O ESTRANGEIRO E A DIFERENÇA: AS LEIS DE MIGRAÇÃO NO BRASIL E EM PORTUGAL NO SÉCULO XXI
THE FOREIGNER AND THE DIFFERENCE: MIGRATION LAWS IN BRAZIL AND PORTUGAL IN
THE 21ST CENTURY
Letícia de Luca Torres1
https://orcid.org/0009-0004-2725-4489
http://lattes.cnpq.br/5307722615668394
Recebido em: 09 de setembro de 2025. Aprovado em: 29 setembro de 2025.
https://doi.org/10.46401/arec.2025.v17.24173
1 Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), graduada em Ciências Sociais pela mesma universidade. E-mail: leticia.torres@estudante.ufscar.br
Resenha de: MACHADO, Igor José de Renó. O estrangeiro e a diferença: as leis de migração no Brasil e em Portugal no século 21. São Paulo: Editora EdUFSCar, 2024.
Na obra O estrangeiro e a diferença, o autor Igor José de Renó Machado2, oferece uma análise aguda e sofisticada das legislações de imigração e naturalização no Brasil ao longo das últimas décadas. A partir de uma perspectiva antropológica, o autor propõe compreender as leis migratórias não como instrumentos neutros de regulação, mas como dispositivos de invenção wagneriana (Machado, 2024), através dos quais se projetam discursos sobre identidade nacional, cidadania, pertencimento, exclusão e alteridade.
Com um olhar atento às continuidades
históricas e às inflexões legislativas, Machado (2024) analisa a produção, reformulação e os debates em torno das leis migratórias ao longo de 42 anos, privilegiando o caso brasileiro, mas também estabelecendo instigantes paralelos com o contexto português. A obra, fundamentada em aportes de Grosfoguel (2004), Quijano e Mignolo (1993), autores dedicados a pensar as hierarquias coloniais ainda vigentes, articula análise legislativa, crítica historiográfica e reflexão etnográfica, compondo um quadro denso das formas pelas quais o Estado administra e regula a diferença. Essa última não se limita apenas às fronteiras jurídicas entre nacionais e estrangeiros, mas sobretudo às hierarquias raciais, linguísticas e culturais que definem quem
2 Igor José de Renó Machado é antropólogo e professor da UFSCar desde 2004. Sua área de concentração são os estudos migratórios, tendo se dedicado a pensar a relação entre parentesco e imigração de forma sistemática. É bolsista de pro- dutividade do CNPq desde 2008, tem coordenado projetos Fapesp e CNPq sobre o tema das migrações e publicado em
periódicos de renome, como Vibrant, Revista de Antropologia, Etnográfica, Mana, entre outros. Pela Editora da Univer- sidade Federal de São Carlos (EdUFSCar), publicou Um mar de identidades, sobre a migração brasileira para Portugal; Japonesidades multiplicadas, sobre a migração japonesa no Brasil, e, ainda, A antropologia de Schneider e Desloca- mentos e parentesco. Publicou também o livro Cárcere público, pela editora do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, sobre a imigração brasileira em Portugal.
pode ou não ser reconhecido como parte legítima da nação, evidenciando os mecanismos sutis e persistentes de exclusão herdados da lógica colonial.
Dessa forma, o autor evidencia como a produção de hierarquias opera como estratégia de agenciamento da diferença. No caso brasileiro, esse processo se manifesta sobretudo por meio da linguagem. O Estado mobiliza a língua como critério de aproximação ao corpo nacional: ainda que o imigrante possa alcançar a naturalização, é o domínio do português brasileiro que se impõe como medida de pertencimento, pois a língua representa, paradoxalmente, aquilo que o torna “menos diferente” (Machado, 2024).
Outro mecanismo central é a raça, elemento estruturante na produção de uma escala hierárquica legislativa da diferença entre ambos os países. Manipulada como critério de seleção, a raça e a origem étnica definem quem é considerado mais ou menos desejável para compor o corpo nacional, mais uma vez, revelando a persistência de lógicas coloniais na administração estatal da migração.
Vemos então que há uma escala de construção de hierarquias. Na lei de 1980 havia o privilégio aos portugueses e algumas concessões aos mercosulinos. No projeto engavetado havia uma distinção favorável aos mercosulinos e aos originários de países de língua oficial portuguesa. Esse espírito de criar distinções entre imigrantes permaneceu na proposta do Ministério da Justiça (...) (Machado, 2024, p. 61).
Nesse sentido, projetos de lei, normas em vigor, discursos parlamentares e regulamentações são examinados como expressões simbólicas e políticas de uma sociedade que decide quem pode entrar, permanecer, circular ou ser reconhecido como parte do corpo nacional, afinal “(...) a forma como se integrará (ou não) a massa de imigrantes à vida nacional é uma questão de escolhas políticas” (Machado, 2024, p. 21). Assim, a partir de declarações de membros da Associação Olho Vivo3 Machado (2024) observa, no cenário português, um interesse em branquear o quadro da imigração ao dificultar a legalização dos imigrantes africanos indocumentados, mesmo que estes já apresentem uma comunidade “bem” estabelecida no país. Em contrapartida, haveria uma facilitação da legalização de imigrantes do leste europeu e brasileiros (Machado, 2024).
Diante desta situação, pode-se supor que a entrada de imigrantes não africanos é
3 Instituição responsável por grande parte das discussões públicas sobre a imigração em Portugal, sendo prestadora de assistência jurídica para imigrantes indocumentados.
interessante ao governo português, embora isto não seja declarado. Mas os números da legalização recente dizem tudo: 14.442 ucranianos, 7.808 brasileiros, 3.562 moldavos, 2.710 romenos, 1.919 russos, 1.916 cabo-verdianos, 1.845 paquistaneses,
1.668 angolanos, 1.471 guineenses, 1.072 chineses e 120 moçambicanos, entre outros”
(Machado, 2024, p. 21).
Desse modo, nos capítulos iniciais, o antropólogo parte de um panorama abrangente da legislação migratória portuguesa, comparando-a com o cenário brasileiro. Em seguida, centraliza o debate neste último, analisando criticamente as leis migratórias brasileiras desde o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980) de 1980 até a promulgação da Nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), em 2017. Já nos capítulos finais, o autor analisa também os impactos políticos sobre a formação e aplicação das normas migratórias, com destaque para o impeachment de Dilma Rousseff e os governos dos ex-presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. Ao abordar esse período, Machado (2024) evidencia como as mudanças no cenário político influenciam diretamente as práticas legais e os discursos em torno da mobilidade, do pertencimento e do controle migratório no Brasil.
A esse respeito, a Lei nº 6.815/1980, conhecida como Estatuto do Estrangeiro, foi promulgada nos últimos anos da ditadura militar e carrega a marca ideológica da segurança nacional. Elaborada sob o paradigma da vigilância e do controle, influenciada pela Guerra Fria, tratava o estrangeiro como uma ameaça potencial à ordem interna (Machado, 2024). Como consequência, seus dispositivos impunham severas limitações à permanência, naturalização e mobilidade dos imigrantes, consolidando, portanto, um modelo autoritário e excludente de política migratória (Machado, 2024).
À primeira vista, a Lei nº 13.445/20174, conhecida como Nova Lei de Migração, poderia parecer representar uma ruptura com esse passado autoritário da legislação migratória brasileira. Formulada em um contexto democrático, com a participação de diversos setores da sociedade civil, respaldada pelo discurso dos direitos humanos e feita sob pressão popular, a nova legislação anunciava princípios de acolhimento, igualdade, regularização e integração dos migrantes (Machado, 2024). No entanto, buscando responder à pergunta “(...) será de fato boa
4 A Lei nº 13.445/2017, também conhecida como Lei de Migração, é a legislação brasileira que estabelece os direitos, deveres e princípios relacionados à migração no país, substituindo o antigo Estatuto do Estrangeiro. A lei busca promover uma política migratória baseada nos direitos humanos, com o objetivo de garantir a dignidade e a inclusão social dos migrantes, combatendo a xenofobia e qualquer forma de discriminação.
a nova lei de imigração?” (Machado, 2024, p. 22), o autor desconstrói essa leitura otimista, argumentando que, embora progressista em sua formulação, a nova lei preserva, de maneira mais sutil e eficaz, estruturas históricas de exclusão.
Assim, para o antropólogo, o que se observou entre 1980 e 2017 não foi uma superação do paradigma anterior, mas sim uma reformulação técnica de dispositivos de controle, em que a promessa de legalidade opera como fachada para práticas de restrição seletiva. Em suas palavras, “(...) como o texto da lei gera, na prática do gerenciamento dos imigrantes, um contingente de pessoas que não serão documentadas” (Machado, 2024, p. 15). Trata-se, portanto, da manutenção da “ilegalidade” não como um efeito colateral, mas como um verdadeiro projeto de Estado, necessário à gestão da diferença e à precarização estrutural da condição migrante. Nessa lógica, o imigrante permanece enquadrado como sujeito suspeito, uma figura criminalizada, perigosa e instável como na época ditatorial, reafirmando o papel das legislações migratórias enquanto instrumentos de produção de vulnerabilidade.
Dividido em nove capítulos principais, o livro propõe uma análise antropológica das peças legislativas, ou seja,
(...) uma antropologia que trata as peças legislativas como objeto, como documento passível de análise em si, sem referências necessárias ao seu contexto de produção ou a análise das forças políticas que as organizam (embora isso também aparece sistematicamente). (Machado, 2024, p. 09).
Nesse sentido, é uma abordagem que se distancia da antropologia jurídica, “(...) pois não toma o sistema jurídico como um campo (...)” (Machado, 2024, p. 09), mas se aproxima da antropologia dos documentos, da mídia e da literatura por compreender a legislação como um documento vivo, atravessado por disputas morais, econômicas, securitárias e simbólicas. As leis aparecem, portanto, não apenas como textos técnicos, mas como arenas de conflito nas quais se definem, constantemente, as fronteiras da cidadania e da própria noção de humanidade.
Nos capítulos 1 e 2, a partir de autores como Baganha e Gois (1998), Costa (2006) e Pereira da Silva (2004), Igor Machado analisa a legislação portuguesa em vigor desde 20015, destacando a criação da “autorização de permanência”
5 Decreto Regulamentar 9/2001, que altera e republica o DR 5-A/2000, de 26 de abril de 2000, que regulamenta o De- creto-lei n.244, de 8 de agosto de 1998, com as alterações decorrentes do Decreto-lei n.4, de 10 de janeiro de 2001, que regulamenta a entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros no território nacional.
como um dispositivo central na gestão da migração. Embora apresentada sob o signo da inclusão, tal medida impunha requisitos paradoxais como residência prévia, contrato formal de trabalho e vínculo com instituições estatais que, na prática, inviabilizam o acesso dos sujeitos mais vulneráveis, como trabalhadores informais e solicitantes de refúgio. Além disso, conferia privilégios específicos a migrantes lusófonos, evidenciando uma lógica de hierarquização racializada e cultural, orientada pelo que o autor chama de “espírito” da lei: a pressuposição de uma “portuguesidade” como parâmetro normativo para a incorporação da diferença.
Assim, ao articular a promessa de acolhimento com práticas sistemáticas de exclusão, a legislação não apenas regula juridicamente a presença estrangeira, mas também institui regimes de pertencimento sustentados pela produção de alteridades graduais. É nesse movimento que emergem as chamadas “hierarquias de alteridade”, categoria analítica, apresentada anteriormente, que aponta como os Estados-nação, por meio da lei, fabricam escalas de legitimidade capazes de distinguir entre migrantes considerados desejáveis e aqueles classificados como indesejáveis.
Entretanto, é a partir de autores como Feldman-Bianco (2001), Mota e Novaes (1986), que no capítulo 3, essa discussão ganha densidade. Ao propor uma análise comparativa entre os dois países, o autor revela como ambos mobilizam estratégias ambíguas na gestão da alteridade. Embora a legislação portuguesa esteja mais alinhada ao vocabulário dos direitos humanos, ela ainda assim mantém mecanismos de imobilização e dependência do imigrante. Por outro lado, no Brasil, a persistência de penduricalhos autoritários é evidente, visto que, mesmo após a redemocratização, os dispositivos legais continuam a submeter o estrangeiro a uma lógica de tutela estatal, burocracia excessiva e desconfiança institucional, onde ronda um sentimento de “temor ao imigrante”. Em ambos os contextos, há o que o autor chama de imobilidade institucionalizada, ou seja, o direito de permanecer não garante o direito de pertencer plenamente. Assim, o que se observa não é a inclusão, mas sim uma gestão sofisticada da exclusão.
No capítulo 4, Machado (2024) destaca que o antigo Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980) estava alicerçado em uma lógica de “segurança nacional”, que via o imigrante com desconfiança e o tratava como uma potencial ameaça à ordem pública. Essa perspectiva, por sua vez, se traduzia em dispositivos legais que reforçaram a vigilância, o controle e a possibilidade de expulsão do estrangeiro,
rotulando-os frequentemente como “indesejados” ou “desamparados” (Machado, 2024). É, também, neste capítulo que o autor discute como a proposta legislativa de 2009 (PL 5.655/2009), nesse sentido, foi, até certo ponto, uma tentativa de ruptura com o paradigma anterior, ao propor uma abordagem mais humanitária, centrada na integração e na promoção de direitos, independentemente da situação documental do imigrante. No entanto, como observa o autor, o que se revela, na prática, é um projeto voltado prioritariamente para os interesses do Estado.
Assim, a principal marca da PL 5.655/2009, portanto, é a tentativa de centralização das questões migratórias sob a autoridade de um único órgão, a ANM (Autoridade Nacional Migratória), o que evidencia uma lógica de controle e gestão sobre os estrangeiros. Ao invés de simplificar a burocracia enfrentada pelos imigrantes, o projeto mantém e até reforça sua função de barreira e vigilância. Desse modo, Machado (2024) demonstra que, apesar do discurso de ruptura com o paradigma da “segurança nacional”, o projeto de 2009 manteve a lógica de controle e vigilância como eixo central da política migratória.
Em diálogo com Seyferth (1996), no capítulo 5, o antropólogo aprofunda sua reflexão sobre o lugar do imigrante nas políticas públicas e nos discursos legais, trazendo à tona o debate sobre como a diferença é percebida, categorizada e gerenciada pelos Estados. É justamente aqui que reside o cerne de sua contribuição: o autor amplia o escopo da análise ao explorar o imigrante não apenas como sujeito jurídico ou econômico, mas também como figura simbólica da alteridade, um “outro” que desafia os parâmetros normativos da nação, ou seja, que desafia a noção de “sujeito” de estado imposta pelas instituições legislativas. “A intenção principal aqui é produzir uma reflexão essencialmente antropológica sobre a imaginação da diferença tanto no texto das leis como na forma de gerenciamento proposta para essas imaginações, em suas múltiplas e complexas relações internas” (Machado, 2024, p. 67).
Além disso, este capítulo evidencia como as legislações migratórias se estruturam a partir da tentativa de normalizar o imigrante, enquadrando-o em categorias que, muitas vezes, ignoram a complexidade de suas trajetórias. Nesse sentido, o Estado ao assumir para si o monopólio da gestão da diferença, reduz os imigrantes a figuras administrativas, cuja legitimidade depende da capacidade de adequação a parâmetros previamente estabelecidos, seja por meio da assimilação, da integração ou, nos casos de resistência ou inadequação,
pela exclusão. Em vez de valorizar a diversidade, as políticas tendem a apagar ou domesticar as especificidades culturais, sociais e subjetivas dos imigrantes em nome da estabilidade social e da segurança nacional. Como aponta o autor, isso mostra que a política de gerenciamento da diferença é, antes de tudo, uma política de enquadramento, incapaz de lidar com a fluidez e a mutabilidade das diferenças culturais e sociais que caracterizam a experiência migratória
(...) o texto da proposta da lei preocupa-se mais em definir formas de retirada do estrangeiro do solo nacional do que as formas de permanência em si. O estrangeiro pode ser impedido de ingressar no país (artigo 45), pode ser repatriado (artigo 47), pode ser deportado (artigos 48, 49 e 50) e pode ainda ser expulso (artigo 53 a 58). (Machado, 2024, p. 70).
Dessa forma, Machado (2024) propõe uma abordagem crítica, que desloca o foco da mera legalidade. Ele argumenta que uma antropologia do texto das leis permite compreender como a figura do imigrante atua não tanto para fundamentar políticas efetivas, mas para redefinir o próprio Estado. Nesse processo, a percepção sobre o imigrante se altera de acordo com a forma de redefinição estatal almejada, funcionando como instrumento de legitimação dessa transformação. O imigrante, nesse contexto, não é apenas alguém que cruza fronteiras físicas, mas sim alguém que é constantemente posicionado dentro de fronteiras simbólicas e sociais. Trata-se de uma figura que encarna, simultaneamente, ameaça e promessa: sua presença projeta sobre o corpo nacional ansiedades relativas à segurança, à coesão cultural e à soberania, ao mesmo tempo em que é mobilizada como signo da abertura, da modernidade e do cosmopolitismo estatal.
Já no capítulo 6, apoiado novamente na autora Feldman-Bianco (2015), e agora em autores como Domenech (2015) e Hirata (2015), o autor mergulha na complexa discussão legislativa que resultou na nova Lei de Migração brasileira (Lei nº 13.445/2017), aprovada em 2017. Machado (2024) se propõe a analisar como a questão da “diferença” do estrangeiro e os direitos humanos foram abordados e negociados ao longo do processo de elaboração do Projeto de Lei do Senado (PLS) 2.516/2015, que deu origem à nova legislação. Nesse contexto, a discussão se inicia contextualizando o cenário de intensos debates e a pluralidade de atores envolvidos na construção da nova lei, incluindo o Ministério da Justiça, os movimentos sociais, a academia e os órgãos de segurança pública.
Assim, o capítulo detalha as diferentes versões do PLS, que o autor denomina como “nuvem legislativa”6 (Machado, 2024), as quais tramitaram no Congresso, e mostram as modificações e as disputas em torno de temas cruciais. O antropólogo discute as principais mudanças propostas, tais como a desburocratização dos procedimentos migratórios, a garantia de acesso a direitos sociais, como saúde, educação e assistência social, a proteção de vítimas de tráfico de pessoas e exploração. Machado (2024) enfatiza que a nova lei representa um avanço significativo, pois reconhece o imigrante como sujeito de direitos.
Contudo, o autor não deixa de pontuar as tensões e os retrocessos que permearam o processo legislativo. Ele aborda a resistência de setores mais conservadores bem como a inclusão de dispositivos que, de certa forma, mantiveram uma lógica de controle, embora mitigada em comparação com a legislação anterior. A discussão sobre a importância de identificar “quem causa” o fluxo migratório e a inserção de preocupações relacionadas à “segurança nacional” em alguns momentos do debate são exemplos dessas tensões.
O capítulo, também, explora a ideia de “dois sentidos” presentes na nova lei. Um deles aponta para o avanço na garantia de direitos e na promoção da integração. O outro, por outro lado, ainda reflete uma preocupação com a “segurança” e o “controle” do estrangeiro. Essa ambivalência, segundo o autor, expressa o complexo jogo de forças e interesses que moldam a política migratória em um país como o Brasil, especialmente porque lida com a diversidade de fluxos migratórios e com a tensão entre inclusão e vigilância.
Quais são as imagens que se produzem do estrangeiro nesse conjunto de versões? O que elas nos dizem, finalmente, sobre a diferença e a noção de “direitos humanos” no Congresso? A principal questão, que podemos ver pelos critérios gradualmente mais rígidos para repatriação e expulsão, é que a noção de ameaça e medo ainda circunda todo esforço legislativo. (Machado, 2024, p. 89).
No capítulo 7, o autor acompanha a trajetória da legislação nas duas casas do Congresso Nacional, buscando revelar os atores e as perspectivas que moldaram esse complexo cenário político. A intenção de Machado (2024) é ir além da análise puramente legal, propondo uma antropologia da mobilidade humana, com o
6 O autor denomina “nuvem legislativa” às várias versões existentes da PL 2.516/2015, desde sua apresentação em 2013 até sua última versão, disponível até julho de 2016. Importante ressaltar que devido às inúmeras versões, o autor con- centrou sua análise nas formas de evitação da diferença presentes nos projetos, entendendo com esse nome as políticas de repatriação, expulsão, extradição, deportação, negação de asilo, e ainda outras variações dessas formas de negação (Machado, 2024, p. 78).
objetivo de compreender como a ideia de diferença e o lugar que ela ocupa no espaço político nacional se manifestam nas novas políticas migratórias.
Nesse sentido, o autor discorre sobre o cenário brasileiro da migração, que se consolidou com o crescimento do fluxo de imigrantes provenientes de diversas nacionalidades, incluindo venezuelanos, haitianos e imigrantes do continente africano e latino-americano, mas que, em determinado momento, demandou uma revisão da política migratória, uma vez que o Brasil tem se tornado, cada vez mais, um país de imigração. Nesse sentido, o autor detalha o papel de diferentes órgãos e instituições no processo de construção da nova lei, como o Ministério da Justiça, responsável pela proposta do anteprojeto, e o Congresso Nacional, que promoveu intensos debates e modificações ao longo do processo.
A pesquisa do autor foca, ainda, na composição do Conselho Nacional de Imigração (CNIG) e na importância desse órgão na produção da lei. Composto por representantes do governo, da sociedade civil e de empregadores, o CNIG detém papel fundamental para o avanço de uma perspectiva mais inclusiva. A análise das diferentes versões do projeto de lei, como o PLS 2.516/2015, revela as negociações e as disputas sobre temas como deportação, naturalização, acesso a serviços públicos e, principalmente, a proteção de direitos humanos.
O capítulo também aborda a continuidade de uma certa “tensão” entre a perspectiva humanitária e a lógica securitária, mesmo na nova lei. Mais uma vez o autor reforça que, embora a Lei de Migração de 2017 (Lei nº 13.445/2017) represente um avanço significativo, ainda há resquícios de uma mentalidade de controle. Neste momento do livro, o autor aponta para a manutenção de certas prerrogativas da Polícia Federal no controle migratório e para o fato de que a discussão sobre a “ilegalidade” e a “criminalização” do imigrante ainda permear alguns debates; “A situação atual é, portanto, a volta ao espírito geral de percepção da diferença que presidia o antigo estatuto do imigrante, a velha lei do período ditatorial” (Machado, 2024, p. 108).
No Capítulo 8, o debate é direcionado para a complexidade da categoria de refúgio no Brasil, explorando de que maneira as classificações estatais e as máquinas de hierarquização da diferença impactam a vida de refugiados e solicitantes de refúgio. Machado (2024) adota uma perspectiva comparada para entender como essa categoria opera, tanto em termos legais quanto na prática vivida, e como o conceito de refúgio se tornou um campo de definições que afetam diretamente a vida dos indivíduos.
A palavra “refugiado” é uma dessas que parecem dizer algo muito específico, muito delimitado, mas é, na verdade, um conjunto enorme de diferentes possibilidades. Mas as diferentes possibilidades estão distribuídas desigualmente em termos de poder e representatividade. Existe um cenário onde o Estado brasileiro define unilateralmente o que é refúgio através de mecanismos legais que têm sua história própria e que muitos estudiosos se dedicaram a explicar. Há, assim, uma definição estatal, que se coaduna com acordos internacionais que procuram uniformizar as apreensões nacionais da categoria: cria-se um sistema internacional de refúgio, com suas regras globais, das quais os Estados tomam parte voluntariamente ao assinar tratados variados. Há, assim, uma história desse processo de definição global da categoria “refúgio” (Machado, 2024, p. 111).
Ademais, neste capítulo, Igor Machado detalha as práticas do refúgio no Brasil, incluindo os dados e a evolução do perfil dos solicitantes e dos reconhecidos como refugiados. É enfatizado que o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil, embora em números menores quando comparados a outros países, apresenta um cenário crescente e diversificado, especialmente com a chegada de venezuelanos e haitianos. O autor analisa as experiências do registro, da documentação, e da inserção no mercado de trabalho, destacando como as burocracias e as demoras processuais impõem desafios adicionais à vida dos refugiados.
Além disso, a questão do contrabando humanitário e a exploração de imigrantes e refugiados são temas abordados, revelando a vulnerabilidade desses grupos e a necessidade de políticas mais eficazes para sua proteção. Por fim, Machado (2024) também discute a articulação entre as categorias de refugiado, imigrante e solicitante de refúgio, mostrando como a interseção dessas classificações gera diferentes tratamentos e acessos a direitos.
O novelo não é neutro, é uma bomba de efeitos desejados pelo estado: privilégio simbólico para uns, exclusão para outros; ser portador de um visto humanitário faz do imigrante um ser que depende eternamente da bondade do estado (subalternizado), já a categoria de refúgio é, quando purificada, um direito internacional. O refugiado é um resistente, mas quais resistências são desejadas é uma questão política. Porém o novelo convive com as classificações nativas nos serviços de atendimento, categorias que estão livres para serem esticadas em diferentes direções, contando que a grande categoria purificada permita a ação discricionária dos cortes e das separações (Machado, 2024, p. 123).
NoCapítulo9,intitulado“Refúgiocomocategoriadeseparação”,oautorreforça essa análise crítica da categoria de refúgio, não apenas como um instrumento de proteção, mas também como um mecanismo que, paradoxalmente, promove separação e exclusão, especialmente nos governos brasileiros de 2018 e 2022,
sob a orientação de extrema-direita. Em contraste com os governos de esquerda de 2003 a 2016, o autor argumenta que o refúgio, enquanto fenômeno migratório, deve ser compreendido não só como um fato social e humanitário, mas também como um ato político, que se manifesta nas vontades políticas do Estado. Essa perspectiva sugere que o controle estatal sobre os deslocamentos humanos não se limita à gestão burocrática, mas se estende ao campo da propaganda e do discurso, onde a diferença do refugiado pode ser instrumentalizada para fins políticos. Nesse sentido, o capítulo procura explorar a dinâmica do processo de refúgio como reflexo das políticas migratórias e das ideologias governamentais. Machado (2024) salienta que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a política migratória brasileira assumiu uma perspectiva securitária, em que a “diferença” do estrangeiro foi frequentemente associada a uma ameaça, o que resultou em retrocessos: adoção de medidas mais restritivas e na intensificação de um discurso anti-imigratório. O autor compara esse período com os governos anteriores de Lula e Dilma, que, embora também tivessem enfrentado desafios, mantinham uma postura mais aberta e humanitária em relação aos imigrantes e
refugiados.
Ademais, o capítulo examina casos específicos, como a “Operação Acolhida” para venezuelanos, que, embora tenha garantido assistência humanitária, também revelou uma lógica de controle e militarização da ajuda. Machado (2024) analisa os dados sobre solicitações e reconhecimentos de refúgio, evidenciando o impacto das políticas na vida dos refugiados haitianos e venezuelanos no Brasil. Ele destaca a fragilidade da situação dos que buscam refúgio, muitos dos quais são frequentemente confrontados com a morosidade dos processos, a dificuldade de acesso a direitos e a persistência de uma visão estigmatizada.
A reflexão sobre o “novo velho anticomunismo” aparece como elemento central para entender a lógica de separação. O autor sustenta que o governo de extrema-direita recuperou discursos e práticas da Guerra Fria, associando o imigrante a uma ameaça ideológica e de segurança, transformando a migração em um campo de disputa política e ideológica. Essa abordagem tentou reforçar a ideia de que o imigrante, especialmente aquele em situação de vulnerabilidade, seria considerado um “inimigo interno” ou um fator desestabilizador da ordem nacional.
Ao final de O estrangeiro e a diferença, Igor José de Renó Machado nos apresenta uma contribuição teórica e política de grande fôlego para os campos
da antropologia e dos estudos migratórios. Por meio de uma análise crítica e historicamente situada das legislações migratórias no Brasil, em diálogo com o caso português, o autor revela como o direito, longe de ser uma instância neutra de regulação, atua como um operador ativo na produção de exclusões, na gestão da alteridade e na consolidação de fronteiras sociais.
A categoria de refúgio, em vez de ser apenas um mecanismo de proteção humanitária, emerge como um dispositivo ambíguo, capaz de produzir separações materiais e simbólicas, reforçando hierarquias e narrativas de ameaça. Igor José Machado (2024) demonstra que o estrangeiro não é apenas aquele que cruza fronteiras nacionais, mas também aquele que é continuamente mantido fora de lugar pelas engrenagens normativas do Estado, mesmo quando aparentemente acolhido.
Com linguagem precisa e abordagem sensível, o autor articula análise legislativa, crítica política e imaginação antropológica para mostrar como as leis migratórias são, também, arenas de disputa simbólica onde se projetam ideias de nação, pertencimento e cidadania. Além disso, sua proposta de uma “antropologia das peças legislativas” amplia o escopo tradicional da análise jurídica, permitindo compreender o direito como campo de produção cultural e política. O estrangeiro e a diferença, configura-se, assim, como uma contribuição decisiva para a crítica às políticas atuais de fronteira.
Mais do que denunciar contradições normativas, Machado (2024) convida à reflexão crítica sobre os modos como construímos coletivamente a figura do “estrangeiro”, ora como ameaça, ora como sujeito tutelado, raramente como igual. Nesse sentido, sua obra também se configura como um chamado urgente por políticas migratórias verdadeiramente comprometidas com a dignidade, os direitos e a pluralidade das experiências humanas.
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