusive education. The results indicate that, although supported by legal frameworks, school inclusion is weakened by neoliberal rationalities that reduce its emancipatory potential and reinforce processes of in/exclusion, demanding a critical approach capable of challenging hegemonic discourses and fostering pedagogical practices that value differences as transformative potential.


    Keywords: inclusive education, biopolitics, normalization, neoliberalism.


    Aparentemente esse lugar é simples.

    (Foucault, 2002, p. 20)


    INTRODUÇÃO


    O século XXI vivencia uma grande mobilização pela inclusão de todos no sistema educacional. A escola converteu-se no espaço por excelência em que os processos inclusivos devem começar e passou a ser colonizada por uma infinidade de políticas, discursos, estratégias, tecnologias e dispositivos de saber-poder3 que postulam a realidade fundamental e incontornável de que a educação é um direito universal legalmente assegurado.

    As origens desse acontecimento remontam às transformações ocorridas nas tecnologias de poder, particularmente a partir do século XVIII, em que além dos dispositivos disciplinares, entendidos como produtores de indivíduos dotados de corpos dóceis e úteis, serão desenvolvidas novas estratégias de normalização e controle populacional, para as quais o conjunto dos saberes médicos fornecerão o aparato científico.

    Foucault (1999; 2001; 2008a; 2008b) buscou os elementos para acompreensão dessa transformação no funcionamento do saber-poder moderno nas análises sobre o liberalismo e o neoliberalismo, analisando o Estado governamentalizado enquanto dotado de especial interesse pela população e responsável pela elaboração e circulação de práticas constitutivas de formas de vida cada vez mais orientadas para os princípios de mercado, com os quais os processos de ensino-aprendizagem devem estar permanentemente alinhados (Lopes, 2011).

    No contexto das reformas neoliberais, as normas são instituídas com a finalidadedeposicionarossujeitosemredesdesabereseespaçosmercadológicos de forma a converter seres humanos em capital humano normalizado e adaptado às necessidades capitalistas.

    A educação é reconfigurada como um campo estratégico para a formação de sujeitos cujos modos de ser são produzidos a partir dos princípios da competitividade, da eficiência e da autorresponsabilização. Mais do que garantir direitos sociais, a escola é convocada a produzir indivíduos adaptáveis às


  3. Expressão utilizada por Michel Foucault para designar os dispositivos e práticas que articulam formas de conhecimento (saber) e mecanismos de dominação/regulação (poder), produzindo modos específicos de subjetividade e organizando as relações sociais.


    exigências do mercado, convertendo a formação em investimento e o estudante em capital humano. Assim, o neoliberalismo não se limita a ser uma política meramente econômica, mas uma racionalidade governamental que atravessa todas as esferas da vida social.

    Foucault (1999; 2001; 2008a; 2008b) recorre a conceitos como “artes de governar”, “governamentalidade” e “biopolítica” como as chaves conceituais para compreender não somente as estratégias e dispositivos de controle populacional, de modo geral, mas particularmente a forma como essas tecnologias sociais colonizam os espaços educacionais, seus discursos, saberes e práticas.

    A partir desses marcos conceituais, este artigo se caracteriza como um estudo exploratório de cunho bibliográfico, desenvolvido por meio de análise qualitativa das fontes, conforme orienta Gil (2002), que compreende essa modalidade como voltada à formulação e aprofundamento de problemas a partir do exame sistemático de material já publicado. Foram selecionadas obras de referência e produções acadêmicas que dialogam com os conceitos de governamentalidade, biopolítica e normalização, especialmente a partir de Michel Foucault e de autores que discutem a interface entre neoliberalismo e educação inclusiva.

    O objetivo é analisar de que modo as políticas e práticas de inclusão escolar, em contextos permeados pelo neoliberalismo, operam como dispositivos e tecnologias de saber-poder voltados à produção de subjetividades alinhadas às demandas do mercado. Para isso, discutem-se inicialmente os fundamentos do neoliberalismo e suas implicações sobre as políticas educacionais; em seguida, examinam-se as formas pelas quais os discursos inclusivos se articulam a mecanismos de regulação das condutas; e, por fim, apresentam-se reflexões críticas sobre desafios e possibilidades para práticas pedagógicas que tensionem esses discursos e fomentem formas alternativas de subjetivação.


    Neoliberalismo e educação


    A partir da ascensão do neoliberalismo como racionalidade dominante, especialmente a partir dos anos 1970, a educação passou a ser reformulada não apenas como um direito social, mas como investimento estratégico na formação de capital humano, subordinando seus fins aos interesses do mercado. Essa

    transformação implica uma reconfiguração do papel do Estado, que deixa de atuar como garantidor de direitos universais e assume uma lógica gerencial voltada à eficiência, à avaliação de desempenho e à responsabilização dos indivíduos.

    Sob um prisma histórico, o neoliberalismo se efetivou pela primeira vez no Chile, com o golpe de Pinochet em 11 de setembro de 1973 contra o governo de Salvador Allende, o qual havia sido democraticamente eleito. A elite chilena com o apoio de corporações dos Estados Unidos e da Agência Central de Inteligência (CIA) reprimiu por meio de atos de violência toda organização social de esquerda com o intento de afastar as tendências da implementação de um Estado Socialista, o qual Allende apregoava (Harvey, 2014). Em subsequência a experiência neoliberal realizada na “periferia do mundo”, considerada pelos economistas “Chicago Boys4” como bem sucedida, passa a ser adotada nos países centrais, tornando-se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pioneiros5 no processo e exemplo para a disseminação.

    Com grande enfoque econômico, o neoliberalismo provoca inúmeras reformas, que visam entre outros aspectos modificar o modo de funcionamento estatal, um conjunto de reformas de ordem política, econômica e cultural, mas fundamentalmente dissemina uma ideologia que modifica os modos das pessoas de viverem suas vidas na individualidade e em sociedade. Segundo Harvey (2016, p. 15) “nenhum modo de pensamento se torna dominante sem propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos”.

    Nesse sentido, é importante apresentar a concepção de Estado neoliberal, que influencia a constituição de sujeitos empreendedores de si, assim como situa a educação como um meio de constituir capital humano para atuação no mercado com o objetivo de elucidar algumas bases conceituais fundantes do neoliberalismo, essenciais para a compreensão de uma constituição de uma educação inclusiva pensada a partir de políticas públicas educacionais de caráter neoliberal.


  4. Os “Chicago Boys” era um grupo de economistas chilenos formados na Universidade de Chicago, que tiveram um papel central na formulação e disseminação das reformas neoliberais, sob forte influência das ideias neoliberais de Milton Friedman e Arnold Harberger.

  5. “O fato de duas restruturações tão obviamente semelhantes do aparelho do Estado ocorrerem em épocas tão diferentes do mundo sob influência coerciva dos estados Unidos sugere que o sombrio alcance imperial desse país pode ter por fun- damento a rápida proliferação de formas neoliberais de Estado em todo o mundo a partir de 1970 (Harvey, 2016, p. 19).”


    Do laissez-faire ao empreendedorismo de si: fundamentos do Estado neoliberal

    O neoliberalismo implementou suas reformas na defesa do Estado a partir da prerrogativa da autorregulação, que defendia a operação do mercado e do Estado com o máximo de liberdade. Após a crise do capitalismo de 1929, Keynes (1983, p. 112), denuncia que a disseminação da teoria do laissez-faire não existiria se não estivesse em “conformidade às necessidades e desejos do empresariado da época”. Nessa direção, Keynes critica a disseminação de um discurso individualista que se difundiu no imaginário da população em que progresso empresarial e progresso social estariam diretamente associados.

    Por mais que o Estado de Bem-estar social tenha se efetivado em vários países do mundo, em contraposição a doutrina do laissez-faire, que previa uma maior intervenção estatal, para inclusive resolver as questões do desemprego, ele é retomado em nova roupagem com o neoliberalismo, embasado em discursos como o de Mises (2010) e Hayek (2010)6, pensadores que influenciaram o fenômeno na América Latina, inclusive no Brasil.

    O neoliberalismo da corrente norte-americana prioriza a desconstrução do caráter positivo da ideia do Estado enquanto interventor para se alicerçar nos princípiosdeliberdadeindividual,concorrênciaeconstituiçãodeempreendedores de si e da economia. Quando as pessoas em sociedade permitem a intervenção estatal, elas permitem que o Estado dite as regras de suas próprias vidas, segundo Mises (2010, p. 79), “Abole-se a liberdade individual7 do indivíduo! Ele se torna um escravo da comunidade, obrigado a obedecer aos ditados da maioria”.

    Diferentemente da compreensão dos liberais clássicos de que o mercado era equilibrado por uma lei dita natural, Mises (2010) vai identificar que sua regulação ocorre por um “processo de descoberta e aprendizado que modifica os sujeitos, ajustando-se uns aos outros (Dardot; Laval, 2016, p. 139).”, assim como eles modificam o mercado por meio da dinâmica humana que tem motivações próprias e “competências específicas (Dardot; Laval, 2016, p. 139)”.


  6. Friedrich Hayek (1899-1992) e Ludwing von Mises (1881-1973) eram pensadores que compunham a corrente norte-a- mericana do pensamento neoliberal.

  7. Liberdade individual para Mises (2010, p. 58) divergia da liberdade defendida pelos pensadores do liberalismo clássico entendida como natural, para ele “Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto dos demais como estes dependem dele”.


    Portanto, compreender a lógica de organização social, mobiliza o entendimento da lógica de livre operação do mercado, isso implica entender que a regulação de preços de bens e serviços se modifica numa relação inseparável entre economia e conduta humana. À medida que os indivíduos influenciam o mercado em suas ações individuais, com seus desejos, necessidades que muitas das vezes se convertem em consumo, também são influenciados por ele, incitados a se entender como empreendedores.

    Ser empreendedor significa que os conhecimentos devem ser mobilizados a partir do surgimento das demandas, sejam elas quais forem. A condução de suas vidas se organiza pela “natureza” de mercado, que se constitui como um ambiente formador à medida em que é vivenciado.

    À medida que os sujeitos se compreendem como empreendedores de si tornam-se aliados ao modo de organização que fundamenta o capitalismo, aos princípios que regem a organização da educação numa sociedade neoliberal: competitividade, racionalidade e livre comércio. Esse modelo educativo assume uma posição de centralidade nos interesses do Estado por ser um caminho de aceleração para a formação de sujeitos empreendedores e pela disseminação da lógica neoliberal como modo de ser.


    A educação no contexto neoliberal: capital humano e empresariamento

    Gentili (1998, p. 103) ao afirmar que o “O neoliberalismo é, simultaneamente, original e repetitivo; cria uma nova forma de dominação e reproduz as formas anteriores”, destaca que o Estado, ao não interferir nas questões de mercado, mantêm uma ênfase economicista para o funcionamento de toda organização social, sendo dotado da liberdade de negociação para “produzir, vender e comprar qualquer coisa que possa ser produzida ou vendida (Hayek, 2010, p. 58)”. Nesse contexto, a educação deve ser entendida como um produto a ser negociado, não um produto qualquer, pois ela “serve para o desempenho do mercado e sua expansão potencializa o crescimento econômico (Gentili, 1998, p. 104)”.

    A centralidade estabelecida em torno da educação numa perspectiva neoliberal se difere no contexto de um Estado de Bem-Estar Social com relação ao investimento e ao planejamento no setor educacional, particularmente a partir dos anos 50 e 60, quando as teorias do capital humano começam a ser forjadas.

    Nesse momento, a educação é reconhecida como um investimento necessário para o desenvolvimento no âmbito individual e social assim como para assegurar o crescimento econômico.

    A promessa era de que o aumento do nível de escolaridade garantiria aos sujeitos em suas individualidades uma ascensão e melhor alocamento no mercado de trabalho, assim como um crescimento econômico que geraria uma “multiplicação da oferta de empregos e um aumento geral da riqueza, que resultaria num incremento dos ingressos individuais. O mercado expandia-se e nele existia lugar para todos... ou para quase todos (Gentili, 1998, p. 105)”.

    Para os pensadores neoliberais, esse investimento educacional baseado no planejamento centralizado do Estado foi ineficiente. Schultz (1974, p. 50) constata nos anos de 1960, que grande parte da população pertencente a grupos sociais como os negros, porto-riquenhos, idosos, indígenas, mexicanos, etc. continuavam exclusos do sistema educacional, o que refletia o “fracasso de ter investido em sua saúde e educação”. Por isso, era preciso que os governos e as entidades privadas de maneira aliada investissem em educação e promovessem o incentivo para favorecer o aumento de capital humano em países que não tinham reconhecido o valor econômico e do saber da educação. É nesse contexto, em que as agências internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) passam a financiar os países em desenvolvimento e, em consequência, criar diretrizes para a execução da assistência, como foi o caso do Brasil.

    Ao trazer novos princípios e diretrizes para a organização da educação, o Estado neoliberal passa a se configurar numa lógica do que Gentili (1996) intitula de “descentralização-centralizante e de centralização-descentralizada”. Ao mesmo tempo em que o Estado tende a minimizar sua atuação no quesito de investimento financeiro, assim descentralizando seu papel ao terceirizar, privatizar os gastos, ele assume as rédeas e planifica as metas para a educação e se faz presente e operante para regulamentar e acompanhar os processos e êxitos por meio de métricas de avaliação, o que representa a centralização.

    O Estado ao assumir o planejamento educacional, acaba por disseminar um discurso de educação para todos, ao mesmo tempo em que cria mecanismos de controle e de fiscalização que cerceiam os sujeitos que devem permanecer na escola. Freitas (2018), explicita a concretização de uma política do alinhamento que delineia esse planejamento centralizador do Estado, no qual estabelece um

    currículo homogeneizante para que os professores sigam os mesmos conteúdos para saber o que se deve ensinar e o que se deve avaliar.


    A lógica esperada é que, definindo o que se deve ensinar, a escola saberá o que ensinar, os testes verificarão se ela ensinou ou não, e a responsabilização premiará quem ensinou e punirá quem não ensinou. A isso a reforma chama de alinhamento (Freitas, 2018, p. 78).


    Esse alinhamento, numa lógica neoliberal busca instituir uma “nova ordem” à escola que se posiciona em submissão aos interesses econômicos do mercado. Estabelece uma estreita relação entre qualidade do ensino e dados quantificáveis em relação às aprendizagens dos alunos, pois só desta forma os financiadores da educação saberão se os investimentos alcançaram sua finalidade. Nesse contexto, as avaliações externas8 têm ocupado a centralidade na dupla função, de mensurar a qualidade da educação, numa lógica mercadológica, que responsabiliza o próprio aluno por seu sucesso ou fracasso, e o de mensurar a qualidade do professor, pois será ele quem promoverá o desenvolvimento de capital humano para o crescimento econômico.


    Governamentalidade e normalização dos indivíduos


    A partir da perspectiva foucaultiana, discutiremos nesta seção deste artigo a relação entre governamentalidade e normalização dos indivíduos, analisando como as artes de governar e as tecnologias de biopoder operam na constituição histórica do sujeito e na gestão das condutas. Inicialmente, examina-se o deslocamento dos dispositivos disciplinares para formas mais amplas de regulação populacional, articulando poder disciplinar e biopolítico na produção de subjetividades úteis ao projeto neoliberal. Em seguida, problematiza-se a apropriação, pelo campo educacional, dessas estratégias e dispositivos, discutindo como o discurso da inclusão, ancorado em saberes médico- psiquiátricos e políticas públicas, atua na gestão das diferenças e na produção de processos de in/exclusão.


  8. Avaliação a nível internacional PISA, avaliações nacionais SAEB.

    A emergência das artes de governar e da biopolítica


    As investigações sobre as estratégias de saber-poder e seus efeitos nos processos de subjetivação são o eixo a partir do qual Foucault desenvolveu suas pesquisas, constituindo-se como uma questão cujas diversas perspectivas – arqueológicas, genealógicas e éticas – convergem para o fato de que o sujeito é, ao mesmo tempo, alvo e efeito dos regimes discursivos e dos dispositivos de poder em exercício.

    A dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas modificações. Problematização da loucura e da doença a partir de práticas sociais e médicas, definindo um certo perfil de “normalização”; problematização da vida, da linguagem e do trabalho em práticas discursivas obedecendo a certas regras “epistêmicas”; problematização do crime e do comportamento criminoso obedecendo a um modelo “disciplinar” (Foucault, 1984, p. 15-16).


    As análises dos processos de normalização encontram em suas investigações sobre o poder disciplinar o campo teórico privilegiado para compreender a forma como esse poder é investido sobre os indivíduos, produzindo corpos dóceis e úteis. Nesse espaço investigativo, faz-se necessário compreender que as pesquisas foucaultianas sobre o poder exigem o reconhecimento de sua natureza como “uma multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” (Foucault, 1988, p. 88)9.

    Os efeitos do saber-poder sobre os processos de subjetivação utilizam- se de dispositivos e estratégias historicamente constituídos, nos quais os regimes discursivos e os saberes socialmente validados como verdadeiros são responsáveis pela constituição histórica do “ser como experiência” (Foucault, 1984, p. 12).

    Afirmar que o sujeito é uma produção histórica dos dispositivos de saber- poder implica em recusar pressupostos teóricos que postulem uma natureza humana ou pretensões de universalidade sobre os quais seriam erigidos valores sociais ou regimes discursivos. Com Nietzche, significa assumir que o conhecimento é fabricado, que sua essência é a do combate e do enfrentamento. Em 1873, esse filósofo convida a refletir sobre o ato de conhecer:


  9. Para saber mais sobre a relação entre o conceito de poder disciplinar em Foucault e sua relação com a produção de cor- pos dóceis e úteis, ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.


    Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou- se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer (Nietzsche, 1999, p. 53).


    Todo ato de conhecimento é arbitrário e reduz o mundo a metáforas, antropomorfismos, conceitos que, pelo uso, se solidificam e assumem um valor de evidência no interior de uma cultura. A verdade deve ser problematizada para que assuma seu lugar de direito na história das ideias, lugar feito por incertezas, disputas e transitoriedades.

    “Pensa-se, logo existe algo que pensa”: a isto se reduz a argumentação de Descartes. Tal equivale aceitar de antemão por “verdadeiro a priori” nossa crença na ideia de substância. Afirmar que, quando se pensa, é indispensável existir algo “que pensa” é simplesmente a articulação de um hábito que liga à ação um autor. Em suma, manifesta- se aqui um postulado lógico-metafísico – e não se verifica apenas... No caminho indicado por Descartes não se alcança uma certeza absoluta, mas unicamente o fato de uma crença forte (Nietzsche, 2011, p. 339).


    Conhecer significa, portanto, tão somente promover uma ordenação simplificada de processos que, por meio de sua relação com o mundo exterior, desenvolvem a crença de que o “mundo-verdade” e o “mundo-realidade” devem ser reconduzidos a relações de valores nas quais o conhecimento assume um caráter de estabilidade e imutabilidade necessário à validação da verdade como universal.

    A reafirmação da intrínseca relação entre conhecimento e poder implica em reconhecer que a produção da verdade sobre o sujeito resulta em processos de subjetivação para os quais a aposta em um sujeito universal é estratégia fundamental. Esse sujeito é uma ficção criada pelo homem e a partir dele interpretada (Nietzsche, 2011).

    Assumindo como pressuposto a compreensão do sujeito como uma ficção, um efeito de estratégias e dispositivos de saber-poder, Foucault (2001) analisa a forma pela qual o poder disciplinar, utilizando-se dos modelos teóricos da Psiquiatria do século XIX, produz os conceitos de normalidade/anormalidade a partir dos quais ocorrerá um deslocamento nos discursos sobre a doença mental que passará a ser caracterizada em termos de uma falta quer seja de racionalidade ou de desenvolvimento, assumindo a infância como modelo de intelegibilidade.


    Descoberta da criança pela psiquiatria. Eu queria notar o seguinte: primeiro, vocês estão vendo que, se o que lhes digo é verdade, essa descoberta da criança ou da infância pela psiquiatria não é um fenômeno tardio, mas bastante precoce. (...) a partir do momento em que a infância ou a infantilidade vai ser o filtro para analisar os comportamentos, vocês compreendem que, para psiquiatrizar uma conduta, não será mais necessário, como era o caso na época da medicina das doenças mentais, inscrevê-la no interior de uma doença (...) bastará que seja portadora de um vestígio qualquer de infantilidade (Foucault, 2001, p. 387-388).


    As estratégias e dispositivos associados às artes de governar apropriam- se de forma privilegiada da infância que, de acordo com Foucault (1994), emerge correlacionada à população e aos interesses socioeconômicos de reprodução da coletividade. Assiste-se a um duplo movimento no qual, a um só tempo, ocorre a invenção da infância enquanto objeto de conhecimento, alvo das estratégias de normalização e controle social e, ao mesmo tempo, suas características passam a ser utilizadas como modelo de análise psiquiátrica para a compreensão das doenças mentais.

    É a partir do binômio normalidade/anormalidade e da delimitação da infância e da infantilidade da conduta como objeto de investigação que “a psiquiatria pôde se tornar a espécie de instância de controle geral das condutas, o juiz titular, se vocês quiserem, dos comportamentos em geral” (Foucault, 2001, p. 392). Isso não significa que a compreensão das doenças mentais deixará de ser pensada em termos de patologias, mas que a matriz de intelegibilidade dos comportamentos assumirá o modelo infantil como instrumento de universalização possível das condutas.

    Entre os anos de 1975 e 1976, é proferido no Collège de France o curso “Em defesa da Sociedade”, no qual Foucault analisa a função dos saberes médicos enquanto árbitros para duas modalidades de poder em conflito: “O desenvolvimento da medicina, a medicalização geral do comportamento, das condutas, dos discursos, dos desejos, etc., se dão na frente onde vêm encontrar- se os dois lençóis heterogêneos da disciplina e da soberania” (Foucault, 1999, p. 46).

    No solo sob o qual essas modalidades de poder confrontam suas assimetrias e efeitos estratégicos e táticos, a segunda metade do século XVIII assistirá o surgimento de uma outra tecnologia de poder. Enquanto o poder disciplinar é centrado no indivíduo, buscando assegurar a distribuição espacial dos corpos, sua organização em um campo de visibilidade, sua hierarquização, inspeção e escrituração, procurando maximizar a força útil dos corpos, o que começa a

    surgir é


    [...] uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia. Essa técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes (Foucault, 1999, p. 288- 289).


    Essa nova técnica de poder, a biopolítica, se ocupa não mais do homem- corpo, mas do homem vivo, da espécie. Dirigir-se à multiplicidade dos homens que são afetados por processos de conjunto inerentes à própria vida e à população enquanto problema científico e político, instalando mecanismos de previdência cujo objetivo será a otimização da gestão dos fenômenos populacionais.

    Na interseção entre o poder disciplinar e o poder regulamentador da biopolítica, encontra-se a norma como elemento que permite, simultaneamente, controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica.

    A sociedade de normalização não é, pois, nessas condições, uma espécie de sociedade disciplinargeneralizadacujasinstituiçõesdisciplinaresteriamsealastradoefinalmente recoberto todo o espaço – essa não é, acho eu, senão uma primeira interpretação, e insuficiente, da ideia de sociedade de normalização. A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação (Foucault, 1999, p. 302).


    Essa problematização acompanha as análises desse filósofo sobre duas formas distintas do neoliberalismo – o ordoliberalismo alemão e o anarcoliberalismo americano – e oferece as bases para a compreensão de uma racionalidade governamental neoliberal na qual o homo oeconomicus oferece os elementos necessários para as discussões sobre o capital humano e os investimentos nos indivíduos como princípios da tecnologia biopolítica de poder. A emergência da norma enquanto nova tecnologia de poder vincula-se às exigências da arte de governar neoliberal e ao modelo do homo oeconomicus enquanto “ilha de racionalidade possível no interior de um processo econômico” (Foucault, 2008a, p. 383) de caráter incontrolável. Sobre ele incidem os processos de normalização, em sua dupla dimensão, disciplinar e biopolítica. Sobre ele são elaborados saberes, discursos e estratégias para a constituição de um capital

    humano, de uma “competência-máquina” produtora de renda.

    Nesse contexto, o discurso sobre os investimentos em educação das crianças e jovens, cuja infância já havia sido, e continuará sendo submetida ao escrutínio dos processos normalizadores alimentados pelos saberes médico-psiquiátricos, assume o sentido inédito de formação profissional em um sentido expandido. Nele, o tempo dedicado pelos pais a seus filhos, seu nível cultural e o ambiente de criação passam a ser contabilizados, assim como os problemas de proteção da saúde e da higiene pública enquanto elementos capazes de aprimorar esse capital humano.

    Importante ressaltar que esse processo educativo-normalizador deve ser compreendido como um projeto em que os indivíduos são pensados a partir da lógica neoliberal da utilidade econômica para o sistema capitalista, na qual as políticas públicas de saúde e educação articulam-se aos dispositivos e estratégias de higiene social e formação para o mercado de trabalho, segundo valores científicos e morais de otimização da capacidade desse homo oeconomicus de se sujeitar às regras do mercado. Essa seria, para Gadelha (2009) a estreita interface entre a Teoria do Capital Humano a educação: atribuir a essa última a importância de investimento cujo resultado do acúmulo é o aumento da produtividade do indivíduo-trabalhador e a constante maximização de seus rendimentos durante a vida.

    Para além dos dispositivos de normalização e medicalização, (Gadelha 2018) afirma que o neoliberalismo desenvolveu a partir de 1980 tecnologias de gestão empresarial,pormeiodadisseminaçãodeculturascomoasdoempreendedorismo, da autoajuda empresarial, coaching, networking e programação neurolinguística, com o objetivo de aperfeiçoar o governo das condutas e dos corpos-subjetividades economicamente úteis.

    Viver em meio ao neoliberalismo implica lidar com uma demanda vital, que não é outra senão não a de que cada indivíduo deve garantir, não só a qualificação de sua vida e de sua própria subsistência, mas, através de ambas, na sua inclusão social e o enriquecimento de suas relações de sociabilidade (Gadelha, 2018, p. 241).


    Essa realidade implica na necessidade de uma agenda educacional capaz de consolidar os princípios da liberdade individual de escolha e da meritocracia como valores sociais inquestionáveis e suscitar iniciativas governamentais eficientes de individualização e integração dos indivíduos ao mercado por meio da produção de subjetividades adaptativas e flexíveis.


    Normalização e Educação: Inclusão?


    As tecnologias e estratégias de biopoder e governamentalidade que, conforme mencionado anteriormente, encontraram na infância o seu espaço privilegiado de exercício, apoiadas sobre dispositivos de saber-poder médico, ampliam constantemente seu escopo de atuação, investindo sobre corpos historicamente marginalizados suas estratégias de direção de conduta e normalização. Essa capilarização do poder encontrou no campo educacional um dos seus espaços mais sofisticados em que, por meio da apropriação do tema da inclusão, torna possível a classificação em grupos e a gestão da anormalidade.


    no final do século XIX e começo do século XX, se dá o início da classificação dos alunos de acordo com suas capacidades e da separação-confinamento dos anormais em instituições especializadas. Saberes médicos e biológicos, ao se unirem às estratégias disciplinares e de regulação, se potencializaram de modo a fazer da aprendizagem um processo biológico que devia ser desenvolvido. Assim, a aprendizagem no biopoder emerge como algo que deveria ser orientado no interior das salas de aula, ou seja, caberia ao professor possibilitar um processo que aconteceria de forma espontânea na criança (Lopes, 2015, p. 295).


    Nesse sentido, Veiga-Neto (2000) afirma que a escola, pensada a partir da perspectiva foucaultiana, opera como uma dobradiça entre as estratégias e práticas de condução individuais e populacionais, imbricando a relação entre biopoder e educação. Seu efeito imediato é a intensificação dos processos de normalização e gestão das liberdades individuais.

    Lopes (2015), afirma que as práticas de normalização e de inclusão guardam, a partir da Modernidade, uma relação de imanência na qual as tecnologias discursivas e de saber-poder estabelecem a importância social do conceito de inclusão e convertem a educação em campo privilegiado para a sua efetivação por meio de políticas públicas e leis que devem ser pensadas em sua íntima articulação com as estratégias neoliberais.

    O século XX testemunha a emergência de uma miríade de discursos e ações cujo escopo é a inclusão social de pessoas com deficiências. Na educação, também os transtornos específicos de aprendizagem passam a habitar esse espaço de saber-poder a ponto de Acorsi (2011) afirmar que “a inclusão nas escolas brasileiras é um fato” (p. 169). Tal afirmação encontra respaldo nos dados oficiais:

    em 2009, o número de matrículas de estudantes público-alvo da educação especial na educação básica representava apenas 1,2% do total, cerca de 640 mil registros; já em 2023, esse contingente alcançou aproximadamente 1,8 milhão de matrículas, correspondendo a 3,7% do total10.

    Entretanto, esse caráter fático suscita uma série de problematizações, pois de acordo com Acorsi (2011), enquanto materializam o processo de inclusão escolar, os dados estatísticos também servem para marcar um limiar entre exclusão e inclusão em termos de discursos oficiais como uma realidade cuja verdade dispensa questionamentos.

    Nesse contexto, em que incluir todos na escola se converte em uma meta educacional, problematizar o processo de inclusão passa a ser praticamente “uma indecência”, já que os esforços para transformar todas as escolas em escolas inclusivas têm se intensificado consideravelmente nos dias de hoje. [...] Entretanto o que me preocupa nesse contexto é a naturalização do processo de inclusão, visto que as vozes que tratam dessa questão são cada vez mais polifônicas e procuram por receitas, métodos, fórmulas para finalmente incluir a todos (Acorsi, 2011, p. 171).


    Os discursos sobre a inclusão escolar enquanto direito de todos os indivíduos, fundamentados em dados estatísticos, discursos médicos e procedimentos normalizadores, assume a função de ferramenta teórica cuja finalidade é apresentar soluções para os problemas que se multiplicam na educação, contribuindo para a sua banalização e para o esvaziamento das reflexões comprometidas com a busca do real sentido subjacente a essas práticas. Ao assumir o status do que Foucault (2008b) define como caso, entendido como um fenômeno coletivo a ser avaliado em termos de risco, perigo, crise, os indivíduos que são alvo das políticas de inclusão escolar passam a ser identificados e avaliados para sua integração ao campo da população de forma eficiente.

    Faz-se necessário problematizar o conceito de inclusão, que deve ser entendido não somente como “abrir os portões da escola a todas as crianças, colocando-as para dentro” (Acorsi, 2011, p. 172). Entendida dessa forma, a inclusão estaria reduzida à presença física coletiva em um mesmo espaço, sem uma análise crítica dos processos de subjetivação, normalização e governamento subjacentes.

    A multiplicação dos discursos e discussões sobre a questão da diferença


  10. EQUIPE DIVERSA. Painel de Indicadores da Educação Especial é atualizado com dados do Censo Escolar 2023. Diversa, 16 ago. 2024. Disponível em: https://diversa.org.br/noticias/painel-de-indicadores-da-educacao-especial-e-atua- lizado-com-dados-do-censo-escolar-2023/. Acesso em: 16 ago. 2025).


assegura sua presença constante nas escolas em termos de políticas públicas para a inclusão, de tal forma que “educar na diferença; educar para a diferença passaram a ser palavras de ordem em planos de educação de órgãos governamentais, em projetos políticos pedagógicos de escolas, em projetos de organizações não governamentais” (Gallo, 2001, p.7). Mas essa colonização discursiva tem como efeito prático um processo de apagamento dessas diferenças e particularidades individuais, uma contenção das diferenças, diria Foucault (2001), por meio de um processo de normalização das condutas.

Se na relação direta com o indivíduo o Estado operava com a lógica da normação – a partir da norma, determina-se o normal e o anormal (movimento típico da sociedade disciplinar) –, na relação com a população o Estado necessitou operar com a normalização – a partir do normal se determina anorma – (movimento típico da sociedade de seguridade). Em ambos os casos, decorrentes da norma, estão implicadas as necessidades de tradução, diagnóstico, classificação, ordenamento, hierarquização, regulamentação, controle e normalização. Cada necessidade apontada associa-se a um tipo de operação da norma, ou seja, algumas estão na ordem do indivíduo, outras estão na ordem da população que se quer conhecer e governar (Lopes e Dal’Igna (2012, p. 855-856).


Em termos de educação inclusiva, faz-se necessário seu entendimento como uma estratégia de governamento de Estado cujo objetivo é produzir resultados estatísticos, disciplinamento de corpos e controle de populações, determinando os limites do que pode ser considerado normal, promovendo um gerenciamento das diferenças e, a produção de saberes sobre esses grupos a partir dos dados extraídos das estatísticas e relatórios. Isso torna possível a elaboração de estratégias de governo das condutas alinhadas à redução de todos os indivíduos ao conceito capital humano e, consequentemente, a sua exploração eficiente pelos dispositivos neoliberais.

Deve-se, entretanto, reconhecer que apesar desses discursos e estratégias de apagamento das diferenças por meio da inclusão social de todos, os indivíduos que são alvo dessas políticas públicas e ações estatais, permanecem vivendo formas de vida precárias, em que a realidade constante são formas de subemprego mal remuneradas, discriminação e uma invisibilidade camuflada sob dados e estatísticas. Nas palavras de Lopes (2015, p. 298) “a exclusão, nesses casos, não se dá por oposição à inclusão, mas ambas – a inclusão e a exclusão – são processos que se complementam forjando um ao outro, pois um só existe na medida em que existe o outro”.

É sob essa perspectiva que Lopes (2015) assume o termo in/exclusão como

forma de assinalar a sua relação de imanência, pois, ao contrário do que propagam os discursos, essa relação caracteriza o modo contemporâneo de gestão social marcado por processos de subjetivação produtores de condições desiguais de participação na sociedade, mascarados por discursos que preconizam a superação das diferenças e a promoção da igualdade de direitos e condições.

Caminho sem volta? É possível pensar alternativas para a inclusão que escapem às estratégias de governamento do Estado neoliberal? Novamente é a filosofia que aponta o caminho. Foucault (1988), ao afirmar que todos estão imersos em relações de poder cuja natureza é a imanência e, ao defender que o poder carrega em seu âmago a própria possibilidade de resistência, explicita a possibilidade de criação de formas de subjetividade inclusivas. Nelas, a sensibilidade aos problemas sociais e a compreensão de que a inclusão não deve servir como processo homogeneizante que desconsidera as condições objetivas de vida, deve ser o ponto de partida para a criação de práticas de cuidado de si e dos outros capazes de restituir às diferenças sua centralidade na existência humana. Afinal, “de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” (Foucault, 1984, p. 13).


Considerações finais

Este artigo buscou lançar luz sobre as racionalidades e estratégias que sustentam as políticas de educação inclusiva em contextos marcados pelo neoliberalismo. Ao mobilizar os conceitos foucaultianos de biopolítica, governamentalidade e normalização, evidenciou-se que os discursos e práticas que tem como alvo a educação inclusiva operam como instrumentos produtores de subjetividades e regulação das condutas, promovendo uma invisibilização das diferenças humanas.

Nesse cenário, a inclusão se converte em exigência de eficiência técnica e de adaptação ao mercado, mascarada por discursos universalizantes de equidade e igualdade A fragilidade das políticas públicas e o alinhamento com a lógica da responsabilização individual revelam a redução do sujeito a capital humano, mais ajustado às necessidades do sistema econômico do que às potencialidades singulares de cada pessoa. Em vez de promover a valorização das diferenças

como potência transformadora, a inclusão é capturada por uma racionalidade que converte a escola em espaço de adestramento para a produtividade.

Os dados estatísticos que apontam a ampliação das matrículas na educação básica não podem ser tomados como sinônimo de inclusão efetiva, pois ocultam precariedades, silenciamentos e a persistência das desigualdades estruturais. É, portanto, urgente desnaturalizar os discursos hegemônicos sobre inclusão, colocando-os sob a lente crítica da arqueo-genealogia foucaultiana, a fim de tensionar a produção das verdades sobre os sujeitos e criar condições para práticas pedagógicas que favoreçam formas alternativas de subjetivação e cuidado.

A educação, nesse sentido, deve assumir o papel de espaço de produção de subjetividades inclusivas, nas quais as diferenças sejam reconhecidas e valorizadas como expressão da própria condição humana. Compreender os interesses neoliberais que permeiam as políticas inclusivas é passo essencial para desmontar seus discursos e reorientar a prática pedagógica para além da incorporação ao mercado de trabalho, entendendo a inclusão como experiência de convivência, emancipação e resistência.

Por fim, destaca-se como caminho para investigações futuras a problematização do papel do professor como sujeito central no processo educativo. Em meio ao avanço das racionalidades neoliberais sobre a educação inclusiva, torna-se urgente a construção de estratégias que produzam subjetividades críticas e subversivas, capazes de afirmar um mundo no qual a diferença se sobreponha à normalidade.


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