Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 SUMÁRIO Albuquerque vol. 16, n. 31, jan. - jul. de 2024 Expediente ........................................................................................................................... 4 Editorial ................................................................................................................................. 7 Autor(es) Aguinaldo Rodrigues Gomes, Miguel Rodrigues de Sousa Neto Artigos Livres 1. RAÇA COMO TECNOLOGIA: APONTAMENTOS BÁSICOS SOBRE RAÇA, RACISMO ESTRUTURAL E INTERSECCIONALIDADE ....................................................................................... 10 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos 2. APROXIMAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ENTRE A PERSPECTIVA ENUNCIATIVO-DISCUR- SIVA E A GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL: AS METAFUNÇÕES COMUNICATIVAS E O ENSINO DOS GÊ- NEROS MULTISSEMIÓTICOS ...................................................................................... 36 Peterson José de Oliveira 3. A TERRA FANTÁSTICA DA AMAZÔNIA: DISCUTINDO A COLONIZAÇÃO DE ALTA FLORESTA A PARTIR DA DRAMATURGIA DE “FRAGMENTOS DE VIDA” (1995) ..................................... 61 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana 4. DECOLONIALIDADE E TESSITURAS INDÍGENAS: ARTICULAÇÃO POLÍTICA DOS TERENA ... 82 Iara Quelho De Castro 5. DEMOCRACIA RACIAL, ELITE E A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO .................... 101 Juliana Mendes Arnaldo Vieira Sousa, Flávio Luiz de Castro Freitas 6. DO COLONIAL AO CONTEMPORÂNEO: UMA RELEITURA DA OBRA DE ROGER BASTIDE E FLO- RESTAN FERNANDES PARA REPENSAR A MEMÓRIA AFRO-PAULISTANA................... 123 Claudelir Correa Clemente 7. O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO FEMININA NO CONTEXTO DO CONFINAMENTO COMPULSÓRIO ................................................................. 141 Rafaela Limberger, Camilo Darsie
SUMÁRIO Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 8. ​ANDANÇAS PELOS “CAMINHOS DA NOITE”: EXPLORANDO ARQUIVOS PESSOAIS DE MULHERES EM INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA EM SANTA CATARINA ........................ 165 Karla Simone Willemann Schütz Princípios 9. OS IDEAIS NORTE-AMERICANOS E O PERIGO VERMELHO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO HOMEM DE FERRO (MARVEL) E DO LANTERNA VERDE (DC COMICS) ........................ 184 Luís Eduardo dos Santos, Leonardo Brandão Caderno Especial 10. EUCLIDES DA CUNHA - UMA VIDA NAS “JANELAS” DA REPÚBLICA .................... 205 Anna Paula Teixeira Daher 11. O PROTAGONISMO DE RITA LEE NA SUBVERSÃO DO AMOR ROMÂNTICO ............... 217 Silvio Antonio Luiz Anaz Resenha 12. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE & AMOR: QUESTÕES DE LUTO E GÊNERO EM “AS INSEPARÁVEIS” DE SIMONE DE BEAUVOIR .................................................................. 225 Jessica Ferreira Alves, Róbson Pereira da Silva 13. GOIÂNIA, 90 ANO ................................................................................................. 235 Rafael Alves Pinto Junior PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO .............................................................................. 241
EXPEDIENTE 4 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 EXPEDIENTE vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 Editores-Chefes Aguinaldo Rodrigues Gomes, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Aquidauana, Brasil Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Aquidauana, Brasil Editores de Seção Robson Pereira da Silva, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil Antonio Ricardo Calori de Lion, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis), Brasil Revisão de Língua Inglesa Maíra Dutra de Oliveira, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Coordenador do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Aquidauana, Brasil Conselho Consultivo Alexandre Busko Valim - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil Alexandre de Sá Avelar - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil Ana Paula Squinelo - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Camila Soares López - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil Durval Muniz de Albuquerque Junior - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil Eduardo José Reinato – Pontifícia Universidade de Goiás (PUC Goiás), Brasil Edvaldo Correa Sotana - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil Fábio Henrique Lopes - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Brasil
EXPEDIENTE 5 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Flávio Vilas Boas Trovão - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil Helen Paola Vieira Bueno - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Iara Quelho de Castro - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Jiani Fernando Langaro - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil João José Caluzi - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil João Pedro Rosa Ferreira - Universidade Nova de Lisboa (NOVA), Portugal José Marin - Université de Genève, Suíça Leonardo Lemos de Souza – Universidade Esta- dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil Lúcia Helena Oliveira Silva- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil Lúcia Regina Vieira Romano - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil Luisa Consuelo Soler Lizarazo – Universidad Autónoma de Chile (UA), Chile Márcio Pizarro Noronha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil Maria Betanha Cardoso Barbosa - Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Brasil Marcos Antonio de Menezes – Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil Murilo Borges Silva - Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil Nadia Molek - Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina Patrícia Zaczuk Bassinello - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Raquel Gonçalves Salgado - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil Regiane Corrêa de Oliveira Ramos – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Brasil Renan Honório Quinalha - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil Robson Corrêa de Camargo - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Rosangela Patriota Ramos - Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil Sebastián Valverde – Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina Tadeu Pereira dos Santos - Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Brasil
EXPEDIENTE 6 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Tanya Saunders - University of Florida (UF), Estados Unidos da América Thaís Leão Vieira – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil Tiago Duque - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Zélia Lopes da Silva - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil Capa Imagem: Emerson Rocha (@de.saturno) – o azul onde reina Yemanjá – 2024 - acrílica, nanquim, lápis de cor, marcador, waji e pigmento ouro sobre papel kraft 55x55cm Capa: Roger Luiz Pereira da Silva e Róbson Pereira da Silva Projeto Gráfico e Diagramação Roger Luiz Pereira da Silva Contato albuquerque: revista de história Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Aquidauana Unidade I Praça Nossa Senhora Imaculada Conceição, 163 - Centro, Aquidauana/Mato Grosso do Sul, Brasil. CEP 79200-000. Aquidauana - MS, Brasil Telefone +55 67 3241-0309. E-mail: revista.albuquerque@ufms.br
EDITORIAL 7 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 REPARAÇÕES NECESSÁRIAS, ATUAÇÃO DO ESTADO E PROTAGONISMOS OUTROS – EDITORIAL NECESSARY REPAIRS, STATE ACTION AND OTHER PROTAGONISMS – EDITORIAL ​https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21692 O trigésimo primeiro número de Albuquerque: revista de história é publi- cado em meio à escalada da violência em âmbito internacional, com o avanço dos confrontos relativos à invasão da Ucrânia pela Rússia a partir de fevereiro de 2022, e a violentíssima ofensiva militar de Israel contra a Palestina na faixa de Gaza, a partir de outubro de 2023. Israel tem sido acusado de limpeza étnica e de ações genocidas diuturnamente, mas o efeito prático das acusações parece longe de ocorrer, seja com o fim dos ataques, seja com a culpabilização em razão das ações. Os grupos/sujeitos/estados hegemônicos neste tabuleiro geopolítico rara- mente sofrem sanções efetivas, ou têm prejuízos significativos decorrentes de suas ações violentas. Apesar disso, é preciso que sejam denunciados, que as pessoas, instituições e movimentos sociais se coloquem contrariamente à ne- cropolítica transnacional que observamos neste momento. No Brasil, os dados sobre a violência contra a população negra, contra as mulheres, contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexos, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de orien- tação sexual (lgbti+), contra os povos indígenas permanecem demonstrando o quanto os setores hegemônicos de nossa sociedade são violentos e o quanto Es- tado é lento e/ou pouco se mobiliza no enfrentamento da situação. Em 7 de agosto de 2024 o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Ro- berto Barroso, pediu desculpas, em nome do Poder Judiciário, a Maria da Penha, em razão da demora nos trâmites de seu caso de violência doméstica, tão em- blemático que ela empresta seu nome à lei nº 11. 340, de 7 de agosto de 2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar e que completou dezoito anos. O Monitor de Feminicídios no Brasil, iniciativa do Laboratório de Es-
EDITORIAL 8 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 tudos de Feminicídios da Universidade Estadual de Londrina, aponta para cres- cimento de números estaduais que chegam a cerca de 170% de 2023 para 2024. A Lei Maria da Penha permanece, portanto, tão relevante quanto o era quando de sua publicação. Aos 64 anos, Maria Luiza Silva, aposentada compulsoriamente vinte e dois anos atrás pela Aeronáutica ao se declarar uma mulher trans, recebeu sentença final do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu que ela foi vítima de discriminação e que deveria ser reparada por isso. As garantias de dignidade e de não discriminação às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexos, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de orientação sexual (lgbti+) permanecem inexistentes, demoradas, inviáveis... Parte significativa desta população ainda carece de acesso efetivo aos benefícios do Estado e a uma existência plena. Em Douradina, Mato Grosso do Sul, os indígenas da Terra Indígena Panambi- Lagora Rica estão sofrendo ataques dos produtores rurais, conclamados por meio de fake news a agirem violentamente contra os indígenas. Mesmo com a força nacional presente na região, produtores e seus capangas não têm sido intimidados e a violência permanece: são mais de cinco séculos de genocídio dos povos indígenas, seja pelas pestes, pela bala, pelo epistemicídio realizado pelos missionários desde que os primeiros europeus puseram seus pés nestas plagas. A população negra continua sendo a que mais sofre com o racismo, seja por ataques à sua coletividade ou individualmente, injúrias, mortes violentas, inclusive aquelas causadas pelas polícias, o racismo religioso – inclusive aquele praticado por órgãos do Estado brasileiro, como a recente destruição de um terreiro de jarê no Parque Nacional da Chapada Diamantina por agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade em 21 de julho deste ano. E, em meio a essas cenas de violência contra a população negra e contra as mulheres, são as mulheres negras as grandes protagonistas da participação brasileira nos Jogos Olímpicos Paris 2024: Beatriz Souza e Rebeca Andrade foram medalhistas de ouro em suas modalidades (judô e ginástica artística/solo feminino, respectivamente). Duas mulheres negras, empenhadas profissionalmente em suas atividades esportivas, conquistaram o lugar mais alto do pódio. Rebeca Andrade, conquistando outras medalhas ainda, tornou-se a maior medalhista brasileira da História das Olimpíadas. E outras mulheres e outros homens também
EDITORIAL 9 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 conquistaram medalhas de prata e bronze, demonstrando a importância de uma educação que contemple o esporte para o desenvolvimento do país. Há que se ressaltar que, onde antes prevaleceu a presença de pessoas brancas e de origem abastada, o protagonismo de mulheres negras, de origem empobrecida se fez. Que se faça! E que os artigos e resenhas publicados neste número de Albuquerque: revista de história, que trazem reflexões sobre quadrinhos da Marvel e da DC Comics, sobre raça, racismo e interseccionalidade, a democracia racial e a recepção de “Orfeu Negro”, o aquilombamento na cidade de São Paulo, sobre o ensino de gêneros multissemióticos, a Amazônia, a decolonialidade e suas tessituras pelos indígenas, os processos de subjetivação feminina e os arquivos pessoais de mulheres. No Caderno Especial, reflexões sobre Euclides da Cunha e Rita Lee exploram a República e as subversões do amor. Jéssica Ferreira Alves, Robson Pereira da Silva e Rafael Alves Pinto Júnior encerram o número com duas resenhas. Agradecemos a todas as autoras e todos os autores por contribuírem com Albuquerque: revista de história nos enviando seus textos. E esperamos que as leitoras e os leitores apreciem o que têm em mãos. Aguinaldo Rodrigues Gomes Miguel Rodrigues de Sousa Neto Editores.
ARTIGOS LIVRES 10 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos RAÇA COMO TECNOLOGIA: APONTAMENTOS BÁSICOS SOBRE RAÇA, RACISMO ESTRUTURAL E INTERSECCIONALIDADE RACE AS TECHNOLOGY: BASIC NOTES ON RACE, STRUCTURAL RACISM, AND INTERSECTIONALITY https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21195 Roger Luiz Pereira da Silva Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) rogerluizsilva98@gmail.com https://orcid.org/0009-0007-6255-4163 Marinês Ribeiro dos Santos Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) https://orcid.org/0000-0002-9925-9949 ribeiro@utfpr.edu.br Recebido em 22 de abril 2024 Aprovado em 02 de junho de 2024 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo discorrer como o racismo está posto na sociedade brasileira, partindo da ideia de que raça é uma tecnologia, isto é, raça é uma mediação social que ordena e produz técnicas e sentidos práticos que estruturam uma cultura. Como procedimento metodológico, foi realizado uma revisão bibliográfica acerca das definições de raça, racismo estrutural e interseccionalidade alicerçados em dados históricos e dados estatísticos retirados de pesquisas realizadas durante a pandemia do covid-19 pelas revistas NEXO, Gênero Número e o Informativo de Desigualdade Racial publicado pelo núcleo de Pesquisa AFRO. A escolha por privilegiar as pautas interseccionais advindas das lutas do Movimento Negro Antirracista se dá na importância de entender como as estratégias de combate ao racismo estrutural estão sendo desenvolvida no campo das ciências, tecnologia e sociedade. Palabras Clave: Raça, racismo estrutural, interseccionalidade. ABSTRACT: This work aims to discuss how racism is present in Brazilian society, starting from the idea that race is a technology, meaning that race is a social mediation that orders and produces practical techniques and meanings that structure a culture. As a methodological procedure, a bibliographic review was carried out on the definitions of race, structural racism, and intersectionality based on historical data and statistical data taken from research conducted during the COVID-19 pandemic by the journals NEXO, Gênero Número, and the Racial Inequality Newsletter published by the AFRO Research Center. The choice to privilege intersectional agendas arising from the struggles of the Anti-Racist Black Movement is important in understanding how strategies to combat structural racism are being developed in the fields of science, technology, and society. Key words: Race, Racism, intersectional.
ARTIGOS LIVRES 11 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Tecnologia é quando você consegue sintetizar uma lógica para viver, para facilitar determinada coisa… Uma tecnologia de so- brevivência é quando você encontra formas e meios de se manter vivo em um lugar que pensa na sua morte o tempo todo. Quando eu falo sobre isso, eu tô determinando de onde eu venho, onde eu vivo e qual é minha realidade. Então por que eu preciso de uma tecnologia de sobrevivência? Por que eu vivo em um país que a cada 23 minutos mata um jovem negro. Eu preciso de uma tecno- logia de sobrevivência porque eu vivo em um país que mais mata a população LGBTQ no mundo… Bia Ferreira Introdução Em uma entrevista para o evento online brasileiro “O Futuro é Preto: Afrofuturismo” 1 , a artista e escritora afrofuturista estadunidense Ytasha Womack afirmou que “Race is a technology” (raça é uma tecnologia, em livre tradução), relatando como a branquitude se apropria de meios técnicos para a tentativa de consolidação das opressões de raça na cultura ocidental. No contexto brasileiro, pessoas negras são constituídas a partir dessa tecnologia que visa marcá-las e demarcá-las socialmente em posições de subalternidade. O Movimento Negro Antirracista, para Nilma Lino Gomes (2017, p. 23), é composto pelas “mais diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade”. O Movimento Negro Antirracista é um movimento social que ressignifica a ideia de raça, politizando- a e tornando-a afirmativa enquanto potência de emancipação, ao mesmo tempo que denúncia o caráter regulador e opressor em torno da mesma. No seu papel denunciativo e crítico, essa articulação emancipatória indaga a história do Brasil construindo narrativas e instrumentos teóricos, políticos e analíticos para explicar o racismo brasileiro e como ele opera na vida cotidiana das pessoas negras. Ativistas deste movimento trabalham para desvelar as construções de poder pautadas na raça, rompendo visões distorcidas e naturalizadas sobre o corpo negro, sobre a história e cultura da comunidade negra, retirando pessoas negras da suposta inferioridade racial (GOMES, 2017). 1 Evento que ocorreu na plataforma Youtube no dia 19 de Junho de 2020, em que profissionais ne - gros(as), debateram sobre as temáticas afrofuturistas em diversas áreas do conhecimento. Ver em < https://www.youtube.com/watch?v=b912jgriot8&t=10972s >. Acesso em 16 de mar. de 2022;
ARTIGOS LIVRES 12 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Existem várias formas de organização do Movimento Negro Antirracista, al- gumas delas são comunidades tradicionais (comunidades quilombolas), mobili- zação política (criação de políticas públicas), protestos antirracistas (passeatas em repúdio e denúncia as violências racistas cotidianas), produções artísticas (música, cinema, artes plásticas, artes digitais, dança, teatro poesia), literárias (romances afros, livros sobre raça e racismo), religiosas (terreiros), recreativas (como clubes e bailes de cultura negra), acadêmica (textos, seminários, coletivos que debatem sobre raça e racismo) e assistenciais (ONGS e organização de base para comunidades periféricas). Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre como o racismo opera na sociedade brasileira, partindo da ideia de que raça é uma tecnologia, isto é, raça é uma mediação social que ordena e produz técnicas e sentidos práticos que estruturam uma cultura. Para isso, recorre-se a Silvio Almeida, bell hooks e Frantz Fanon para entendermos teoricamente os conceitos de raça e racismo estrutural. Para entender o conceito de Interseccionalidade, trabalhos das autoras Joice Berth e Carla Akotirene são utilizados como aporte teórico. Para compreender como estes conceitos estão efetivados nas relações sociais e culturais foram analisadas pesquisas divulgadas pelas revistas NEXO, Gênero Número e o Informativo de Desigualdade Racial publicado pelo núcleo de Pesquisa AFRO. O racismo se estrutura por meio da tecnologia chamada raça O significado do termo raça está atrelado ao caráter classificatório entre seres vivos e em meados do século XVI passa a ser utilizado para a distinção de seres humanos (ALMEIDA, 2020). A ideia de raça se modifica de acordo com os contextos de uso, se tornando um termo não fixo, sofrendo alterações depen - dendo de seu recorte histórico. A partir do século XVIII, a noção de raça é tomada como verdade biológica no ocidente. Enquanto marcador classificatório de seres humanos, raça serve como métrica de diferenciação pautada em supostos atri- butos biológicos que se manifestariam em características físicas morfológicas e étnico-culturais. Esta distinção inscreve valores e julgamentos sociais que mar- cam grupos que possuem características em comum em comparação a outros. Deste modo, raça categoriza e dá nome a corpos que formam o que entendemos no contexto brasileiro enquanto negros, brancos, indígenas, amarelos (GOMES, 2005), tornando-se um registro social da diferença.
ARTIGOS LIVRES 13 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Além de registro social da diferença, raça serve como categoria de hierarqui- zação de corpos racializados. Corpos brancos são definidos enquanto superiori - dade e padrão cultural, em relação aos corpos não brancos. É por esse proces- so de hierarquização que se constitui a branquitude. Entende-se a branquitude como uma estrutura de poder pautada na ideia da superioridade da identidade racial branca e que opera no sentido de conferir vantagens para este grupo social nas esferas culturais, políticas e econômicas (GOMES, 2017). A branquitude é uma construção discursiva de uma superioridade racial que produz efeitos concretos nas relações sociais (VAINER, 2022). Na branquitude, a ideia de raça está atrelada ao pensamento de que características morfológicas estão naturalmente relacio- nadas com hierarquias acerca de atributos de ordem moral, intelectual e estéti- ca. Tais hierarquias sustentam, por exemplo, a crença de que homens brancos são propícios a serem líderes e racionais (VAINER, 2022; ALMEIDA; 2020). Isto é, pela predefinição que os consideram brancos, esses corpos já carregam valores tomados como positivos socialmente. A branquitude visa conferir privilégios aos corpos brancos, tomando estes como padrões exemplares, ao mesmo tempo que, no contexto brasileiro, povos indígenas e negros são estigmatizados e tidos como antagônicos aos seus valo- res. A dominação branca se constitui mediante a atribuição de vantagens e privi- légios políticos, econômicos, culturais e afetivos. Deste modo, a branquitude se torna mecanismo hegemônico, ou seja, um modo de dominação que é exercido não apenas pelo poder bruto, mas também por mediações e consensos ideológi- cos (ALMEIDA, 2020). Quando Ytasha Womack afirmou que “Race is a technology” (raça é uma tecnologia, em livre tradução), relatando como a branquitude se apropria de meios técnicos para a tentativa de consolidação das opressões de raça na cultura ocidental, ela associa esta percepção com a ideia de que a tecnologia é entendida como uma mediação social (CHUN, 2009). Enquanto mediação, a tecnologia não produz neutralidade (FEENBERG, 1991), uma vez que quem possui seu domínio, tem como finalidade utilizá-la visando resultados específicos e muitas vezes em vantagem própria. Quando um grupo detém majoritariamente a produção de tecnologias como estratégia de efetivar a sua centralidade e seu controle sobre corpos e culturas, se criam opressões e desigualdades. Sobre isso, Feenberg (1991, p. 106) elucida que: “A tecnologia é uma das principais fontes de poder público nas sociedades modernas. Em relação às decisões que afetam
ARTIGOS LIVRES 14 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos nosso dia-a-dia, a democracia política é inteiramente obscurecida pelo enorme poder exercido pelos senhores dos sistemas técnicos” 2. Para Winner (1986), tecnologias são processos sociais contínuos, em que são entrelaçados padrões de poderes econômicos e políticos e percebidos como estruturantes do cotidiano social, criando assim uma ordem que influencia e es - tabelece parâmetros que perduram a longo prazo. A ideia de raça foi concebida para estabelecer uma ordem social imposta pela branquitude. Para Wendy Hui Kyong Chun (2009), focar a raça como tecnologia, como mediação, nos permite ver a continuidade da função da raça que nunca foi simplesmente biológica ou cultural, mas sim um meio pelo qual ambos são estabelecidos e negociados. Na história do Brasil, os meios técnicos e os meios de produção foram construídos a partir das mescla de tecnologias realocadas do continente europeu com as tecnologias trazidas pelos africanos escravizados (CUNHA JUNIOR, 2010). Muito se fala da contribuição do trabalho dito braçal feito pelos negros escravizados no Brasil Colônia e Brasil Império, como forma de efetivação da suposta predisposição de tais corpos para essa finalidade de trabalho, porém é pouco explicitado como o conhecimento técnico e científico (a força pensante) dessas pessoas foram importantes para a sociedade brasileira (CUNHA JUNIOR, 2010). Por meio de diversos aprimoramentos advindos a mais de 4000 anos antes da era cristã, das civilizações da antiguidade da região do vale do Rio Nilo, na região do vale do Rio Níger (onde localiza-se Gana, Mali e Songai) os meios técnicos do Brasil foram influenciados diretamente por essas heterogêneas culturas (CUNHA JUNIOR, 2010). Existiram a contribuição dos saberes farmacológicos advindos dos africa- nos escravizados, tais como utilização da arruda para tratamento de infecções transmitidas pelos insetos, o café ser uma planta advinda da Etiópia, são exem- plos de técnicas africanas ainda presentes no cotidiano brasileiro. Isso faz en- tender que “a mão de obra africana o Brasil foi em parte um conjunto de trabalha- dores com formação profissional esmerada e com especializações importantes para a economia da época em diversas áreas de ofícios” (CUNHA JUNIOR, 2010, p. 20). Esses procedimentos técnicos são invisibilizados até na contemporanei- 2 Tradução livre do texto: “Technology is one of the major sources of public power in modern so- cieties. So far as decisions affecting our daily lives are concerned, political democracy is largely overshadowed by the enormous power wielded by the masters of technical systems” (FEENBERG, 1991, p. 301).
ARTIGOS LIVRES 15 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos dade, pela ideia racista que não identifica o continente africano anterior a sua exploração. Mas, a partir da apropriação das técnicas africanas, a branquitude produziu e produz a raça afim de efetivar e justificar as tomadas dessas técnicas em prol do benefício próprio, podendo se favorecer em vários âmbitos sociais, como por exemplo a economia fomentada pela produção do café. E por meio dos valores e parâmetros criados pela branquitude, esta se apoderou das técnicas africanas pelo discurso de civilizar e melhorar tais métodos advindos das sociedades su- postamente inferiores, demarcando assim quem detém o controle de todos os processos tecnológicos. A raça enquanto tecnologia medeia sistemas de opressão, que entendemos por racismo estrutural. Este sistema articula preconceitos, discriminações e vio- lências que sustentam uma estrutura de poder pautada na raça como elemento constitutivo dos sujeitos. Isto é, a marcação racial, ou racialização, produz cor- pos carregados de valores, funções e posições sociais pré-definidas. Sendo as - sim, é preciso entender o racismo não como atos individuais, mas sim como uma complexa estrutura social que organiza o exercício do poder, criando vantagens sociais para certos grupos em detrimento de outros (ALMEIDA, 2020). Os grupos subalternizados ficam sujeitos a processos de vulnerabilidade que os colocam em múltiplas situações de desvantagem, uma vez que a estrutura do racismo está construída na articulação entre três relações: · as econômicas; · as políticas/institucionais; · e as ideológicas. Racismo econômico Por economia é entendido como a sociedade se organiza para produzir as condições materiais necessárias para a sua continuidade (ALMEIDA, 2020). Enquanto constructo do racismo, a economia se dá pela desigualdade. A desigualdade é um fenômeno social que é mensurado de forma relacional, ela se dá a partir de uma relação entre pessoas ou conjunto de pessoas na qual a interação gera mais vantagens para um dos lados (LIMA, MILANEZI, et. al., 2020). Pessoas negras são economicamente mais desfavorecidas que pessoas brancas, isso torna sua mobilidade social mais precária. Uma das explicações
ARTIGOS LIVRES 16 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos acerca de como a desigualdade econômica está associada ao racismo, parte das heranças escravocratas nas estruturas sociais contemporâneas (ALMEIDA, 2020). Por mais que tenha ocorrido o fim oficial dos regimes escravistas, ainda há resquícios dos padrões mentais e institucionais que permearam e permeiam as relações econômicas e sociais, uma vez que não existiram políticas públicas de distribuição de renda e direitos básicos para as pessoas negras e suas famílias ex-escravizadas no período posterior à abolição da escravatura. Mas é pertinente compreender que existe uma atualização dessas opressões de raça, para que não se possa idealizar o racismo enquanto problema do passado. Percebe-se que, na contemporaneidade, o racismo econômico faz com que os marcadores subalternizados de raça, gênero e classe sejam vistos como fatores não desvinculados, como podemos ver nos seguintes dados da desigualdade. Pesquisas apresentam as informações de como a pandemia de Covid-19 teve impacto direto na desigualdade racial econômica no Brasil. Desde o primeiro caso da doença causada pelo coronavírus no país, oficialmente divulgado em fevereiro de 2020, iniciou-se uma crise sanitária, social e política (LIMA, et. al., 2020). Em uma pesquisa sobre A desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho no Brasil 3 realizada no segundo trimestre de 2020 pela plataforma acadêmico-jornalística NEXO políticas públicas , foi diagnosticado que no Brasil, homens brancos possuíam os maiores salários, seguido por mulheres brancas, enquanto mulheres negras têm os mais baixos índices de rendimento salarial no país. Na questão sobre desemprego, a pesquisa mostra que mulheres negras são as mais afetadas, possuindo uma taxa de 18,2%, sendo que a média geral é de 13,3%. Homens negros possuem 14% e mulheres brancas e homens brancos são os menos afetados pelo desemprego segundo a pesquisa. Veja os gráficos 1 e 2: 3 Ver em https://pp.nexojornal.com.br/Dados/2021/02/11/A-desigualdade-racial-e-de-g%C3%AA- nero-no-mercado-de-trabalho-no-Brasil . Acesso em 06 de Jun. de 2022.
ARTIGOS LIVRES 17 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Gráfico 1 - Rendimento médio mensal considerando gênero e cor/raça no Brasil no primeiro trimestre de 2020 Fonte: NEXO Gráfico 2: Taxa de desocupação considerando gênero e cor/raça no Brasil no primeiro trimestre de 2020 Fonte: Nexo Após reivindicações de organizações do Movimento Negro Antirracista brasileiro, o Ministério da Saúde começou a colocar os marcadores de raça enquanto elementos de base de dados sobre a pandemia do Covid-19. Antes disso
ARTIGOS LIVRES 18 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos essas informações não eram levantadas (LIMA, et. al, 2020; BERTOLDO, 2020). Nas pesquisas realizadas em abril de 2020 foi levantado que a doença é mais letal para pessoas negras, que representam 1 em cada 4 brasileiros internados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,9%), chegam a 1 em cada 3 entre os mortos (34,3%) e são o único grupo racial que tem a taxa de mortalidade (34,3%) maior do que internação (23,9%) (BERTOLDO, XAVIER, 2020). Como consequência do racismo de classe ou racismo econômico, o acesso à saúde é um problema que pessoas negras enfrentam no contexto brasileiro. Se- gundo o informativo publicado em outubro de 2020 pelo Afro Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, pessoas negras são o grupo que mais sofre de doenças associadas a diabetes, tuberculose, hipertensão e doen- ças renais crônicas no país, doenças essas consideradas agravantes da Covid-19 (LIMA, MILANEZI, et. al., 2020). A população negra é o grupo que vive em locais com pior acesso aos serviços públicos, sofre com a precariedades de mobilidade urbana, acesso a hospitais e postos de saúde (LIMA, et. al., 2020). Assim, a pan- demia não se restringe apenas à esfera da saúde, ela perpassa pelos problemas de território, trabalho, renda e educação, sendo uma ferramenta de produção e reprodução de desigualdade racial. Em questão de mortalidade foram os corpos negros que foram mais atingidos pela covid-19 (BERTOLDO, XAVIER, 2020). Racismo Político/Institucional No aspecto político/institucional do racismo, entende-se que o Estado é uma forma política que alimenta e reproduz a divisão de grupos e pessoas por meio das estruturas estatais. O Estado é a relação material da força (ALMEIDA, 2020) isto é, ele é construído pela institucionalização e a centralização do poder de uma sociedade. O Estado é um elemento fundamental para reproduzir comportamentos sociais racistas, pois ele institucionaliza todos os parâmetros da vida social, inclusive o racismo. As instituições são formadas para orientar, rotinizar e coordenar comportamentos sociais que estabilizam as sociedades, ou seja, estabelecem normas e padrões que orientam os indivíduos. O grupo social que domina as instituições é um exemplo prático dos efeitos do racismo institucional brasileiro. Homens brancos possuem o domínio sobre as instituições públicas, tais como
ARTIGOS LIVRES 19 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos cargos de poder nos legislativos, nos judiciários, nos ministérios públicos e nas reitorias de universidades (ALMEIDA, 2020). Esse cenário mostra quais corpos são ou não aceitos nas instituições e para quem elas são formadas. Vejamos como exemplo as instituições educacionais. Estudos mostram como a educação tem um papel crucial na mobilidade social. Porém, enquanto ferramenta estrutural do racismo, a educação se torna produtora de desigualdades (VENTURINI, et. al, 2020). Assim, racismo econômico e racismo político/institucional se interrelacionam. No caso da presença de pessoas negras enquanto estudantes nas instituições educacionais do ensino superior, tais como universidades públicas, historicamente esses corpos eram excluídos, uma vez que, as vagas dos cursos mais disputados eram preenchidas majoritariamente por estudantes brancos oriundos de escolas de ensino fundamental e médio da rede privada (VENTURINI, et. al, 2020). Após a implantação de ações afirmativas, como as cotas raciais para adesão de estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades públicas brasileiras, houve um aumento significativo de pessoas negras nas universidades. No entanto, esse aumento se deu de forma desigual, havendo uma maior participação desse grupo em áreas como Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas em comparação as outras áreas, como Ciências Exatas e Ciências da Natureza (VENTURINI, et. al, 2020). A política de cotas para ingresso de estudantes oriundos de escola pública, inicialmente foi instaurada em 2002 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021). Desde então, organizações ligadas ao Movimento Negro Antirracista brasileiro fomentaram a discussão sobre a implantação desta política a partir do recorte racial, uma vez que, pessoas pretas, pardas e indígenas são as que menos ingressam nas universidades públicas do país. Dez anos depois, em 2012 no governo de Dilma Rousseff, foram colocadas como lei federal as políticas de cotas raciais e cotas para estudantes de escola públicas do ensino médio (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021). Alguns resultados dessa ação afirmativa reverberam positivamente, uma vez que, segundo os dados da Associação de Reitores de Instituições Federais (Andife), o acesso de negros e pardos ao ensino superior público passou de 34,4% em 2003, 47,6% em 2014 e em 2018 foi para 50,3% (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021). Deste modo, entende-se que as políticas de cotas raciais são uma estratégia de combate ao racismo político/institucional que não têm a finalidade
ARTIGOS LIVRES 20 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos de demonstrar qual grupo racial possui uma suposta capacidade intelectual em adentrar em uma universidade. As cotas têm como objetivo reconhecer e combater as desigualdades construídas historicamente pelos marcadores de raça e classe que dificultam as oportunidades para corpos negros, pardos e indígenas ocuparem espaços que são de direitos básicos. Elas visam reparar a forma de como o Estado historicamente produziu racismo e exclusão nos processos de escolarização nas universidades públicas. Além de exclusões de pessoas negras no âmbito acadêmico, o racismo institucional utiliza o discurso academicista como produtor de poder da branquitude. A ciência, produto da academia, possibilita criar discursos de autoridade, que muitas vezes são incontestáveis. Pelo caráter restritivo de quem produz e consome, essa restrição acontece não por questões de capacidade, mas sim por questão de hegemonia (ALMEIDA, 2020). É formado uma ordem de validação do conhecimento que dita “a verdade” que é controlada por pessoas brancas para pessoas brancas, gerando assim a autopreservação do discurso feito pela branquitude acadêmica. Por meio da “verdade científica” a academia classificou, hierarquizou e no caso de conhecimentos advindos da cultura negra desvalidou práticas de saberes africanas e afro brasileiras. Assim, outras formas de conhecimento que não combinem com as diretrizes academicistas da branquitude não são reconhecidas enquanto constructo de saberes. Portanto, “a ciência não é, um simples estudo apolítico da verdade, mas a reprodução de relações raciais de poder que ditam o que deve ser considerado verdadeiro” (KILOMBA, 2019, p.53). Com isso, entende- se a academia como um espaço de violência simbólica. Porém, a universidade pode ser um espaço de disputa de discursos, uma vez que, intelectuais ativistas do Movimento Negro Antirracista reivindicam o poder de fala sobre os discursos produzidos pela academia. Grada Kilomba (2019) salienta que o discurso da negritude acadêmica surge para transgredir a linguagem academicista clássica, como uma forma de produção emancipatória alternativa, que configura o conhecimento e transforma o poder em prol da abertura de novos espaços da teorização e da prática. Na pandemia de Covid-19, o racismo político/institucional se intensificou por meio das desigualdades presentes nas diferentes condições entres as escolas públicas e as escolas privadas do ensino básico, fundamental e superior; as expressivas desigualdades regionais no território nacional; assim como nas
ARTIGOS LIVRES 21 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos estruturas domiciliares e de acesso a equipamentos que viabilizem o ensino remoto (VENTURINI, et. al, 2020). Nas instituições básicas, negros e pardos são os grupos que mais compõe o corpo discente, e por conta das medidas repentinas causadas pela pandemia as escolas públicas em primeiro momento decidiram suspender as atividades e depois houve uma adaptação do ensino remoto, com enfrentamento de dificuldades de infraestrutura tanto dos professores quanto dos alunos (VENTURINI, et. al, 2020). Com o cenário das adaptações voltadas ao ensino remoto, recorreu-se à utilização de computadores, celulares, demandando acesso à internet e espaço domiciliar adequado para presenciar as aulas remotamente. Com isso, foi percebido que o acesso a esses recursos não é democraticamente obtido por todos os alunos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2019, 16% dos estudantes nos níveis de escolaridade da alfabetização e do ensino fundamental público não possuem acesso à internet e em ambos os níveis de escolaridade, a proporção de estudantes negros sem acesso à internet é maior do que a de brancos (VENTURINI, et. al, 2020). Nas regiões do Norte e Nordeste, onde existe a maior concentração de pessoas negras no país, a proporção de pessoas sem acesso à internet é três vezes maior do que as de pessoas da região do Sudeste, Sul e Centro-Oeste (VENTURINI, et. al, 2020). Esses dados mostram que a estrutura educacional do Brasil não contempla de maneira igualitária todos os alunos. Racismo ideológico, Estereótipos e Imagens Racistas Entender o racismo enquanto relação ideológica, é considerar a ideologia enquanto uma prática, um processo de constituição de subjetividades de indivíduos cujas consciências e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais (ALMEIDA, 2020). Uma pessoa não nasce negra ou branca, ela assim se torna a partir da situação em que seu corpo é ligado a uma rede de sentidos compartilhados coletivamente. O racismo, enquanto ideologia, só consegue perdurar porque produz um sistema de ideias que fornece uma explicação pseudo- racional para a desigualdade racial, que consiste em naturalizar papéis sociais subalternizados para pessoas negras. Neste processo constitui também, sujeitos que não se sentem abalados diante da discriminação e da violência racial que é
ARTIGOS LIVRES 22 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos classificada como normal e natural a partir da branquitude (ALMEIDA, 2020). Isto é, como ideologia, o racismo torna a violência contra pessoas negras a norma, ao mesmo tempo que opera na constituição de afetos e interpretações que não consideram tais agressões problemáticas, sejam elas simbólicas ou físicas. Para que essa naturalização ideológica se estabeleça como majoritária, tais valores precisam circular nas relações sociais. Logo, os meios de comunicação, as mídias e os sistemas educacionais constituem espaços privilegiados por meio dos quais o racismo opera na criação de um imaginário social que naturaliza estereótipos raciais. Entende-se os estereótipos como certo tipo de categorias simplificadoras ou atalhos cognitivos que podem participar dos exercícios de poder (BIROLI, 2011). São dispositivos cognitivos facilitadores de acesso a novas informações, pois permitem previsibilidade e equivalem a padrões que correspondem às expectativas normativas. Consistem, portanto, em categorias que estabelecem padrões de aproximação de valores e julgamentos, tendo caráter produtivo e de naturalização (BIROLI, 2011). Isto é, os estereótipos são criados como uma forma de reduzir, simplificar e naturalizar significados em uma cultura. As mídias e os meios de comunicação de massa são instituições que produzem estereótipos e os colocam em circulação. Segundo bell hooks (2018), é possível visualizar em revistas, programas de televisão, filmes e fotografias, imagens de pessoas negras que reforçam estereótipos que implicam opressões. Para a autora, as imagens podem desempenhar um papel importante no controle do poder político e social em relação a certos grupos. A relação entre indivíduos e o mundo é sempre mediada por variados fatores, entre eles estão as imagens produzidas pela TV, internet e páginas de revistas, entre outras mídias (BIROLI, 2011). Essas imagens recorrentemente cristalizam certas convenções de linguagem, ligadas aos regimes de representação historicamente constituídos, que foram consolidadas nas próprias práticas profissionais envolvidas em suas produções. No campo do design ou das artes gráficas existem rotinas que favorecem a naturalização de certas convenções visuais ligadas a estereótipo. Uma vez que nas instituições de formalização e capacitação de tais profissionais, existe uma certa recorrência a fórmulas e soluções já consagradas na busca por resultados entendidos como eficazes. Nas produções de design gráfico, pode-se identificar convenções visuais institucionalizadas nas bibliografias dos cursos de design, nos
ARTIGOS LIVRES 23 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos bancos de imagens utilizados para criação de projetos gráficos e em produções historicamente utilizadas como referencial de projeto gráfico. Nas práticas de criação de imagens, as naturalizações de estereótipos estão ligadas à ausência de reflexão crítica acerca das rotinas de previsibilidade. Quando não questionadas, tais rotinas tendem a ser incorporadas como um repertório compartilhado nas formações de profissionais (BIROLI, 2011) 4 . Por mais que a mídia e os meios de comunicação de massa sejam propagadores de estereótipos, produzindo e reproduzindo imaginários hegemônicos, existem alguns aspectos que complexificam as análises sobre a relação entre estereótipos e mídias (BIROLI, 2011). A complexidade da relação entre estereótipos e mídia decorre da grande variedade de narrativas veiculadas que não são homogêneas na mídia dominante. Além disso, existem também narrativas produzidas em sistemas alternativos de comunicação. Sendo assim, os estereótipos não são capazes de dar sentido à totalidade das experiências dos grupos sociais, pois existe um campo de disputas em que os discursos alternativos utilizam de fissuras e contradições dos discursos dominantes para produzirem novas formas de representação. Mas como ressalta Biroli (2011), deve-se levar em conta, nos sistemas de circulação, as assimetrias no alcance e nos pesos atribuídos às narrativas hegemônicas e às narrativas alternativas (contranarrativas). O acesso à ampla circulação e à legitimação das informações não são igualmente distribuídos, favorecendo certas vozes sociais em detrimento de outras. Isso contribui para a dinâmica que torna alguns grupos invisíveis e estereotipados, já que “a invisibilidade está relacionada ao fato de que suas perspectivas sociais são silenciadas” (BIROLI, 2011, p.79). No campo de disputas por representação, quem detém os meios dominantes, tem o poder de divulgar ampla e positivamente seus valores, enquanto marca negativamente outros grupos sociais. Os grupos socialmente estigmatizados pelas imagens criadas pela cultura 4 A autora enfoca os estereótipos nas produções jornalísticas. Aqui ampliamos a discussão para as produções de Design Gráfico, que são utilizadas na criação de imagens que circulam nos meios de comunicação. Tal aproximação é possível, uma vez que, assim como o jornalismo, o Design Gráfico é uma ferramenta de comunicação. Segundo Rudinei Kopp (2009), a primeira vez que o termo design gráfico foi utilizado por William Addison Dwiggins em 1922, foi para definir sua atuação enquanto um trabalho de ordem visual para as formas de comunicação. Deste modo, entende-se o Design Grá- ficoenquanto prática comunicativa, assim como o jornalismo.
ARTIGOS LIVRES 24 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos dominante, que carregam estereótipos de opressão, reivindicam e tornam a imagem uma ferramenta de luta cultural (HALL, 2003). Desta luta cria-se um campo de disputa que ocorre na complexidade entre resistir, recusar e denunciar estereótipos que produzem violência contra estes corpos, que identificam que a construção negativa da imagem tem uma motivação sociopolítica (BERTH, 2019). Pessoas negras denunciam como alguns estereótipos são prejudiciais para as culturas negras, quando carregados de valores e julgamentos de subalternização de raça, gênero, sexualidade e classe. Frantz Fanon (2020) ressalta como historicamente as imagens dos corpos e das culturas negras foram estigmatizadas pelo olhar da branquitude. O autor observa que : Na Europa, o negro representa, seja concreta ou simbolicamente, o lado mau da per- sonalidade. Enquanto não tivermos compreendido essa proposição, estaremos con- denados a falar em vão sobre o “problema negro”. O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, denegrir a reputação de alguém; e, do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca. Uma magnífica criança loira, quanta paz nessa expressão, quan - ta alegria e, acima de tudo, quanta esperança! Nada comparável com uma magnífica criança negra: literalmente, é algo insólito. Apesar de tudo, não haverei de revistar as histórias dos anjos negros. Na Europa, ou seja, em todos os países civilizados e civili- zadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo negro. (FANON, 2020, p. 200) Neste trecho, Fanon ressalta como, no ocidente, a branquitude utilizou da dualidade entre branco/preto e bem/mal para construir marcadores racistas em que o imaginário negativo se impregna no corpo negro. A dualidade construída pela branquitude coloca valores socialmente positivados nas representações das culturas eurocêntricas enquanto sinônimos de bom, bem, agradável, bonito, maior e melhor, já as referências às culturas africanas são entendidas enquanto mal, ruim, desagradável, feio, menor e pior, causando efeitos de inferiorização, homogeneização, invisibilização, objetificação, demonização e fatalização das experiências negras. Deste modo, são naturalizados imaginários racistas que não questionam estes valores (FANON, 2020). Os veículos de comunicação de massa tendem a reproduzir esses imaginários mediante o trabalho imagético de reiteração da inferioridade negra em favor da hipervalorização branca, enquanto sinônimo de perfeição (BERTH, 2019). Enquanto prática do racismo ideológico, as imagens presentes nos meios
ARTIGOS LIVRES 25 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos de comunicação dominados pela branquitude possuem um papel de controle so- cial. Isto é, desde a escravização em diante, a branquitude utiliza a imagem como uma das ferramentas centrais para a manutenção do racismo (HOOKS, 2018). Es- sas imagens sustentam as noções de superioridade branca, mediante a subor- dinação de corpos não branco (HOOKS, 2018). Imagens racistas são veiculadas de forma massiva e constante pela mídia dominante, contribuindo para ocultar a responsabilidade da branquitude em responder pelas violências contínuas liga- das às múltiplas formas de explorações vivenciadas pelos povos negros (BUENO, 2019). Deste modo, os meios de comunicação participam da criação de valores ra- cistas sobre os corpos negros, produzindo opressões de raça, gênero, sexualida- de e classe social. Tais corpos, aqui, se encontram enquanto carne carregada de estereótipos e dificuldades definidas pela branquitude. Quando circulam nos es - paços embranquecidos vivenciam negações, incertezas e opressões corporais pois “é em sua corporeidade que o negro é atingido” (FANON, 2020, p. 177). Assim, coexistindo com as imagens racistas, pessoas negras podem internalizar valores deturpados sobre si mesmas, como sugere Silvio Almeida (2020, p. 65): Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações. As imagens presentes na história da televisão e das telenovelas brasileiras majoritariamente propagam estereótipos de opressão contra as pessoas negras. Segundo uma pesquisa realizada para o documentário A Negação do Brasil (2000) de Joel Zito Araújo, em 75% dos papéis interpretados por atores negros, seus personagens estavam atrelados a narrativas de submissão (FERREIRA, 2017). O diretor do filme, ao ser entrevistado por Bruce Douglas (2015) para o jornal The Guardian, afirmou que as imagens de pessoas negras presentes nas telenovelas brasileiras estão ligadas, em sua maioria, a representações de moradores de fa- velas, servos domésticos e criminosos. Segundo Araújo (2008), na década de 1960, atrizes negras interpretaram regularmente apenas escravizadas e empregadas domésticas, sendo uma reedição dos estereótipos comuns presentes no cinema e na televisão estadunidense. Um dos exemplos de sucesso comercial de personagens negras
ARTIGOS LIVRES 26 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos como domésticas foi a de Maria Clara, na novela Antônio Maria (1968), interpretada pela atriz Jacyra Silva. O autor da novela, Geraldo Vietri, em entrevista para a revista Melhores Momentos (1980), relatou que a trama da personagem “mudou quase completamente a mentalidade de patrões em relação a empregados. Recebi cartas de domésticas que transformaram Maria Clara em um ídolo”. Subentende- se na fala do autor que é um homem branco, uma suposta harmonia entre patrões brancos e empregadas negras. Isso esconde a relação de inferiorização social dos negros causada pelo racismo econômico, maquiada pelas telenovelas que representavam uma certa amistosidade e convivência pacífica entre as raças. As representações convencionais da branquitude acerca das mulheres negras que trabalham como empregadas domésticas geralmente tendem a criar a presunção de um possível afeto entre as famílias brancas e suas empregadas, criando assim um marcador normativo quanto ao comportamento profissional das mulheres negras. Tal marcador opera sob um mito no qual as empregadas se dedicam a cuidar e amar as famílias brancas (BUENO, 2017). Essas imagens, que associam majoritariamente mulheres negras com representações de trabalhadoras domésticas, constituem um imaginário que naturaliza a percepção destes corpos como supostamente destinados para estas únicas funções de serviçais. Logo, operam como uma atualização das premissas racistas advindas do período escravocrata, que entendiam as mulheres negras enquanto exemplo de mão de obra doméstica a serviço da família branca. Na década de 1970, houve uma pequena mudança nas atribuições profissionais ligadas a personagens negros. Araújo (2008), cita como exemplos o psiquiatra, Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves em Pecado capital (1975) e Dona Elisa, interpretada por Ruth de Souza, que era uma professora e dona de escola na novela Duas Vidas (1976). As duas novelas foram escritas por Janete Clair. Porém, esses personagens não faziam parte do enredo principal das histórias, sendo colocados como secundários. Foi apenas em 1996 que, pela primeira vez na história da teledramaturgia brasileira, uma mulher negra ocupou o lugar de protagonista. A personagem Xica da Silva foi interpretada por Taís Araújo na novela de nome homônimo. Entretanto, Xica da Silva foi construída a partir dos estereótipos de gênero, raça e sexualidade que constituíram as imagens das mulatas sedutoras e destruidoras de lares (ARAÚJO, 2008). Na trama, Xica da Silva é uma mulher ex-escravizada que consegue sua alforria ao se relacionar afetivamente com o explorador de diamantes João Fernandes de
ARTIGOS LIVRES 27 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Oliveira durante o período colonial. Com teor erótico, a novela foi transmitida pela emissora Rede Manchete, que caracterizava a personagem como “uma mulher lasciva e dominadora, uma mulher insaciável e capaz de dominar qualquer homem com o poder de seu corpo” (NUNES, 2019). No caso da Rede Globo, pessoas negras foram, e ainda são, minoria nas narrativas presentes nas novelas produzidas pela emissora. Segundo a pesquisa feita por Joel Zito Araújo (2008), em um terço das telenovelas produzidas pela Rede Globo, até o final da década de 1990, não havia nenhum personagem negro. Em outro terço, o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar levemente a marca de 10% do total do elenco. Esses números contrastam com o percentual de pessoas que se identificam como negros no país, que segundo o IBGE é de 54% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2016). Isso mostra que as novelas da emissora não se preocupam em contemplar o perfil do povo brasileiro em suas narrativas. Além disso, um corpo negro interpretando uma protagonista em uma novela da emissora só pode ser visto em 2004, na novela Da Cor do Pecado de João Emanuel Carneiro. A personagem, Preta de Souza, também foi interpretada por Taís Araújo. Destaca-se aqui o título da novela, que associa o corpo e a cor negra com a ideia de pecado, caracterizando a beleza e a sexualidade negra como algo provocativo. Araújo (2008) ainda destaca outro aspecto comum nas narrativas das telenovelas brasileiras, que diz respeito a tratar o racismo como um problema individualizado, tal como um desvio de caráter dos personagens vilões nas tramas. Isso não contribui para um entendimento mais complexo da temática, que deveria ser tratada como algo sistemático e estrutural, como um traço recorrente e ainda presente na sociedade e na cultura brasileira (ARAÚJO, 2008). Interseccionalidade As opressões de raça não funcionam de modo isolado. Para que as desigualdades do racismo estrutural existam, é preciso ter uma articulação com outros marcadores das diferenças que fortaleçam o sistema da branquitude. É na análise dessas articulações que a perspectiva interseccional trabalha para identificar como ocorre essa dinâmica social que atinge os mais diversos corpos negros. O termo “interseccionalidade” foi cunhado em 1989 pela pesquisadora
ARTIGOS LIVRES 28 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos estadunidense Kimberlé Crenshaw no artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics . A partir disso, o termo foi apropriado por pesquisadoras e ativistas do Feminismo Negro enquanto abordagem e intervenção política nas práticas de resistência e experiência de mulheres negras (AKOTIRENE, 2020). Nesta perspectiva destaca-se a importância de não desvincular as opressões que atravessam as vivências de mulheres negras, cujas trajetórias articulam múltiplos marcadores sociais de diferença. Sendo assim, esta perspectiva funciona enquanto ferramenta analítica para entender os contextos múltiplos das desigualdades que emergem da intersecção entre raça, gênero, sexualidade e classe social, entre outros marcadores possíveis. Além de denunciar as opressões estruturais da sociedade, a discussão teórica pautada na interseccionalidade foi construída a partir da consciência da invisibilidade das experiências de mulheres negras nas agendas do Movimento Negro Antirracista e do Feminismo Branco. Este último tende a universalizar o “ser mulher”, a partir das experiências e vivências apenas de mulheres brancas (AKOTIRENE, 2020). Quanto ao Movimento Negro Antirracista, Grada Kilomba (2019) ressalta que a literatura antirracista na primeira metade do século XX falhou em abordar as posições específicas de mulheres negras e as formas pelas quais gênero e sexualidade se relacionam com as reflexões de raça. A ausência da perspectiva interseccional nas pautas do Movimento Negro Antirracista pode produzir problemas de invisibilidade sobre as experiências de mulheres negras, como também nas de pessoas LGBTQIAP+ negrxs . Deste modo, a interseccionalidade tira das pautas dos movimentos sociais o essencialismo sobre gênero e raça, demonstrando que nem toda mulher é branca e nem todo negro é homem (AKOTIRENE, 2020). Essa perspectiva estimula o pensamento complexo, a criatividade e evita que grupos subalternizados produzam novos essencialismos. De acordo com Carla Akotirene (2020), a perspectiva da interseccionalidade é uma sensibilidade analítica de entender as identidades subalternizadas e as opressões que tal subalternização estão relacionadas com o poder. É uma construção teórico-metodológica iniciada pelo feminismo negro para as mulheres negras, mas isso não significa que seja exclusiva a este grupo, pois mulheres não negras também devem refletir sobre o modo que suas vivências identitárias são articuladas. Essa abordagem possibilita, ainda, que LGBTQIAP+ sejam
ARTIGOS LIVRES 29 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos incorporados nas pautas da interseccionalidade. Deste modo, os marcadores basais da perspectiva da interseccionalidade são raça, gênero, sexualidade e classe social. Quando Carla Akotirene (2020) ressalta que gênero inscreve o corpo racializado, entende-se que estes corpos, produtos da subalternização, mesclam marcadores da diferença de gênero e de raça, como aponta Tanya Saunders (2020, p. 192) “As premissas de gênero e sexualidade entrelaçaram firmemente com um sistema de classificação racial, emergente, de tal forma que é impossível entender um eixo [...] sem entender como ele coexiste e é estruturado pelo outro”. Saunders (2020) evidencia que durante o século XIX, o racismo científico hegemônico juntamente com o marcador da sexualidade, sustentou o entendimento de que o corpo negro lésbico fosse classificado como o pervertido feminino “não humano”, provido de perversidade e o oposto da ordem social guiada pelo corpo, cisgênero 5 , masculino, heterossexual, burguês e cristão. Desta forma, compreendemos que mulheres negras, bem como corpos negros não cis e não heterossexuais, carregam em sua identidade cultural construções históricas pautadas pela noção de “outro”. Gênero, assim como raça, também foi entendido como uma categoria da diferença que a partir da ideia que o homem (branco) é universal, mulheres foram tidas como “o outro”. Anteriormente às teorias feministas, “gênero não pertencia ao homem, gênero era a marca da mulher, a marca de uma diferença que implica a condição de subordinação das mulheres à família e à sociedade” (LAURETIS, 2021, p.167). Enquanto conceito crítico, gênero foi introduzido e articulado por feministas em diversos campos disciplinares, como uma forma de denunciar e criticar as opressões vindas dos sistemas que produzem normativas androcêntricas (AKOTIRENE, 2019; LAURETIS, 2021). Segundo Teresa de Lauretis (1994), a categoria gênero opera como representação e autorrepresentação, produto de diferentes tecnologias sociais, de discursos, epistemologias e práticas institucionalizadas presentes na vida cotidiana. Para Lauretis (1994) gênero medeia as relações do sistema “sexo-gênero”, que são concepções culturais que marcam corpos masculinos e femininos como complementares e opostos ao mesmo tempo. Essas marcações 5 Identidade de gênero em que o indivíduo se reconhece com o gênero atribuído em seu nascimento (CAZEIRO; SOUZA; BEZERRA, 2019).
ARTIGOS LIVRES 30 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos formam sistemas de significação que produzem valores e hierarquias sociais, posicionando as masculinidades como superiores às feminilidades. Sobre os valores impostos pelo sistema sexo-gênero mulheres são supostamente frágeis, são designadas a cuidar do ambiente doméstico, e subordinadas aos homens, já os homens são fortes, não são formados para o trabalho doméstico e são superiores em relação as mulheres. Os sistemas sexo-gênero estão ligados a fatores políticos e econômicos, produzem assimetria de posições sociais, produzindo desigualdades pautadas no gênero. Assim como a pedagogia dos opostos binários medeia e sustenta o racismo, como destacado antes, nas questões de gênero isso também ocorre. Os sistemas de classificação se apropriam de valores e significações de bem/mau, forte/frágil, bom/ruim, racional/emotivo, para produzir hierarquias e opressões. Racismo estrutural e o sistema sexo-gênero são articulações sistêmicas que produzem e reproduzem preconceitos, discriminações e violências. Eles sustentam uma estrutura de poder pautada na raça, sexualidade e gênero como elemento constitutivo dos sujeitos em uma sociedade. Existem exemplos de estereótipos que mostram como a intersecção de gênero e raça produz esses binarismos e preconceitos, tais como, a ideia de que mulheres brancas são frágeis em comparação a homens brancos e negros, mulheres negras têm mais propensão ao trabalho doméstico pesado do que mulheres brancas, homens negros tem mais facilidade para atividades “braçais” do que homens brancos. A sexualidade está ligada ao termo sexo, que historicamente foi utilizado para definir as diferenças anatômicas entre corpo lidos como masculinos e femininos (LOURO, 2000). Com isso, as noções de gênero e sexualidade, muitas vezes são tratadas como equivalentes e entendidas, em alguns casos, como inerentes. A sexualidade, enquanto marcador da diferença, é ao mesmo tempo um fator que constrói a norma. A normativa, pautada na heterossexualidade como algo natural, tira o caráter político e social que esse marcador carrega. Tal qual o gênero e a raça, a sexualidade foi constituída historicamente a partir de discursos e práticas que regulam, normatizam e instauram saberes que produzem supostas “verdades” (LOURO, 2000). Antes do século XIX, a sexualidade no ocidente era uma preocupação da religião hegemônica cristã e da filosofia moral. A partir do século XIX, a sexualidade passa a ser considerada um fenômeno que deve ser estudado e entendido mediante a sua introdução nas áreas da psicologia, biologia e antropologia. A disciplina de sexologia, se especializa na elaboração de
ARTIGOS LIVRES 31 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos discursos científicos sobre os comportamentos sexuais e no século XX o tema foi pauta de discussões da sociologia e da história (LOURO, 2000). A heterossexualidade e a associação entre sexo e gênero marginalizava e de certo modo ainda marginaliza corpos cujos desejos não são entendidos enquanto heteronormativos, tais como aqueles identificados com a homossexualidade e a bissexualidade, colocando-os como desviantes. Historicamente, a homossexualidade foi tida como doença e desvio comportamental. A mesma coisa acontecia com a identidade de gênero de travestis e transexuais, que até a década de 2010 estava inscrita como patologia psicológica. A interseccionalidade de raça, gênero, classe e sexualidade, quando enfocadas por um olhar antirracista, trabalham para um futuro que se opõem às práticas da cultura dominante que tendem a violentar mulheres negras heterossexuais e corpos LGBTQIAP+ negrxs . Aqui a heteronormatividade é entendida como sistema racializado de poder. Assim, Tanya Saunders (2020) salienta a importância de corpos negros serem mais críticos ao abraçarem a heternormatividade, uma vez que esta se enquadra nas políticas racistas dominantes. Conclusão Este trabalho visou apresentar alguns conceitos básicos sobre as relações raciais no Brasil. Foram apresentados dados históricos e estatísticos que demonstram como o racismo estrutural é uma articulação complexa que juntamente com outros marcadores sociais, tais como de gênero, classe e sexualidade produzem um fenômeno que estigmatiza, violenta e subalterniza corpos que são inferiorizados pela branquitude. Tal branquitude criou raça como uma tecnologia que medeia e efetiva opressões no intuito de criar uma ordem hegemônica. Foi levado em conta como o racismo estrutural é sistemático e atinge várias instâncias sociais, na história e no cotidiano brasileiro. Foi explicitado que essa articulação produz desigualdades econômicas, institucionais e ideológicas, em que ambas se entrelaçam e se complementam para efetivação do sistema de hegemonia: a branquitude. Foi observado como a Branquitude, se beneficia socialmente na propagação da suposta superioridade que pessoas brancas têm em relação às outras raças.
ARTIGOS LIVRES 32 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos Neste contexto, a raça opera como uma tecnologia. Isto é, enquanto mediação social alicerçada por meios e artefatos tecnológicos, raça ajuda a construir uma ordem em que são produzidas técnicas de opressão e subalternização que qualificam a branquitude como detentora desses instrumentos normativos. Isso ajuda a entender, que a tecnologia não é neutra (FEENBERG, 1991) e é um processo social contínuo, em que são entrelaçados padrões de poderes econômicos e políticos no cotidiano social (WINNER, 1986). Entender raça enquanto tecnologia, elucida que não se trata simplesmente de um conceito biológico/científico e nem apenas de um conceito ideológico cultural, mas sim de um processo em que ambos são estabelecidos e negociados no sentido de sustentar um certo ordenamento social (CHUN, 2003). Recorreu-se à bell hooks (2018) para entender o porquê das imagens serem tão importantes para a comunidade negra. Neste momento, percebemos que as imagens funcionam como ferramentas de controle social que, uma vez portadoras de valores ligados à branquitude, operam como forma de efetivar estereótipos racistas que legitimam a pseudo superioridade branca. As imagens carregam significados e valores. Não somente nelas, mas principalmente nelas são produzidos os estereótipos. Como observado, estereótipos são dispositivos cognitivos facilitadores de acesso a novas informações que podem participar dos exercícios de poder quando carregam previsibilidades e equivalem a padrões que correspondem às expectativas normativas. O emprego destes dispositivos facilitadores faz parte das formações de profissionais que trabalham com criação de imagens, tal como os designer e artistas gráficos. As rotinas e convenções visuais institucionalizadas nas bibliografias dos cursos de design, nos bancos de imagens utilizados para criação de projetos gráficos e a falta de criticidade frente à presença ou a falta dos corpos negros são técnicas concretas do racismo que circulam por meio das visualidades. Mas o Movimento Negro Antirracista vê as imagens e os meios de comunicação como um campo de luta cultural, em que reivindicam a autorrepresentação e o dever crítico sobre as representações dos corpos e das culturas negras. Foi observado, a partir dos dados sobre a desigualdade no período da pandemia do Covid-19 no Brasil, que o grupo de maior vulnerabilidade social foi o de pessoas negras. Isso pode ser identificado nas métricas da economia produzida pelas oportunidades de mercado de trabalho, pelas condições básicas para o ensino a distância, pelos números de qual grupo racial teve mais mortos
ARTIGOS LIVRES 33 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos pela Covid-19. Dadas as circunstâncias, em primeiro momento, parece ser injusto demandar para que pessoas negras pensem no futuro próximo ou distante, uma vez que, com tais dados da desigualdade que assola a vivência dessas pessoas, elas estão preocupadas em produzir estratégias de sobrevivência para o presente de forma imediata. Referências AKOTIRENE, C. Interseccionalidade . Feminismos Plurais. São Paulo. Pólen, 2019. ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutura l. Feminismos Plurais. Pólen, São Paulo, 2019. ARAÚJO, J. Z.. O NEGRO NA DRAMATURGIA, UM CASO EXEMPLAR DA DECADÊNCIA DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA. 2008. Revista Estudos Feministas , 16(3), 979. https://doi. org/10.1590/S0104-026X2008000300016 BIROLI, Flávia. Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no dis - curso jornalístico. Revista Brasileira de Ciência Política , n. 6, Brasília, 2011, pp. 71-98. BERTH, Joice. Empoderamento . Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Pólen, 2019. BERTOLDO, Sanny, XAVIER, Lúcia. Entrevista: “O coronavírus não tem nada de democrático. Ele tem ‘preferências’, e os negros são um dos grupos preferidos dele”. Gênero Número , online, 2020. Disponivél em < https://www.generonumero.media/entrevista-o-coronavirus-nao-tem- -nada-de-democratico-ele-tem-preferencias-e-os-negros-sao-um-dos-grupos-preferidos- -dele/ >. Acesso em 07 de jun. de 2022. BUENO, Winnie de Campo. Processos de Resistência e Construção de Subjetividade no Pensamento Feminista Negro: uma possibilidade de leitura da obra Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and The Politics of Empowerment (2002) a partir do conceito de imagens de controle . Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2009. Disponível em < http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/8966/ Winnie%20de%20Campos%20Bueno_.pdf?sequence=1&isAllowed=y >. Acesso em 10 de jun. de 2022. CHUN, Wendy Hui Kyong. Introduction: race and/as technology; or, how to do things to race. Camera Obscura , vol. 24, n. 1, p. 7–35, May 2009. Disponível em: < https://read.dukeupress. edu/camera-obscura/article/24/1%20(70)/7/58411/Introduction-Race-and-as-Technology-or- -How-to-Do >. Acesso em 02 dez. 2021. CUNHA JUNIOR, Henrique. Tecnologia na formação brasileira . CEAP, Rio de Janeiro, 2010.
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ARTIGOS LIVRES 35 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos feminista negra no Brasil. História & outras eróticas . Curitiba: Appris, 2020. p.185 – p. 217. VAINER, Lia. Branquitude: como o racismo se reproduz. 2022. Disponível em https://www. youtube.com/watch?v=XfMIAk2qFW8&t=2264s . Acesso em 28 de jul. de 2022. VENTURINI, Anna Carolina; LIMA, Márcia et al. As desigualdades educacionais e a covid-19. Informativos Desigualdades Raciais e Covid-19 , AFRO-CEBRAP, n. 3, nov. 2020. Disponível em < https://cebrap.org.br/afro/ >. Acesso em 04 de jun. de 2022. WINNER, Langdon. “Do Artifacts have Politics?” . 1986. “The Whale and the Reactor – A Search for Limits in an Age of High Technology”. Chicago: The University of Chicago Press. p. 19-39.
ARTIGOS LIVRES 36 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira APROXIMAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ENTRE A PERSPECTIVA ENUNCIATIVO- DISCURSIVA E A GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL: AS METAFUNÇÕES COMUNICATIVAS E O ENSINO DOS GÊNEROS MULTISSEMIÓTICOS THEORETICAL-METHODOLOGICAL APPROACHES BETWEEN THE ENUNCIATIVE- DISCURSIVE PERSPECTIVE AND THE GRAMMAR OF VISUAL DESIGN: THE COMMUNICATIVE METAFUNCTIONS AND THE TEACHING OF MULTISEMIOTIC GENRES https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21011 Peterson José de Oliveira Universidade Federal de Uberlândia https://orcid.org/0000-0002-8367-585X petersonoliveira@ufu.br Recebido em 28 de abril 2024 Aprovado em 23 de maio de 2024 RESUMO: Neste trabalho visamos uma compreensão dos gêneros multissemióticos, em que trazem imagem e palavra, a partir de elementos teórico-metodológicos da gramática do design visual (GDV) de Kress e van Leeuwen (2006), buscando mostrar como a GDV está em consonância com as bases metodológicas enunciativo-discursiva encontradas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2017.). Ao final, a análise de um exercício didático mostrou várias afinidades para aplicar elementos da GDV à análise visual em aulas de língua portuguesa. Palavras-chave: ensino de língua portuguesa; gramática do design visual; multissemiose; metafunção comunicativa. ABSTRACT: In this work we aim to understand multisemiotic genres, in which they bring image and word, based on theoretical- methodological elements of the visual design grammar (GDV) of Kress and van Leeuwen (2006), seeking to show how GDV is in line with the enunciative-discursive methodological bases found in the National Common Curricular Base (BNCC), 2017.). In the end, the analysis of a didactic exercise showed several affinities for applying GDV elements to visual analysis in Portuguese language classes. Key words: Ensino de língua portuguesa; gramática do design visual; multissemiose; metafunção comunicativa
ARTIGOS LIVRES 37 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira Introdução A aula de língua portuguesa passou por profundas transformações metodológicas ao longo de sua história no Brasil. Desde aulas nas quais o próprio professor, a partir de gramática e literatura, preparava os próprios pontos, até o modelo atual, fundamentado no uso do livro didático, que facilita e, muitas vezes, limita a prática e criatividade docente. Os livros didáticos de língua portuguesa, desde a década de 1960, têm incluído em suas lições textos ou gêneros multimodais, como é o caso de peças publicitárias, canções populares, tiras/quadrinhos e charges, para ficarmos nos mais conhecidos. A partir de então, a quantidade de gêneros multissemióticos ou multimodais 1 que aparece nos livros só aumentou, para incluir, desde a virada para os anos 2000, os gêneros digitais, que na sua maioria são multimodais. A última mudança dos materiais didáticos de língua portuguesa deveu-se à implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2017. Nesse documento, os gêneros multissemióticos e digitais ganharam destaque. Porém, nos cursos de Letras raras são as disciplinas que tratam de uma formação mínima dos futuros professores de português em habilidades como a linguagem musical, os elementos da linguagem visual e a leitura e produção de gêneros digitais. Nos livros didáticos, entretanto, percebemos que o tratamento com os gêneros multimodais ainda é intuitivo, esporádico e assistemático 2 . Por exemplo, mal se fala dos aspectos visuais dos quadrinhos e anúncios publicitários, para mencionar apenas os gêneros multissemióticos que mais aparecem, como apontado em outros estudos como (OLIVEIRA, 2021). Para remediar tal situação, o professor de português pode recorrer a artigos que abordem especificamente alguns desses gêneros, mas pouquíssimos são os materiais que se debruçam sobre o desenvolvimento de habilidades de leitura e interpretação de gêneros 1 Neste artigo, usaremos indistintamente esses dois termos para indicar textos que se utilizam de mais de um modo semiótico ou linguagem, como textos que contenham imagens e palavras, ou sons e imagens etc. 2 Em trabalhos anteriores, fizemos pesquisa sobre a abordagem da imagem em livros didáticos de língua portuguesa onde encontramos tal assistematicidade e uso intuito de critérios analíticos. in: Desafios para uma abordagem efetivamente multimodal dos gêneros discursivos em livros didáticos de Língua Portuguesa . Albuquerque : Revista de História, Aquidauana, v. 13, n. 26, p. 138-159, 28 dez. 2021. ,
ARTIGOS LIVRES 38 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira multissemióticos ou que (re)pensam os critérios teóricos a partir dos quais a análise deve ser feita. Neste trabalho, refletimos sobre alguns elementos da gramática do design visual (GDV) – proposta por Gunther Kress e Theo van Leeuwen (2006) no livro Reading images: a grammar of visual design – que podem ser utilizados com proveito na construção de critérios mais amplos e gerais para um letramento visual sistemático e, principalmente, que sejam coerentes com a proposta metodológica da BNCC. Assim, tentaremos mostrar que a GDV não só é compatível teórica e metodologicamente com a perspectiva enunciativo-discursiva da BNCC, como também pode apresentar uma forma mais organizada de lidar com a diversidade de gêneros multimodais que o professor de língua portuguesa vai enfrentar. Nesta trajetória de leitura, buscaremos entender como essa teoria, além de incorporar certo viés crítico da análise discursiva, também traz importantes considerações para a abordagem dos aspectos ditos “formais” do texto visual multimodal, que é do que mais se ressentem as análises propostas nos livros didáticos. Em nossa análise, utilizaremos uma lição sobre um anúncio publicitário, retirada de um livro didático de língua portuguesa, e mostraremos como alguns conceitos da GDV contribuem para o aprofundamento da leitura dos elementos visuais – isso sem entrar em contradição com a BNCC ou trazer elementos teóricos desnecessários ou inacessíveis às(os) docentes em geral. A semiótica social e a GDV A GDV deriva diretamente do pensamento linguístico de Halliday e Hasan (1991), de sua perspectiva sistêmico-funcional e principalmente da própria noção de semiótica social. Para esses autores, a língua não é um conjunto fixo de regras ou estruturas, mas existe para atender à função comunicativa e, portanto, adapta-se a diferentes instâncias e propósitos sociais e individuais. Nesse sentido, Halliday alinha-se ao funcionalismo linguístico que entende a língua a partir da finalidade ou função comunicativa a que essa se destina (NEVES, 2013). A semiótica social, então, seria uma teoria que procura entender como os indivíduos se comunicam em contextos sociais específicos, como eles criam significados e usam signos. As especificidades de tais contextos interferem na escolha de signos e outras formas de materialização para além da linguagem verbal. A motivação e os objetivos comunicacionais são fundamentais para
ARTIGOS LIVRES 39 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira a criação do discurso. A língua, vista como um sistema semiótico, porque é composto de signos, torna-se resultado dessa motivação dos indivíduos de produzir significação em contextos sociais específicos. A GDV insere-se na semiótica social, de acordo com Kress e van Leeuwen (2006). Segundo os autores, o trabalho com a imagem baseia-se em uma ideia da representação visual que é parte da semiótica social e teria dois momentos- chave: a Escola de Praga, na década de 1930, e a semiologia de Roland Barthes, na década de 1960. Para eles, a semiótica social seria um terceiro momento da semiótica, ainda em desenvolvimento e ao qual pertencem. Não afirmam uma ruptura com esses pensamentos, mas uma reformulação deles. Para Kress e van Leeuwen (2006), o signo é a junção motivada de formas (significantes) usadas para realizar significados: o fato de os signos serem considerados motivados os afasta da noção tradicional saussuriana, para quem o signo é imotivado ou arbitrário. Tal motivação deve ser pensada a partir do ponto de vista do criador do signo e do contexto em que ele se insere, ou seja, em que o signo é produzido. Kress e van Leeuwen (2006), mesmo assumindo sua filiação parcial a essa dicotomia proposta por Saussure ( langue / parole ), dizem que a produção concreta de signos pelos falantes-usuários – a fala ou parole – não é limitada por um sistema de significados disponíveis – a língua ou langue . O potencial semiótico de um signo é definido por recursos semióticos disponíveis para um indivíduo específico em um contexto social específico; recursos semióticos disponíveis para pessoas reais em contextos reais. Esse aspecto, longe de ser um detalhe da GDV, fundamenta o caráter fortemente social de sua semiótica. As palavras “comunicação” e “representação”, por sua vez , ganham destaque em sua argumentação, pois enfatizam o contexto real em que a comunicação ou o discurso se realizam. Entende-se que os indivíduos são criadores de signos e escolhem formas para expressão do que têm em mente, formas que consideram mais adequadas e plausíveis em determinados contextos (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Tal ênfase na escolha e na motivação individual na criação sígnica se justifica a partir do conhecimento que o criador de signos possui: quando uma criança usa um signo, ela estaria criando-o, porque o usa para um contexto e uma finalidade comunicativa específica. Mesmo que um conjunto de restrições exista em um sistema de signos, o ato individual de apropriação do sistema é soberano para a constituição de um pensamento da semiótica social proposta pelos autores
ARTIGOS LIVRES 40 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). A interação e o contexto real remetem a semiótica a uma perspectiva funcionalista do funcionamento da(s) linguagem(ns). No Brasil, o funcionalismo linguístico tem ganhado destaque com os estudos do texto, do gênero textual-discursivo, entre outros, como atesta o prestígio dos estudos nesse campo. Para a concepção funcionalista da linguagem, as regras linguísticas sempre são vistas em termos de função comunicativa – do uso, melhor dizendo –, em contextos específicos, e não em termos de estrutura ou sistema. Ainda nessa linha teórica, as perspectivas do estudo do texto, da chamada linguística textual, não se realizam sem considerar o campo da enunciação, que leva em conta o modo como o sujeito se apropria do sistema linguístico, ou seja, da apropriação concreta da língua por um indivíduo. 3 A gramática do design visual Na introdução de Reading images: a grammar of visual design , Kress e van Leeuwen (2006) apontam que há muitas obras tratando da constituição de um “léxico” visual, isto é, trabalhos enfatizando elementos visuais de modo isolado, ao modo como tratamos palavras. O projeto deles, porém, é outro: elaborar uma “sintaxe” da linguagem visual. Ou seja, interessa-lhes a combinação desses elementos – sua “sintaxe” em composições que seriam “frases”, ou melhor, “textos” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Os autores destacam a importância de um letramento visual em nossa sociedade, na qual palavra e imagem se conjugam cada vez mais na comunicação cotidiana. Para eles, nossa cultura historicamente valorizou a escrita em detrimento do visual, por entender, muitas vezes, que este não tinha regras ou a importância da palavra. O ensino formal reflete tal valorização, pois ao longo da vida escolar os livros, que começam cheios de imagens, vão se tornando mais repletos de textos. Pelo menos, assim vinha sendo até o final do século XX. Com a emergência das redes sociais e dos smartphones e uma forte melhoria na transmissão de dados pela internet , o visual é hoje, sem dúvida, tão fundamental quanto o verbal na comunicação digital, que acaba por se tornar um parâmetro até para programas de ensino, por seu caráter 3 Sobre os fundamentos do funcionalismo em linguística, ver A gramática passada a limpo (NE- VES, 2012) e Gramática do português brasileiro , de Ataliba T. Castilho (2014). Como um balanço do funcionalismo em termos de linguística textual, ver Linguística textual: interfaces e delimitações (SOUZA; PENHAVEL; CINTRA, 2017).
ARTIGOS LIVRES 41 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira aberto, multimídia, interativo, entre outros aspectos. A noção de gramática dentro da expressão “gramática do design visual” não opera por meio de uma importação automática da terminologia da linguística para a representação visual. Para Kress e van Leeuwen (2006), sintaxe, pragmática e semântica são indistinguíveis nos termos da comunicação ou representação visual. Os autores deixam claro que cada modo semiótico 4 (verbal, visual, gestual etc.) tem suas possibilidades e limitações. Algumas relações são melhor explicitadas em um que em outro, mas os significados, construídos social e historicamente, são expressos por várias semioses (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). A principal relação afirmada pelos autores entre a linguística e a GDV é sua abordagem global , pois, assim como a linguagem verbal, a linguagem visual apresenta regularidades que podem ser objeto de uma descrição relativamente formal (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 20). Nesse sentido, eles se utilizam das metafunções presentes em quaisquer modos semióticos: função ideacional, função interacional e função textual (HALLIDAY; HASAN, 1996). Falaremos com mais detalhes dessas metafunções mais adiante, quando tratarmos da análise de um exercício sobre um anúncio publicitário. O fato de essas metafunções serem compartilhadas por todos os modos semióticos foi o ponto de partida para que os criadores da GDV vissem nessa teoria uma perspectiva interessante de abordar o universo da multimodalidade ou da multissemiose. Apesar disso, eles ressaltam o fato de que o verbal, com o predomínio da cultura escrita no Ocidente, não é simplesmente verbal, pois participam da sua leitura recursos específicos da visualidade: cor, disposição na página, orientação direita-esquerda, formato e tamanho das letras, entre outras características que informam a multimodalidade já presente no universo da escrita. Ainda que pensemos fora de sociedades ocidentais modernas, nas quais o prestígio da escrita é inegável, na fala há o papel do gestual, que desempenha função importante na produção de significado. Antes de propormos de que modo a BNCC e a GDV podem ter afinidades teórico-metodológicas, traçaremos as linhas gerais da concepção de linguagem da BNCC. 4 Modo semiótico pode ser entendido, no âmbito da teoria da GDV, como um sistema regular, social- mente organizado, de representação por um meio específico (ou substância material), como visual, som, gesto, movimento etc. Ou pode ser definido como um sistema completo de comunicação que atenda a vários requisitos representacionais e comunicacionais. Ver Kress, Jewitt, Ogborn e Tsatsa- relis (2001, p. 15).
ARTIGOS LIVRES 42 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira BNCC: bases teórico-metodológicas A BNCC, em vigor desde 2017, trouxe várias mudanças em relação aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998. No campo da organização discursiva do documento, a BNCC incorpora um vocabulário mais técnico, que demanda formação continuada do docente, se comparado com a linguagem mais simples dos PCN. Destaca-se também a continuidade da perspectiva metodológica geral de trabalhar com competências e habilidades, escolha teórico-metodológica que tem recebido numerosas críticas de educadores, sobretudo por conta de seu caráter neoliberal e tecnicista (BRANCO et al ., 2019; SAVIANI, 2016). No entanto, interessa-nos aqui, em especial, identificar algumas diretrizes metodológicas principais desse documento para assim indagar sua compatibilidade com a perspectiva apontada por Kress e van Leeuwen (2006) na GDV. O primeiro elemento que trazemos é o enfoque no ensino da língua portuguesa a partir da noção de gêneros discursivos, talvez a mais importante diretriz metodológica da BNCC e que está implicada no ensino-aprendizagem das habilidades de leitura, produção textual e análise linguística. De acordo com Dias, Ferreira e Silva (2019), o embasamento do ensino nos gêneros discursivos, de origem bakhtiniana, já estava presente nos PCN e se destacava pela materialidade textual-composicional, pelos aspectos contextuais e, principalmente, ideológicos. Temos na BNCC a centralidade do texto, visto como ponto de partida da aula de língua portuguesa, ancorado no gênero discursivo a que pertence. Os gêneros discursivos são divididos/reunidos em campos de atuação, a partir das diferentes áreas da comunicação pública. A noção de gênero em Bakhtin revela uma especial leitura crítica e a importância do posicionamento ideológico dos falantes na produção de sentido. O caráter crítico dessa teoria bakhtiniana aparece em destaque, entre várias outras ocasiões, quando os elaboradores da BNCC fazem menção repetidamente às condições de produção , termo que intitula vários objetos de conhecimento em todos os campos de atuação – isto é, que devem ser trabalhados em quaisquer gêneros, nas habilidades de leitura/compreensão. Esses objetos de conhecimento aparecem com algumas variações: “reconstrução das condições de produção, circulação e recepção” (BRASIL, 2018, p. 156) ou “Reconstrução das condições de produção e recepção dos textos e adequação do texto à construção
ARTIGOS LIVRES 43 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira composicional e ao estilo de gênero” (BRASIL, 2018, p. 150) . Isso se desdobra nas habilidades que tais objetos do conhecimento implicam. Em muitas passagens, a noção de “condições de produção” vem explicada em uma habilidade como esta, relativa aos textos jornalísticos e integrante do quadro “Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção dos textos”: “(EF89LP01) Analisar os interesses que movem o campo jornalístico, os efeitos das novas tecnologias no campo e as condições que fazem da informação uma mercadoria, de forma a poder desenvolver uma atitude crítica frente aos textos jornalísticos” (BRASIL, 2018, p. 175). Podemos observar nessa habilidade um interesse em entender a leitura-compreensão como um ato de interpretação das posições ideológicas do enunciador do texto jornalístico (os interesses de que fala a habilidade). Portanto, em relação ao ensino dos gêneros, a BNCC substitui o sociointeracionismo discursivo dos PCN por uma abordagem enunciativo-discursiva, mas que de certo modo continua a perspectiva dos PCN: Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade es - pecífica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história” (BRASIL, 1998, p. 20). (BRA - SIL, 2018, p. 67) Esse caráter enunciativo-discursivo é definido de forma bem ampla, o que dificulta ao leitor mais leigo entender, apenas a partir da citação do PCN, como se materializa tal concepção da língua, uma vez que enunciação e discurso são objetos teóricos muito discutidos e fontes de diversas interpretações no campo dos estudos da linguagem. De acordo com Flores e Teixeira (2005, p. 101), “as teorias da enunciação linguística da enunciação”. Na verdade, para esses au- tores, o objeto conceitual “enunciação” marca uma ruptura com os estudos lin- guísticos que seguiam a esteira do estruturalismo de Ferdinand de Saussure. Aos estudiosos da enunciação, interessam os aspectos singulares da ocorrência contextual muito mais que os aspectos sistêmicos e gerais da estrutura linguís- tica. Estudos sobre referência, dêixis, subjetividade e modalização, para ficar em poucos exemplos, extrapolam os limites tradicionais do pensamento formalista da linguagem, que se apoiou fortemente nos sistemas fonético-fonológicos da língua, na morfossintaxe e, algumas vezes, até na semântica.
ARTIGOS LIVRES 44 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira Mais recentemente, as ideias de Émile Benveniste sobre discurso e enuncia- ção têm recebido atenção no pensamento linguístico brasileiro e podem também ter servido de base para a elaboração de algumas competências e habilidades da BNCC. Para Benveniste (20086), a língua tem um duplo modo de significação: o semiótico e o semântico. O semiótico diz respeito ao nível intralinguístico da lín- gua, cujas unidades, os signos, têm relação recíproca uns com os outros e assim criam uma teia de significação, sem se importar com os objetos que tais signos denotam na realidade. No modo semântico temos os enunciados, que só ganham sentido se referidos a quem fala, quando e onde se fala – em suma, à situação. Aí estamos na ordem do discurso ou da enunciação , que é definida como “este colo - car em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 2006, p. 82). Passa a interessar agora como o sujeito usa o aparelho enunciativo da língua para criar sentido situado. Dessa maneira, entendemos que o aspecto “enunciativo” da expressão “enun- ciativo-discursiva”, que define a perspectiva metodológica do documento, pode ser associado tanto à teoria de Benveniste quanto à de Bakhtin. O mesmo vale para o termo “discursivo”, encontrado nessa expressão. Talvez a diferença fun- damental seja que, para Bakhtin, o sentido de um enunciado (unidade do discur- so, não da língua-sistema) sempre é dependente das circunstâncias históricas e ideológicas, não apenas da situação comunicativa específica. Mas a frequência de duas expressões na BNCC, “condições de produção” e “efeitos de sentido”, sempre associadas a competências e habilidades leitoras importantes para quaisquer gêneros discursivos a serem estudados, aproxima o documento de uma outra teoria do discurso: a análise de discurso de linha francesa, inaugurada por Michel Pêcheux. Essa teoria, marcada por uma hete- rogeneidade teórica, possui três pilares: o dialogismo bakhtiniano, o marxismo e a psicanálise. Nesse campo de estudos, o discurso é definido como efeito de sentido entre interlocutores, e tal expressão é fundamental para entender que o sentido é decorrente das formações discursivas e ideológicas de determinado momento histórico. O sentido não é prévio nem efeito da língua enquanto siste- ma: “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção da- das” (GADET; HAK, 1993, p. 77). Dessas condições de produção, Pêcheux destaca relações de poder, posições políticas, ideológicas etc. Outro aspecto importante do alinhamento da BNCC às teorias da enuncia- ção e do discurso está, de modo geral, na ênfase dada à produção textual feita
ARTIGOS LIVRES 45 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira a partir da consideração do seu enquadre enunciativo-discursivo básico: na lei- tura e produção de qualquer gênero é necessário saber qual o papel social de quem produz o texto-gênero, para quem este é feito, com que intencionalidade, em que meio, mídia e semiose. Assim, todos os campos de atuação 5 da BNCC tra- zem como objeto de conhecimento não apenas as habilidades de identificar ca - racterísticas formais e composicionais do texto, ou temas já conhecidos, como coesão, coerência e sequências ou tipos textuais. O documento em muitas pas- sagens enfatiza a atitude crítica por parte dos futuros leitores-autores. Acima de tudo, a organização de competências, habilidades e objetos do conhecimento tem a ver com o que os autores chamam de “práticas de linguagem”, expressão que revela a perspectiva ancorada no discurso, na língua encarnada em práticas sociais concretas e o letramento que as envolve. Assim, leitura e produção textual são práticas de linguagem que participam de “práticas sociais”. Nesse sentido, a preocupação com o letramento digital e com a multiplicidade de linguagens aponta para a necessidade do letramento dos próprios professores nesses gêneros e semioses. E é nesse ponto que o estudo de teorias e metodologias como as da GDV pode ser útil para a tarefa hercúlea de letramento multissemiótico que a BNCC sugere. Afinidades teórico-metodológicas entre GDV e BNCC Tentamos até agora oferecer um olhar panorâmico sobre alguns elementos teórico-metodológicos da BNCC que acreditamos poder ser alinhados a alguns aspectos da GDV e tornar o trabalho com a imagem ou a multissemiose mais profícuo. A GDV, acreditamos, é compatível com os pressupostos da BNCC aqui apresentados em três aspectos: a ideia de que a criação sígnica é parte do indi- víduo e responde à situação concreta, o que a aproxima das abordagens funcio- nalistas; o trabalho com noções como ideologia, criticidade e dependência de fatores históricos para a criação de signos visuais ou de uma gramática visual; e, por fim, a tentativa de trazer para o primeiro plano o trabalho multissemiótico como missão educacional de grande valor atualmente. Vejamos cada um desses elementos. 5 Na BNCC, são as cinco grandes áreas de atuação social em que os gêneros são agrupados: campos jornalístico-midiático; campo artístico-literário; campo das práticas de estudo e pesquisa; campo da vida cotidiana; e campo de atuação na vida pública.
ARTIGOS LIVRES 46 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira Podemos dizer que, ao tratar da comunicação visual e de todas as formas de discurso multissemiótico, os autores da GDV abordam uma forma de enunciação , porque enfatizam sempre o contexto concreto, situado, em que as mensagens são produzidas: “a comunicação exige que os participantes tornem suas mensa- gens o mais compreensíveis num contexto particular” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 13). A ênfase nesse papel ativo dos indivíduos ao selecionar e criar signos (pois atribuem aos signos disponíveis novos sentidos na situação concreta) faz os autores se aproximarem de teorias da enunciação como a de Benveniste. Por outro lado, a GDV quer tratar muito mais do que de aspectos formais ou enunciativos da mensagem visual ou multissemiótica. Em várias passagens de Reading images , os autores reforçam o compromisso de sua teoria com a critici- dade: A análise da comunicação visual é, ou deveria ser, uma parte importante das disci- plinas “críticas”. Embora neste livro nos concentremos na exibição das regularidades da comunicação visual, em vez de nos seus usos (“interessados”, isto é, político-ideo- lógicos), vemos imagens de qualquer tipo como inteiramente dentro do domínio das realizações e instanciações da ideologia, como meios – sempre – para a articulação de posições ideológicas (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 14, tradução nossa). 6 Embora a expressão “ideologia” não seja usual na área de língua portuguesa, certamente em decorrência do momento em que o documento foi publicado 7 , a BNCC enfatiza o papel fundamental de um letramento crítico para a formação de cidadãos politizados. No trecho a seguir, seus autores parecem prever as ques- tões mais delicadas e trágicas do mau uso das redes sociais, como redes de men- tiras e bolhas, destinadas a impedir um debate esclarecido e que descambaram na onda de fake news que tiveram papel decisivo nas eleições de 2018: 6 No original: “Analyzing visual communication is, or should be, an important part of the ‘critical’ disciplines. Although in this book we focus on displaying the regularities of visual communication, rather than its (‘interested’, i.e. political/ideological) uses, we see images of whatever kind as entirely within the realm of the realizations and instantiations of ideology, as means – always – for the artic - ulation of ideological positions”. 7 O governo de Michel Temer encerrou a participação pública na escrita da BNCC de modo abrupto, para então fixar e publicar uma versão do texto que não era exatamente a que vinha sendo discutida. No contexto político inflamado contra a chamada “ideologia de gênero”, uma expressão que fala mais de posições políticas conservadoras do que das políticas de igualdade de gênero (aliás, palavra também alvo de disputa e exclusão no documento), a noção de ideologia teve de ser diluída em ter- mos mais gerais, como “ensino crítico” ou “criticidade”. Na BNCC, a expressão “ideologia” aparece apenas duas vezes na área de linguagens e códigos, em competência de caráter geral (ver BRASIL, 2018, p. 87).
ARTIGOS LIVRES 47 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira Eis, então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas novas práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas demandas sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC [tecnolo - gias digitais da informação e comunicação] – necessário para o mundo do trabalho, para estudar, para a vida cotidiana etc. –, mas de também fomentar o debate e outras demandas sociais que cercam essas práticas e usos. É preciso saber reconhecer os discursos de ódio, refletir sobre os limites entre liberdade de expressão e ataque a direitos, aprender a debater ideias, considerando posições e argumentos contrários (BRASIL, 2018, p. 69). Valemo-nos da citação anterior para encerrar este tópico de alinhamento da GDV ao entendimento da BNCC quanto à importância dos gêneros multissemió- ticos. Na verdade, a BNCC fala da importância do trabalho com diferentes lingua- gens em tantas passagens que seria tedioso elencá-las: já no início, os textos multissemióticos são destacados na competência específica 3, da área da língua portuguesa. Ainda na parte introdutória, os autores do documento trazem um parágrafo muito esclarecedor, porque aborda os elementos formais dessas vá- rias linguagens ou semioses tão referidas ao longo do texto: Já no que diz respeito aos textos multissemióticos, a análise levará em conta as formas de composição e estilo de cada uma das linguagens que os integram, tais como plano/ ângulo/lado, figura/fundo, profundidade e foco, cor e intensidade nas imagens visuais estáticas, acrescendo, nas imagens dinâmicas e performances, as características de montagem, ritmo, tipo de movimento, duração, distribuição no espaço, sincronização com outras linguagens, complementaridade e interferência etc. ou tais como ritmo, andamento, melodia, harmonia, timbres, instrumentos, sampleamento, na música (BRASIL, 2018, p. 81). Os elementos da linguagem visual – seu “vocabulário” básico – seriam: plano, ângulo, lado, figura/fundo, profundidade, foco, cor e intensidade. Já expressões como “formas de composição e estilo” estão próximas do que Kress e van Leeuwen (2006) chamariam de “gramática” da linguagem visual. A BNCC, porém, dá apenas indicações sumárias do que tratar a respeito dessas semioses. A verdade é que existe uma dificuldade muito grande em traçar, para os objetivos de ensino fundamental em língua portuguesa, quais teorias de leitura do visual são mais produtivas nesse contexto. A dupla ênfase em um tratamento que se queira ao mesmo tempo crítico e traga uma abordagem da composição formal dos textos visuais é uma dificuldade a mais para encontrar teorias que estejam à altura dessa tarefa. Pelo que tentamos trazer ao leitor, pensamos que a GDV pode tornar-se um recurso precioso aos docentes interessados em ensinar os
ARTIGOS LIVRES 48 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira elementos e a gramática da linguagem visual em textos multissemióticos como HQs, publicidades, pinturas etc., pois essa teoria contempla os dois aspectos apontados. No tópico seguinte, tentaremos mostrar a compatibilidade e a propriedade de alguns conceitos da GDV em consonância com os elementos teórico-metodológicos da BNCC. Análise de um anúncio publicitário à luz da GDV No exemplo trazido para análise (Figura 1), retirado de um livro didático de língua portuguesa, nos interessamos em mostrar como o conceito de metafun- ção ou metafunções comunicativas 8 auxilia os professores a construir uma es- tratégia de leitura de textos publicitários, os quais aparecem em muitas lições de praticamente todos os livros didáticos de língua materna. Figura 1: Anúncio publicitário de livro didático. Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2017, p. 131). 8 Tal conceito aparece na gramática sistêmico-funcional de Halliday e Hasan (1991) e é endossado pelos criadores da GDV.
ARTIGOS LIVRES 49 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira O anúncio acima foi colocado em um livro de 6º ano, num tópico intitulado “Como funciona um anúncio publicitário?”. Não foi usado apenas para exempli- ficar um termo sintático ou gramatical; nesse exemplo, o anúncio é tratado en - quanto gênero discursivo . Por isso, vários exercícios relacionados direcionam a atenção do estudante para questões enunciativo-discursivas, como propõe a BNCC. Vale também ressaltar que a peça aqui reproduzida é a segunda usada como exemplo de anúncio publicitário. Antes dela, os autores introduziram esse gênero com um pequeno parágrafo apresentando o tema. Depois, definiram o gênero anúncio publicitário num pequeno quadro, em que destacam apenas o objetivo de estimular o leitor a consumir um produto ou serviço ou a agir de de- terminada maneira. Por fim, destacam o valor da criatividade nesse tipo de texto (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2017, p. 131). Os autores seguem de modo bastante satisfatório as recomendações da BNCC para a idade/ano escolar a que se destina o exercício, pois em vários mo- mentos são destacados elementos concretos da enunciação: quem faz, para quem é feito, qual o objetivo do gênero e seus elementos composicionais. Tudo isso de forma muito esquemática e resumida, é verdade, mas levamos em consi- deração aspectos como o espaço e o tempo disponíveis para esse tema. Só então Ormundo e Siniscalchi (2017) tratam do anúncio que abordaremos. Resumimos os exercícios a respeito dele para entendermos melhor o contexto específico em que aparece. Para esse texto multissemiótico, os autores propõem cinco questões, com subdivisões. A primeira e a quinta tratam da linguagem ver- bal do anúncio, sua síntese, os recursos que tornam a linguagem mais expressi- va, os tipos de orações que trazem esses efeitos, a ordem das orações, o tempo verbal etc. São exercícios bem elaborados pois relacionam satisfatoriamente os elementos de análise linguística (relação causa-consequência, condição, alter- natividade etc.) com elementos enunciativos. Já os exercícios 2 e 3 abordam a parte “não verbal” do anúncio, ou seja, a par- te considerada visual. No exercício 2, pergunta-se sobre a motivação da figura do porquinho, a qual palavra se relaciona a figura do peixinho, que cor predomina no anúncio e por quê. Até se pede que os estudantes imaginem o texto sem o peixinho, para verificar se o sentido prevaleceria o mesmo. Esse exercício é um exemplo apropriado de como os autores exploram com cuidado vários elementos visuais do texto, como as figuras, seus significados e cores; e buscam até mes -
ARTIGOS LIVRES 50 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira mo a relação entre palavra e imagem de modo circunstanciado – pouco usual em lições de livros didáticos. O exercício 3 faz referência à cor do anúncio e ao seu significado, bem como a outro elemento do anúncio, o slogan , que é definido em um quadro ao lado do enunciado. A questão 4 fala dos anúncios de modo geral, distinguindo os que veiculam uma atitude ou um valor daqueles que comparam produtos e tentam vender a superioridade do item anunciado. As atividades interpretativas foram bem realizadas e, se complementadas com comentários ou materiais trazidos pelo professor, oferecem uma aborda- gem satisfatória para interpretar o texto. Nas páginas seguintes, os exercícios continuam a tratar da peça publicitária, com atividades para a produção de um anúncio pelos estudantes. Desse modo, os autores seguem as sugestões da BNCC de utilizar as três práticas de linguagem para abordar qualquer gênero: atividades de leitura, de produção e de análise linguístico-semiótica integradas às de leitura e produção. Apesar disso, muitas coisas ficaram de fora, mesmo considerando-se a ida - de e a fase escolar do público-alvo, tais como a estrutura do anúncio publicitário, sua composição e até mesmo uma melhor análise dos aspectos enunciativo-dis- cursivos: de quem seria o público do anúncio, onde ele foi veiculado originalmen- te, qual a relação entre o tema e a linguagem verbal e visual, que relação existe entre a quantidade de informação verbal e visual e o gênero e o objetivo do anún- cio, qual sua relação com o contexto, entre outros aspectos. Não existe livro ou material didático completo, plena ou universalmente ade- quado a todos os tipos de público. Estamos cientes de que o livro didático deve servir de apoio à aula e ao planejamento dos professores, facilitando o preparo de atividades e oferecendo um material básico e acessível para todos os estu- dantes. No entanto, as lacunas encontradas nos exercícios apontam gestos de leitura que se tornam comuns em livros didáticos quando se trata dos gêneros multissemióticos publicitários. Em artigo publicado sobre o tema, Oliveira (2021) afirma que os autores de livros didáticos usualmente fazem questionamentos genéricos sobre o aspecto visual dos textos multissemióticos usados em suas lições. São questões do tipo “qual a relação entre a imagem e a parte verbal”, “o que significa a imagem usada pelo autor” ou, mais raramente, sobre a cor ou o formato de uma figura. Não há um trabalho metódico de abordagem do multissemiótico. Além disso, a interpre- tação é bastante fragmentada: fala-se da linguagem verbal e da linguagem vi-
ARTIGOS LIVRES 51 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira sual, mas muitas vezes não se fala da relação entre elas, que é o mais importante. Os aspectos enunciativo-discursivos, por sua vez, são melhor representados que os aspectos visuais ou verbo-visuais em livros didáticos mais contemporâneos. Nestes, é muito mais comum encontrarmos questões que se referem ao público esperado de um texto ou à função social do autor (mesmo que isso não apareça no livro e no exemplo que trouxemos). No quesito da composição visual dos textos e de sua “gramática” – mais do que seus elementos isolados ou vocabulário –, os livros ainda se ressentem de muitas lacunas. Nos parágrafos seguintes falaremos da composição e da organi- zação tal como apresentas na leitura da GDV. No anúncio em tela, os autores não falam da cor, da posição ou da dimensão das palavras, nem de sua relação com as figuras. Também não tratam da distribuição do visual e do verbal no formato retangular do anúncio, ou da direção – ou melhor, das direções – de leitura do anúncio, isto é, do trajeto do olhar sobre o texto. Nessa peça publicitária, por exemplo, há o uso composicional muito claro da simetria: bilateral, criada pelo fio de água que divide as duas frases imperativas. A direção de leitura é da esquerda para a direita, como a da escrita ocidental em geral, e estabelece uma relação de causa e efeito visualmente reforçada, já que essa associação é evidenciada também pelo sentido e pela ordem das palavras. O que é visto primeiro, a frase colocada à esquerda, intuitivamente “acontece” primeiro. O fio de água ao mesmo tempo divide e une as duas frases, e é uma representação visual do argumento “poupe água/poupe vida”. Desse modo, os criadores do anúncio realçam a mensagem principal de sua peça publicitária por meio de uma redundância verbo-visual. Esse reforço acontece também na figura do cofre de vidro, com a ideia de poupar e com a figura do peixe, que remete à ideia de vida. A redundância visual se realiza ainda pelo esquema de cores utili- zado no texto, de tons azulados, que remetem à água pura. Há uma configuração visual que atenua a diferença entre figura e fundo, pois os tons azulados, unidos à transparência da água e do cofrinho, bem como as letras em azul, provocam uma sensação de transparência suave no anúncio, muito agradável de ver e ler. Em contraste, para evitar a monotonia, o peixe de cor alaranjada brilhante atrai o olhar e gera uma empatia que em geral pets suscitam. A cor fisga o olhar e ser - ve como ponto de ancoragem e reforço, em uma estratégia argumentativa que traz para o nível concreto o que a palavra “vida”, por seu caráter abstrato e geral, não conseguiria trazer. Observe-se como as duas cores contrastam e se comple-
ARTIGOS LIVRES 52 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira mentam, dando unidade visual e novidade ao conjunto. O segundo eixo de leitura, que foi pensado cuidadosamente pela equipe re- datora, foi a direção acima-abaixo: acima o fio de água, embaixo o cofrinho. Trata de um processo, de uma ação: o ato de poupar é visualmente representado, claro como a água. O texto tem uma estrutura ou organização simétrica: esquerda e direita, pelas frases; acima e abaixo, pelo conjunto do fio de água e do cofrinho. O fio de água divide o anúncio em duas metades iguais; já a relação entre palavra e imagem não é tão simétrica, apesar de bastante organizada e clara. A parte verbal em letras um pouco mais escuras que o fundo tem fonte neutra, mas es- pessura e tamanho considerável, ocupando pelo menos 15% da área superior do anúncio. A figura do porquinho é vista de uma perspectiva próxima o bastante para que vejamos seu interior, com as bolhas de água; mas também é vista de cima e ligeiramente de lado para que o leitor tenha mais elementos de sua tri- dimensionalidade, como a pata direita dianteira e o formato do focinho e seus furinhos. Assim, parte importante do “rosto” do porquinho fica visível, inclusive os olhos. Enfim, fica evidente o objeto porquinho, apesar de transparente ou azu - lado (o que é difícil discernir por estar em um fundo azul). Tais detalhes do cofre, seu volume quase preenchido por água, as bolhas sugerindo que a água continua a cair – tudo isso envolve ainda mais o leitor para aderir à campanha. O cofrinho junto com o peixinho remetem à infância, e por isso o anúncio pode ser endere- çado às crianças, mas mesmo que o hábito de poupar usando cofres em formato de porcos não seja tão comum hoje, em tempos de dinheiro digital, a remissão à infância dos adultos traz um sentimento de empatia e cuidado, reforçado pelo belo peixinho-dourado. Talvez a única coisa que torne o anúncio menos estético seja a necessidade de assinalar o principal enunciador do anúncio: a Prefeitura Municipal de Japurã. Isso é feito num retângulo branco na parte inferior esquerda do anúncio, o que perturba de forma desnecessária a bela simetria e unidade do texto. Se os cria- dores tivessem optado por uma fonte laranja-escuro e centralizassem o texto, quem sabe com uma faixa azul-escuro percorrendo toda a parte inferior, talvez esse elemento ficasse mais integrado ao restante do conjunto. Nesses parágrafos, falamos de alguns elementos visuais do texto que podem ter sido tratados. Não temos pretensão de esgotar todas as possibilidades de leitura dessa peça; aliás, nem fizemos menção ao discurso conservador implícito nas campanhas públicas para poupar água, quase sempre endereçadas
ARTIGOS LIVRES 53 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira à população urbana, quando sabemos que os maiores gastadores de água são a agricultura e a indústria. Sempre há um desejo dos governantes de se mostrarem preocupados com o meio ambiente, escamoteando o fato de que os proprietários dos meios de produção usam recursos públicos como a água para seus empreendimentos cujos lucros são privatizados, enquanto os prejuízos de um modelo agroexportador baseado em monoculturas e pecuária extensiva têm impactos nefastos sobre os recursos hídricos de todos. Os aspectos ideológicos do anúncio são parte fundamental dele e têm vital importância para uma leitura afinada à GDV. Afinal, ao propor uma atitude aos cidadãos, atribui-se a eles uma responsabilidade e não se mencionam outros fatores da escassez de água, social e economicamente desigual. Fizemos apenas um pequeno aparte que não desenvolveremos, porque esses aspectos não são representados visualmente, mas estão nas entrelinhas, ou seja, no não dito que comporta qualquer discurso. Agora procuraremos suplementar nossa análise com alguns elementos que consideramos extremamente promissores na GDV, a partir da noção de meta- função comunicativa. O objetivo não é que os professores levem os estudantes à metalinguagem dessa teoria, pelo menos não no ensino fundamental. O que a noção de metafunção ou metafunções – ideacional, interacional e textual – traz é a possível indicação de um caminho de leitura ou interpretação que possa ser usado em todo texto visual ou multissemiótico. O pensamento linguístico de Halliday contrapõe-se explicitamente ao gerativismo formalista de Noam Chomsky e de toda linguística que considera suficiente e adequado estudar a língua em seus termos estruturantes sem discutir como nestes já estão envolvidas suas funções. A perspectiva radicalmente social de Halliday é uma das vertentes mais influentes do funcionalismo, pois procura mostrar como a estrutura gramatical de uma língua é, desde seus fundamentos, determinada pelo seu entorno social. Nesse sentido, a ideia de metafunção procura se afastar das noções comuns de funções comunicativas da linguagem que são encontradas em vários autores, filósofos e linguistas, como Jakobson e outros que viam tais funções da linguagem como o uso e propósito da língua. Para Halliday e Mathiessen, o termo “ metafunction ” (metafunção) é mais radical do que “função”, pois mostra como são intrínsecas à linguagem tais funções
ARTIGOS LIVRES 54 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira estruturantes. 9 Dito isso, ele propõe três metafunções: a ideacional, a interacional e a textual, integrantes de qualquer sistema semiótico. Mas é claro que estas não estão presentes da mesma maneira. Tais metafunções são manifestações, no sistema linguístico e em outros dos objetivos inerentes a todos, dos usos de sistemas semióticos: compreender o meio (ideacional); relacionar-se com os outros (interacional ou interpessoal); e organizar a informação (textual). Cada uma das metafunções se relaciona a uma variável do contexto situacional: ao campo, a ideacional; às relações, a interpessoal; e ao modo, a textual. Elas ainda possuem subdivisões, termos integrantes etc. Não é nosso objetivo tratar detalhadamente de cada uma delas, mas nos interessa especialmente o fato de que, em toda linguagem, as três metafunções operam ao mesmo tempo, ainda que de forma desigual, com ênfase em uma ou outra, dependendo do texto e da situação. O próprio contexto é definível pela linguagem ou pelos termos usados. Vale lembrar que Kress e van Leeuwen (2006, p. 41) remetem essas metafunções àquilo que chamam de “teoria semiótica social da comunicação”, que, apesar de ser oriunda do pensamento de Halliday, não aborda a linguagem verbal apenas. A metafunção ideacional atende à necessidade de um modo semiótico ser capaz de representar aspectos do mundo tal como vivenciado pelos humanos, isto é, de representar objetos e suas relações num mundo fora do sistema representacional. A representação de objetos em interação entre si é feita por meio do que os autores chamam de vetores de ação-processo, ou por meio de uma representação ideacional de caráter classificatório do tipo objeto-atributos, muitas vezes em esquema de “árvore” ou classificação (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). No caso do anúncio analisado, os objetos representados – ou participantes, como a GDV denomina – são tanto as partes verbais quanto o fio de água, o cofre, o peixinho. No texto da campanha publicitária há dois vetores: um verbal, que estabelece um direcionamento entre leitor e autor; e um visual, que estabelece um vetor no qual a ação de poupar é representada simbolicamente pelo despejo 9 “Why this rather unwieldy term ‘metafunction?’ We could have called them simply ‘functions’; however, there is a long tradition of talking about the functions of language in contexts where ‘func - tion’ simply means purpose or way of using language, and has no significance for the analysis of language itself (cf. Halliday and Hasan, 1985: Chapter 1; Martin, 1990). But the systemic analysis shows that functionality is intrinsic to language: that is to say, the entire architecture of language is arranged along functional lines. Language is as it is because of the functions in which it has evolved in the human species. The term ‘metafunction’ was adopted to suggest that function was an integral component within the overall theory” (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 30-31).
ARTIGOS LIVRES 55 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira de água no cofre e mostra a relação entre os dois participantes do texto, cofre/ peixinho e fio de água. Mas também pensamos que o modo de representar o mundo aqui, o mun- do da ameaça de escassez de água, aparece numa redução a poucos elementos visuais e verbais. A situação comunicativa do anúncio obriga seus criadores a apresentar seu propósito e sua argumentação por meio de poucos recursos vi- suais, já que dispõem de apenas uma página e têm de “fisgar” o leitor primeiro pela imagem e depois pelas palavras. Essa representação do mundo é ao mesmo tempo naturalista e simbólica. As imagens do peixe e do cofre-aquário, bem como a representação da água, são bastante realistas e provavelmente derivadas da manipulação de fotos pré-existentes (algo comum em anúncios modernos). Em se tratando dessa metafunção ideacional, a forma escolhida de representação dos objetos-participantes do anúncio, colocados sobre um fundo azul-claro, e seu realismo fotográfico intensificam a persuasão obtida pelo desejo de criar um olhar empático no leitor. O brilho da água e do peixinho, o formato arredondado do porquinho, a transparência agradável da água, com reflexos luminosos: tudo isso cria uma atmosfera de limpeza e frescor, quase tátil. A representação do mundo também opera simbolicamente, visto que o peixe simboliza a vida frágil e bela a ser preservada, enquanto o cofre emula a atitude responsável e (quase) carinhosa do leitor de depositar água para que o peixe sobreviva – jogar água num objeto que é, ao mesmo tempo, uma espécie de aquário-cofre ou cofre-aquário, que preserva e poupa o recurso frágil e escasso que é a água potável. A metafunção interpessoal , por sua vez, mostra como a linguagem – verbal ou visual – projeta as relações entre os interlocutores ou emissores-receptores dos signos. Qualquer modo semiótico deve ser capaz de representar uma relação social particular entre o produtor, o espectador e o objeto representado. A expressão “relação social” é um termo usado pelo criador da linguística sistêmico- funcional, Halliday(2004), quanto por Gunther Kress(2006), mas tem um sentido propositalmente amplo para abarcar relações econômicas, político-culturais, entre outras. A expressão de hierarquia na linguagem verbal é bastante conhecida: hierarquias de status social, gênero e idade são presentes em muitas línguas, mas as metafunções interpessoais também podem ser tratadas em signos ou linguagens não verbais. É preciso lembrar que essa função está intimamente ligada às outras, isto é, os mesmos elementos ou signos apresentam caráter multifuncional, pois desempenham ao simultaneamente essas três metafunções.
ARTIGOS LIVRES 56 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira Assim, no anúncio que viemos comentando, a função interpessoal se realiza de modo mais evidente pelo entrelace entre o verbal e o visual, característico de gênero discursivo. A parte verbal, com os verbos no modo imperativo e na segunda pessoa do singular, instancia dois lugares sociais: o de quem tem o direito de sugerir/ordenar e o daquele que deve obedecer. Evidentemente, para ter eficácia, o dever de poupar água, que a prefeitura deseja reforçar para seus cidadãos, deve ser “textualizado” de forma específica – e aí entramos na terceira metafunção, a textual. Deixemos isso em suspenso para continuarmos a falar da função interpessoal. A relação instituída pelos verbos no imperativo pode denotar sugestão, pedido ou ordem, dependendo de como isso interpela o leitor do anúncio. Isso mostra como a comunicação institucional pública atualmente é atravessada tanto pelo discurso do dever cívico quanto pelos aspectos mais emocionais associados ao universo da persuasão publicitária. A perspectiva dos criadores do anúncio não é a dos políticos ou burocratas da prefeitura: a linguagem mais eficaz, nesse caso, não é a da lei, da regra, do regulamento ou das proibições. A publicidade é mais do que conhecida como uma arma política importante, e sua linguagem e seu recurso põem e depõem políticos e políticas no mundo todo. A criação de uma relação amistosa entre prefeitura e cidadãos- eleitores é cuidadosamente trabalhada, misturando a firmeza verbal de um imperativo e projetando uma imagem de autoridade necessária aos governantes, mas amenizada pelo caráter suave e agradável da imagem, assim como pela ternura e tranquilidade associadas ao porquinho e ao peixinho-dourado. Por fim, a metafunção textual é aquela que corresponde ao aspecto compo - sicional, ao modo como a mensagem é estruturada. Essa função é extremamente importante e quase sempre relegada a notas de rodapé em comentários, inter- pretações ou tarefas escolares que lidam com textos multimodais ou multisse- mióticos. A coerência interna e externa desses elementos composicionais são o que Kress e van Leeuwen (2006) chamam mais especificamente de “gramática visual”, mesmo que as outras funções também façam parte dela. A metafunção textual é muito importante porque dela dependem as outras duas: O que isso significa é que (1) toda mensagem é sobre algo e se dirige a alguém, e (2) es - ses dois motivos podem ser combinados livremente – em geral, eles não se restringem. Mas a gramática também apresenta um terceiro componente, outro modo de signifi - cação que se relaciona com a construção do texto. Num certo sentido, isto pode ser considerado uma função capacitadora ou facilitadora, uma vez que ambas as outras – construir a experiência e encenar relações interpessoais – dependem da capacida- de de construir sequências de discurso, organizar o fluxo discursivo e criar coesão e
ARTIGOS LIVRES 57 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira continuidade à medida que este avança. . Isso também aparece como um motivo cla- ramente delineado na gramática. Chamamos isso de metafunção textual (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 30). Se cada imagem é sobre alguma coisa e feita para alguém, o modo como podemos combinar esses dois elementos depende de estruturas gramaticais que possibilitem essas variações. O caso de nosso anúncio é muito eloquente a esse respeito. Primeiramente temos de ter em mente que os criadores do anúncio tinham várias diretrizes gerais para quaisquer anúncios publicitários, independentemente do tema, do público ou de quem os encomenda: espera- se “vender” a ideia ou o produto unindo recursos visuais e verbais. Mesmo que não houvesse figuras representadas, o tamanho, o formato, a cor das letras e do fundo são visuais – não apenas verbais – e influenciariam fortemente a eficácia comunicativa. Também o veículo onde circulará o anúncio delimita o tempo e o tipo de atenção do leitor, o que introduz critérios como clareza, detalhe, dimensão das figuras, posição do texto e das imagens, e outros tantos. As ferramentas de produção e manipulação de imagem, como o offset e o uso de softwares de edição de imagem, representaram uma grande revolução para a linguagem publicitária, oferecendo uma liberdade quase infinita na criação de imagens para a publicidade. Assim, em termos metafuncionais textuais, o anúncio publicitário é uma mistura muito bem elaborada de recursos visuais e verbais que não param de se transformar, pois absorvem toda sorte de recursos técnicos disponíveis. Mas e quanto ao seu objetivo fundamental, que é o de tornar conhecidos ao público produtos ou ideias, com vistas a persuadi-lo a “comprá-los”? As estratégias em geral são as de apelo ao emotivo, de identificação com figuras admiradas consumindo, de idealização do produto, de simplificação tanto dos fatos quanto das ideias… Tudo isso e muitos outros elementos que os estudiosos da comunicação vêm tratando há tempos. Todos esses recursos são colocados à disposição tanto de grandes grupos econômicos quanto de governos, o que faz com que o letramento visual se torne um importante elemento de emancipação de grupos subalternizados. No anúncio analisado, a textualização simplificadora do problema da escassez de água está de acordo com a lógica discursiva da publicidade: aparar arestas, aspectos desagradáveis ou complexos dos problemas e criar uma comunicação o mais intuitiva e rápida possível, por meio de imagens de grande impacto emocional, com apelo mais a sentimentos que ao
ARTIGOS LIVRES 58 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira raciocínio. Hoje existe já algum senso de urgência redobrada a respeito dessas estratégias textuais usadas pela publicidade, que têm de se reinventar para dar conta de demandas novas, como a da representação não preconceituosa de grupos tradicionalmente invisibilizados ou estereotipados pelo discurso da propaganda. Graças à luta por representação é que hoje vemos mais negros, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e velhos retratados de formas mais justas ou complexas em anúncios. Assim também questões como a idealização corporal proposta em vários anúncios de produtos relacionados a alimentação, vestuário, saúde e outros, que passam por um escrutínio crítico do público sobre a criação de padrões inalcançáveis e pouco representativos de corpos. As estratégias publicitárias tornadas obsoletas veem cedendo espaço a outros discursos, como o da multiculturalidade e da inclusão, para que as empresas não sejam rejeitadas pelos consumidores. No entanto, o recurso ao visual e ao instantâneo irá permanecer, bem como a simplificação, o uso do humor e o escapismo consumista se darão em novas formas. Considerações finais De que modo professores de língua portuguesa podem usar as ferramentas da GDV, como o conceito de metafunções, para criar rotinas ou métodos de interpretação que ultrapassem a leitura caso a caso ou o aspecto intuitivo de cada lição? Se observarmos bem, as três metafunções acabam por percorrer os elementos a serem trabalhados numa perspectiva de letramento proposta pelos documentos sociais. As metafunções ideacional e interativa (ou interpessoal) estão em consonância com as perspectivas de enunciação e discurso: assim como nessas metafunções, um leitor-produtor proficiente em vários modos semióticos deverá ser capaz de utilizar os recursos dessas linguagens para representar o mundo e criar uma imagem de si e do outro para atingir seus objetivos comunicacionais. Para isso, precisa saber qual papel social representa em determinada situação/interação (função interativa), além de ser capaz de elaborar uma imagem de seu interlocutor, sua posição ideológica, seu conhecimento e suas expectativas (funções interativa e ideacional). Ele precisa, ainda, levar em conta como irá representar o mundo para esse interlocutor (função ideacional) e, para tanto, deve estar a par dos recursos linguísticos-
ARTIGOS LIVRES 59 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Peterson José de Oliveira semióticos (a composição, a estrutura textual ou metafunção textual). A BNCC explicita essa integração dos três aspectos, a saber, a leitura e a produção que devem ser articuladas pela análise linguística-semiótica. Estamos conscientes de que o percurso aqui percorrido é provisório e aprofundamentos sobre muitos conceitos da GDV seriam necessários. No entanto, consideramos tratar-se apenas de uma primeira tentativa de aproximação com as possibilidades interpretativas da GDV para o contexto do ensino em língua portuguesa. Em trabalhos subsequentes, iremos nos deter em elementos mais específicos e ferramentas de leitura dessa teoria que podem enriquecer o trabalho com a multissemiose nos contextos escolares. Quando se trata de leitura de imagem como ferramenta de ensino aprendizagem de gêneros multissemióticos, o desafio é encontrar, entre as teorias disponíveis, aquelas mais afinadas com a nossa realidade – desafio que estamos apenas começando a enfrentar. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal . 3. ed. Tradução Maria Ermentina G. Ferreira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral . 2. ed. Tradução Eduardo Guimarães et al . Revisão técnica Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 2006. v. 2. BRANCO, Emerson Pereira; BRANCO, Alessandra Batista de Godoi; IWASSE, Lilian Fávaro Algrâncio; ZANATTA, Shalimar Calegari. BNCC: a quem interessa o ensino de competências e habilidades? Debates em Educação , Maceió, v. 11, n. 25, p. 155-171, 2019. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao/article/view/7505. Acesso em: 21 abr. 2024. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular . Brasília, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site. pdf. Acesso em: 21 abr. 2024. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Gramática do português brasileiro . São Paulo, 2014. DIAS, Jaciluz; FERREIRA, Helena Maria; SILVA, Natany Avelar. Diretrizes para a formação de professores no trabalho com a leitura: dos PCN à BNCC. Moara , Belém, n. 51, p. 10-31, 2019. FLORES, Valdir; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à linguística da enunciação . São Paulo: Contexto, 2005. GADET, Françoise; HAK, Tony (org.). Por uma análise automática do discurso : uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Bethania Mariani et al . Campinas: Editora da Unicamp,
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ARTIGOS LIVRES 61 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana A TERRA FANTÁSTICA DA AMAZÔNIA: DISCUTINDO A COLONIZAÇÃO DE ALTA FLORESTA A PARTIR DA DRAMATURGIA DE “FRAGMENTOS DE VIDA” (1995) THE FANTASTIC LAND OF THE AMAZON: DISCUSSING THE COLONIZATION OF ALTA FLORESTA FROM THE DRAMATURGY OF “FRAGMENTOS DE VIDA” (1995) https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21145 João Vítor Marques Lima Universidade Federal de Mato Grosso https://orcid.org/0009-0002-1805-8406 jvmarqueslima@gmail.com Edvaldo Correia Sotana Universidade Federal de Mato Grosso https://orcid.org/0000-0001-7493-0997 edsotana11@gmail.com Recebido em 15 de maio 2024 Aprovado em 18 de junho de 2024 RESUMO: O objeto e fonte de estudo deste artigo é a dramaturgia teatral “Fragmentos de Vida” (1995), montada pelo grupo Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF), em 1996. Especificamente, pretende-se trabalhar com os seguintes recortes temáticos do texto: a) a participação do Governo Federal e a colonização na Amazônia Mato-grossense; b) a propaganda realizada pela colonizadora que buscava atrair famílias do interior do Paraná para o norte de Mato Grosso e c) a relação de colonos e colonizadora com o garimpo na região durante a década de 1980. Palavras-chave: Dramaturgia, Colonização, Alta Floresta e Amazônia Mato- grossense. ABSTRACT: The object and source of study of this article is the theatrical dramaturgy “Fragmentos de Vida” (1995), staged by the group Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF), in 1996. Specifically, it is intended to work with the following thematic excerpts from the text: a) the participation of the Federal Government and colonization in the Mato Grosso Amazon; b) the advertising carried out by the colonizer that sought to attract families from the interior of Paraná to the north of Mato Grosso and c) the relationship of settlers and colonizers with mining in the region during the 1980s. Key words: Dramaturgy, Colonization, Alta Floresta, Mato Grosso Amazon.
ARTIGOS LIVRES 62 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana INTRODUÇÃO ​O grupo Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF) foi fundado em 1988 na cidade de Alta Floresta, tendo à frente, o ator, diretor e dramaturgo Agostinho Domingos Bizinoto Macedo (1952-2017). Além dele, também integravam o grupo, no período de sua fundação: sua esposa Elisa Gomes Machado, Marcos Roberto Tiso, Márcia Trindade, Everson Luiz Tiso, Ronaldo Pereira, Clélio Eduardo de Freitas, Cláudio José Freitas, Dalva Lúcia Lautori, Andréia Silva, Hermes Rodrigues de Araújo, André Villaverde de Araújo, Arnaldo Batista da Silva, Antônio Gonçalves Franco 1 . O TEAF produziu e encenou a dramaturgia “Fragmentos de Vida”, organizada por Agostinho Bizinoto, no ano de 1995. Foi montada pelo TEAF em 1996 e remontada em 2006. A peça tem como base a dissertação de mestrado da professora Regina Beatriz Guimarães Neto, defendida em 1986, intitulada “A Lenda do Ouro Verde”. Além da dissertação, a elaboração do texto teatral se valeu de memórias dos integrantes do grupo que colaboraram na produção textual. A dramaturgia busca abordar os primeiros anos da colonização da região norte do estado, desde a chegada dos primeiros colonos, a questão do garimpo que toma conta da cidade na década de 1980, a influência da colonizadora Integração Desenvolvimento e Colonização 2 (INDECO) e a questão do indígena, apagado da memória coletiva da cidade e da região. Em seguida, trata da descoberta e dos impactos do ouro na vida da nova cidade, finalizando seu percurso em questões e problemáticas da cidade na década de 1990. Com relação à sequência, “Fragmentos de Vida” (1995) foi estruturada sem cenas definidas, mas para colaborar na discussão levantada no artigo, durante o processo de análise foi identificada que o espetáculo pode ser dividido em 11 cenas, que abordam sobre a “história da migração para esta região do país, incluindo o extremo norte de Mato Grosso já pertencente à Amazônia, utilizando uma linguagem poética nesta saga humana em plena selva, abrindo caminhos, grandes clareiras e construindo moradias” (MACEDO, 2008, p. 93). Em suas duas versões, o espetáculo tinha como adereço cênico e recursos luminosos a presença de tochas, lamparinas e lampiões, o que ambientava o espaço cênico 1 Nomes registrados na Ata da Reunião (Assembleia) do dia 26 de novembro de 1988. 2 A empresa Integração Desenvolvimento e Colonização (INDECO) foi fundada no ano de 1973, é caracterizada como uma empresa do ramo de construção.
ARTIGOS LIVRES 63 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana DOSSIÊ 63 Sofa Sousa / Paula Barros com fumaça e odor de querosene, remontando os anos iniciais da ocupação assim como as queimadas presentes na cidade de Alta Floresta durante a década de 1990, devido ao recorte documental selecionado para essa pesquisa, não nos aprofundaremos na encenação, e escolhas estéticas do espetáculo, mas sim na sua dramaturgia e nas representações que ela constroi a partir da nossa análise juntamente a historiografia sobre o período da colonização da região. ​Cumpre observar que Alta Floresta foi fundada em 1976 pela colonizadora INDECO. Teve sua emancipação enquanto município em 1979 3 . Durante os primeiros anos, a intenção da colonizadora era gerar um ambiente de produção agrícola a partir do café e guaraná. Com o fracasso dessas culturas, na década de 1980, teve como principal produto econômico a extração de ouro. Após a decaída da atividade mineral aurífera na região, a cidade passou a ter como principal geração de receita a extração de madeira e a criação de gado. Já nos anos 2000, a produção de gado para o abate e a presença de frigoríficos se tornou a produção principal do município. Na última década (2010) o agronegócio, com a cultura da soja, que já era forte no centro sul do estado, começa a ganhar força na região. ​Portanto, o artigo tem a pretensão de discutir o processo de colonização do extremo norte do estado de Mato Grosso a partir da dramaturgia teatral “Fragmentos de Vida” (1995). De modo específico, pretende-se trabalhar com os seguintes recortes temáticos do texto: a) a participação do Governo Federal e a colonização na Amazônia Mato-grossense; b) a propaganda realizada pela colonizadora que buscava atrair famílias do interior do Paraná para o norte de Mato Grosso e c) a relação de colonos e colonizadora com o garimpo na região durante a década de 1980. ​Para pensar a pesquisa que tem como fonte a dramaturgia, é necessário trazer para a discussão a historiadora Rosangela Patriota, que problematiza a relação entre a encenação e a dramaturgia. A pesquisadora aponta à seguinte problemática para pensarmos na produção do conhecimento histórico: 3 O município foi criado em 18 de dezembro de 1979, através da Lei Estadual nº 4.157.
ARTIGOS LIVRES 64 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana Da mesma forma, estudar a obra de um dramaturgo requer, do pesquisador, particular atenção com o momento da escrita, de modo que apreenda as referências e o reper- tório utilizado pelo autor, além de estabelecer as interpretações que ela foi obtendo ao longo do tempo, dos estudiosos e/ou críticos teatrais. Contudo, quando a proposta volta-se para a análise do impacto histórico de uma montagem teatral, os recursos a serem mobilizados envolvem, preponderantemente, a interlocução do espetáculo com os segmentos sociais, que interagem com a sua proposta. Especificamente, nesse contexto, as intenções iniciais do dramaturgo podem ser subvertidas, dando origem a outros significados e objetivos, muito mais condizentes com as expectativas do dire - tor e do elenco, responsáveis pelo trabalho. (PATRIOTA, 2008, p. 44) Deve-se, ainda, apontar as contribuições do historiador Roger Chartier que norteiam nosso estudo. Destaca-se suas posições sobre a literatura impressa, notadamente as publicações dos textos teatrais. Afinal de contas, o teatro é a Arte do encontro e, quando tiramos esse encontro entre ator e público, o jogo teatral se perde: O teatro não é escrito para que um leitor o leia numa edição saída dos prelos, ele é feito para ser encenado. É isso que Molière chama de ‘ação’ ou ‘jogo do teatro’. […] É a priori ilegítimo separar o texto teatral daquilo que lhe dá vida: a voz dos atores e a audição dos espectadores. (CHARTIER, 1998, p. 26-27, grifo do autor) A partir disso, utilizaremos o conceito de representação em nosso artigo. Para Chartier, As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universali- dade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discur- sos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p. 17) Assim, é possível tratar nosso objeto de pesquisa como produto de um olhar sobre a colonização de Alta Floresta 4 , buscando, assim, compreender a forma utilizada para apresentar na dramaturgia acontecimentos e figuras presentes na vivência daqueles envolvidos em sua produção. Dessa forma “[...] esta investiga- ção sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em ter - mos de poder e de dominação.” (CHARTIER, 2002, p. 17). 4 É importante compreendermos o conceito de “colonização”. “Para Moreno e Higa (2005), ‘[…] processo de ocupação e valorização de áreas disponíveis para o povoamento e exploração econômica […].’ A colonização é, também, ‘[…] um processo indissociável da migração. A migração envolve múltiplos condicionantes de natureza econômica e social, e também causas subjetivas, de difícil ava - liação’”. (MORENO; HIGA, 2005, 52-3 apud GALVÃO, 2013, p. 2).
ARTIGOS LIVRES 65 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana Tem-se em mente que analisar a dramaturgia pode auxiliar no entendimento das relações de poder, dessa forma fizemos a leitura do documento em questão, em seguida, delineamos alguns temas, separamos os trechos relativos a tais temas e registramos em fichas. Três eixos do material pesquisado constarão nas páginas seguintes. São eles: Participação do Governo Federal, Propaganda e Garimpo. Considerando os temas que serão explorados, as representações engendradas na peça e a discussão sobre território, inserimos nosso trabalho na chamada história política renovada. Notadamente observando que “as iniciativas dos poderes públicos, as decisões dos governos são apenas a expressão da relação de forças.” (RÉMOND, 2003, p. 20), buscamos identificar a partir da produção cultural, aqui utilizada como fonte e objeto de estudo, uma intrínseca relação de poder entre governo federal, colonizadora, colonos, garimpeiros, natureza e povos indígenas. Em nosso trabalho o objeto de estudo se encontra no fato de que o “historiador de uma época distribui sua atenção entre os diversos objetos que solicitam seu interesse na proporção do prestígio com que a opinião pública envolve os componentes da realidade.” (RÉMOND, 2003, p. 15). A dramaturgia utilizada em nossa pesquisa é fruto de um determinado grupo de pessoas que, inseridas na realidade de Alta Floresta, produz a partir de suas inquietações sobre os processos de colonização e ocupação da região da Amazônia Mato-grossense. É preciso observar que existem alguns estudos sobre o Teatro Experimental de Alta Floresta. Em sua dissertação de mestrado “O lugar e a cena: a territorialidade na poética do Teatro Experimental de Alta Floresta” (2020), Ronaldo Adriano Freitas Lima propõe uma discussão sobre a relação do grupo com o território no qual está inserido. O pesquisador aponta o fazer teatral do TEAF e discute a relação do grupo com a região da Amazônia Mato-grossense, bem como as poéticas teatrais abordadas e utilizadas pelo grupo durante sua trajetória. Em todos os espetáculos trabalhados na dissertação, assim como na discussão elaborada pelo autor, podemos identificar a relação entre o grupo e o espaço no qual ele está inserido. Lima (2020) estabelece um recorte muito específico no capítulo 3 intitulado “Fragmentos de Vida – A ocupação da Amazônia Mato-grossense nos palcos da cidade”. O pesquisador se debruça sobre a peça e discute a poética teatral ligada ao processo de montagem do espetáculo, caminhando pelo processo de criação da dramaturgia e da encenação, assim como demonstrando e discutindo a remontagem do espetáculo em 2006. Lima
ARTIGOS LIVRES 66 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana também realiza em sua dissertação uma discussão a partir da dramaturgia, apontando questões importantes para o grupo. Já o nosso trabalho, pretende apresentar a discussão presente na dramaturgia do espetáculo, que estão diretamente ligadas a ocupação e colonização da região norte de Mato Grosso. O trabalho aqui desenvolvido, busca abordar uma região pouco trabalhada na historiografia mato-grossense, devido sua integração recente. Mas para além da discussão do acontecimento histórico, essa pesquisa busca abordar o teatro enquanto fonte para pesquisa histórica. “FRAGMENTOS DE VIDA” (1995) Como documento para a realização da pesquisa, tivemos o texto teatral de Agostinho Bizinoto, a dramaturgia “Fragmentos de Vida” (1995) que está publicada no livro “Textos Teatrais de Agostinho Bizinoto: Dramaturgia Popular Surgida de Experiências em Grupo” (2008). Assim, a pesquisa documental foi realizada com a dramaturgia do espetáculo intitulado “Fragmentos de Vida”, escrito e organizado em 1995, publicado em 2008, já com alterações no texto original, O texto é uma colagem dramatúrgica organizada por Agostinho Bizinoto, a partir de fragmentos ou textos escritos baseados na obra de Regina Beatriz Guimarães Neto; trechos da letra da música ‘Luz do Sol’ de Caetano Veloso; um texto inspirado no poema ‘A Bomba’ de Carlos Drumond de Andrade, poema ‘Rio’ de João Cabral de Melo Neto e texto inspirado na letra da música ‘O Pulso’, composição de Toni Bellotto, Marcelo Fro- mer e Arnaldo Antunes, gravada pela Banda Titãs. Everson Luiz Tiso (então membro do Grupo) assina o texto ‘luz’ e os demais são de autoria de Bizinoto [...] (MACEDO, 2008, p. 93 apud LIMA, 2020, p. 74-5) ​O processo de construção e montagem, tanto da dramaturgia quanto da encenação do espetáculo, não foi amplamente documentada. Por isso, o presente trabalho opta por realizar um recorte documental somente na dramaturgia enquanto fonte histórica e objeto de pesquisa. Mas para compreender a análise da dramaturgia, vemos necessária a compreensão do contexto do espetáculo teatral montado a partir da dramaturgia aqui analisada. A peça teatral estreou no dia 24 de março de 1996 e ficou em cartaz como repertório do grupo por 10 anos (LIMA, 2020, p. 71). A primeira montagem foi pensada para ser apresentada em espaços convencionais, como um palco, urdimento e com apoio de equipamentos técnicos. Em 2006, o TEAF, como parte do projeto “Teatro no Campo”, contou com
ARTIGOS LIVRES 67 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana recursos do Fundo Estadual de Fomento à Cultura e produziu uma remontagem do espetáculo com a intenção de apresentá-lo em espaços alternativos. Nessa remontagem as apresentações aconteciam preferencialmente em ambientes naturais, próximos a matas e florestas, assim como lagos e rios, aproximando o público de um ambiente similar ao encontrado pelos primeiros colonos ao chegarem na região. Nas duas versões, o espetáculo possuía cerca de 30 minutos de duração, contando com 8 atores em cena e 1 técnico de luz. Entrando na discussão realizada a partir da análise da dramaturgia, iniciamos apresentando uma importante problemática presente na dramaturgia que nos demonstra uma construção da representação da Participação do Governo Federal no processo de ocupação da Amazônia. 1. Campanha do Governo Federal sobre a Amazônia, lançada pelo Presidente Geisel e muito bem continuada pelo Presidente Figueiredo. 2. INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR 3. Integrar o HOMEM sem pensar na Natureza / Integrar sem pensar no Solo / Sem pen- sar nos bichos / Sem pensar nos rios / Sem pensar nas consequências 1. Não entregar a Amazônia / Possuí-la com coragem de matar / Não entregar a Amazô- nia / Ateando fogo com facilidades 2. Integrar criando cidades / Pisando nos índios / Matando histórias / Sufocando os tempos 3. INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR / ASSIM QUER O GOVERNO / CUSTE O QUE CUS- TAR. (MACEDO, 2008, p. 101-2, grifos do autor) Durante o Regime Militar (1964-1985) o lema do programa de integração na- cional foi “ocupar para não entregar” (SANTANA, 2009, p. 3), demonstrando que a visão do governo era de um vazio demográfico na região amazônica, e que deveria ser ocupado para evitar a perda desse território, dado o contexto de Guerra Fria (1945-1991). Essa busca pela conquista da Amazônia, diferente da incorporada no processo do Estado Novo (1937-1945) 5 , possuía a lógica de “[...] INTEGRAÇÃO NACIONAL, fundamentada na concepção militar de SEGURANÇA NACIONAL.” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 39, grifos da autora). Deve-se salientar que essa ocu- pação não levava em consideração populações que habitavam essas regiões, ge- 5 O Estado Novo foi um regime político resultado do golpe de 1937 organizado pelo então presiden - te Getúlio Vargas, utilizando de pretextos como a ameaça do comunismo no Brasil, para garantir que se mantivesse no poder, tendo em vista que segundo Maria Celina D’Araújo (2000, p.8)“O ‘novo’ aqui representava o ideal político de encontrar uma ‘via’ que se afastasse tanto do capitalismo liberal quanto do comunismo, duas doutrinas políticas que, desde meados do século XIX e mais intensamen- te a partir da revolução soviética, competiam entre si no sentido de oferecer uma nova alternativa po- lítica e econômica para o mundo. Havia em ambas a ambição de corrigir os problemas do capitalismo: desigualdade social, crises, insegurança econômica, conflito de classes e de interesses”.
ARTIGOS LIVRES 68 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana rando, assim, diversos e diferentes conflitos. Quando observamos a ocupação desses “vazios” podemos problematizar as políticas de colonização e de povoa- mento dessas regiões, O governo utilizou a colonização no Brasil como estratégia para o povoamento e a ex- ploração econômica de ‘novas terras’, com a finalidade de ocupar espaços que tinham pouca ou quase nenhuma densidade populacional no interior do país. Desconsidera- va-se, porém, nos programas de colonização, que nesses espaços vazios morava uma população indígena, como também ‘garimpeiros, posseiros, além de povos e comuni- dades tradicionais representados por extrativistas, pescadores, quilombolas e ribeiri- nhos’. (MENDES, 2012, p. 201 apud GALVÃO, 2013, p. 1) ​Na década de 1970, surgiu o Programa de Integração Nacional (PIN) que ti- nha como objetivo gerar a integração da região amazônica com o restante do país, assim como gerar investimentos na Amazônia (JOANONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2017, p. 6). Essa integração teria como motor a proposição de empreen- dimentos imobiliŕios e empreendimentos agropecuários que possuíam políticas de incentivos fiscais para se fixarem e promovessem suas atividades na região amazônica como parte das políticas de segurança e integração nacional. Esses empreendimentos imobiliários em alguns casos eram organizados e promovidos por empresas do setor privado, como foi o caso da empresa INDECO S/A dona do projeto de Alta Floresta, essa participação do setor privado os estabelece como intermediador entre o INCRA e os colonos. (JOANONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2019, p.115). Uma das principais ações dessa intenção de integrar o Brasil, foram as cons- truções de rodovias federais que ligam remotas regiões do norte do país com rotas nacionais ao sul do território, como é o caso da BR-163, que liga Cuiabá - MT a Santarém - PA. Essa rodovia foi primordial para a existência dos diversos projetos de colonização localizados no norte de Mato Grosso, como o da cidade de Sinop, principal polo da região na atualidade, que está às margens da BR-163. Alta Floresta está a aproximadamente 200 km desta rodovia, “Certamente que a construção da MT-208, estrada que liga a BR-163 a Alta Floresta, já estava nos planos da ditadura militar em 1976, […]. A construção da estrada foi finalizada em 1981.” (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016, p. 210). A venda e autorização para o estabelecimento dessas empresas sobre áreas tão gran- des partiam do pressuposto de que estavam desocupadas, o que não correspondia às realidades locais como bem sabia o governo federal. Os relatos de conflitos, mortes,
ARTIGOS LIVRES 69 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana ameaças, expulsão de comunidades inteiras com o uso da força tornaram-se frequen- tes, (Guimarães Neto, 2014). É importante destacar que a analogia do discurso histórico que associa essas empresas e empresários que desenvolvem projetos de colonização na Amazônia aos bandeirantes, terem sido chamados na grande mídia de bandeirantes ‘modernos’ ou ‘do século XX’ guardavam em seu avesso a mesma semelhança com as incursões sertanistas do XVIII, que os marcou como matadores de índios, destruidores de comunidades locais. (GUIMARÃES NETO, 2014 apud JOANONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2017, p. 16) No caso de Alta Floresta, não existe na memória da cidade, a existência de populações indígenas na região que compõe hoje a cidade. Nos primeiros anos de colonização da cidade a própria colonizadora INDECO aponta a não existência de populações originárias nessa região, o que facilitaria a integração deste ter- ritório, De fato não era comum a observação de indígenas e realmente o senso comum foi convencido de a cidade ter sido instalada em lugar onde não havia índios. Até na atualidade são raras as referências a povos indígenas no município, muito embora exista uma grande fazenda, historicamente ligada à empresa ‘colonizadora’, com o nome Kaiabi; os nomes dos municípios de Apiacás e Paranaíta, de origem indígena; e centenas de sítios arqueológicos na região. (LIMA, 2020, p. 83) ​Também existem relatos de ex-funcionários da colonizadora que explicam investidas que eram realizadas a serviço da empresa, que buscavam capturar e assassinar grupos indígenas que estavam presentes na região, antes mesmo da abertura da clareira da cidade e da chegada dos primeiros compradores das ter- ras da gleba de Alta Floresta (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 83). A dramaturgia aborda essa questão do “vazio” na cena 3 do espetáculo, na qual um ator diz: “2. Era uma vez um lugar muito bonito, de lenda e solidão, e que só não podia ser mais bonito porque ‘não tinha homens’, e não existindo homens não haveria família abençoada, terra trabalhada e tudo se perderia…” (MACEDO, 2008, p. 96). Essa fala contrapõe a cena anterior da dramaturgia, na qual o públi- co escuta o relato do indígena anunciando a destruição promovida pelo homem branco. Como apresentado acima, a não presença de populações indígenas na cidade é um fato construído pela colonizadora para facilitar a ocupação da re- gião, assim como um rastro da política governamental de “vazios demográficos”, ao mesmo tempo que essa fala aponta para a inferiorização do indígena enquanto ser humano que não foi “escolhido por Deus” para tornar a terra próspera. ​Ainda sobre a presença de povos indígenas na região, pode-se apontar as “limpezas” realizadas pela própria empresa. Em sua dramaturgia, Macedo (2008,
ARTIGOS LIVRES 70 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana p. 96) aponta “3. Será fácil rasgar a carne do índio e abrir as veias da Floresta!”. E a historiadora Regina Beatriz também aponta esse processo em sua disserta- ção, “A esse respeito, referindo-se à expulsão dos indígenas que se encontravam nas terras da Indeco, um funcionário dessa Colonizadora foi categórico: ‘Nós aqui domamos os índios e fizemos a limpeza da área’” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 83). Esse relato de um funcionário entrevistado pela historiadora em abril de 1982 deixa claro a construção do projeto de ocupação e integração que a colonizadora e os governos militares possuíam para essas terras, assim como podemos iden- tificar a importância da presença da dissertação da professora no processo de construção da dramaturgia, dando ao espetáculo teatral um embasamento teóri- co e historiográfico, na construção de suas representações. Importa, assim, abordar o tema da Propaganda a partir da dramaturgia. Para isso, selecionamos a terceira cena do espetáculo. Nesta cena, figuram cinco atores, caracterizados como migrantes colonos, a rubrica do texto anuncia que chegam no espaço cênico pelo rio, em uma canoa - provável alusão a balsa da INDECO. A região escolhida para o empreendimento imobiliário da Colonizadora possui uma demarcação natural que é o Rio Teles Pires (ou São Manuel), o que im- possibilitava o acesso às terras da colonizadora. Por ser um rio de grande escala, dificilmente se conseguia adentrar na região sem que fosse pelo acesso cons - truído e controlado pela empresa, a Balsa da INDECO: Barreira natural que ajudava na determinação de características socioculturais, distin- tas para Alta Floresta, se comparada com outras cidades da região. Sabe-se que houve um rigoroso controle para a entrada na área da INDECO, controle este favorecido pelo fato de o único acesso ser a balsa. (LIMA, 2020, p. 107) ​Dessa forma, o acesso à área de povoamento só era permitido para pes- soas que comprovassem possuir terras já adquiridas na cidade. Esse movimento perdeu força no início da década de 1980. Durante os primeiros anos da coloniza- ção da região a entrada de grupos “indesejáveis” era controlada. Tal expediente dava à colonizadora a função de controlar o grupo social a ter acesso à cidade. A empresa iniciava esse processo de seleção ainda na compra das terras. As pro- pagandas e divulgações dessa “terra fantástica da Amazônia” (MACEDO, 2008, p. 96) possuíam um público-alvo definido. Buscava grupos populacionais do estado do Paraná. Em parte, as terras eram vendidas em escritórios da colonizadora, instalados em cidades do Paraná.
ARTIGOS LIVRES 71 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana A propaganda não se restringia somente às cidades que tinham um escritório da INDE- CO. Corretores em outras cidades apresentavam as novas terras nos municípios que não tinham ponto específico de vendas. Nessas cidades eram feitas reuniões na resi - dência de alguns moradores, que chamavam os amigos para participarem, e durante as reuniões eram exibidas fotos do projeto da INDECO. (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016, p. 216) ​A colonizadora buscava pela população sulista por se tratar de um grupo descendente de imigrantes europeus que, segundo a colonizadora, já possuíam relação com a migração e com o trabalho na terra. Vale recordar o texto “A Terra Para Quem Nela Não Trabalha (A especulação com a terra no oeste brasileiro nos anos 50)”, de Alcir Lenharo (1986), no qual compreendemos que parte do Estado do Paraná e do atual Mato Grosso do Sul foram ocupados a partir de projetos de colonização das décadas de 1940 e 1950 6 . […]. Em primeiro lugar, abriu-se espaço para o colono do sul, branco, de origem euro- péia, preferido em relação ao nacional, geralmente de origem nordestina. O colono do sul já teria passado pela experiência da colonização, traria seu pecúlio para aplicar na sua propriedade e, acima de tudo, com outra mentalidade em relação ao trabalho faria da produção uma atividade realmente lucrativa. Produziria, pois, como um capitalista. (LENHARO, 1986, p. 50) Dessa forma, pequenas propriedades de terra eram foco da INDECO. Nas pe- ças de propaganda, a colonizadora apontava para uma terra próspera, fértil, que teria lugar para todos os que estivessem dispostos a nela trabalhar e que nessa nova terra os problemas que os estavam afetando, como as geadas, não eram uma realidade. É importante termos em mente que nos anos anteriores ao início dos empreendimentos em Alta Floresta, uma geada atingiu a região sul, causan- do danos para as diversas plantações em território paranaense 7 . Então, quando aparece uma oportunidade, apresentada pela empresa como a salvação para os problemas locais, muitas dessas famílias optam por vender sua pequena quan- tidade de terra no interior do Paraná para se aventurarem na Amazônia, lugar no 6 No texto, Alcir Lenharo (1986) problematiza a presença dos conflitos por terra no interior do Brasil. É comum abordarmos esses conflitos nessa região do país pós 1964, porém Lenharo nos mostra que esses conflitos já ocorriam anteriormente, e que eles se agravam durante os governos militares pós 1964. 7 Em sua dissertação, Regina Beatriz Guimarães Neto entrevistou diversos colonos que “[...], quando entrevistados, aponta a seca ou a geada como fatores importantes para a sua saída” (GUIMARÃES NETO, 1986, p.12).
ARTIGOS LIVRES 72 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana qual eles poderiam, segundo a empresa, prosperar de forma fácil e rápida. Na cena selecionada um dos atores anuncia essa terra amazônica. 1. A terra fantástica da Amazônia arrastou um sem número de famílias pobres do campo para cá, provenientes de várias regiões do país. Abra a porta, escuta, sinta, veja, eu lhe apresento: A AMAZÔNIA oferece a você, agricultor, e sua família, uma nova opção de vida. (MACEDO, 2008, p. 96, grifos do autor) ​A primeira frase da citação acima é uma referência direta à dissertação de Guimarães Neto (1986, p. 1). Essa é a primeira frase de seu trabalho, a qual foi uti- lizada na primeira fala dos colonos na dramaturgia. Essa fala apresenta a ideia de terra fantástica e prometida que é retomada nesta cena diversas vezes. Ao com- por as propagandas da colonizadora, busca atrair a população com a idealização de uma terra cobiçada e próspera para as famílias. ​Durante a cena temos falas que abordam a realidade encontrada por mui- tos dos colonos e a ideia de paraíso contada pela colonizadora em suas propa- gandas. Como é o caso dessas duas falas ditas em sequência, “5. Corra, chegou a sua vez / Não haverá outra oportunidade / Morra de mosquito, de malária / A mor- te bela é a Amazônica” seguindo de “1. Venha plantar conosco nas terras férteis de nossos projetos, as culturas do café, arroz, feijão, milho e mandioca. Desfrute da infra-estrutura que uma nova cidade lhe oferece.” (MACEDO, 2008, p. 97). Duas ideias estão em conflitos nessa sequência de falas: relatos de problemas encon - trados pelos colonos que enfrentavam novas doenças e a ideia da terra fértil, pa- rafraseada de forma muito interessante por Regina Beatriz, que a chama de “Ouro Verde”. Sabe-se que as culturas citadas no texto não prosperaram e logo foram substituídas pelo gado e a exploração madeireira, assim, como a busca pelo ouro. Compondo uma representação criada pelo espetáculo de que aquilo que se es- tava sendo vendido não seria capaz, já que a produção teatral tem ciência dos caminhos percorridos pela economia local. ​Outra questão importante que colabora para a migração desses agricul- tores foi o avanço do grande latifúndio na região paranaense e a automação das lavouras. Grandes latifundiários estavam ampliando suas propriedades a partir da compra de terras de pequenos agricultores que não viam outra opção senão vender suas terras e abandonar aquele território. Sobre essa opção de se bus- car colonos no sul do país, Guimarães Neto apresenta a seguinte declaração de Ariosto da Riva.
ARTIGOS LIVRES 73 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana Indagado a respeito dos motivos pelos quais procurou vender os lotes da gleba de Alta Floresta preferencialmente no Paraná, Ariosto Da Riva respondeu de maneira incisiva: ‘Porque no Paraná a mecanização estava expulsando o pequeno, a lavoura mecanizada exige um volume de terra. O pequeno começou a ficar esprimido lá, e o homem que vendesse dez alqueires no Paraná podia comprar cem aqui. […]’. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 100) Macedo também aborda na dramaturgia esses problemas enfrentados pelos paranaenses ainda em sua terra natal. Os problemas climáticos afetaram de forma dura a região sul do país na década de 1970, desde a falta de água, até as geadas que destruíram plantações. Na mesma fala é possível identificar o avanço das empresas latifundiárias sobre as terras de pequenos agricultores. 2. Era uma terra sem geada, que nem precisava ser adubada, com quase tudo de gra- ça (só módicas prestações mensais), mas a família seria assegurada e poder-se-ia até pensar em não mandar o filho para a cidade, pois ‘naquelas terras’ havia terra… (MACE - DO, 2008, p. 97) Em relação às migrações causadas por problemas naturais, Guimarães Neto (1986, p. 12-3, grifos da autora) diz, Ainda que estes fenômenos naturais possam em determinados momentos acelerar a migração, não devem, no entanto, ser considerados os seus causadores. A maioria dos colonos, quando entrevistados, apontam a seca ou a geada como fatores importantes para a sua saída. Contudo, vejo mais como dificuldades que parecem não ter solução , para uma população pobre, oprimida politicamente e que sofre uma espoliação cons- tante de seu saber, incompatível com os novos modelos tecnológicos , que somente atendem poderosos grupos econômicos de ‘pai para filho’ ​O apelo pelo sentimento de colono desbravador também se faz presente na dramaturgia, assim como o papel de conquista da Amazônia. 5. Seja errante sempre à procura de alguma coisa, não desistindo nunca, acreditando no desconhecido, recomeçando histórias, obedecendo uma voz interior: ‘algo indefini - do que impõe ao espírito e ao coração convicção’… (MACEDO, 2008, p. 97) ​Dessa forma, “conquistar a Amazônia, deixava de ser simplesmente uma questão de luta por melhores condições de vida e realização pessoal do colono, para ser também uma contribuição do cidadão à sua nação ” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 35, grifos da autora). Essa necessidade da conquista também estava pre-
ARTIGOS LIVRES 74 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana sente na propaganda apontada na dramaturgia sobre a conquista da Amazônia e da terra prometida. 5. Tornem homens fortes e poderosos, capazes de enfrentar perigos nunca vistos, saindo de lugares distantes para lugares tão distantes! Atravessem uma densa e ingê- nua mata, sofram golpes de morte! Saltem de um sonho para outro, da terra da geada para a prometida terra de abundância… (MACEDO, 2008, p. 98) ​As ideias de prosperidade e “terra prometida” presentes na cena em ques- tão foram retomadas nas últimas falas da cena: “2. Era uma terra em que o co- meço está fora do tempo, não conta tempo não, porque é lá que está o futuro, um futuro de fartura e até que enfim o sossegar… [...] 1. Nós lhe esperamos, porque inventamos um paraíso, onde não há misérias.” (MACEDO, 2008, p. 98). Como já abordamos anteriormente, essa ideia de uma terra de fartura e de futuro foi ex- plorada pelas propagandas da INDECO. Ainda sobre essa concepção de “paraíso terrestre”, Regina Beatriz aponta o pensamento de Ariosto da Riva, dono da colo- nizadora: Decididamente, nesse imaginário o mundo era fantástico, não se falava de dificuldades e tampouco de sacrifícios. […]. Ariosto construía a representação da terra prometida e não admitia outras figurações que tentassem substituir a realidade pela imaginação . Ele, o colonizador, nomeava o real. […]. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 113, grifos da au- tora) Deve-se ressaltar que havia uma diferença entre os projetos de colonização públicos e privados, “[…]. A principal diferença entre colonização privada e públi- ca é a seleção de colonos. A primeira, escolhe as pessoas que têm condições de comprar uma porção de terra, e a segunda é destinada para aqueles que justa- mente não têm como adquiri-la” (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016, p. 219). No caso da colonização de Alta Floresta, a INDECO realizou uma seleção sociocultural, na qual ela não recebe somente aqueles com condição financeira; porém, sua esco - lha por realizar campanhas e propagandas somente em uma determinada região do país demonstra o interesse em selecionar possíveis colonos. O último eixo temático a ser discutido está relacionado com o Garimpo. Se- gundo Joanoni Neto, em seu livro “Fronteiras da Crença: Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970” (2007, p. 59), “Alta Floresta fez parte de uma das mais importantes reservas auríferas do Brasil […]”. Durante a década de 1970, estu-
ARTIGOS LIVRES 75 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana dos apresentaram a qualidade do solo na região amazônica e de suas riquezas. A exploração do solo em busca do ouro, no caso de Alta Floresta, e de outros projetos do mesmo período, não era propagada, para que não se atraísse uma população indesejada pelas colonizadoras, devido ao número de pessoas pobres que migravam para a cidade sem pretensões de permanecerem nela, mas sim aproveitar a existência do ouro para tentar enriquecer. O foco inicial da coloni- zação era a agricultura, porém, diferente das propagandas sobre a terra, aquele não era um lugar de terra fértil para as mesmas culturas e meios de produção do Paraná. Dessa forma, com o ciclo da agricultura perdendo força e a busca do ouro se mostrando próspera, “Os problemas com as lavouras, [...], aos poucos iam sendo conhecidos. Mais tarde, quando a fama já corria deste mundo, o pro- gresso da cidade de Alta Floresta e o ouro dos garimpos vinham ampliar e elevar o mito da terra de riqueza” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 33, grifos da autora). Assim, Alta Floresta passa a atrair pessoas não mais para trabalhar com a terra, mas sim para desbravar-lá com o garimpo. ​O primeiro diálogo sobre esse tema na peça ocorre na quarta cena. Sozinho em cena um ator caracterizado de agricultor/colono fala com o público. – Óia, seu moço! Tá uma correria danada pela cidade! De uma hora pra outra a cidade virou um formigueiro de gente! O ouro – não sei se isso é bendito ou maldito – deu sua cara pra estas bandas e o povo endoidou cavando buraco pra todo lado. Nem os atolei- ros na estrada segura esse montão de gente que quer chegar aqui e chega. Só se esta terra for somente ouro pra dar pra todo mundo. Ninguém tá respeitando nada. A Natu- reza, coitada! Tá virando um balaio furado escorrendo uma lama esquisita! (MACEDO, 2008, p. 98) ​Nesse trecho, podemos identificar o relato da chegada em grande número de pessoas em busca do ouro que havia sido encontrado nas terras da coloniza- dora, tornando foco desses migrantes, que vinham de lugares distantes na tenta- tiva do enriquecimento. Na continuidade da cena, entra outro ator caracterizado de colonizador, e se inicia um diálogo entre o colono e o colonizador sobre a pre- sença do ouro e dos garimpos nas terras do projeto da colonizadora. – Senhor, onde foram todos? – Deus colocou também ouro nessas terras e eles foram em busca da maldição. – Maldição?! – Sim, tudo será alterado. Não haverá mais planos nem planejamento. Chegarão mul- tidões da noite para o dia com seus sonhos brilhantes e rasgarão o solo por todos os cantos. No ar já se sente um cheiro de morte em todos os sentidos. – Eles morrerão?!
ARTIGOS LIVRES 76 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana – Não somente eles, mas nós também. Para sobreviver às imposições da garimpagem será preciso estar disposto a matar ou morrer. Mataremos e morreremos. É a lei da sobrevivência. – Mas e se mandássemos todos embora?! – Não é mais possível. Já estão vindo de toda parte. Usaremos a polícia para o extermí- nio de muitos, mas todos, será impossível. O ouro é um atrativo que endoida os homens tornando-os como lobos famintos. – É terrível! – Não se preocupe. Haveremos de tirar proveito de toda a situação. Afinal, temos o po - der de nosso lado. Pediremos auxílio à Igreja para apaziguar os mais afoitos em nome de Deus. O ouro passará e os que aqui permanecerem sofrerão na busca de seus pró- prios caminhos. No momento, uma coisa é importante: a cidade crescerá rapidamente sem o ônus da propaganda. – Pra natureza, isso pode ser pior que uma bomba! (MACEDO, 2008, p. 99-100) ​Na cena acima, no diálogo entre colono e colonizador podemos analisar como uma representação da busca pelo ouro, assim como a opressão realizada pela colonizadora INDECO no processo de avanço do garimpo e o crescimento que a cidade teve na década de 1980. No caso de Alta Floresta, o papel repressor da colonizadora e da figura de seu dono, Ariosto da Riva, proliferaram uma per - seguição aos garimpeiros, além das mortes e expulsões. É possível identificar repressão e menosprezo pelos garimpeiros, que partiam da própria população que chegara anteriormente, Ariosto da Riva foi o rosto de uma propaganda anti- -garimpo na cidade. Os garimpeiros, que não eram sulistas, foram condenados por Ariosto da Riva. Eles eram os invasores de sonhos e traziam para a sociedade valores antagônicos aos da família, como a violência e a promiscuidade. Quando os garimpeiros, atraídos pela no- tícia de que havia ouro no entorno de Alta Floresta, estes chegaram aos milhares e o desprezo, o preconceito e a violência contra os garimpeiros. (TAFNER JUNIOR, 2016. p. 220) ​Além desse processo de controle, que deixou de existir no início nos anos 1980, o projeto de Alta Floresta da colonizadora INDECO promoveu uma caça a garimpeiros, diferente de outros projetos do norte do estado, No caso do garimpo de Paranaíta, na área do Projeto Alta Floresta, os garimpeiros que insistiam em entrar foram expulsos com violenta repressão: […] grande parte dos ga- rimpeiros expulsos […] por um grande número de jagunços, alguns policiais fardados [e pelo] delegado de Sinop, José Carlos Conte […] Calcula-se em 300 o número de mor- tes […] quem caminha naquelas matas não raro encontra cadáveres já praticamente decompostos. E diga-se que no mês de novembro um grupo de garimpeiros encontrou 18 cadáveres amontoados, mortos recentemente. (JOANONI NETO, 2007. p. 65) ​Deixando claro a violência sofrida pelos garimpeiros nos anos iniciais do
ARTIGOS LIVRES 77 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana projeto e a utilização das forças de repressão do estado em processos que bene- ficiavam as empresas privadas de colonização na garantia de suas terras (JOA - NONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2019, p.109). Podemos ainda citar o episódio co- nhecido como “taca”, na qual Quase todos os garimpeiros (cerca de 3.500) foram torturados pelos bandidos. Em al- guns introduziram o cano do mosquetão e outros objetos no ânus, outros eram pen- durados pelos pés (muitos até morreram), outros eram obrigados a manterem relação sexual com os próprios companheiros. As mulheres eram violentadas na presença dos maridos pelos policiais e jagunços. Chegou ao ponto de colocarem gasolina na vagina e em seguida atear fogo. Davam coices de mosquetão no ventre de mulheres grávidas. (SCHAEFER, 1985, p. 150 apud LIMA, 2020, p. 86) ​Então, podemos compreender o uso dessas tentativas da colonizadora de buscar desmoralizar o garimpo e seus praticantes. Em sua dissertação de mes- trado “A Lenda do Ouro Verde” (1986), Regina Beatriz Guimarães Neto aponta como havia uma necessidade de diferenciar os migrantes do sul dos migrantes do nor- deste, ideia presente nos discursos que frisavam como o colono do sul buscou a terra amazônica para prosperar a partir do trabalho, preservando, ainda, a lealda- de a sua família; enquanto os garimpeiros, na sua maioria nordestinos, buscavam apenas o enriquecimento rápido a partir do ouro sem interesses em se fixar na cidade. A tentativa da colonizadora de frear o avanço e a proliferação do garimpo falha, mas esse movimento impulsionado pela empresa gera uma descriminação ainda presente na cidade entre paranaenses e nordestinos. Nesta representação do novo lugar, o colono é sempre mencionado como o homem da terra, que mais parece carregar uma ‘sina’ - a de cultivar, cultivar. E ocupar. Outros são garimpeiros, grileiros, aventureiros sem rumo, sem lugar, que acompanham o brilho da riqueza e não podem parar. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 67) ​Sobre a repressão realizada pela colonizadora, a dramaturgia aponta de forma camuflada. Em sua dissertação, Lima ressalta que essa era uma temática delicada. No ano em que o espetáculo estreou (1996) o filho de Ariosto da Riva, Vi - cente da Riva, foi eleito prefeito de Alta Floresta. Com isso, havia um certo receio da reação dele e da família Riva como um todo, pelo fato de que eram (e ainda estão) presentes na vida política e detentores de grandes poderes no município
ARTIGOS LIVRES 78 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana (LIMA, 2020, p. 73-4). Sobre o receio em abordar o episódio de repressão denomi- nado “taca”, Lima (2020, p. 86) diz, Discussões sobre a ‘taca’ foram longamente travadas pelo TEAF, mas a escolha pelo desvio foi consciente. Seria uma opção demasiadamente espinhosa e perigosa. Do ponto de vista da relação do Grupo com a cidade e os controladores dos espaços de poder, poderia causar problemas para a própria existência do coletivo teatral. Ainda assim, no diálogo das personagens são sugeridas práticas hostis e violentas que foram entendidas pelo espectador mais atento. ​No trecho selecionado acima da dramaturgia, também pode-se identificar o crescimento da cidade durante o ciclo do ouro, quando a personagem do colo- nizador afirma: Não se preocupe. Haveremos de tirar proveito de toda a situação. Afinal, temos o po - der de nosso lado. Pediremos auxílio à Igreja para apaziguar os mais afoitos em nome de Deus. O ouro passará e os que aqui permanecerem sofrerão na busca de seus pró- prios caminhos. No momento, uma coisa é importante: a cidade crescerá rapidamente sem o ônus da propaganda. (MACEDO, 2008, p. 100) ​Durante esse período, a cidade foi sede de um dos principais garimpos do país. Assim, a colonizadora passa a receber investimentos em suas terras sem a necessidade da propaganda, a cidade passa a se tornar famosa e o fruto do de- sejo de diferentes brasileiros, que sonham com essa terra de riquezas. E, assim como a personagem diz, o ouro deixa de ser abundante no final da década de 1980 início de 1990, gerando na cidade um debandada, levando a permanecer somente aqueles que tinham interesse de permanecer, ou que não tinham condições de se aventurar em outros lugares. Durante a década de 1990, o comércio de madeira passa a ser o principal produto da região, sendo ultrapassado pela pecuária nos anos 2000. CONSIDERAÇÕES FINAIS ​Em nosso artigo buscamos compreender as representações engendradas na dramaturgia “Fragmentos de Vida” (1995), do TEAF, a partir dos recortes dos eixos temáticos: Participação do Governo Federal, Propaganda e Garimpo, dis- cutidos nos tópicos anteriores. Procuramos identificar e relacionar os trechos
ARTIGOS LIVRES 79 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana da dramaturgia com o dissertação de mestrado da historiadora Regina Beatriz Guimarães Neto (1986) e com outros textos historiográficos que discutem as te - máticas abordadas. Assim, buscamos uma primeira aproximação com as possi- bilidades de se utilizar uma produção teatral como fonte histórica. ​A partir da dramaturgia, observamos ser fundamental estabelecer o lugar político-social do dramaturgo Agostinho Bizinoto e do grupo Teatro Experimental de Alta Floresta e sua relação com o território no qual está inserido, abordando, em seu espetáculo, problemas importantes para a realidade de Alta Floresta e da Amazônia Legal, como seu posicionamento perante a cidade e seu processo de colonização. Podemos identificar a partir das representações construídas e contidas na dramaturgia teatral uma relação similar às pesquisas historiográficas, muito porque o texto teatral possuiu como principal referência a dissertação de mes- trado de Regina Beatriz Guimarães Neto, aproximando a discussão proposta pelo espetáculo do conhecimento histórico. Mas também foi possível identificar na análise da dramaturgia e da dissertação de mestrado de Ronaldo Adriano Freitas Lima, que a produção da obra teatral carregou a presença das relações de poder presentes na cidade, evitando em alguns momentos a discussão mais aflorada e direta sobre o papel e a presença da empresa colonizadora nas relações com os colonos e garimpeiros. O que nos parece identificar a compreensão do espaço em que o grupo de teatro estava presente, assim como suas relações com as fi - guras de poder da cidade. Podemos compreender a partir da análise realizada, que o processo de ocu- pação da Amazônia teve uma presença ativa de empresas privadas juntamente com o governo militar. Construindo cidades que pudessem servir de processo ci- vilizatório e controlador sobre, não somente o espaço recém ocupado, mas tam- bém sobre os corpos daqueles que estavam sendo colocados como parte crucial da integração nacional, os migrantes. Portanto, procuramos discutir nesses três recortes temáticos que o processo de colonização e ocupação da região norte de Mato Grosso, em especial da cidade de Alta Floresta, pudesse ser compreendido como um processo de controle da terra e dos corpos ali inseridos, apresentando esta região como um “paraíso na terra”, um lugar no qual a terra fosse fértil a pon- to de brotar oportunidades em todas as lavouras. ​Concomitantemente, entendemos possível problematizar o processo de ocupação do norte de Mato Grosso. A partir da dramaturgia, percebe-se a sele-
ARTIGOS LIVRES 80 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana tividade dos colonos, optando-se por sulistas em contraposição aos migrantes nordestinos, gerando tensões principalmente na década de 1980. Que as ima- gens e os expedientes retóricos que compõem um texto teatral gerem outros trabalhos ocupados com o projeto de colonização implementado no período da ditadura militar no Brasil, possibilitando refletir, criticamente, sobre agentes e as práticas mobilizadas no território da Amazônia Mato-grossense. FONTE MACEDO, Agostinho Domingos Bizinoto. Fragmentos de Vida (1996). In : MACEDO, Agostinho Domingos Bizinoto. Textos Teatrais de Agostinho Bizinoto: Dramaturgia Popular Surgida de Experiências em Grupo. Alta Floresta – MT. EGM, 2008. p. 93-106. MACEDO, Agostinho Domingos Bizinoto. Textos Teatrais de Agostinho Bizinoto: Dramaturgia Popular Surgida de Experiências em Grupo. Alta Floresta – MT. EGM, 2008. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Maria Celina D’. O que era novo no Estado Novo. In: ARAÚJO, Maria Celina D’. O Estado Novo . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. p. 7-14. CHARTIER, Roger. O autor entre punição e proteção. In: CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 21-45. CHARTIER, Roger. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: CHAR- TIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editora, 2002, p. 13-28. GALVÃO, Josiani Aparecida da Cunha. Colonização e cidades em Mato Grosso. In : Anais do XX- VII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal – RN. 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares Acesso em 01 out 2020. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde. 177f. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas – SP, 1986. Disponível em: < https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/17663?- guid=1663774492256&returnUrl=%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1663774492256%26q uantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d17663%2317663&i=1 >. Acesso em 09 abr 2020 JOANONI NETO, Vitale. Fronteira da Crença: Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial; EdUFMT – Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 2007. JOANONI NETO, Vitale; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Amazônia: Políticas governamen-
ARTIGOS LIVRES 81 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana tais, práticas de ‘colonização’ e controle do território na ditadura militar (1964-85). In: Anuário IEHS , v. 34 (1) 2019, p. 99-122. Disponível em: https://anuarioiehs.unicen.edu.ar/Files/2019%20 1/05%20Anuario%20IEHS%2034(1)%20d.Netos.pdf JOANONI NETO, Vitale; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A Amazônia e a política de Inte- gração Nacional: o discurso da modernização entre o passado e o presente. In: Diálogos La - tinoamericanos , v. 26, 2017, p. 144-156. Disponível em: https://tidsskrift.dk/dialogos/article/ download/112740/161470/231052 Acesso em 28 mai 2020. LENHARO, Alcir. A Terra Para Quem Nela Não Trabalha (A especulação com a terra no oeste brasileiro nos anos 50) . In: Revista Brasileira de História , v.6 nº.12, p.47-64, São Paulo - SP, 1986. Disponível em: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3626 Acessado em 08 de mai de 2020. LIMA, Ronaldo Adriano Freitas. O lugar e a cena: a territorialidade na poética do Teatro Expe- rimental de Alta Floresta. 2020. 208 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contem- porânea) - Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Comunicação e Artes, Cuiabá – MT, 2020. Disponível em: < https://ri.ufmt.br/handle/1/3485 >. Acesso em 23 jun 2022. LIMA, Ronaldo Adriano Freitas. Fragmentos de Vida - A ocupação da Amazônia mato-grossen- se nos palcos da cidade. In : LIMA, Ronaldo Adriano Freitas. O lugar e a cena: a territoriali- dade na poética do Teatro Experimental de Alta Floresta. 2020. 208 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) - Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Comunicação e Artes, Cuiabá – MT, 2020. Disponível em: < https://ri.ufmt.br/handle/1/3485 >. Acesso em 23 jun 2022. PATRIOTA, Rosangela. O Teatro e o Historiador: interlocuções entre linguagem artística e pes- quisa histórica. In : RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rosangela. (Orgs.). A história invade a cena. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 26-58. RÉMOND, René. Uma História Presente. In : RÉMOND, René. Por uma história política . 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 13-36. SANTANA, Arthur Bernady. A BR-163: “ocupar para não entregar”, a política da ditadura militar para a ocupação do “vazio” Amazônico. In : XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza - CE, 2009. Disponível em: http://encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/anpuhnacional/S.25/ ANPUH.S25.1230.pdf Acesso em 09 de out de 2020. TAFNER JUNIOR, Armando Wilson; SILVA, Fábio Carlos da. Alta Floresta: uma colônia de Arios- to da Riva em Mato Grosso. In : Novos Cadernos NAEA. v.19, n.3, p.205-232, set-dez 2016. Dis- ponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/2527/4091 Acessado em 23 de out de 2020. TEATRO EXPERIMENTAL DE ALTA FLORESTA. Livros de Ata 1 . Disponível no Arquivo Memória TEAF.
ARTIGOS LIVRES 82 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro DECOLONIALIDADE E TESSITURAS INDÍGENAS: ARTICULAÇÃO POLÍTICA DOS TERENA DECOLONIALITY AND INDIGENOUS TESSTURES: POLITICAL ARTICULATION OF THE TERENA https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21249 Iara Quelho De Castro Universidade Federal de Mato Grosso do Sul https://orcid.org/0000-0003-1104-364X iara.quelho@ufms.br Recebido em 29 de abril 2024 Aprovado em 02 de junho de 2024 RESUMO: O artigo trata da articulação política dos Terena, etnia indígena que vive no Mato Grosso do Sul. Por meio da análise de documentos que formulam após cada assembleia, realizada anualmente, desde 2012, e sob uma perspectiva decolonial, busca-se apontar as formas de atuação e posicionamento adotados em face às adversidades que enfrentam. A análise permite verificar que os Terena tecem suas práticas políticas externas de diferentes formas, destacando-se o domínio do conhecimento da sociedade envolvente. Palavras-chave: Política Indígena; Protagonismo Indígena; Decolonialidade ABSTRACT: The article deals with the politics articulation of the Terena, an indigenous ethnic group that lives in Mato Grosso do Sul. Through the analysis of documents that they formulate after each assembly, held annually since 2012, and from a decolonialist perspective, we seek to point out the ways of performance and positioning adopted in the face of the adversities they face. The analysis allows us to verify that the Terena weave their external political practices in different ways, highlighting their mastery of knowledge of the surrounding society. Key words: Indigenous Politics; Indigenous Protagonism; Decoloniality
ARTIGOS LIVRES 83 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Apresentação Com uma população calculada em 28.845 mil pessoas (IBGE, 2010), os Terena vivem atualmente em um território descontínuo, fragmentado em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas. Encontram-se em muitos municípios sul-mato- grossenses, tais como Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia, Campo Grande, Nioaque e Rochedo. Também há famílias Terena vivendo em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiwéu), Dourados e no estado de São Paulo (na Terra Indígena Araribá). Os Terena mantêm um contato intenso com a população regional e nacional, interagindo sob as mais diversas formas e em diferentes âmbitos da sociedade envolvente. A presença indígena, anteriormente, se revelava exclusivamente nas representações dos homens trabalhadores nas fazendas, das mulheres como trabalhadoras domésticas e feirantes nas ruas e mercados das cidades, como Campo Grande, Aquidauana, Miranda, Nioaque; atualmente, a situação mudou. O movimento indígena brasileiro, visível a partir da década de 1970, progressivamente possibilitou a ampliação de espaços da atuação indígena. Nesse contexto, os Terena conquistam cargos públicos nas prefeituras, em secretarias estaduais e nas universidades da região, como estudantes de cursos de graduação e pós-graduação, formam-se professores, profissionais nas mais diversas áreas, especialistas, mestres e doutores. De um modo geral, pode-se definir os Terena como um povo bilíngue que “tem orgulho de dominar, inclusive por meio do uso da língua do purutuya, a situação do contato com a sociedade nacional” (LADEIRA, 2001, p. 130). Inseridos no movimento indígena brasileiro, os contemporâneos Terena apresentam práticas políticas no interior da sociedade nacional e uma atuação que remete a uma perspectiva decolonialista de mundo. Essa percepção tornou- se possível à medida em que foram examinados os registros que fazem ao final de cada assembleia que realizam anualmente desde 2012. Os registros, denominados de documentos finais, apresentam-se como uma espécie de ata, um resumo escrito dos assuntos debatidos e das decisões tomadas em cada assembleia realizada e que são veiculados nas redes sociais
ARTIGOS LIVRES 84 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro disponíveis e naquelas criadas pelo próprio grupo. 1 Qual seria a finalidade das publicações e a quem se dirigem? Levantamos a hipótese de que, ao registrarem suas ações políticas, os Terena buscam documentar seu protagonismo, apontar sua visão de mundo e construir uma memória que possa legitimar sua presença e lutas no interior da sociedade nacional, apontando sua ancestralidade na região, a continuidade cultural, a exemplo da realização de assembleias, que se firmam como uma das tradições do grupo para o debate e tomada de decisões coletivas. Para explorar as questões provocadas pelos registros examinados, organizamos o presente texto em duas partes. Na primeira parte, retomamos, de forma breve, a perspectiva decolonialista construída a partir da América Latina, utilizada como uma das referências para pensar as experiências que os Terena vêm realizando na contemporânea esfera pública que se constitui articulada às suas dinâmicas internas. A compreensão do conjunto de percepções e representações negativas contemporâneas sobre os povos indígenas, seus saberes e histórias passam necessariamente, ao nosso ver, pela compreensão daquilo que intelectuais latino-americanos chamam de colonialidade do poder, do ser e do saber. Dessa forma, chamamos para a cena da presente reflexão, as principais pautas reivindicatórias dos decolonialistas, para o entendimento de novas propostas que se encaminham no sentido das possibilidades de construção de um mundo que não se baseia na exclusão de saberes e seres que povoam de forma múltipla, diversa e enriquecedora o mundo em que vivemos. Na segunda parte, sob a perspectiva do protagonismo indígena, enfatizado por Monteiro (2001), examinamos o posicionamento do grupo vinculado ao Conselho Terena, a organização indígena que coordena as Grandes Assembleias do Povo Terena, as Hanaiti Ho’Únevo Têrenoe , a partir da leitura dos chamados documentos finais, que são produzidos após cada assembleia. Esses documentos encontram-se publicados nas mídias digitais, em sites como o da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e do CIMI (Conselho Indigenista 1 Os documentos finais estão divulgados nas redes digitais do Conselho Indigenista Missionário, do Instituto Socioambiental – PIB (Povos Indígenas), do Racismo Ambiental e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a dos próprios Terena, os quais possuem um site na internet e mantêm uma página no Facebook para interagir com o público de um modo geral, para além da sua própria comunidade, para dar conhecimento de suas ações mostrando seu posicionamento em relação a temas a eles relacionados, publicando e divulgando eventos, apresentando as suas propostas, reivindicações, e, quando necessário, convocando para a luta, mobilizando o grupo na defesa dos seus direitos.
ARTIGOS LIVRES 85 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Missionário), constituindo um campo de interação, tornando públicas suas determinações para além de suas aldeias, construindo um ponto de referência para a conquista de novas parcerias pela causa indígena, como também para se mobilizarem e enfrentarem os desafios que lhes são impostos. Sob uma perspectiva decolonial, entendemos os registros realizados como testemunhos de políticas e estratégias viabilizadas pelos Terena neste século XXI e que delineiam um projeto que defende a constituição de uma sociedade outra, onde possam bem viver, opondo-se à hierarquização inferiorizante na qual foram inscritos. Neste artigo, estabelecemos um diálogo horizontal entre a teoria da decolonialidade e a produção dos registros Terena, por meio do qual se pode rastrear o delineamento de um projeto político e ético decolonial, como luta por reexistência dos povos indígenas, explorando as possibilidades abertas pelas contribuições dos teóricos da decolonialidade para novas leituras das histórias indígenas, ontológica e epistemologicamente falando, de povos subalternizados pelas hierarquias do parâmetro da modernidade europeia. Perspectivas decoloniais para se pensar os povos indígenas A hegemonia da tradição política e filosófica da modernidade europeia pro - duziu a subalternidade dos povos indígenas, como seres, saberes e experiências avaliados como irrelevantes. Nesse espaço colonizado, estabeleceram-se refe- renciais universais impostos como únicos e legítimos que constituíram a inferio- ridade dos Outros, situados fora desses parâmetros. 2 O apagamento do “resto” do mundo ganhou força como um paradigma, para se representar o mundo através da perspectiva racional e iluminista que prosperou na Europa Ocidental como projeto epistemológico e ontológico expresso na cisão abissal do mundo. De um lado, os que se consideram iluminados, que detêm o conhecimento “verdadeiro” e, do outro, aqueles que são considerados obscuros, ignorantes, insensatos e supersticiosos. Esse tipo de classificação, como parte constitutiva da moderni - 2 Para o sociólogo peruano, Aníbal Quijano, esse novo padrão de poder, fundamenta-se na ideia de raça, que se constituiu na experiência básica da dominação colonial, que passou a permear diferentes dimensões do poder mundial (QUIJANO, 2010). O semiólogo argentino Walter Mignolo avalia que o espaço hoje América Latina foi um lugar de recomposição da civilização europeia, católica e latina, desenhada pela colonialidade do poder (MIGNOLO, 2005)
ARTIGOS LIVRES 86 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro dade europeia e da sua matriz epistêmica, invisibilizou os sujeitos que se encon- tram distantes do padrão denominado por Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p. 72) de “sistema-mundo europeu/ euro norte americano/ capitalista/ patriarcal/ moderno /colonial”. A noção de colonialidade, como processo que transcende a dimensão jurí- dico-administrativa da colonização, manifesta-se como uma das inovações teó- ricas desenvolvidas por intelectuais latino-americanos do grupo Modernidade/ Colonialidade (M/C) e que serve para a compreensão dos povos indígenas. 3 Dessa forma, as múltiplas violências praticadas contra esses povos, vêm sendo con- frontadas a partir das últimas décadas, tanto por teorias críticas, contraponto à teoria cartesiana, quanto pelas práticas movidas por aqueles que foram catego- rizados como subalternos. 4 Quijano realizou a revisão do argumento pós-colonial, o que ensejou a emer - gência da noção de “giro decolonial”, promovendo uma renovação crítica das ciências sociais no século XXI, nos quadros da permanência do pensamento co- lonialista em escala global. Aníbal Quijano define colonialidade como: 3 O grupo Modernidad/Colonialidad (M/C) emergiu na década de 1980 como uma rede de inte- lectuais latino-americanos, dentre os quais podem ser mencionados os sociólogos Anibal Quijano, Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel; o semiólogo Walter Mignolo, a pedagoga Catherine Walsh, os antropólogos Arturo Escobar e Fernando Coronil e os filósofos Enrique Dussel, Santiago Castro - -Gómez, Maria Lugones e Nelson Maldonado-Torres. Seus integrantes defendem uma perspectiva decolonial, discutindo as relações de poder que foram estabelecidas a partir de 1492 onde hoje co- nhecemos como América, com a instalação de um sistema sócio-economico que constituiu a Europa, como centro geopolítico de poder. 4 O M/C constituiu-se teoricamente sob a influência do movimento pós-colonial e dos estudos su - balternos indianos, entretanto, vai radicalizar seu posicionamento teórico, distanciando-se daqueles, ao promover o giro decolonial , profundamente comprometido com os termos do texto de Aníbal Quijano, “Colonialidad y Modernidad-Racionalidad” (MIGNOLO, 2007). Autores precursores do pensamento pós-colonial constam como objeto de estudos e críticas do M/C, como Frantz Fanon, psicanalista, negro e martinicano, revolucionário do processo de libertação nacional na Argélia; Aimé Césaire, poeta, negro também nascido na Martinica e Albert Memmi, escritor e professor de origem judaica, assim como Foucault, Deleuze, Derrida e Lyotard, vinculados ao pós-estruturalismo e ao des - construtivismo, também constam das referências do M/C, embora criticados quanto à capacidade de rompimento radical com a perspectiva eurocêntrica. Essas referências contribuíram com o início da transformação das bases epistemológicas das ciências sociais ainda em ampla construção (BALLES- TRIM, 2013). A indiana Gayatri Chakravorty Spivak, oriunda do grupo dos estudos subalternos, da década de 1970 e, anterior ao M/C, foi considerada como uma autora que utilizou de forma excessiva os referenciais pós-modernos e, nesse sentido, o Grupo de Estudos Subalternos criado no Sul Asiático também teria servido para reforçar o pós-colonialismo como movimento epistêmico com desdobra- mentos em vários outros países influenciando estudos variados (BALLESTRIM, 2013).
ARTIGOS LIVRES 87 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial capitalista. Susten - ta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em casa um dos panos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e a escala societal (QUIJANO, 2010, p. 84). Esse novo “padrão de poder mundial”, constituído com a incorporação euro- peia de novos sujeitos presentes em terras continentais anteriormente desco- nhecidas pela Europa, produziu um novo “espaço-tempo” (WALLERSTEIN, 1997) a partir de dois eixos associados. De um lado, a ideia de raça como elemento codi- ficador da diferença entre colonizador e colonizados, com uma suposta inferiori - dade desses últimos. Por outro, a articulação das formas de controle europeu do trabalho, de recursos e de produtos, em torno do capital e do mercado mundial que, “dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista” (QUIJANO, 2005, p. 120). O conceito de colonialidade do poder formulado por Aníbal Quijano, que fun - damenta o projeto decolonial do grupo M/C, não se restringe ao controle da eco- nomia/trabalho, mas abarca também o controle da autoridade, o Estado e suas instituições –, da raça, do gênero, da sexualidade, do conhecimento e da nature- za (BERNARDINO-COSTA, 2018). A lógica universalista, criticada pela decoloniali- dade, sustenta o projeto hegemônico supondo a linearidade histórica, na qual os modelos, europeu e, posteriormente, o norte-americano são vistos como o ponto ideal a ser atingido, considerando as outras formas de organização da vida e do mundo como atrasadas e equivocadas. Nesse sentido, essa lógica organiza não somente a produção do conhecimento, como também outras expressões da vida, como a economia, a política, estética, subjetividade e relação com a natureza. Walter Mignolo (2003) estendeu a noção de colonialidade do poder, apontan- do para o estabelecimento de uma geopolítica do conhecimento operacionaliza- da pela ideia da diferença colonial, que emergiu no processo de colonização, de- senvolvendo a ideia de colonialidade do saber. Nessa direção, Bernardino-Costa (2018) avalia que Foi esse domínio colonial que permitiu a alguns definirem a si mesmos como possuido - res do conhecimento válido e verdadeiro, e a outros como destituídos de conhecimen- to. Deste modo, as múltiplas tradições indígenas, africanas, asiáticas, muçulmanas, hindus, entre outras, sofreram um longo processo de deslegitimação no âmbito da modernidade/colonial (BERNARDINO-COSTA, 2018, p. 122)
ARTIGOS LIVRES 88 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Frente ao complexo processo de dominação, o projeto decolonial se consti- tui de uma estratégia epistêmica e política de resistência à colonialidade do po- der, do saber e do ser, e que aponta para uma dimensão da resistência e reexis- tência política que vai além dos processos de independências e descolonizações que ocorreram nas Américas no início do século XIX e na segunda metade do sé- culo XX na África, Ásia e Caribe. Dessa forma, representa um confronto direto com as hierarquias raciais, de gênero, de sexualidade, religiosas e estéticas que estruturam o sistema de dominação e exploração do sistema-mundo moderno/ colonial, denominada colonialidade do poder 5 (BERNARDINO-COSTA, 2018) Desenvolvimentos posteriores aos conceitos como colonialidade do poder e colonialidade do saber, utilizados como chave no desenvolvimento do projeto decolonial, mostram propostas de ampliação do seu campo de aplicação, como pode ser visto na proposta de “interculturalidade e colonialidade do poder” de Catherine Walsh: A interculturalidade crítica [...] é uma construção de e a partir das pessoas que sofre- ram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma proposta e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela criação de condi- ções de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta maneira, a interculturali- dade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si. [...], é um projeto de existência, de vida (WALSH, 2007, p. 8) Como pensamento crítico, a decolonialidade propõe a análise do mundo contemporâneo, a política global e as relações sociais a partir de paradigmas e epistemologias outras. Como projeto, pretende “descolonizar” a lógica da colo- nialidade, a que traduz diferenças em valores (MIGNOLO, 2011) e acaba por possi- bilitar a classificação e hierarquização de espaços, culturas e pessoas. Os pensa - dores decoloniais consideram a existência de uma estrutura sócio-histórica que produziu a modernidade e a colonialidade, como um único processo, iniciado no século XV, com a expansão do capitalismo para os territórios coloniais (MIGNO- 5 O filósofo argentino Enrique Dussel denomina esse projeto, desde a década de 1970, de transmo - dernidade, concebida como ruptura com a lógica da modernidade, propondo o estabelecimento de um diálogo entre os chamados “condenados da terra”, nos termos de Franz Fanon, ao propor a ruptura com o padrão de poder moderno/colonial e a instauração de um diálogo entre culturas e os povos que foram desvalorizados e avaliados como sem serventia pela modernidade europeia. Dussel propõe que esse diálogo seja feito entre os críticos das periferias, um diálogo intercultural Sul-Sul (DUSSEL, 2016, p. 61).
ARTIGOS LIVRES 89 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro LO, 2000, 2011). O educador Elison Antonio Paim avalia que a decolonização dos saberes, po- deres e seres implica: a) a desconstrução das metanarrativas sobre a moderniza- ção, racionalização e progresso, buscando ouvir outras vozes, perceber as expe- riências, as memórias coletivas, as histórias dos subalternos; b) a compreensão dos processos que promoveram o silenciamento das múltiplas vozes que povoam o mundo; c) a aceitação de outras formas de produção de conhecimento, dentro de um sistema não hierárquico, mas equânime. Em suma, responder de forma crítica a todos os projetos que objetivam a dominação, em todas as suas formas e aos fundamentalismos que orientam a cultura hegemônica. (PAIM, 2019). Essa possibilidade de rupturas pode ser efetivada por uma perspectiva de- colonialista do mundo, pelo rompimento das “linhas abissais” (SANTOS, 2010) que dividem o mundo, classificam e hierarquizam as culturas e as sociedades. Para isso é necessário descolonizar os saberes e dialogar com outros sujeitos além daqueles situados na cultura hegemônica para a construção de uma sociedade com justiça, empatia, solidariedade e amorosidade. A tessitura política contemporânea dos Terena Entre junho de 2012 e novembro de 2023, foram realizadas 16 Grandes As- sembleias do Povo Terena, as Hánaiti Ho`únevo Têrenoe , em suas aldeias locali- zadas no Mato Grosso do Sul, ocorridas sucessivamente nas aldeias Imbirussu (16/a 3/6 2012); Moreira (16/11 a 18/11/2012); Buriti (8/5 a 11/5/2013); Brejão (13/11 a 16/11/2013); Babaçu (7/5 a 10/5/2014); Lalima (19/11 a 23/11/2014); Cachoeirinha (6/5 a 9/5/2015); Água Branca (TI Nioaque, 21/03 a 23/03/2016)) ; Bananal, Buriti (31/5 a 2/6/2017); Água Branca (TI Taunay-Ipegue, 29/11 a 2/12/2017); Tereré (23/5 a 26/5/2018); Ipegue (8/5 a 11/5/2019). Mãe Terra (17/11/2021), Brejão (agosto de 2022) e Cabeceira (2023). 6 Todos esses eventos foram coordenados pelo Conselho Terena, uma das 6 Em Mato Grosso do Sul, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/MS), a população indígena soma 80.459 habitantes, presentes em 29 municípios. Representados por oito etnias: Guarani, Kaiowá, Terena, Kadwéu, Kiniki- naw, Atikun, O faié e Guató. Em relação aos Terena, suas aldeias encontram-se assim distribuídas: 1) Aquidauana: Aldeia Colônia Nova, Aldeia Água Branca, Aldeia Ipegue, Aldeia Bananal, Aldeia Lagoinha, Aldeia Morrinho, Imbirussu, Li - mão Verde, Córrego Seco e Buritizinho. 2) Anastácio. Aldeinha. 3) Dois Irmãos do Buriti: Água Azul, Barreirinho, Buriti, Nova Buriti, Olho D´Água, Oliveira, Recanto. 4) Miranda: Argola, Moreira, Morrinho, Cachoeirinha, Lagoinha, Babaçu, Passarinho, Lalima, Mãe Terra. 5) Nioaque: Brejão, Taboquinha, Água Branca e Cabeceira. 6) Rochedo: Aldeia Bálsamo, 7) Sidrolândia: Aldeia 10 de maio, Aldeia Córrego do Meio, Aldeia Lagoinha e Aldeia Tereré. Disponível em https://www. secid.ms.gov.br/comunidades-indigenas-2/. Acesso em 11 mar. 2021.
ARTIGOS LIVRES 90 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro instituições dessa etnia, criada em 2012, no curso do desenvolvimento do mo- vimento indígena, como uma organização indígena formal, tendo como objetivo central a defesa dos interesses indígenas, em um esforço para centralizar a luta dos Terena. O antropólogo e advogado terena Luiz Henrique Eloy Amado avalia que o Conselho Terena foi constituído a partir do desenvolvimento das primei- ras assembleias e reuniões que propiciaram o surgimento do Conselho Tribal de Mato Grosso do Sul, na década de 1980, como associação conectada a União Nacional Indígena (UNI), que tinha por objetivo formar redes de contato e coor- denar a movimentação indígena na luta pelos direitos na constituinte de 1988. O Conselho Terena seria uma reorganização dessas lutas, a partir do movimento de Retomada, movimento de recuperação de territórios em face a inação do Estado brasileiro (AMADO, 2019). Nesse sentido, a criação dessa instituição se deu como resposta à persistente situação de adversidades quando os Terena, como outros indígenas, de outras regiões, como o nordeste brasileiro. Frente à incapacida- de do cumprimento de preceitos legais, do direito indígena aos seus territórios, mobilizam-se na tentativa de forçar o Estado a responder à reivindicação que formulam. Na avaliação de Luiz Henrique Eloy Amado, as Assembleias Terena consti- tuem um amplo espaço de debate, não apenas sobre a questão fundiária e os processos de reconhecimento e regularização de territórios, abrangem outros temas considerados igualmente importantes, como saúde, educação, meio am- biente, sustentabilidade, representação política, juventude indígena e demanda das mulheres. Esse espaço de debate é aberto à participação de outras etnias e de outros movimentos como os campesinos, o Movimento Sem Terra e outros parceiros não indígenas, formando uma ampla rede de trocas de experiências e busca de soluções para problemas comuns que os atingem (AMADO, 2017) O enfrentamento de problemas e suas resoluções por meio de assembleias, reunindo lideranças e sua comunidade é uma prática considerada tradicional en- tre os Terena. O terena Paulo Baltazar, mestre e doutor em Geografia, tece as seguintes considerações:
ARTIGOS LIVRES 91 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro As lideranças Terena trouxeram do “Exiva” o processo tradicional de decisão que exi- gia constantes encontros de conselheiros tribais para manifestarem individualmente a sua opinião, refletindo os interesses da comunidade. Esse encontro, chamado de “hou - xóvoti”, que o purútuye chama de reunião, coordenado pelo “chefe de guerra” —hoje co- nhecido como “Presidente do Conselho Tribal” —buscava o consenso do grupo. Poste- riormente, a decisão final era levada ao conhecimento do cacique. Nota-se, portanto, que as lideranças Terena, ao chegarem ao território brasileiro, já possuíam o modelo de reunião tradicional típico de sua organização social para decidirem os interesses da comunidade indígena. O exemplo clássico remete à escolha do cacique da aldeia, que mesmo sendo feita de forma consensual e hereditária, era submetida à apreciação de cada um dos conselheiros tribais, que faziam uma argumentação individual das carac- terísticas pessoais do novo líder. O processo consagrado no “houxóvoti” é prática tradi- cional e usual de decisão dos Terena até hoje, que buscam o consenso, a participação e a transparência nos trabalhos realizados (BALTAZAR, 2010, p. 80). Dessa forma, evidencia-se que o ato de se reunir para discutir, resolver problemas, propor soluções são algumas das práticas antigas entre os Terena e comum aos povos indígenas, não sendo uma mera apropriação de um mode- lo ocidental, uma vez que “acreditar que os espaços de organização indígena se originaram a partir da presença não indígena é, de certa forma, corroborar o dis- curso colonialista que nega a autonomia dos povos indígenas” (SERAGUZA, 2015). A formulação de estratégias de luta e tomada de decisões, no âmbito de as- sembleia, constitui-se uma prática considerada tradicional, vindo a se tornar uma instituição formal no contexto da afirmação das relações interétnicas de forma contínua e permanente. Além disso, o hábito de estabelecer aliança mostra-se como uma tendência dos Terena que, historicamente, demostraram apreciar o aprendizado de novos saberes, técnicas e conhecimentos outros. [...] os Terena buscam compreender a ciência dos não índios para, assim, estabelecer novas formas de sobrevivência sociocultural. Miranda mostra que estão cada vez mais integrados na sociedade nacional, seja por meio de seu ingresso nas universidades, pela participação na política e nas mobilizações pela demarcação dos seus territórios, porém cada vez mais índios, e conscientes de sua história, apropriada e ampliada para a garantia de direitos junto ao Estado brasileiro. O seu “Tempo do Despertar”, expressa o movimento, elaboração e reelaboração de táticas, formuladas por meio dos conheci- mentos adquiridos e das redes que estabeleceram para apoiar e incentivar suas reivin- dicações e realizar suas conquistas (CASTRO, VARGAS, 2013, p. 21). O “processo decisório” dos Terena passa necessariamente pela reunião dos líderes (houxóvoti), pois convocar reuniões com as lideranças é uma forma de honrá-los diante de sua comunidade (BALTAZAR, 2010, p. 75). Muito daquilo que se pode observar nas Grandes Assembleias do Povo Terena corrobora o entendi- mento do Paulo Baltazar:
ARTIGOS LIVRES 92 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro O processo decisório Terena reflete seus valores culturais, transmitidos de geração a geração, que definem e norteiam a comunidade no seu próprio desenvolvimento. A co - munidade é soberana na tomada de decisões que têm implicações sobre o seu próprio futuro. A posição dos seus líderes é reforçada no “houxóvoti” (reunião), que serve como espaço dialético nos quais as relações de poder e participação são evidenciadas e os seus valores culturais são reforçados. Quando os líderes são honrados, toda a comu- nidade é honrada. O consenso, que implica em igualdade, é o marco fundamental para todas as decisões do grupo indígena (BALTAZAR, 2010, p. 75). As escolhas realizadas pelos Terena, como o ingresso nas universidades e a sua articulação por meio das novas tecnologias de comunicação, como a criação de perfis em redes sociais como Instagram e Facebook, que ampliam sua ativa rede de movimentação dentro da sociedade envolvente, encontram-se eviden- ciadas nos registros das assembleias, nos seus documentos finais. Dentre as estratégias desenvolvidas pelos Terena, coordenadas pelo Con- selho Terena, para além do movimento de Retomada, da apropriação dos discur- sos antropológicos, de conceitos e noções jurídicos e das formas de organização formal e outros recursos disponibilizados pela sociedade envolvente, podemos destacar também a revista Vukápanavo, com sua primeira edição em novembro de 2018 que, de acordo com seus editores, destina-se à publicação de trabalhos acadêmicos, documentos, traduções, cadernos de imagens e registros audiovisuais relacionados aos Terena e a temas correlatos, tais como a história e a mitologia terena, as terapêuticas tradicionais e a saúde indígena, as expressões artísticas e religiosas, os direitos originários e constitucionais, as rela- ções estabelecidas com outros povos indígenas, com o estado e a sociedade brasilei - ra. Vukápanavo tem o objetivo de reunir e de dar visibilidade às pesquisas realizadas por pesquisadores indígenas e não-indígenas e que se refiram ao povo Terena. (APIB, 2021) A Vukápanavo encontra-se em sua terceira edição, com o dossiê Pandemia da Covid-19 na vida dos Povos Indígenas , organizado com o apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Fundação Oswaldo Cruz que, na sua apresentação afirma: Esta publicação se insere entre os atos de resistência política acionada pelos povos indígenas no contexto de pandemia. Mais do que uma atitude acadêmica, é uma postu- ra política encabeçada por pesquisadores e pesquisadoras indígenas que, se valem da produção escrita como instrumento de demarcação de espaço no mundo acadêmico, realizando uma prática política estreitamente vinculada ao movimento indígena (APIB, 2021)
ARTIGOS LIVRES 93 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Os Terena evidenciam sua determinação para afirmarem o seu protagonis - mo e sua legitimidade, a partir de um outro espaço que estão conquistando, o espaço acadêmico. Essa inserção é muito significativa com a participação de professores egressos das universidades nas assembleias, inclusive redigindo os seus documentos, registrando de maneira formal as atividades, discussões e re- soluções tomadas naqueles eventos. Dos registros inscritos nos documentos finais das Grandes Assembleia do Povo Terena destacamos dois aspectos que avaliamos como fundamentais no processo de afirmação da política Terena contemporânea, no campo interétnico. Por um lado, a afirmação de uma memória de luta e posicionamento do grupo no interior da sociedade nacional e, por outro, a tradição da resolução coletiva por meio de assembleias: Desde a Guerra do Paraguai os povos indígenas do Pantanal não se reuniam. Após 177 anos, as lideranças Terena se reúnem juntamente com representantes do povo Guara- ni, Kaiowá e Kinikinau na terra indígena Taunay/Ipegue, na aldeia Imbirussú nos dias 01, 02 e 03 de junho de 2012. (DOCUMENTO FINAL da I Grande Assembleia do Povo Terena, Aldeia Imbirussú, 1º, 2 e 3 de junho de 2012) Essa mesma disposição de evocar antigas memórias reaparece na XV as- sembleia realizada em 2022: Como há quase 10 anos atrás(sic), nossa anciã mentora do nome da Assembleia, sentou em meio de nós, proferiu palavras de força e evocou nossa ancestralidade. “Esta não é apenas uma Assembleia. Esta é a Hanaiti Hó’unevo Têrenoe, a Grande Assembleia do Povo Terena” repetiu ela. Abençoados por suas palavras, entre nossas Guerreiras e Guerreiros relembramos emocionados a luta de quase uma década desde o levante de nossa Grande Assembleia. Foram retomados milhares de hectares de nossas terras, que antes estavam alimentando gado para o agronegócio e hoje são utilizados pelas famílias terena para produzir seu alimento, recuperar as nascentes dos rios e reflores - tar as matas. Enfrentamos inúmeros fazendeiros, políticos e parlamentares, com toda sua estrutura e força política, que ameaçavam nossos direitos. Na nossa caminhada fizemos valer o sangue derramado de nossos líderes. (DOCUMENTO FINAL da XV As - sembleia Terena , Aldeia Brejão, Terra Indígena Nioaque, 24 a 27 de agosto de 2022.) Fanhani (2021) aponta um outro aspecto relevante da política externa Tere- na, a apropriação de conhecimentos e recursos da sociedade envolvente para a defesa de direitos, coordenada pelo Conselho Terena. O domínio dos recursos jurídicos e legais por essa instituição e sua divulgação para o povo Terena podem ser vistos nos documentos finais, como consta nos registros desde a primeira assembleia, quando esse Conselho apresenta e discute
ARTIGOS LIVRES 94 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro a inaplicabilidade da condicionante n. 17 do STF: Os fazendeiros suscitam contra nós aplicação da condicionante n. 17 imposta pelo STF quando do julgamento do caso da T.I. Raposa Serra do Sol que diz que “é vedada ampliação de terra indígena já demar- cada”. Queremos frisar que tal condicionante não se aplica a nossa terra indígena de Taunay/Ipegue pois nossa terra não é fruto de demarcação conforme o dec. 1.775/96, e sim terra que foi reservada pela antiga política do SPI não observando os requisitos traçados pelo Art. 231 da CF/88. Assim, desqualificamos toda a alegação contra a de - marcação de nossa terra tradicional. (DOCUMENTO FINAL da XIV Grande Assembleia do Povo Terena, Aldeia Mãe Terra, Terra Indígena Cachoeirinha. 17 a 20 de novembro de 2021) Observa-se, dessa maneira, que a discussão da Tese do Marco Temporal se deu entre os Terena desde o primeiro momento de sua aplicação e contra a sua aplicabilidade a todos os territórios indígenas. 7 Assim, verifica-se que o processo de organização política dos Terena contemplou e contempla o conhecimento dos dispositivos legais da sociedade envolvente e sua apropriação para a defesa dos seus direitos, constatando-se que O documento final da primeira assembleia terena expressa a conjuntura dos desafios postos aos direitos indígenas abordando as proposições legislativas em tramitação contra os povos indígenas tais como: PEC 215, Portaria 303 da AGU, PL 77 1.610 que trata da mineração em terras indígenas (AMADO, 2017, p. 76) O conhecimento dos dispositivos legais anti-indígenas, sua divulgação e dis- cussão, aparecem em todos os documentos finais. Na grande Assembleia Terena de 2019, os Terena elaboram um documento denominado Carta de Ipegue, na qual exigem do Congresso Nacional o arquivamento de todas as propostas legislati- vas anti-indígenas e reivindicam ao Supremo Tribunal Federal que não permitam legitimar nenhuma proposta restritiva aos direitos indígenas e que se exclua, em definitivo, qualquer possibilidade de acolhida da tese do Marco Temporal. Essa preocupação e luta contra os dispositivos jurídicos que tentam reduzir ou eliminar direitos indígenas encontra-se reiterada em todos os documentos finais das assembleias, estendendo-se nas três últimas assembleias (2021, 2022 e 2023). Na XIV, em novembro de 2021, foram listadas determinações contra uma 7 A tese do Marco Temporal defende que os povos indígenas apenas possuem direito às terras que já estavam ocupadas por eles até o dia da promulgação da Constituição Federal, 05 de outubro de 1988. Dessa forma, só poderiam reivindicar a posse de territórios ocupados até aquela data. Essa tese foi usada pela primeira vez em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se valeu dela em um julgamento que determinou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Mas, o próprio STF reconheceu que a tese aplicada no julgamento dessa terra indígena só tinha validade para aquele caso específico.
ARTIGOS LIVRES 95 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro agenda anti-indígena presente no Congresso Nacional brasileiro que visam a li- mitar ou retirar direitos constitucionalmente estabelecidos. 8 Foram apresenta- das as exigências abaixo transcritas. 1. Retirada definitiva da pauta de votação da CCJC e arquivamento do PL (Projeto de Lei) 490/2007, que ameaça anular as demarcações de terras indígenas; 2. ​Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, pois caso seja aprovado, o projeto vai anistiar grileiros e legalizar o roubo de terras, agravando ainda mais as violências contra os povos indígenas; 3. ​Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e outras Unidades de Conservação com estradas; 4. ​Arquivamento do PDL 177/2021 que autoriza o Presidente da República a abando- nar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), único tratado internacional ratificado pelo Brasil que aborda de forma específica e abrangente os direitos de povos indígenas; 5. ​Arquivamento do PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração industrial; 6. ​Arquivamento do PL 3729/2004 que destrói o licenciamento ambiental e traz gran- des retrocessos para a proteção do meio ambiente e para a garantia de direitos das populações atingidas pela degradação ambiental de projetos de infraestrutu- ra, como hidrelétricas. 7. ​Fortalecimento da atenção básica de saúde aos povos indígenas, que vem sendo negligenciada e sucateada pelo Governo Federal. Somos contra as propostas de municipalização da saúde indígena. 8. A finalização dos processos de demarcação das terras indígenas Terena, Kinikinau e Guarani – Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. 9. ​(DOCUMENTO FINAL da XIV Assembleia do Povo Terena, Aldeia Mãe Terra, Terra Indígena Cachoeirinha, Miranda, 17 1 20 de novembro de 2021) Nas comemorações dos dez anos de realização das grandes Assembleias do Povo Terena, na XV assembleia realizada em agosto de 2022, são mais uma vez retomadas as discussões sobre a situação jurídica dos territórios e a análise da conjuntura política indigenista no Brasil e seus desafios para a efetivação dos direitos indígenas. Verifica-se, portanto, a persistência de projetos políticos que violam direitos dos povos originários, bem como a resistência e luta dos Terena. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, propiciou aos povos indíge- nas novas oportunidades, uma vez que, no ano seguinte, foi criado o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), entregue a Sonia Guajajara, presença assídua nas As- sembleias Terena, e a designação de Joênia Wapishana para a presidência da 8 Em outubro de 2017 o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) realizou o mapeamento de parla - mentares e proposições legislativas anti-indígenas, constatando 33 propostas , e mais de 100 projetos, que ameaçam direitos indígenas: “ Levantamento aponta que maioria das propostas foi feita por rura- listas e pretende alterar critérios para demarcação ou liberar exploração de recursos em terras indíge- nas” https://cimi.org.br/2017/10/congresso-anti-indigena-33-propostas-reunindo-mais-de-100-proje- tos-ameacam-direitos-indigenas/
ARTIGOS LIVRES 96 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Nesse novo contexto, muitos Terena passaram a ocupar cargos, a exemplo de Luiz Henrique Eloy Amado, que se tornou o Secretário Executivo do novo mi- nistério e de Leosmar Terena, como coordenador-geral de Promoção do Bem Vi- ver Indígena do MPI. Consideramos que, depois da Constituição Federal de 1988, a criação do ministério e o alargamento do espaço de ocupação de cargos fede- rais relacionados aos assuntos indígenas tornou-se um marco significativo das lutas por eles travadas, desde a década de 1970, a criação da União Nacional Indí- gena (UNI), que contou com a participação de Terenas, como Marcos Veríssimo e Modesto Pereira, entre outros. Certamente não foi uma caminhada ininterrupta, muitos foram os obstáculos, porém, a movimentação foi sempre retomada. No ambiente político reconfigurado, realizou-se a XVI Assembleia, em 2023, que contou com a participação de Sonia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas. Observa-se uma trajetória política permeada por diferentes estratégias e que mostram uma caminhada lenta, mas progressiva dos povos indígenas. Os Terena prosseguem no propósito de “aldear a política”, de ocupar espaços nos âmbitos legislativo, jurídico e executivo, e nos níveis municipal, estadual e federal das ins- tituições da sociedade envolvente. Manifestando-se na cerimônia de abertura da XV Grande Assembleia do Povo Terena, que aconteceu em 16 de novembro de 2023, que também marcou o início da Caravana “Participa, Parente!”, promovida pelo Ministério dos Povos Indígenas, o secretário executivo dessa entidade, o Terena Luiz Henrique Eloy Amado lembrou do processo de organização do povo Terena e da importância da mobilização. “Há 12 anos, quando começaram as primeiras assembleias, fo- mos criminalizados, tivemos CPIs para nos derrubar. Mas vencemos e estamos no ‘tempo de fazer’. Mas as políticas só vão chegar aonde o povo está organizado”. MINISTÉRIO DOS POVOS INDÍGENAS. Sonia Guajajara abre Caravana “Participa, Parente!” durante a Grande Assembleia do Povo Terena, no Mato Grosso do Sul. 16 nov. 2023)
ARTIGOS LIVRES 97 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Considerações finais Os documentos finais das Assembleias do Povo Terena, de 2012 a 2023, permitem considerar que essa etnia delineia uma política decolonial. Os Terena mostram que não se sujeitam à situação subalternizante que a cultura ocidental hegemônica lhe impôs. Mobilizam-se e organizam-se em instituições indígenas, como a do Conselho Terena, aqui considerada, uma vez que coordena aquelas assembleias. Respondendo às questões levantadas inicialmente, pode-se considerar que os Terena publicizam as decisões e propostas elaboradas coletivamente, a partir de suas assembleias, para demonstrar suas ações políticas, buscam documen- tar seu protagonismo, apontar sua visão de mundo e construir uma memória que possa legitimar sua presença e lutas no interior da sociedade nacional, apontan- do sua ancestralidade na região e sua perspectiva decolonialista de vida, do ser, do viver e do poder. Com uma intensa atuação no interior da sociedade envolvente, os Terena construíram seu protagonismo, fundado no direito à diferença, confrontando a colonialidade do poder, do saber e do ser. Insurgem-se contra as representações impostas pelo sistema hegemônico, forjam novos espaços a partir dos quais de- fendem seu bem maior, seus territórios, base de sua existência, lugar dos seus antepassados, do seu saber e da sua cosmovisão. Dentre as estratégias desenvolvidas pelos Terena, coordenadas pelo Conselho Terena, constam o movimento de Retomada, a apropriação dos discursos antropológicos, de conceitos e noções jurídicos, a formação de um conjunto de pesquisadores em diferentes áreas do conhecimento, a formação política para os mais jovens e a constituição de rede virtual de comunicação, que aparecem nos documentos finais das assembleias. Destaca-se a aquisição de conhecimento dos mecanismos e dispositivos que organizam a sociedade envolvente e que são usados estrategicamente em suas lutas e reivindicações. Não aceitam mais a estrutura de dominação ou padrão de poder que permanece enraizado em nossa sociedade. Rejeitam a forma dominante de controle de recursos, trabalho e conhecimento, rejeitam a colonialidade e defendem o bem viver indígena, prática proveniente de uma proposição ancestral de complementariedade, harmonia e reciprocidade entre os povos, a natureza e todos os seres humanos e não
ARTIGOS LIVRES 98 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro humanos que dela fazem parte. Referências AMADO, Luiz Henrique Eloy Amado. Situação jurídica das terras Terena em Mato Grosso do Sul. Tellus , Campo Grande, Ano 20, nº 41, 2020, p. 11-34. Disponível em: https://www.tellus. ucdb.br/tellus/article/download/637/734/2832 . Acesso em 21 mai. 2024. AMADO, Luiz Henrique Eloy. Despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento indí- gena e confronto político em Mato Grosso do Sul. MovimentAção , Dourados, v. 4, nº 6, 2017, p. 83-104. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/movimentacao/article/view/7674 . Acesso em 21 mai. 2024. APIB – Articulação dos Povos Indígenas. Revista Terena Vukápanavo publica dossiê sobre “Pandemia da Covid-19 na vida dos Povos Indígenas”. APIB , 4 fev. 2021. Disponível em https:// apiboficial.org/2021/02/04/revista-terena-vukapanavo-publica-dossie-sobre-pandemia-da - -covid-19-na-vida-dos-povos-indigenas/ Acesso em 20 fev. 2022. BALLESTRIN, Luciana, A América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de Ciências Políticas , nº 11, 2013, p. 89-117. BALTAZAR, Paulo. O Processo Decisório dos Terena . Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010. BERNARDINO-COSTA, Joaze . Decolonialidade, Atlântico Negro e intelectuais negros brasi- leiros: em busca de um diálogo horizontal. Revista Sociedade e Estado , vol. 33, nº 1, 2018, p. 119-137. BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiáspórico . Belo Horizonte: Autêntica, 2018. CASTRO, Iára Quelho & VARGAS, Vera Lúcia Ferreira. História e memórias reacendidas: a apropriação Terena da escola. Outros Tempos , vol. 12 nº 20, 2015, p. 143-157. CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramon. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramon (coords.). El giro decolonial : reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo glo - bal. Bogotá: Siglo del Hombre, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contempo- ráneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 9-24. CAVALLI, Guilherme. Congresso anti-indígena: 33 propostas, reunindo mais de 100 proje- tos, ameaçam direitos indígenas. Conselho Indigenista Missionário, 13 out. 2017. Disponível em https://cimi.org.br/2017/10/congresso-anti-indigena-33-propostas-reunindo-mais-de- -100-projetos-ameacam-direitos-indigenas/ . Acesso em 21 mai. 2024. CONSELHO DO POVO TERENA. Disponível em: https://www.facebook.com/conselhoterena/ photos/?ref=page_internal . Acesso em 21 mai. 2024. DOCUMENTO FINAL da I Grande Assembleia do Povo Terena, Aldeia Imbirussú, Terra Indígena
ARTIGOS LIVRES 99 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro Taunay-Ipegue, 1º, 2 e 3 de junho de 2012. Disponível em : https://cimi.org.br/2012/06/33634/. Acesso em 19 abr. 2018. DOCUMENTO FINAL da XIV Assembleia do Povo Terena, Aldeia Mãe Terra, Terra Indígena Ca- choeirinha, Miranda, 17 a 20 de novembro de 2021. Disponível em https://apiboficial.org/fi - les/2021/11/Documento-XIV-Assembleia-Terena.pdf . Acesso em 21 abr. 2022. DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade : interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado . Volume 31 números 1 janeiro/abril 2016. p. 51-73. FANHANI, Alice Pereira. Os Terena no movimento indígena: a constituição de sujeitos políti- cos em situação de alteridade e adversidade. Dissertação (Mestrado em Estudos Culturais. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2021 GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. In: CASTRO-GÓMEZ, San- tiago & GROSFOGUEL, Ramon (coords.) El giro decolonial : reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global . Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 63-78. IBGE. Censo 2010 . Disponível em https://censo2010.ibge.gov.br/ . Acesso em 21 mai. 2024. LADEIRA, Maria Elisa. Língua e História : análise sociolingüística em um grupo terena. Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. LANDER, Edgardo et al. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Pers- pectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramon (coords.). El giro deco - lonial : reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporá- neos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 127-167. MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica : retórica de la modernidad, lógica de la colonia- lidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2011 MIGNOLO, Walter. The geopolitics of knowledge and the colonial difference . The South Atlan - tic Quarterly , v. 101, nº 1, 2002, p. 57-95. MIGNOLO, Walter D.  La idea de America Latina : la herida colonial y la opción decolonial. Bar- celona: Gedisa (2005). MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais : colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. MINISTÉRIO DOS POVOS INDÍGENAS. Sonia Guajajara abre Caravana “Participa, Parente!” durante a Grande Assembleia do Povo Terena, no Mato Grosso do Sul. 16 nov. 2023. Disponível em https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2023/11/sonia-guajajara- -abre-caravana-201cparticipa-parente-201d-durante-a-grande-assembleia-do-povo-terena-
ARTIGOS LIVRES 100 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Iara Quelho De Castro -no-mato-grosso-do-sul . Acesso em 21 mai. 2024. MONTEIRO, John Manoel. Tupis, tapuias e historiadores : estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre-Docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. PAIM, Elison Antonio . Epistemologia Decolonial: uma ferramenta política para ensinar his- tórias outras. HH Magazine : humanidades em rede, 2019. Disponível em https://hhmagazine. com.br/epistemologia-decolonial-uma-ferramenta-politica-para-ensinar-historias-outras/ . Acesso em: 19 abr. 2020. QUIJANO, Aníbal & WALLERSTEIN, Immanuel. Americanity as a concept, or the Americas in the modern world-system. International Social Science Journal , vol. 44, nº 4, 1992, p. 549 - 557. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research , vol. 11, nº 2, 2000, p. 342-386. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul . São Paulo: Cortez, 2010, p. 73- 118. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina . Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epis- temologias do Sul . São Paulo: Cortez, 2010, p. 23-71. SERAGUZA, Lauriene. Aty Kuña Guasu – sexualidade e relações de gênero entre os Kaiowa e Guarani. Anais do III Congresso Ibero-americano de Etnologia, Etno-história e Arqueologia . Dourados, 2015. WALSH, Catherine. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologias decoloniales. Nómadas. Revista Crítica de Ciencias Sociales y Jurídicas , Colômbia, nº 26, 2007, p. 102-113.
ARTIGOS LIVRES 101 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas DEMOCRACIA RACIAL, ELITE E A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO RACIAL DEMOCRACY, ELITE AND THE RECEPTION OF BLACK ORPHEUS DEMOCRACIA RACIAL, ÉLITE Y LA RECEPCIÓN DEL ORFEO NEGRO https://doi.org/ 10.46401/ardh.2024.v16.20969 Juliana Mendes Universidade Federal do Maranhão https://orcid.org/0009-0007-2736-0507 j.mendes-@hotmail.com Arnaldo Vieira Sousa Universidade Federal do Maranhão https://orcid.org/0000-0003-3526-5351 vieira.arnaldo@gmail.com Flávio Luiz de Castro Freitas Universidade Federal do Maranhão https://orcid.org/0000-0002-7648-0341 flavio.luiz@ufma.br Recebido em 23 de abril 2024 Aprovado em 10 de junho de 2024
ARTIGOS LIVRES 102 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas INTRODUÇÃO O artigo em questão se propõe a analisar a representação de Orfeu Negro lançada por Marcel Camus em 1959 quando relacionado a outras produções fei- tas durante a década de 1950 cineastas brasileiros. Esse filme é baseado na obra finalizada em 1954 por Vinícius de Moraes, adaptada como peça teatral, chama - da Orfeu da Conceição, um musical inspirado no mito grego de Orfeu, e que foi RESUMO: A pesquisa em questão busca compreender como a obra Orfeu Negro, em todas as suas variações impactou a sociedade brasileira em âmbitos positivos e negativos. A obra na versão teatral e cinematográfica recebeu críticas positivas e negativas e trouxe uma representação plural a respeito do que se tem como ideia de Brasil. Nesse artigo compreenderemos através dos conceitos de democracia racial e elite cultural como Orfeu foi capaz de causar uma ambiguidade nos debates sociais. Palavras-chave: Orfeu Negro; Democracia Racial; Indústria Cultural; Favela. ABSTRACT: The research in question seeks to understand how the film Black Orpheus, in all its variations, impacted brazilian society in positive and negative ways. The work in the theatrical and cinematographic version received positive and negative reviews and brought a plural representation of what we see as the idea of Brazil. In this article we will understand, through the concepts of racial democracy and cultural elite, how Orpheus was able to cause ambiguity in social debates. Key words: Black Orpheus; Racial Democracy; Cultural Industry; Favela. RESUMEN: La investigación en cuestión busca comprender cómo la obra Orfeu Negro, en todas sus variantes, impactó de manera positiva y negativa a la sociedad brasileña. La obra en versión teatral y cinematográfica recibió críticas positivas y negativas y trajo una representación plural de lo que entendemos como la idea de Brasil. En este artículo entenderemos, através de los conceptos de democracia racial y élite cultural, cómo Orfeo fue capaz de provocar ambigüedad en los debates sociales. Palabras clave: Orfeo Negro; Democracia Racial; Industria Cultural; Barrio Bajo.
ARTIGOS LIVRES 103 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas transferido para um morro brasileiro na contemporaneidade da época. A ques- tão do nome de “Conceição” para “Negro” foi modificada apenas por uma ques - tão comercial. O filme por possuir capital estrangeiro foi elaborado para ser visto no exterior, Conceição não faria tanto sentido ou seria atrativo aos estrangeiros quanto Black Orpheus , título conhecido em inglês. Para a pesquisadora de cinema Lúcia Nagib “A visão da cultura negra como expressão espontânea da natureza encontrava ressonância em meio a esquerda mundial, que começava a despertar para a causa africana e dos afrodescendentes” (NAGIB. 2006, p. 128). Orfeu tem representações teatrais que remontam a óperas desde o sécu- lo XVII, como L’Orfeo de 1607 de Claudio Monteverdi, que foi uma das primeiras montagens ocidentais do mito. Na história grega, Orfeu de Trácia era um mortal, artista virtuoso, corajoso e que tocava lira. Em uma de suas aventuras ele co- nhece Eurídice e eles se apaixonam, casam e sofrem maus presságios. Um dia Eurídice, ao escapar de Aristeu, um apicultor que também era apaixonado por ela e que a estava a perseguindo, corre pela mata em fuga e é picada por uma cobra venenosa, e parte ao mundo de Hades, Deus dos Mortos. Orfeu cai em tristeza e pede a seu avô, Zeus, Deus Supremo, que a salve, mas Zeus afirma que que não poderia interferir nas decisões de seu irmão Hades, e ofereceu que Hermes, Deus das Magias e das Viagens, que o acompanhasse até o mundo dos mortos para que assim Orfeu resgatasse sua amada. Orfeu implorou a Hades, tocando sua lira, que encantou todos. Assim Hades diz a Orfeu que ele tem permissão de voltar com Eurídice ao mundo dos vivos, com a condição de que sempre olhe para a frente enquanto Eurídice deve passar a viagem atrás, o seguindo. Caso contrário, Orfeu a perderia. Próximo à saída, ele se vira para ter certeza que Eurídice o seguia e assim ela foi puxada de volta ao mundo dos mortos. Orfeu jamais foi feliz novamente, vivia por tocar canções tristes com sua lira, e resistia aos encantos das Mênades, que são Ninfas seguidoras de Dionísio. Um dia, com raiva pelo desprezo, as Ninfas matam Orfeu e, após sua morte, seu espírito reencontra com Eurídice no Mundo dos Mortos.
ARTIGOS LIVRES 104 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas São vários os motivos do tema de Orfeu: o diálogo com animais e a natureza onde vi- vem; a procura pela origem dos homens e a divulgação disso; a busca do Velocino de ouro; a busca do amor perdido; a culpa pela separação definitiva deste mesmo amor; a experiência da descida ao Inferno, que gera um conhecimento singular, tudo isso mo- vido pelo canto, expressão pessoal transformadora, que a tudo toca e cuja ação ritual abre caminhos para a espiritualidade. O Orfismo, iniciado após a descida de Orfeu ao Inferno, proclama e promove o encontro eterno entre homens e deuses, inimaginável pela religião oficial grega (OLIVEIRA. P. 19, 2006). A história de Orfeu se modificou através dos séculos, foram feitas monta - gens em diferentes países como qualquer mito, que se transformam outra obra. Assim Orfeu perde sua lira e ganha um violão, deixa os bosques e mora na favela, em um país não mais no Velho Mundo, mas sim em um lugar tropical no século XX. A ELITE BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1950 Em meados do século XX, no Brasil, já havia algumas referências literárias e ideias de democracia racial, como mostrado nas obras de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Completamente opostas à eugenia que se propagava no início do século, que apontava que a nossa miscigenação era responsável pelo atraso social e econômico do país. Para Sérgio Buarque de Holanda: Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta acei- tar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer fa- lar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da História e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a História (1985, pp. 173 – 174). Para Buarque de Holanda nós temos uma dificuldade de construção iden - titária no que se refere ao que é “ser nação brasileira”. O fator de ter sido colo- nizado por povos portugueses que eram um povo com histórico de mestiçagem devido a sua localização geográfica, que tardiamente se integrou à Europa e isso contribuiu para uma certa plasticidade, mas insuficiente para os europeus olha - rem o Brasil com sentimento de desdém. Essa miscigenação nos fez desenvolver a pluralidade cultural porque somos a inserção de muitos povos em um espaço só com dimensões continentais.
ARTIGOS LIVRES 105 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas Vivemos nos trópicos sem uma cultura adequada própria, tropical. Participamos do desenvolvimento da cultura de um outro lugar [...] Entre o conhecimento do Brasil e a realidade brasileira há uma defasagem abissal; pensamos com ideias inadequadas à nossa realidade social, ideias que, ao invés de facilitarem nossa relação com a realida- de, a impedem (Reis, 2007, p. 123). Podemos ter a percepção de que nesse fator de colonizado e colonizador e as nossa clássicas obras literárias, para Freyre, Casa Grande e Senzala apresen- tava um espirito nostálgico colonial e que para Buarque de Holanda essa senti- mento deveria ser transformado para que a identidade brasileira de fato pudesse surgir, demonstrar o sentimento de brasilidade que não deveria se portar como uma ideia única e fixa. Na década de 1950, o país também foi marcado pela industrialização, cres- cimento econômico, consumo de bens culturais. Para a população negra havia uma disparidade social e econômica em relação aos brancos, mas uma inserção mesmo que subalterna em espaços da sociedade em que antes eles eram manti- dos em completa exclusão. A população negra começou a ganhar mesmo que de maneira precária e ín- fima espaço nas escolas, universidades, industrias midiáticas. Algumas dessas mobilizações foram frutos das próprias ações das populações negras por meio de associais culturais, esportivas, eventos como a Convenção Nacional dos Ne- gros Brasileiros, pelos periódicos da imprensa negra, como Alvorada e Senzala. Além da inserção no meio político. A população brasileira vivia de maneira dúbia. Existiam as Elites econômi- cas que pautavam a divisão racial, mas também a Elite Cultural que reforçava o mito das 3 raças formadoras do Brasil que conviviam de maneira harmoniosa. Mas essa ideia de cordialidade era refutada pelos grupos negros e entidades an- tirracismo. Os jornais da época, assim como o cinema mostravam o Brasil como um país de amabilidade, mas não era incomum caricaturas, noticias de preconceito con- tra negros, indígenas e até judeus em periódicos. Situações essas que para a po- pulação vista como branca eram apenas casos isolados.
ARTIGOS LIVRES 106 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas ORFEU DA CONCEIÇÃO: TRAGÉDIA CARIOCA Vinícius de Moraes, na década de 1940, começa a frequentar favelas, ter- reiros de candomblé, espaços ocupados por negros e associou as celebrações à Grécia, devido à música, um sentimento dionisíaco. A partir dessa correlação com o Rio de Janeiro, ele construiu um paralelo com o mito de Orfeu e iniciou sua obra prima em 1942, a engavetou por uns anos até posteriormente finaliza-la em 1953. A ação situa-se no tempo presente, num morro, que poderia ser, não importa o qual da cidade, e todas as personagens são gente de cor e isto por uma razão muito simples: procurei dar a trama a mais completa unidade do ponto de vista da dramaturgia. A in- tromissão de personagens brancas criaria certamente na entrosagem psicológica das figuras, elementos alheios à tragédia tal qual ela se desenrola - o que não quer dizer que ela não possa ser representada eventualmente por atores brancos. Mas, me pare- ce que seria atentar contra o seu espírito por assim dizer helênico, nela colocar atores racialmente mesclados. O negro possui uma cultura própria e um temperamento “sui generis”, e embora integrado no complexo racial brasileiro sempre manifestou a ne- cessidade de seguir a trilha de sua própria cultura (MORAES. p. 1, 1956). Para Ortiz (2003), o carnaval, sendo a festa mais popular do Brasil, nos permite que sejamos felizes e esqueçamos a tristeza durante quatro dias de festa, quando tudo se acaba na quarta-feira. A influência de se construir Orfeu nesse espaço pode ter um aspecto também relacionado a movimentos políticos da época, que estavam buscando a essência do que chamamos de “cultura brasileira”. No ano de 1956, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro. Na época causou uma certa polêmica por ser a primeira vez que o Teatro recebia uma peça representada exclusivamente por atores negros. Para os críticos especializados a maioria dos comentários foram positivos, havia uma rejeição por parte da classe média, a burguesia brasileira, isso tudo devido a estrutura forte de desigualdade racial trazida do período colonial. Críticos deram suas opiniões publicadas em jornais na época. Gustavo Doria para o Jornal O Globo, afirmou que em Orfeu da Conceição “pela primeira vez encontramos o entrosamento do elemento popular nosso com uma linguagem poética” (DORIA. p. 7, 1956). O jornalista Antonio Maria, apontou no jornal O Globo que:
ARTIGOS LIVRES 107 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas Antes de mais nada, uma imensa e linda oportunidade de afirmação artística do negro brasileiro. Espetáculo bonito e grandioso, sob todos os pontos de vista. [...] Em Orfeu da Conceição nota-se, sobretudo, a ausência das conspirações da ignorância e da in- sensibilidade. O momento mais emocionante da noite da pré-estreia de gala foi quando a personagem negra, Mira, recebeu no palco uma enorme “corbelle”. Foi a primeira vez, no Brasil, em que um branco deu flor a preto. Até hoje preto só recebeu de branco flor que murchou nos jarros e assim mesmo com esta recomendação expressa: “Tome. Vá botar no lixo”. Parabéns a todos que fizeram Orfeu da Conceição (MARIA. p. 2, 1956). Ao mesmo tempo Maria também expressou no Jornal O Globo certa irritação com o fato de que alguns críticos, talvez por não estarem habituados a um elenco negro com tanto protagonismo se atentarem a falhas simples que ocorrem em todos os inícios de uma temporada teatral. As falhas de “Orfeu da Conceição” são ainda as falhas fatais de todas as coisas difíceis, que se fazem pelas primeiras vezes. E basta que se tome o negro brasileiro como um estreante de teatro (quando os brancos ainda não são esses talentos) para que se con- descenda com certas minúcias, a que faltaram realces. Devemos consideram que, no Brasil, essa história de branco bater palmas para preto, fora do futebol, é uma novidade de quatro ou cinco anos pra cá. E a plateia aplaudiu de pé (MARIA. p. 2, 1956). O lançamento da peça, pela importância de tratar de uma temática negra na metade do século XX se tornou uma data marcante na memória cultural brasilei- ra. Elsie Lessa no Jornal do Brasil menciona que: Não sei, em nosso teatro, de coisa mais universal, porque tão brasileira, do que esta tragédia musicada do morro carioca, com seu despojado cenário de pobreza e o ritmo envolvente do samba, da capoeira, da batucada, aliada à espantosa riqueza plástica do negro, [...]. Ninguém como o poeta Vinícius, tão musical ele mesmo, tão perto dos essenciais da sua gente, para pôr no palco, com lirismo e pureza de que só ele era ca- paz o poema plástico e comovente que é o seu Orfeu da Conceição (LESSA. p. 1, 1956). Orfeu, interpretado por Haroldo Costa, é um compositor e sambista, um vir- tuoso violonista, morador de uma favela carioca. A história se passa durante o carnaval, quando o protagonista conhece e se apaixona instantaneamente por Eurídice, que acaba de chegar à cidade do Rio de Janeiro após afirmar que esta - va sendo perseguida por um homem que queria lhe matar. Esse amor repentino desperta a fúria em Mira de Tal, noiva de Orfeu e as consequências da história são paralelos com a lenda grega. A peça foi um marco na cultura nacional porque o elenco era composto ex- clusivamente por negros e fez sucesso de crítica e de público em uma época em
ARTIGOS LIVRES 108 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas que negros no Brasil eram até proibidos de entrar em certos ambientes. Moraes ao realiza-la buscava fazer uma homenagem ao negro brasileiro. Para ele, era a cultura desse povo que foi responsável por uma construção orgânica e boa do país (DIAS; CARRASCO, 2011). No programa original, destaca que o negro possuía uma cultura própria e um compor- tamento “sui generis” que embora integrado no complexo racial brasileiro, sempre ma- nifestou a necessidade de seguir a trilha de sua própria cultura, prestando assim uma contribuição verdadeiramente pessoal à cultura brasileira em geral (DIAS; CARRASCO, 2011). Ao transferir o mito de Orfeu da Grécia para o Brasil, Vinícius de Moraes ten- ta transparecer aquilo que ele considera a essência nacionalista. Troca o lirismo pelo carnaval, pelo samba, movimento autêntico nosso resultante das estruturas musicais dos três povos, europeus, indígenas e africanos, que mais contribuíram na formação do que somos hoje. Como nas produções cinematográficas que surgiram posteriormente, Orfeu da Conceição mesmo contando com elenco negro, a equipe técnica era compos- ta por brancos, problemática existente até a contemporaneidade devido a for- mação desigual do nosso país, uma estrutura que exclui aquele que não é visto como branco. A música foi composta por Vinícius de Moraes e Tom Jobim, dire- ção de Leo Jusi, cenários de Oscar Niemayer. A peça foi um sucesso, houve críticas mistas, era um período conservador em que alguns queriam expor que o Brasil era um país com união de raças, en- quanto outra parcela queria esconder a negritude. Apesar disso, a peça não so- freu com tantos boicotes quanto produções posteriores, a exemplo da versão brasileira de Hair (dirigida por Ademar Guerra), lançada 1969, em um período em que enfrentávamos uma Ditadura Militar e que possuía um elenco composto por diferentes raças. A musicalidade de Tom e Vinícius atraiu interesse que não os isentaram de críticas, para alguns eles não conseguiram transmitir a melodia da música feita pelo povo negro. Em uma crítica publicada pelo Correio da Manhã, por Claudio Murilo em 6 de setembro de 1956: Pedimos desculpas aos estrangeiros que foram ao Municipal esperando ouvir música de morro e foram aquinhoados com um pouco de suas próprias músicas ou foram agra- ciados com a batucada do segundo ato, digna dos músicos da Confeitaria Colombo, pelo seu sabor insosso, falta de molejo, etc... uma batucada acadêmica, no mau senti-
ARTIGOS LIVRES 109 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas do. Finalmente, pedimos desculpas aos próprios sambistas de morro por esta usurpa- ção da qual eles não terão notícia e continuarão a compor tranquilamente aquilo que passará para a história do nosso populário como música popular brasileira. A peça possui algumas diferenças do filme e do mito, mais personagens in - seridos, mais destaques a alguns, trocas de nomes, como Orfeu ser filho de Clio e não Calíope, seu pai é Apolo, ele que ensina o filho a se tornar um virtuoso vio - lonista. No filme de 1959 não temos a presença de Aristeu, em 1999 ele aparece com outro nome, sendo amigo do protagonista e também apaixonado por Eurídi- ce. A morte é a Dama Negra, não apenas um perseguidor como no filme de 1959. Na peça, após a morte de Eurídice, Orfeu tem como destino trágico ser assassi- nado por todas as mulheres que ele decepcionou, lideradas por Mira de Tal, que atiram facas e navalhas contra ele. ORFEU CHEGA AS TELAS Esse sucesso causado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, levou a peça Orfeu da Conceição a conseguir repercussão mundial. Vinicius, no ano de 1955, em uma de suas viagens à França, conheceu Sacha Gordine, que decidiu produzir seu filme. A relação entre cinema e atividade intelectual não ocorre de maneira abrupta. É pautada a ideia de que elas se fundem através da necessidade de se conectar a massa com a erudição. No ano de 1958, o produtor Gordine começa a conceber junto a Vinícius de Moraes o filme que viria a ser dirigido pelo ainda desconhecido Marcel Camus no ano seguinte. Orphée Noir, título em francês, é uma produção franco-italiana, gravada no Brasil e com trilha sonora de Luís Bonfá, Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Bourdieu (2006) demonstra que, conforme essa discussão se propaga, ob- servamos uma conversão do capital simbólico em econômico, transferindo isso para o universo cinematográfico, pensamos quando um diretor tem poder de fa - zer um filme e intervir na burocracia que se produzir cinema, foi exatamente o que a França conseguiu fazer ao gravar um filme no Brasil. Eles como um país de poder econômico superior conseguiram dominar o processo de produção de Or- feu Negro, assim como são capazes de fazer em outras coproduções com países
ARTIGOS LIVRES 110 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas com economia menor. O Orfeu de Camus não almejava ser um filme que retrata a realidade por com - pleto. Crua como ela é, com desigualdade de um país ex-colonial. Ele foi feito em um período pós-guerra, a imagem romântica e leve era o que o europeu queria ver naquele momento. As imagens coloridas e as músicas chocaram o público, que não estava muito acostu- mado a assistir a filmes produzidos fora da Europa e da América do Norte. Mesmo sen - do uma variação sobre um imaginário brasileiro já construído, o filme trazia emoções novas e parecia muito mais real do que letras de música ou livros científicos (FLÉCHET. 2009, p. 58). O filme foi filmado inteiramente no Brasil, partes durante a festa de carnaval. Em aproximadamente 3 meses o restante das filmagens ocorreu no morro da Ba - bilônia, na Avenida Rio Branco e em cenários construídos em galpões. A produção mostra uma história parecida com o que foi a peça. Orfeu in- terpretado por Breno Mello, é um homem galanteador, exaltado principalmente pelas crianças da comunidade pela sua forma de tocar violão e pela sua bela voz. Assim como na peça, continua sendo um motorista de bonde e sambista, mo- rador do morro e noivo da exuberante e sensual Mira de Tal, a quem ele não de- monstra afeto. Mira é apenas um objeto de conveniência, para passar o tempo, chegando a ser tratada com desprezo em certos momentos, mas ela tenta se impor e não ser apenas usada. Orfeu a abandona ao conhecer a ingênua Eurídice, que se apaixo- na à primeira vista sem demonstrar. Ela está fugindo de alguém que lhe persegue e se abriga na casa de sua prima Serafina, com o morro é o seu porto seguro, pois lá a morte não lhe alcança. Orfeu demonstra explicitamente o interesse em ficar com Eurídice e mesmo com o noivado dele, ela parece não se importar com o comprometimento dele e acredita no amor instantâneo que sentem um pelo outro. Na terça-feira de car- naval ela desce do morro, vestida com as roupas de sua prima Serafina e um véu cobrindo o rosto, para ficar com ele na festa e nessa ida ao asfalto no centro da cidade é que o perigo a persegue novamente. Na segunda de carnaval o homem vestido de morte sobe o morro, observa Eurídice pela janela e quando Orfeu e desaparece em um barranco, o desenrolar da história no último dia de carnaval é um cenário com Eurídice vulnerável, en- quanto seu perseguidor a procura para lhe matar. Ao mesmo tempo Mira de Tal
ARTIGOS LIVRES 111 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas se sente usada por Orfeu, nutrindo tristeza e raiva. No asfalto, durante a festa de carnaval, Orfeu procura de Eurídice após ter a perdido, pois ele sabe que ela corre risco de vida. Após uma briga Mira de Tal ar- ranca o véu que escondia o rosto de Eurídice. Esse desencontro na madrugada da festa, de terça-feira para a quarta de cinzas acarreta em um final trágico. Ao ver que está vulnerável ela corre e cai nos braços da Morte, escapando novamente e correndo atrás de seu amado em meio ao desfile de carnaval. O filme alavancou a carreira de Camus, que ganhou a Palma de Ouro e Oscar de melhor filme estrangeiro. Prêmios que ficaram com a França e importaram uma imagem fantasiosa e, por vezes, controversa do Brasil. O filme teve produ - ção francesa e uma equipe técnica branca. Fazer cinema era caro e a branquitu- de que possuía os meios de produzir audiovisual. Gordine não possuía verba o su- ficiente, então contou com uma pequena parte da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, empresa brasileira, além da montagem da peça que ajudou a financiar a produção. A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO PELA CRÍTICA AO REDOR DO MUNDO A representação de Camus é a de uma população moradora do morro, que mesmo vivendo com todas as dificuldades e pobreza, era feliz, passiva, inocente e alegre. Essa reação é advinda desde que cineastas estrangeiros começaram a representar o Brasil nos anos 1930, 1940, filmes como Voando para o Rio (dirigido por Thornton Freeland , 1933) e Uma Noite no Rio (dirigido por Irving Cummings, 1941), além do estrondoso e estereotipado sucesso de Carmen Miranda ajudaram a consolidar a imagem brasileira um país tropical, cheio de exotismo, sensualida- de e felicidade. No Jornal O Globo, Lessa, exalta o filme após Orfeu Negro ganhar a Palma de Ouro que: (...) assistir a esse filme fora do Brasil é comprar passagem, no dia seguinte, cedinho, no primeiro navio ou avião que venha a este rumo. Dizem que Rosselini chorava, ao abraçar Clouzot, emocionadíssimo, depois da sua apresentação no Palácio do Festival. É bem capaz. Nunca vi, na tela, cidade mais linda que esse Rio de Janeiro do “Orfeu Ne- gro”: é de dar gritos, de tirar o fôlego, de trazer mesmo lágrimas aos olhos. (...) é capaz de ser responsável por uma inesperada avalancha do turismo. (...) É um legítimo orgu- lho patriótico para todos nós, uma boa amostra da festa pagã e dionisíaca, do carnaval carioca. É a primeira vez que um filme dá ideia do que seja, em verdade, um carnaval carioca, sua beleza, sua alegria, sua tragédia, seu ritmo de arrastante contágio. (...) O cineasta Marcel Camus deu extraordinária prova de sensibilidade ao surpreender, tão
ARTIGOS LIVRES 112 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas bem, em tão pouco tempo de convivência conosco, certos aspectos da vida humilde das favelas e o que representa, para elas, o carnaval, como as cenas do penhor, os en- saios das escolas de samba, certos “takes” da Avenida (LESSA. p. 1, 1959). Imagens que para os estrangeiros eram como “reencenações ou desloca- mentos de elementos ligados a suposta formação histórica do país (o Brasil como paraíso perdido) e à idealização de uma suposta alteridade (as mulheres sensuais, a democracia racial)”. (FREIRE – MEDEIROS. 2009, p. 58). Era visão de um diretor de um país de 1º mundo em relação a um que outrora foi colônia e ainda estava se estruturando economicamente, com as cidades ainda passando pelo processo de urbanização. Os diplomatas do Itamaraty, políticos e a burguesia em geral, antes mesmo do lançamento do filme, devido a existência da peça já temiam que os persona - gens negros e as favelas fossem mostrar uma má imagem do Brasil para o mun- do. Vinícius de Moraes em entrevista de 1967 a equipe do Museu da Imagem e do Som relatou que: Os capitalistas achavam que a gente fazia filme sobre os assuntos errados, que não ti - nha nada que mostrar favela, que devia fazer um filme bonitinho, [sobre] o Copacabana Palace e os ambientes bonitos daqui… Inclusive, as coisas precisam ser ditas porque as pessoas precisam saber delas mais tarde, o então embaixador em Paris, Embaixa- dor Alves de Sousa, lutou fortemente contra o filme ser mandado para o Festival de Cannes porque era um filme sobre negros. 1 O filme ao conquistar o mundo levou também a musicalidade própria do Bra - sil para todos os cantos. Ele alavancou o Brasil como destino turístico por mostrar nossas paisagens que para os estrangeiros eram exóticas, e músicas que feitas através da união de raças que só existem no país, formaram ritmos exclusivos. O trompetista Dizzy relatou em sua biografia episódios presenciados no Bra - sil e a forma como nossos ritmos inspiraram o seu Jazz. Minha primeira exposição ao samba foi na trilha sonora do filme Orfeu Negro, e quan - do eles começaram a tocar, pensei: “Eu tenho alguns irmãos aí embaixo?” Chegando no Brasil, descobri que existiam e que a nossa música tinha um vínculo comum. Eu realmente senti uma conexão, quando me levaram para uma escola de samba no Rio de Janeiro. (….) O samba é a bossa nova, e a bossa nova é uma versão negra do samba. Ouvi samba ao vivo pela primeira vez, quando fizemos uma turnê pela América do Sul. Você realmente pode aprender muito sobre o ritmo deles, especialmente no Brasil. (…) fomos os primeiros nos EUA a tocar essa música, o samba, no contexto do jazz. Tive- mos muito samba, e Stan Getz costumava me cobrar até a morte tentando conseguir 1 Museu da Imagem e do Som – Rio de Janeiro. Arquivo sonoro. Ciclo Depoimentos de Música Po - pular: Antônio Carlos Jobim, 25/08/1967.
ARTIGOS LIVRES 113 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas reproduzir essa musicalidade (GILLESPIE, 1985, p. 428-431). 2 Essa questão do colonizado e do colonizador fica evidente quando sabemos que já durante a produção, Camus e Vinícius de Moras começaram a ter conflitos, direitos autorais das músicas, feitas em parceria com Tom Jobim, devido à falta de créditos até questões de roteiro. Foi uma das maiores decepções que eu já tive na minha vida. Eu não tinha visto o co- pião e estava em Montevideo quando recebi a notícia de que o filme havia recebido a Palma de Ouro em Cannes. Aí eu pulei e vibrei, torci à beça, achei que eles tinham acer- tado na mosca. Depois, quando cheguei aqui, o [presidente] Juscelino [Kubitschek] me convidou para a primeira exibição privada, no palácio, junto com sua família, e dois ou três sujeitos da produção. Eu tive um choque tão grande durante a projeção que me esgueirei e fui embora. Senti que não poderia enfrentar aqueles franceses quando as luzes acendessem. Eu era capaz de partir pra porrada com eles (MORAES, 2003, p. 42). Foram essas opiniões que corroboraram para o filme se situar em uma posi - ção controversa, de que representa ou não a cultura brasileira. E outro ponto de crítica é que devido às premiações, o reconhecimento da obra parece ter ficado apenas com a França. A mídia francesa da época sequer citar o nome de Vinícius de Moraes como criador da obra externou nele um sentimento de fazer uma re- filmagem devido a uma frustração. Era a cultura brasileira, negra, sendo levada para fora e sem trazer o retorno. Parte do orgulho da conquista de ter aqueles prêmios valorizados por varias nações. O INCÔMODO DOS CINEASTAS E DE UMA PARCELA DE BRASILEIROS Em Orfeu Negro era como se diante de toda aquela dura realidade não hou- vesse espaço para ser triste, era carnaval. E o filme queria apenas contar uma história de amor. Não necessariamente fazendo uma crítica a forma como a po- breza afetava nossa nação. No entanto, esse retrato de Brasil recebeu críticas de todos os lados. No livro de Moraes a formação da identidade é dúbia. Ele busca representar o negro e o morro que formam a identidade brasileira, mas ao mesmo tempo o olhar dele e daqueles que detinham o capital cultural e o meio de se fazer cine- 2 Tradução livre da autora.
ARTIGOS LIVRES 114 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas ma, teatro e outras obras, eram majoritariamente brancos, pertencentes a clas- se média. Em Orfeu Negro, o filme, são escancarados vários estereótipos que reforça - ram uma noção de república das bananas que tínhamos no imaginário europeu e estadunidense. Pessoas constantemente sambando em meio a pobreza genera- lizada, clichês de um comerciante estrangeiro que galanteia todas as mulatas do morro. Essa situação causou incomodo de maneira dúbia, um por apresentar um país apenas com felicidade mesmo com a pobreza e por outro lado por expor o racismo que existe na sociedade brasileira que queria se desvincular de ser co- nhecido como um país de negros. No decorrer da década de 1960, a falta de veracidade do filme foi denuncia - da por vários críticos brasileiros, que usavam o Orfeu Negro como um modelo do que não deveria ser feito no cinema brasileiro: o exotismo, o retrato animalesco de Camus era o que se deveria evitar. O filme Orfeu Negro enveredava por visão exótica e turística da cidade, o que traía o sentido da peça e passava muito longe das suas fundadoras e fundamentais qualida- des. Saí do cinema sentindo-me pessoalmente ofendido. Passei então a sonhar com o filme que veio a se tornar o meu Orfeu, realizado 40 anos depois. Nosso Orfeu não era, portanto, nem de longe um remake do Orfeu Negro de Camus, mas sim um novo filme baseado na mesma peça” (DIEGUES, 2003, p. 18). O conservadorismo não queria que os países ricos olhassem o Brasil como um país de negros e pobres, enquanto a esquerda intelectual criticava a falta de profundidade no discurso, o estereótipo docilizado de que o povo brasileiro é fe- liz o tempo todo e aguenta sofrer. Ele gerou opiniões diversas entre os que cons A REAÇÃO DOS CINEASTAS BRASILEIROS APÓS O ORFEU DE CAMUS Enquanto ocorriam discussões sobre o retrato do Brasil em Orfeu Negro, surge um movimento feito por cineastas jovens, inspirados no que estava se fa- zendo no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Era um movimento que buscava me- nos alienação social, buscava criticar duras realidades, e se voltava muitas vezes para o centro e nordeste brasileiro tendo como figura mais conhecida o cineasta Glauber Rocha, mas que teve nomes como Paulo Cesar Saraceni, Cacá Diegues
ARTIGOS LIVRES 115 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas e Leon Hirszman. Foi denominado de Cinema Novo. Para Bentes, a intenção era: (...) violentar a percepção, os sentidos e o pensamento do espectador, para destruir os clichês sobre a miséria: clichês sociológicos, políticos e comportamentais. Glauber [Rocha] propõe uma Estética da Violência, capaz de criar um intolerável e um insu- portável diante dessas imagens. Não se trata da violência estetizada ou explícita do cinema de ação. Mas de uma carga de violência simbólica, que instaura o transe e a crise em todos os níveis” (2007, p. 243). Desde o início da produção cinematográfica brasileira, não havia exatamen - te uma representação total do que seria Brasil e os brasileiros. Nós tínhamos muitas comédias e musicais, filmes que retratavam exuberância, os moradores do asfalto, mas não o Sudeste pobre, outras regiões do país e não havia espaço para o drama. Para Bernardet, a nova geração da época tinha desejo de levar o espectador a conhecer a realidade crua, que ocasiona posteriormente em novas correntes fílmicas. (...) o público não tem o hábito de ver-se na tela, e as identificações que pode fazer com personagens e situações nunca são baseadas em elementos de sua realidade, de seu comportamento, vida, sociedade, etc. É tarefa, e das mais urgentes do cinema brasi- leiro, conquistar o público. (...) A atividade cinematográfica no Brasil, no plano comer - cial e cultural, tem sido no sentido de afastar-se de nós próprios. A realidade brasileira só limitada e esporadicamente recebeu tratamento cinematográfico (BERNARDET. 1967, p. 16 – 17). A crítica dos cineastas de esquerda brasileiros à adaptação de Camus é que devido à sua visão alegre e feliz do morro, enquanto o espectador poderia ver cla- ramente casas de madeira com um cômodo, incentivava a inercia do povo para tentar mudar esse cenário. A visão de Camus foi vista por parte dos brasileiros como primitiva também. Estereótipos que os intelectuais da época estavam ten- tando romper de que nossa miscigenação é motivo de atraso. (...) convertem a pobreza urbana numa espécie de alegoria carnavalesca. (...) reprisam uma leitura mítica da cidade que pressupõe a alegria estrutural de seus pobres e uma intensa sexualidade que perpassa o conjunto de seus habitantes. (...) Apostam em um certo poder regenerativo peculiar a paisagem carioca que, não seria exagerado afir - mar, é tematizado em praticamente todas as narrativas sobre o Rio desde sua funda- ção (FREIRE – MEDEIROS. p. 60, 2009).
ARTIGOS LIVRES 116 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas Também podemos pensar que nessa tentativa de mostrar o real e bruto, havia certa controvérsia na intenção de se fazer cinema na época quando parti- mos da ótica de quem fazia e de quem era retratado. Os filmes da década de 1950 e 1960 mostravam os moradores dos morros sem preconceito ou caricatura, o modo de falar, vestimentas e gírias, algo que não era feito. No entanto, não isen- tava a construção de estereótipos, como aponta Salem (1996), pobres eram bons e batalhadores e ricos eram corruptos. Em ambos os lados tivemos um estereó- tipo, uma dualidade, como se fosse um lado bom e mau. CACÁ DIEGUES REALIZA SEU ORFEU O retrato fantasioso de Brasil feito por Camus incomodou muitos cineas- tas brasileiros que queriam mostrar uma face mais real e bruta da realidade de um país que outrora foi colônia e perpetuava reflexos de desigualdade. Em 1987, Diegues lança Um Trem para as Estrelas, obra que de muitas formas representa o Orfeu Negro que ele gostaria de fazer. Uma questão estrutural e problemática do nosso cinema é que essa versão, apesar de querer refletir uma realidade bra - sileira, é feita majoritariamente por atores brancos na função de protagonismo. Nessa versão, a trama relata a história de Vinícius/Vina, um homem órfão, pobre, que mora com a tia em um apartamento pequeno e busca o sucesso como músico, que após uma noite, tem sua namorada Eunice/Nicinha desaparecida nas ruas do Rio de Janeiro. O filme mostra um aspecto de pobreza, violência e injustiça dos grandes centros urbanos. O inferno de Vina são as vielas dominadas pelo tráfico. A busca por sua amada se relaciona ao mito de Orfeu, quando ele desce ao mundo dos mortos atrás de Eurídice e também faz paralelo com a músi- ca homônima de Cazuza, trilha do filme, ao relacionar trechos da música a cenas. Apesar dessa referência feita na década de 1980, após o lançamento de Or- feu Negro de Marcel Camus, Vinicius de Moraes não ficou satisfeito com o re - sultado e com a falta de reconhecimento, afinal a obra é brasileira enquanto os méritos ficaram com os franceses. Houve uma tentativa de Diegues de fazer uma refilmagem, paralisada devido à morte de Moraes, em 1980 em meio ao processo de recriação da obra. Em 1999, com Toni Garrido e Patrícia França, Diegues lança sua versão inti- tulada apenas de “Orfeu”. Filme totalmente brasileiro, feito após o movimento da
ARTIGOS LIVRES 117 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas Retomada, com suporte da Globo Filmes. E o cineasta queria finalmente retratar a forma de Brasil com a desigualdade e pluralidade étnica que faltou na versão de 1959. Cacá tinha consciência que iria enfrentar um filme clássico e de grande destaque. Mas para ele, o sucesso de Orfeu Negro era algo circunstancial. Considerava o caso do filme ter caído no gosto do público internacional, a três principais fatores: era a primeira vez que se via o Rio de Janeiro, que ele considera a cidade mais linda do mundo, a cores no cinema; era a primeira vez que se ouvia este aquele tipo de música e por fim em uma época de Guerra Fria, com todos achando que mundo iria acabar numa guerra atômica, o filme surge e apresenta um lugar onde todos são felizes, dançam, cantam e brincam o tempo inteiro e a única coisa que pode atrapalhar isso é a morte abstrata, não possui origem social e política (CUNHA. 2014, p. 61). O filme de Diegues perde a inocência que existia no de Camus, adaptado para os anos 1990, momento em que o tráfico e a criminalidade dominavam prin - cipalmente os morros cariocas. Orfeu continuava galanteador, virtuoso e, assim como Vina de Um Trem para as Estrelas, buscava sucesso musical sendo um ho- mem negro, pobre e que veio da favela e Eurídice se torna, nessa versão, uma mulher pobre, que veio do Acre, após a morte de seu pai, morar na casa da sua tia. Ao contrário de Orfeu de 1959, em que os moradores da favela são hospitalei- ros, Eurídice encontra hostilidade ao chegar no local. Mostra que os moradores de lá estão acostumados a violência, tiroteios, fazem parte do cotidiano e resta sobreviver. Para o cineasta não era um remake, era uma nova representação, um fil - me fazendo justiça e apontando o contexto real que o Brasil enfrentava, 40 anos após a primeira versão, em um momento em que a estrutura das favelas já havia se modificado, havia um aglomerado de barracos, falta de saneamento e outras políticas públicas. Toda essa ausência do poder público abre margem para o vilão dessa nova versão ser o traficante Lucinho, que é uma nova versão de Aristeu, amigo de in - fância de Orfeu, líder de facção que queria subir rápido na vida mesmo saben- do que no crime ela poderia ser curta. Para Diegues, o filme não deveria ser um universo colorido apesar de acontecer nos 4 dias de festa de carnaval. A respei- to dessa mudança representativa podemos pensar, como aponta a antropóloga Janice Caiafa: A etnografia é ao mesmo tempo um tipo de investigação e um gênero de escritura que se desenvolveu na tradição antropológica. Mas ela surge de fato com outras tradições
ARTIGOS LIVRES 118 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas e experiências, sobretudo os relatos de viagem – de diversos indivíduos, ilustres ou não, que por diferentes motivos se encontravam em situação de distanciamento geo- gráfico e cultural (CAIAFA. 2007, p. 135). O filme foi realizado mostrando pluralidade de cores existentes no Brasil, a miscigenação, Eurídice é branca, Orfeu é negro. O mito agora nos faz refletir as - pectos sociológicos e estéticos, ele traz o cenário das favelas de volta às telas, porque além de um cinema parado, na década de 1990, o sucesso brasileiro era nas novelas, que mostravam um brasil caucasiano e morador da zona sul. Assim como Camus, Diegues foi criticado por ambos os lados, mas por sua vez por re- presentar um Brasil miserável e violento, que por vezes pode reforçar que no país existe apenas pobreza. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma das mais fortes consequências de Orfeu Negro e a inquietação dos cineastas brasileiros foi o filme Cinco Vezes Favela de 1962. Buscava extrair do público reflexão e ação. São 5 curtas em conectados com direção de Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. Para Bernardet (1967), o filme possui erros por já apresentar uma sociedade esquematizada. Ele mostra as problemáticas, mas não abre margem para interpretações. Além disso, o problema tende a ser apresentado junto com sua solução: o favelado de Escola de Samba Alegria de Viver toma consciência de sua alienação e troca o samba pelo sindicato. O resultado dessa estrutura dramática simplista não era um convite à politização, mas sim à passividade. Pois o espectador não tem de fazer o esforço de extrair um problema da realidade apresentada no filme: o problema está enunciado de modo tão categórico que não admite discussão; e, se se quisesse discuti-lo, a rea- lidade do filme não forneceria elementos para tanto. O espectador tampouco tem de fazer esforço para imaginar uma solução: ela é dada. O espectador absolutamente não é solicitado a participar da obra; a única coisa que se exige dele é que ele sente em sua poltrona e olhe para a tela, nada mais. E só lhe resta uma alternativa: negar o filme ou entusiasmar-se com ele. O espectador encontra-se diante de um circuito fechado: a realidade só se abre para um único problema, que está apresentado esquematicamen- te, o problema tem uma única solução positiva, que também está apresentada esque- maticamente – e a situação piora ainda quando a solução é tão discutível como no caso de Escola de Samba Alegria de Viver. O filme fecha-se sobre si próprio, e o espectador, limitando sua participação a aceitar ou recusar, fica de fora (BERNARDET. 1967, p. 25).
ARTIGOS LIVRES 119 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas Cacá Diegues foi um dos cineastas que na época se incomodou com a re- presentação brasileira em Orfeu Negro, e em 1999 teve a oportunidade de lançar sua versão, corrigir o que ele imaginava que Marcel Camus havia feito errado. Em 1980 houve uma conversa com Vinícius de Moraes, mas a produção foi paralisada no mesmo ano devido à morte de do autor. Ele queria retomar o que se fazia em 1950 e 1960, instigar a reflexão, o viés sociológico, histórico. (...) nunca existe uma única visão possível, mas uma visão distinta e uma visão emba- çada, uma visão nítida e uma visão difusa, uma visão direta e uma visão oblíqua... Des- crever é sempre descrever a partir de uma perspectiva: ao perto, ao longe, em face, do lado, de través (LAPLANTINE. 2004, p. 89). Nessa adaptação nomeada apenas de Orfeu, feita após quase 20 anos, os morros foram retratados com domínio dos traficantes de drogas, um Brasil menos colorido e a guerra entre policiais e bandidos. Sua versão se adaptou à época, trazendo também o funk, o rap, buscando trazer a realidade contemporânea das favelas cariocas que, àquela altura, fora dominada pelas facções. Também trouxe a miscigenação, Orfeu era negro, Eurídice mestiça, lida como branca, o líder do tráfico também era um homem branco. Em todos os aspectos ele vem para ser o oposto, o Orfeu de Camus tem muitas cenas externas, o ambiente parece ter muita coletividade, e também a estrutura das favelas eram diferentes. Em 40 anos o êxodo rural, migração de pessoas de outros estados, especulação imobiliária, a favela do filme de Diegues que foi construída em estúdio era um amontoado de casas e poderia representar qualquer favela do Rio de Janeiro que aquele momento já era um espaço superlotado. Já era uma conjuntura mais individualista. Diegues queria demonstrar questões políticas e sociais com sua versão e o filme foi lançado em um momento de importância no cenário nacional, pois no final da década de 1990, o Brasil passava por um momento de retomada cinematográfica após uns anos de descaso estatal e preterimento do cinema estrangeiro pelo público. Ele sabia das críticas que enfrentaria por retratar um Orfeu com uma estética tão bruta, mas atrelou isso a fatores da época em que os filmes foram lançados. Para Diegues, Camus fez uma representação para estrangeiro ver, um filme colorido em 1959 chamava atenção, era um mundo vivendo em meio a uma Guerra Fria.
ARTIGOS LIVRES 120 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas A questão posterior que se teve com essa necessidade de tentar retratar o povo e sua realidade, é que o espectador vai ao cinema na função de se distrair, então esses filmes acabaram por não conseguir o diálogo com a massa que eles queriam. O morador do morro queria se ver na tela, mas nem sempre extrair uma grande reflexão do quão sua vida é brutal. Gostaria de apenas rir. Logo, filmes mais densos, dramáticos, passaram a chamar atenção de festivais, de intelectuais e acadêmicos. Mas também retomou a produção brasileira de um drama fundido com a ação, posteriormente tivemos Cidade de Deus (dirigido por Kátia Lund; Fernando Meirelles, 2002), Tropa de Elite 1 e 2 (dirigido por José Padilha, 2007; 2010). O filme de Camus ainda hoje é mais lembrado. Talvez não somente pelo capital estrangeiro e os prêmios, mas porque o cinema as vezes serve como válvula de escape da dura realidade. Temos reflexo disso ao ver que as maiores bilheterias nacionais são comédias. A crítica, principalmente internacional na época do lançamento reagiu negativamente ao filme de Diegues e que já era ciente que haveria comparações com o filme de Camus. Um filme de um amor trágico, mas colorido havia se tornado um filme bruto e trágico. Apenas um drama. Talvez pelo mito de brasileiro feliz ainda ser muito forte no exterior. REFERÊNCIAS Livros BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo, Bertrand Brasil, 2006. CAIAFA, Janice. A pesquisa etnográfica. In: Ensaios e etnografias: Aventura das cidades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. DIAS, Maria Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda . São Paulo, Ática, 1985. FREIRE – MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. LAPLANTINE, François. A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
ARTIGOS LIVRES 121 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas MORAES, Vinícius. Soneto de Corifeu. In: Livro de Sonetos. Rio de Janeiro, RJ: Editora Sabiá, 1957. NAGIB, Lúcia. O paraíso negro. In: A utopia do cinema brasileiro. São Paulo, Cosac Naify, 2006. REIS, José Carlos. (2007). As identidades do Brasil 1: de Varnhagen a FHC . 9° ed. Rio de Ja- neiro: FGV. SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos. O sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Ja- neiro: Editora Record, 1996. Artigos Em Periódicos Acadêmicos BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosméti - ca da fome. Revista Alceu. Rio de Janeiro, 07-12/2007. P. 242 – 255. DIAS, Fabiana Quintana. CARRASCO, Ney. Da ideia à criação de Vinicius de Moraes: uma aná - lise da música original da peça “Orfeu da Conceição” (1956) . Revista Cientifica/FAP, Curitiba, v.7, p. 99‐118, jan./jun. 2011. FLÉCHET, Anaïs. Um mito exótico? A recepção crítica de Orfeu Negro de Marcel Camus (1959 – 2008) . São Paulo: Significação/USP – SP. Nº 32, 2009, p. 42 – 95. Dissertações e Teses CUNHA, Maryanne Seabra Teixeira da . Imagens e representações etnográficas do Rio de Ja - neiro: um estudo sobre os filmes Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus e Orfeu (1999), de Cacá Diegues. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro, 2014. OLIVEIRA, Maria Claudete de Souza. Presenças de Orfeu. 2006. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006. Textos Em Jornais E Revistas DIEGUES, Cacá. Pela vitória do amor e da arte . In : Cancioneiro Vinicius de Moraes. Orfeu. Jo- bim Music. p. 17 – 20. Rio de Janeiro, 2003.
ARTIGOS LIVRES 122 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Juliana Mendes/Arnaldo Vieira Sousa/Flávio Luiz de Castro Freitas LESSA, Elsie. O “Orfeu” de Vinícius . Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 1956. Matutina, Geral, p.1. __________. Orfeu Negro . Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 17 jun. 1959. Matutina, Geral, p.1. MARIA, Antonio. Orfeu . Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 27 set. 1956. Matutina, Geral, p.2. _____________. Opiniões . Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 1956. Matutina, Geral, p.2. Citações Extraídas Da Internet GILLESPIE Dizzy. To Be or Not… to Bop . Da Capo Press. New York, 1985. MORAES, Vinícius. Cancioneiro Vinícius de Moraes. Orfeu, songbook/músicas de Antonio Car- los Jobim & Vinícius de Moraes. Rio de Janeiro: Jobim Music, 2003. MURILO, Claudio. A música de Orfeu da Conceição . Correio da Manhã em 6 de outubro de 1956. <https://www.jobim.org/jobim/handle/2010/8974> Acesso em 07 de março de 2024.
ARTIGOS LIVRES 123 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente DO COLONIAL AO CONTEMPORÂNEO: UMA RELEITURA DA OBRA DE ROGER BASTIDE E FLORESTAN FERNANDES PARA REPENSAR A MEMÓRIA AFRO-PAULISTANA FROM COLONIAL TO CONTEMPORARY: A REINTERPRETATION OF THE WORK OF ROGER BASTIDE AND FLORESTAN FERNANDES TO RETHINK AFRO-SÃO PAULO MEMORY https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20307 Claudelir Correa Clemente Universidade Federal de Uberlândia https://orcid.org/0000-0001-5126-6704 claudelirufu@gmail.com Recebido em 29 de fevereiro de 2024 Aprovado em 18 de maio de 2024 RESUMO: Na pretensão de compor e subsidiar o debate contemporâneo dos movimentos negros e da pesquisa científica sobre a memória afro-paulistana, este artigo revisita a obra Brancos e negros em São Paulo, de Roger Bastide e Florestan Fernandes, na versão de 1959, e, por meio de suas fontes, busca evidenciar aspectos relevantes da etnicidade e dos modos de ser, agir e conviver de africanos e afro-brasileiros que foram escravizados na cidade São Paulo entre os séculos XVI e XIX. Palavras-chave: Memória, Escravizados, Etnicidade, Culturas afro ABSTRACT: With the aim of composing and contributing to the contemporary debate on black movements and scientific research on São Paulo African memory, this article revisits the work Whites and Negroes in São Paulo by Roger Bastide and Florestan Fernandes (1959), and, through its sources, seeks to highlight relevant aspects to ethnicity and ways of being, acting, and coexisting of Africans and African Brazilians who were enslaved in the city of São Paulo between the 16th and 19th centuries. Key words: Memory, Enslaved, Ethnicity, African cultures
ARTIGOS LIVRES 124 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente INTRODUÇÃO As reflexões aqui apresentadas estão assentes na análise de fontes, docu - mentos e etnografias que foram consultados por Roger Bastide e Florestan Fer - nandes para realização da obra Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológi - co sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana , que teve a primeira edição em 1955; para este artigo, no entanto, leu-se a segunda edição, que data de 1959. Reconhece-se essa obra como uma das poucas fontes que tratam da presença negra na cidade de São Paulo, desde os primeiros anos de colonização. As motivações para escrever este artigo surgiram em incursões antropoló- gicas realizadas entre 2018 e 2023 em atividades de coletivos afro-paulistanos, cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade. Pude acompanhá-las a partir de ações empreendidas em dois bairros da capital paulista: Penha de França, na zona leste da cidade, onde fica a Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França; e Bixiga, na zona central, local da recente descoberta do Quilombo Saracura e onde nasceu a Escola de Samba Vai-Vai. A grande problemática para estes coletivos é que, neste século XXI, a ques- tão da presença afro no período colonial paulistano é questionada, na sua exis- tência e na sua validade, nos círculos de investidores que cobiçam principalmen- te as áreas nobres da capital. Há em curso uma série de narrativas e ações que buscam destituir as populações negras do direito de morar e conviver em bairros paulistanos de classe média e alta. Isso se assevera em espaços que concentram grupos mais organizados de expressões afro-brasileiras significativas para a he - terogeneidade cultural da cidade e em locais onde foram feitas descobertas de bens materiais e imateriais que denotam a origem negra de São Paulo. Nos últimos anos, em territórios devassados por grandes projetos metroviá- rios e imobiliários, um conjunto de vestígios materiais de africanos e afro-brasi- leiros escravizados no período colonial tem sido desenterrado. Contrariando as elites empresariais, que apostavam num apagamento irre- versível das culturas negras ancestrais da memória paulistana, eis que seus res- quícios se apresentam à luz da contemporaneidade em bairros da capital paulis- ta. É o caso do supracitado bairro do Bixiga, no qual foram encontrados vestígios
ARTIGOS LIVRES 125 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente do Quilombo Saracura 1 em meio às obras de uma nova linha do Metrô, projeto li- berado pelo grupo transnacional Acciona. Concomitantemente a esse importan- te achado quilombola, outro símbolo afrocultural foi apagado no bairro: a sede de uma das mais tradicionais escolas de samba paulistanas, a Vai-Vai, demolida em 2021 para dar lugar a uma estação da nova linha metroviária. No vizinho bair- ro da Liberdade, durante as escavações de um empreendimento imobiliário, em 2018, foram encontradas ossadas dos tempos de escravidão, o que comprova a existência do Cemitério dos Aflitos 2 , até então conhecido apenas por meio de documentos. Mesmo diante de evidências que certificam a presença negra na São Paulo Colonial, o racismo perpetrado pelos setores mais abastados da sociedade pau- listana manifesta-se em estratégias e narrativas de não reconhecimento desses bens enquanto patrimônio municipal e estadual. É possível observar, em 2024, uma morosidade explícita dos órgãos públicos municipais e estaduais, e mesmo inércia no registro desse patrimônio e em demais ações políticas e educativas para salvaguardar o espólio negro na capital paulista. Também se observa uma exacerbada visão eurocêntrica e etnocêntrica de certos quadros profissionais que atuam no patrimônio cultural lotados ou de prestadores de serviços em ór- gãos com sede na capital paulista, sejam municipais, sejam estaduais, sejam fe- derais. Por parte desses quadros, há sempre ênfase no reduzido contingente popu- lacional negro no período colonial paulistano, sem, contudo, que se aponte quan- to era igualmente reduzido o contingente de brancos portugueses ou de outros países da Europa que viviam então na cidade. Sabe-se, histórica e cientificamente, que São Paulo é terra indígena (MON - TEIRO, 1994; DOS SANTOS, 1998) e que africanas e africanos foram escravizados nessa capital. Bens culturais dessas populações compõem o patrimônio de São Paulo. Ademais, não se questiona tecnicamente o patrimônio deixado pelas cul- turas europeias, historicamente mais valorizado. Consequentemente, esse con- 1 (SILVA, 2023). Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quilombo-saracura-a- -busca-pela-preservacao-das-memorias-encontradas-nas-obras-do-metro-em-sao-paulo . Acesso em: 21 jul. 2020. 2 (REIS, 2018) [on-line]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/06/ arqueologos-encontram-ossadas-da-epoca-da-escravidao-em-terreno-no-centro-de-sao-paulo.ghtml . Acesso em: 27 abr. 2024.
ARTIGOS LIVRES 126 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente texto aumenta as dificuldades da população organizada para conseguir o regis - tro e o tombamento dos bens culturais indígenas, africanos e o afro-brasileiros. Na cidade de São Paulo, esse fenômeno se deve a um apagamento constan- te: das origens africanas; das culturas afro; do processo de escravização pelo qual passaram negras e negros; e da memória e do patrimônio afro. Na contem- poraneidade, há, por parte dos movimentos e diversos segmentos da população negra, uma busca por reconhecimento do seu patrimônio cultural, ao qual é atri- buído sentido identitário. Por isso, revisitar a obra de Bastide e Fernandes, depois de quase 70 anos de sua primeira publicação, e deter-se sobre suas fontes tem como um dos obje- tivos fomentar um campo reflexivo com informações antropológicas e históricas para ser usadas pelos movimentos sociais negros que lutam pela memória afro da cidade de São Paulo. Buscou-se fazer uma releitura afrocentrada, orientada pela produção in- telectual africana e afro-brasileira contemporânea. Notadamente, das contri- buições africanas, as teorias do antropólogo costa-marfinense, de ascendência Akan, Georges Niangoran-Bouah (1978) e do historiador costa-marfinense Pierre Kipré (2010) apresentam um conjunto de estudos que buscam captar a visão in- terna africana, o que, para a escrita deste artigo, foi de suma importância, permi- tindo destacar a grande relevância dos povos Akan e Gã para a compreensão das etnias que contribuíram para a formação do Brasil. Neste artigo, pretende-se ir além do sistema de classificação étnica colo - nial, que se baseia nas regiões africanas de procedência dos escravizados – An- gola, Benguela, Guiné e Mina. Acerca da intelectualidade afro-brasileira, recorremos aos pensamentos de Beatriz do Nascimento (2021), Clóvis Moura (2021) e Lelia Gonzalez (1979), por suas perspectivas afrocentradas e decoloniais e por reforçarem a importância da re- sistência negra, criadora de quilombos e de formas de aquilombolamento desde tempos imemoriais, seja no continente africano pré-colonial, seja no Brasil. Beatriz do Nascimento abriu as miradas deste artigo com sua reflexão ge - nuína sobre a invisibilidade negra na historiografia brasileira. Certa vez, ela co - mentou em uma entrevista: “A história do Brasil foi escrita por mãos brancas. Tanto o negro quanto o índio não têm sua história escrita, ainda. Isso é um problema muito sério, porque a gente frequenta universidade, frequenta escola, e não temos uma visão correta
ARTIGOS LIVRES 127 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente do passado do negro” 3 . Essa invisibilização do negro e do índio nas pesquisas históricas, como afir - ma Nascimento, também incomodou Bastide e Fernandes (1959), como veremos adiante, pois a historiografia consultada, à época, não apresentava informações precisas sobre a importação de africanos nos primeiros 50 anos do descobri- mento. Um segundo objetivo que orienta as análises deste artigo é provocar o de- bate científico em torno da presença de africanos na cidade de São Paulo, em es - pecial nos períodos quinhentista e seiscentista. Sobre essa época, são escassas as pesquisas históricas e, sobretudo, antropológicas que aprofundam reflexões sobre as origens étnicas dos povos africanos escravizados em solo paulistano. Portanto, revisitar a obra de Bastide e Fernandes (1959), dando atenção às suas fontes, possibilita o encontro de informações significativas sobre a presen - ça de africanos escravizados e seus descendentes no território paulistano dos séculos XVI ao XIX. As origens africanas da cidade de São Paulo Já no início do capítulo I de Brancos e negros , Bastide e Fernandes (1959, p. 1) afirmam: É impossível precisar a época em que se iniciou a importação do braço negro em São Paulo. Presume-se que os primeiros africanos vieram para o Brasil entre 1516 e 1526. No entanto, só a partir dos meados do século XVII principiou o afluxo regular e cons - tante de africanos para a Colônia. Mauricio Goulart (1975, p. 95), que é a fonte consultada por esses autores, salienta: Quem trouxe os primeiros africanos para o Brasil e quando, com exatidão, isso se deu, são problemas que a investigação histórica, à mingua de documentos, não elucidou ainda, e, quiçá, nunca elucide. Mas, talvez não erre muito quem faça coincidir a entrada dos primeiros negros com a fabricação de açúcares no Brasil. Foi na condição de escravizadas que as populações africanas conheceram a perversidade da colonização europeia que as racializou como negras e as lan- 3 (RESÍDUO, 2023). Série documental, episódio 1. Trecho disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=xxkBDmWi_xM . Acesso em: 27 abr. 2024.
ARTIGOS LIVRES 128 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente çou além-mar, em navios negreiros, sequestrando-as majoritariamente para as Américas: [...] em proveito do tráfico atlântico (século XV ao XIX), homens e mulheres originá - rios de África foram transformados em homens-objecto, homens-mercadorias e ho- mens-moeda. Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a ou- tros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome ou língua própria (MBEMBE, 2017 p. 12). É sob esse contexto macabro que algumas fontes consultadas para escrita do presente artigo indicam que já no século XVI havia africanos em São Paulo. Eram pessoas importadas da África Ocidental pela família Schetz de Antuérpia (MONTEIRO, 1994). Tudo aponta para a presença na cidade de um ou outro mem- bro de povos de culturas milenares, sendo mais provavelmente advindos dos rei- nos de Akan, Mandingo e Angolares 4 (DAVEAU, 1962; NIANGORAN-BOUAH, 1978; KIPRÉ, 2010). No século XV, os dois primeiros reinos estariam localizados na região que ficou conhecida como Costa da Mina, e os Angolares na ilha de São Tomé e Prín - cipe, localizados no Golfo da Guiné. Região explorada por portugueses e demais europeus, como a já citada família Schetz de Antuérpia, pois como os demais nobres europeus “[...] estavam imbricados nas redes mercantis que envolviam Portugal e seus espaços ultramarinos desde fins do século XV”, como aponta Vi - lardaga (2022, p. 185). De acordo com Kipré (2010 p. 362), na costa atlântica africana: De 1471 a 1480, a região que vai do cabo Palmas à foz do Volta foi explorada pelos portugueses, que entraram em contato com as populações locais; já em 1481 começaram a construir o forte de São Jorge da Mina (Elmina), que lhes garantiu o controle efetivo sobre o comércio costeiro. O comércio de escravizados em direção ao Brasil teria começado nesse lo- cal. Mas, o tráfico mais significativo ocorreu a partir do século XVII, quando a ci - dade de São Paulo se tornou negra. A polvorosa dos paulistas em torno das minas de ouro supostamente descobertas por Afonso Sardinha, que morava próximo ao rio Pinheiros (VILARDAGA, 2013), foi um dos fatos que abriram as negociações 4 É a denominação corrente entre os séculos XV e XIX para identificar grupo de africanos e afri - canas que se insurgiram contra a escravidão na atual ilha de São Tomé e Príncipe, arquipélago do Golfo da Guiné. Há, porém, outras versões que podem ser verificadas em Suzanne Daveau (1998).
ARTIGOS LIVRES 129 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente que promoveriam a vinda de africanos para a capital. Bastide e Fernandes (1959, p. 7) confirmam este tornar-se negro paulista: “É pelos fins do século XVII, com a localização de minas auríferas pelos paulistas, que começa a se formar o primei- ro fluxo regular e apreciável de escravos negros para estas regiões” . Goulart (1975, p. 137), uma das fontes desses autores, ressalta: Também em S. Paulo a situação era de penúria de africanos, como confessava em 1713 o governador da capitania, D. Braz Baltazar da Silveira, endossando junto ao rei o pedido dos moradores: “...pretendem que V. M. lhes faça a mercê de permitir que à Vila de Santos venham em direitura navios de Angola e Cabo Verde com escravos de que necessitam, assim para o serviço das lavouras como para as minas”. No século XVII, a Costa da Mina era a região provedora do comércio de es- cravizados. Esse perfil foi ampliado devido às disputas entre as nações europeias por esse local, que acabou subdividido em Costa do Ouro, Costa dos Escravos e demais “costas”, conforme demonstra o mapa. Mapa - Costa da Guiné no século XVII. Fonte: Práticas Religiosas da Costa da Mina/Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. O tráfico de escravos teve grande impacto sobre os povos e culturas africa - nas. Como destacou Mbembe (2017, p. 12), essas pessoas “[...] passaram a per- tencer a outros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome ou língua”. Ou seja, nos mercados de escravos instalados na proximidade do li- toral africano elas tiveram suas origens desmerecidas. Foram classificadas de acordo com a perspectiva ocidental que lhes conferiu origens vinculadas aos lo-
ARTIGOS LIVRES 130 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente cais onde foram mantidos em cativeiros – por isso os termos de procedência de escravizados Angola, Benguela, Guiné, Mina, que se referem ao porto ou à região de captura e venda de africanos. Depois de um tempo nesses locais, essas pes- soas eram transportadas em condições subumanas para o Brasil, sendo então escravizadas. Nesse sentido, para além das denominações ocidentais que identificaram os escravizados, a costa atlântica africana, desde tempos imemoriais, atraiu uma pluralidade de sociedades de culturas singulares. Entre elas, o cultivo da mobilidade é algo antigo, configurando-se um dos preceitos que norteiam as experiências socioculturais africanas. No contexto pré-colonial muitos povos africanos migravam e se instalavam por longos períodos nessa região. Entre eles destacam-se aqueles que se encontravam na costa atlântica no período colonial cujos membros foram capturados e escravizados na mineração do Sudeste brasileiro, incluindo a cidade de São Paulo. Assim, muitos escravizados classificados de forma genérica como “escravo mina” ou “negro mina”, podem pertencer a povos que estavam nas regiões litorâneas da África entre os século XVI e XVII, constatamos que neste período povoavam a região os povos Akan (PERSON, 2010, KIPRÉ, 2010) e Gã, que no Brasil foram vulgarmente identificados pelos brancos europeus como “escravos mina”. A sociedade Akan, que atualmente é um grupo étnico significativo em países como Costa do Marfim e Gana, merece aqui um breve destaque. Conhecidos pelo culto ao ouro, os akan acumulavam muitos conhecimentos sobre esse metal precioso, tendo contribuído para o sucesso da mineração brasileira. Desde que os portugueses se instalaram na Costa Mina, no século XV, os akan negociavam com eles 5 , mas também foram por eles escravizados. De acordo com o antropólogo africano Niangoran-Bouah (1978, p. 127), para a sociedade Akan o ouro “[...] é o metal dos metais, ele é mais nobre, inalterável e eterno (...Encontrar ouro na natureza é um feliz presságio” 6 (NIANGORAN-BOUAH, 1978, p. 127). Envoltos na limitante designação “escravo mina”, sua contribuição na formação das populações sudestinas foi invisibilizada, porquanto apagados os seus conhecimentos sobre extração do ouro. Sobre esse processo, apontam 5 Sobre esse assunto ver Kipré (2010). 6 Tradução minha.
ARTIGOS LIVRES 131 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente Bastide e Fernandes (1959, p. 14): Desde 1706 os negros importados se destinavam, na proporção de 20 para 3, aos tra- balhos das minas; eles apenas transitavam por São Paulo, em sua maioria, ou eram negociados por intermediários nas zonas de mineração. Os trabalhos nas minas eram muito rudes, exigindo não só trabalhadores robustos, mas ainda contínua renovação de quadros humanos. Segundo documentos da época, os escravos mais debilitados eram escolhidos para a lavoura, enquanto os mais fortes eram remetidos para os ser- viços de mineração. Na p. 14 de Brancos e negros a nota de rodapé 34 complementa a ideia da citação acima: Cf: Afonso E. Taunay, Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil , pág. 624- 626, este autor cita um exemplo: “em Goiás acontecia morrerem 100 escravos no perío- do de um ano, coisa nunca acontecida aos agricultores”. Além das próprias condições de trabalho, terríveis e desumanas no começo, alguns autores mencionam a maligni- dade do clima (cf, F. J. de Lacerda e Almeida, op. cit., pág. 64). Salienta-se que do contingente africano empregado nas áreas de minera- ção que se concentraram fora do perímetro de São Paulo, um número significati - vo para época seria escravizado no município, atuando na agricultura de subsis- tência e em serviços domésticos. Do contexto colonial paulistano do século XVIII, marcado pelo trabalho rural e doméstico, há escassas informações quanto à presença africana; algumas es- tão disponíveis na documentação depositada no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. É o que apontam as pesquisas de Fabiana Schleumer (2011), que aprofundam estudos sobre africanos que são mencionados nos processos-cri- mes de feitiçaria ocorridos na cidade. Por meio de seu artigo foi possível con- jecturar a existência de algumas formas de sociabilidade afro na capital paulista daquele período. Até porque aos escravizados era negada a possibilidade de vida social, de convivências, sendo considerados apenas força de trabalho. Segundo essa autora, é necessário olhar para a São Paulo colonial como [...] um espaço não somente de práticas e vivências indígenas, como tem afirmado a historiografia tradicional, mas também como centro de elaboração e reelaboração de valores e práticas culturais africanas; áfricas que se criaram e se recriam no bojo da sociedade paulistana colonial (SCHLEUMER, 2011, p. 9).
ARTIGOS LIVRES 132 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente De fato, no decorrer do século XVIII, o negro se tornou o principal instru- mento da produção econômica. Numa passagem, Bastide e Fernandes (1959 p.17) ressaltam: Quanto à vila de São Paulo, que nos interessa particularmente por ser o próprio campo dos nossos estudos, a documentação revela que se desenvolvera relativamente, be- neficiando-se particularmente com o comércio das minas de Goiás e Mato Grosso e com a exploração em escala econômica da produção agrícola e da criação. Em 1766, contaria 833 fogos e possuiria 3.820 habitantes. Os dados relativos a 1777 revelam que a população aumentara, abrangendo 4.409 habitantes, dos quais 2.423 livres (brancos, índios, mestiços e libertos) e 1.986 escravos (africanos e negros crioulos). Em média, cada proprietário possuía de 1 a 5 escravos; mas, alguns possuíam mais do que isso: havia os que tinham de 10 a 30 escravos e notam-se dois que contavam com 51 e com 104 escravos. A tendência ao aumento da população africana iniciada nos fins daquele sé - culo ganhou ímpeto, adentrando o século XIX com intenso crescimento, sobretu- do devido à grande lavoura do café e sua surpreendente vitalidade. O plantel de escravos domésticos dos moradores da cidade continuou crescendo na primeira metade do Oitocentos, especialmente para os proprietários com negócios urbanos e rurais, ou seja, todos os índices indicam que a riqueza dos moradores da capital crescia ao mesmo tempo que se desenvolviam as novas fronteiras agrícolas (ARAÚJO, 2003, p. 127). O boom cafeeiro transformou a cidade de São Paulo num território de grande efervescência, tornando-a, inclusive, centro comercial e bancário que adminis- trava os lucros da grande lavoura. Devido à decadência dos proprietários agrícolas das províncias do Norte um contingente significativo de sua escravaria seria comprado por cafeicultores paulistas, que também comprariam no mercado ilegal “[...] comboios, que ali- mentavam com os africanos importados ‘ilegalmente’ pelos traficantes e nego - ciados no mercado do Valongo” (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 36). Em tabela elaborada pela historiadora Regiane Mattos (2006 p.103), sobre a origem de africanos batizados na capital paulista, no período de 1800 a 1850, foi identificado um número considerável de pessoas procedentes da Guiné, desig - nação geral para quem vinha da costa atlântica da África e da região Centro-Oci- dental do continente. Os estudos de (ARAÚJO, 2003; MATTOS, 2006) refletem questões discutidas por Bastide e Fernandes (1959, p. 27):
ARTIGOS LIVRES 133 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente A expansão da “grande lavoura” refletiu-se diretamente na composição da população escrava, provocando, de modo bem nítido a partir do primeiro decênio do século, uma elevação progressiva na importação de escravos negros (crioulos e africanos). Os da- dos aqui expostos, considerando-se também os relativos a 1797 (cf. pág. 449), permi- tem registrar que a média de aumento anual da população escrava, com referência ao elemento negro, cresce continuamente, tornando-se esse crescimento verdadeira- mente apreciável depois de 1815. O adensamento da população negra no espaço urbano paulistano, obser- vado na virada do século XVIII para o século XIX, significou a ampliação de for - mas de convivência social entre escravizados. Sabe-se que o sistema escravis- ta apresentava determinadas regras e limites para essas pessoas, mas o que se constata é que negras e negros paulistanos aprenderam a se mover no interior dessas regras, de modo a criar alternativas de convivência e contestação. A cidade quilombola A visão que o mundo ocidental procurou transmitir da África foi a de um continente isolado e bizarro, cuja história foi despertada com a chegada dos europeus. (...) numerosas foram as formas de resistência que o negro conservou ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica .” (Beatriz Nascimento) A grande lavoura de café ampliou o contingente de escravizados no Estado de São Paulo, constituído majoritariamente de africanos e afro-brasileiros ad- quiridos pelos cafeicultores paulistas de fazendeiros das províncias do Norte. Ao mesmo tempo, observa-se um crescente da resistência quilombola no território paulista. De acordo Clovis Moura (2021), em São Paulo, como em outras capita- nias: Onde quer que o trabalho escravo se estratificasse surgia o quilombo ou mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, desgastando em diversos níveis as forças produtivas escravistas, quer pela sua ação militar, quer pelo rapto de escra- vos das fazendas, fato que constitui, do ponto de vista econômico, subtração com- pulsória das forças produtivas da classe senhorial. Dessa forma, se o aquilombamento não tinha um projeto de nova ordenação social, capaz de substituir o escravismo, em contrapartida, tinha potencial e dinamismo capazes de desgastá-lo e criar elementos de crise permanente em sua estrutura. (MOURA, 2021, p. 25-6)
ARTIGOS LIVRES 134 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente São vários os casos mencionados por Moura de resistência quilombola es- palhados pela capitania de São Paulo. No dia 12 de fevereiro de 1809, o capitão-mor de Itu, Vicente da Costa, comunicou ao governador, capitão-general Franca e Horta, que os escravos daquela cidade e mais os de Sorocaba, Campinas, Porto Feliz e Itapetininga revoltaram-se, (MOURA, 2021, p. 38) “fustigando os seus senhores e em quilombos e em quadrilhas armados de fleixas e outras armas, atacavam os viandantes, as fazendas, roubando, matando e praticando outros insultos dentro da vila, e até mesmo formaram uma sedição na noite de Natal” (RIBEIRO, 1981 apud MOURA, 2021, p. 38). É importante considerar que esse tipo de resistência tinha lastro no continente africano. De acordo com Beatriz do Nascimento (2021), na África Centro-Ocidental, porém, já existia entre povo Imbangala, de Angola, a institui- ção kilombo . A historiadora acrescenta: “[...] o acampamento de escravos fugiti- vos, como quando alguns Imbangala estavam em comércio negreiro com os por- tugueses, também era kilombo” (NASCIMENTO, 2021, p. 157). Bem perto de Angola, ainda nos primórdios da colonização portuguesa na costa africana, a Ilha de São Tomé e Príncipe foi palco do mais célebre levante contra a escravidão. No século XVI, as “guerras do mato” (SCHMIDT, 2007) opo- riam no arquipélago portugueses e os quilombolas angolares. Nascimento (2021), por sua vez, aponta que os portugueses, frente às insurgências nos quilombos – as primeiras em território africano e, depois, mais intensamente no Brasil do século XVII, com Palmares (AL), e do XVIII, com o Quilombo do Ambrósio 7 (MG) –, definiram a seu modo, em 1740, o significado de quilombo. A saber: “[...] toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (NASCIMENTO, 2021, p. 152). Para a autora, nisso se encontra, uma interpretação estereotipada de como [se] constituíam os “quilombos” 7 Os estudos de Jeremias Brasileiro (2017) demonstram que, por volta de 1726, em Minas Gerais, as terras de Cristais foram ocupadas por escravizados revoltosos, sob a liderança do rei Ambrósio. Àquela época, o município recebia o nome de Meia Laranja. Conta-se que esse quilombo chegou a ter mais de 15 mil negros, tendo sido o maior e o mais duradouro da história mineira. Durante o ataque pela milícia, em 1746, a mando da Coroa de Portugal, o rei Ambrósio foi morto. Os negros sobreviventes fundaram, então, um segundo “Quilombo do Ambrósio”, localizado na divisa de Ibiá e Campos Altos, também em Minas, dizimado em 1759.
ARTIGOS LIVRES 135 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente [...] reforçam-se as noções dos negros como seres primitivos, malfeitores e irrespon- sáveis, e dos quilombos como bandos destituídos de caráter político (...) identifica qui - lombos como refúgios ou valhacoutos de negros, num sentido deveras depreciativo (NASCIMENTO, 2021, p. 110). Bastide e Fernandes (1959) não aprofundam a questão quilombola, mas tra- tam da emergência do “protesto negro”, que, neste artigo, é interpretado a partir da perspectiva de Nascimento e Moura, o que nos faz considerá-lo como uma forma de aquilombamento. O que se sabe por Bastide e Fernandes (1959) é que, na metade do século XIX, a província de São Paulo assistiu paulatinamente à desagregação do regime servil. Se tomássemos os anos de 1850, em que o tráfico africano foi suprimido efetivamente, e de 1888, em que foi promulgada a abolição do cativeiro no Brasil, como pontos de referência históricos, seríamos levados a convir que desagregação do regime servil se consumara em menos de quatro décadas (...) se fez ouvir o “protesto negro”, o “não quero” dos escravos. A agitação abolicionista havia atingido as camadas populares e as próprias senzalas, conferindo aos escravos, nos derradeiros anos da existência do regime, uma ação decisiva no solapamento da ordem vigente (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 46). Muitos dos escravizados que haviam sido comprados das províncias do Nor- te traziam em suas memórias as lutas e revoltas contra a escravidão. Desde a insurreição malê, em 1835, quando escravos muçulmanos tomaram o centro da cidade de Salvador, em confronto armado com forças policiais (REIS, 1986), as autoridades imperiais e os membros da “boa sociedade imperial” temiam que grandes concentrações de escravos pudessem gerar insurreições de proporções avassaladoras. São Paulo, não escapou a isso, como constata Bastide e Fernandes (1959, p. 47), “por meio de fugas em massa, ao mesmo tempo que desorganizavam os tra- balhos nas fazendas, confundiam e dificultavam a repressão legal.” Nas fugas muitos deslocavam para o centro urbano paulista, onde lá refu- giavam-se. Na metade do século XIX, o centro urbano paulistano, [...] se circunscrevia a algumas ruas da freguesia da Sé, que era, ao mesmo tempo, a área em que moravam as famílias mais abastadas (em 1872, por exemplo, a metade da escravaria da comarca estava nas mãos dos seus moradores e nada menos de 1.061 es- cravos eram ocupados em “serviços domésticos”), e em que vivia o maior contingente de pessoas livres da comarca (7.344 indivíduos, sobre 20.213, que residiam nas oito freguesias restantes) (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 42).
ARTIGOS LIVRES 136 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente Os poucos e curtos contatos sociais estabelecidos por mulheres e homens escravizados eram tecidos em suas convivências nas idas à rua para cumprir obrigações do trabalho escravo – abastecer as casas de seus escravizadores com gêneros alimentícios, água etc. Nesses deslocamentos também os encontros e as amizades entre negras e negros eram comuns. De acordo com Maria Odila Leite da Silva Dias (1984, p. 114), [...] alarmavam os moradores da cidade os contatos, que se estabeleciam, entre es- cravos fugidos e quilombolas, que desde o início da escravidão urbana existiram nos arredores da cidade, no vale do Anhangabaú, no Bexiga, em Pinheiros, em Santo Amaro e nos matagais, que se entremeavam às áreas mais urbanizadas, um pouco por toda parte. Assim, nas margens, do centro urbano intensificou-se a vida comunitária entre escravizados o que fez emergir formas de solidariedade entre negras e negros, permitindo novos arranjos sociais. Aquilombando-se as margens do rio Saracura, no atual bairro Bixiga, mas também em regiões longínquas do centro urbano, a exemplo da Freguesia Nossa Senhora da Penha de França, cuja origem remonta à ação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha (1755) Na interpretação da historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998, p. 16), desde os anos que antecederam a abolição, assim como os que a sucederam, a população negra de São Paulo já sofria preconceito racial. Um clima acentuadamente discriminatório, uma política de vigilância constante inci- diu sobre os escravos, para redobrar-se nos alforriados e negros livres. Os projetos de modernização da cidade previam o afastamento dessas populações do núcleo central, reservando a elas as primeiras áreas periféricas. (WISSENBACH, 1998, p. 16) Esse projeto de segregação tem suas primeiras investidas ainda no século XIX, na configuração de uma imagem nociva do negro: “Os escravos forros e ho - mens livres negros, juntamente com os escravos fugidos que se abrigavam na cidade e entornos, não eram somente tidos como desordeiros e indisciplinados, mas também potencialmente perigosos” (WISSENBACH, 1998, p. 16). É nesse contexto de crescimento de processos criminais contra a população afro apontado por Wissenbach (1998) que encontramos mais informações sobre
ARTIGOS LIVRES 137 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente a condição negra na cidade paulistana. O que abre para este artigo mais algumas fontes que permitem ir além de Bastide e Fernandes (1959) e revelam mais sobre a vida social de negros e negras de São Paulo. Pelos depoimentos arrolados nos processos criminais, é possível saber sin- gularidades das vidas sociais de africanos e afrodescendentes anos antes da Abolição: os bairros onde moravam, os lugares de que desfrutavam de alguma convivência. Nesses documentos vislumbra-se a região dessa vivência que na atualidade corresponde a área do canteiro de obras da linha 6 do Metrô no bairro do Bixiga, no distrito da Bela Vista, onde foram encontrados os vestígios arqueológicos do Quilombo Saracura e local da tradicional sede da escola de samba Vai Vai, demo- lida para dar passagem ao metrô. A área fica aos fundos do Museu de Arte de São Paulo – MASP é cortada pela avenida Nove de Julho onde subterraneamente está canalizado o rio Saracura. De acordo com Wissenbach este espaço, outrora foi conhecido como bairro Caaguaçu: Situado no começo da Estrada do Santo Amaro, o bairro Caaguaçu ou altos do Caa- guaçu demonstrava, na época, significativa concentração de africanos, alguns forros e outros emancipados durante os anos de 1860. No local que mais tarde passaria a ser chamado de espigão da Paulista e se transformaria em zona nobre, por excelência, da aristocracia cafeeira, em 1872, moravam numa mesma vizinhança: Margarida Azevedo Marques, de nação mina (...) casada com Sabino José da Graça, liberto do Maranhão; Antonio Mina (...); Elias Palhares (...) natural da mesma nação africana. (WISSENBACH, 1998, p. 137) Em pesquisa de Francisco Scarlato (1988, p. 71), a região também é mencio- nada como de forte concentração de população negra. Os negros concentravam-se mais na parte baixa da região da Grota: nas casas de cô- modos da Almirante Marques Leão. Segundo relatos encontrados na obra de Ernani Silva Bruno, a região da Grota, desde o período escravagista, já era procurada pelos negros fugitivos, onde chegavam a formar “quilombos”. Essa tradição de lugar de ne- gros marcou a rua Almirante Marques Leao, chegando a ser discriminada por muitos moradores italianos arrivistas. De acordo Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982, p. 15):
ARTIGOS LIVRES 138 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são as moradias amplas situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães mato, capangas etc. (...) Já o lugar natural de negro é o oposto, evidentemente as favelas, cortiços, porões, invasões, ala- gados e conjunto habitacional. Considerações finais A obra pioneira Brancos e Negros em São Paulo de Bastide e Fernandes (1959), já reflete os processos de apagamento da herança africana na cultura paulistana e as tentativas de destituir a negritude de uma humanidade devido seu passado de escravizado. É possível considerar que o privilégio racial dos brancos é um dos pontos- -chave para entender o que se passa, neste ano de 2024, no campo do reconhe- cimento das atuais lutas negras pela memória e patrimônio cultural afro. Neste sentido, o pensamento de Lélia Gonzalez faz considerações importantes: “[...] em todos os níveis, o grupo branco foi o beneficiário da exploração dos grupos raciais. Os aspectos culturais e políticos das relações raciais demonstram como o branco afirmou sua supremacia às expensas e em presença do negro. Ou seja, além da exploração econômica, o grupo branco dominante extrai uma mais-valia psicológica, cultural e ideológica” (GONZALEZ, 1979, s.n. [mimeo]). As incursões antropológicas realizadas entre 2018 e 2023, em atividades de coletivos afro-paulistanos cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade, revelaram a existência de resistência negra na atualidade. Buscam conhecer as especificidades do povoamento negro da capital paulista desde o século XVI até o século XIX. Os coletivos aspiram compreender as reais origens étnicas e não se contentam em ter seus ascendentes identificados com locais que serviram de cativeiros da escravidão. O artigo é parte desta busca, destas aspirações. Ao reler Bastide e Fernan- des, almejou dar os primeiros passos numa pesquisa que exigirá muito folego e que não se esgota nesta escrita. No entanto, o objetivo foi provocar o debate científico em torno da presença de africanos na São Paulo Colonial. O debate foi instigado. Quiçá, novas pesquisas venham preencher as lacunas desta escrita.
ARTIGOS LIVRES 139 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Claudelir Correa Clemente Bibliografia LACERDA E ALMEIDA, F. J. de.  Diário da viagem do Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e S. Paulo nos anos de 1780 a 1790 : Impresso por ordem da Assembleia Legislativa da Província de São Paulo. São Paulo, SP: Tipografia de Costa Silveira, 1841. ARAUJO, M. L. V.  Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos . Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universida - de de São Paulo, São Paulo, 2003. doi:10.11606/T.8.2003.tde-18012023-160736. BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2ª ed.1959. BRASILEIRO, J. Rei Ambrósio de Minas Gerais e o ofuscamento da história e da memória de um líder quilombola. Temporalidades , Belo Horizonte, v. 9, n. 3, 2017. COUCEIRO, L. A.. A disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de sociabilidade entre escravos e livres em fazendas do Sudeste, 1860-1888. Revista de Antropologia , v. 46, n. 1, p. 41–82, 2003. DAVEAU, S. L’île de Sâo Tomé. Cahiers d’outre-mer , [s.l.], n. 57, 15e année, p. 92-95, jan.-mars 1962. DIAS, M.; SILVA, O. L. da. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX . São Paulo: Brasiliense, 1984 DOS SANTOS, C. J. F..  Nem tudo era italiano . São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Fapesp/An- naBlume, 1998. GONZALEZ, L. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra. In: National Meeting of The Latin American Studies Association , 8., Pittsburgh, 1979. Mimeo- grafado. GONZALEZ, L. & HASENBALG, C.  Lugar de negro  Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. GOULART, M. A escravidão africana no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1975 KIPRÉ, P. Das lagunas da Costa do Marfim até o Volta. In: NIANE, D. T. (ed.). História geral da África, IV : África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. Brasília: Unesco, 2010. LEITE, F. A questão ancestral: África negra . São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2008. MATTOS, R. A. De cassange, mina, benguela a gentio da Guiné . Grupos étnicos e formação de identi- dades africanas na cidade de São Paulo (1800-1850). Dissertação (Mestrado em História Social) - Fa- culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,2006.
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ARTIGOS LIVRES 141 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO FEMININA NO CONTEXTO DO CONFINAMENTO COMPULSÓRIO THE COLÔNIA DE ITAPUÃ HOSPITAL AND THE PROCESSES OF FEMALE SUBJECTIVIZATION IN THE CONTEXT OF COMPULSORY CONFINEMENT https://doi.org/ 10.46401/ardh.2024.v16.20370 Rafaela Limberger Universidade do Vale do Rio dos Sinos https://orcid.org/0000-0002-2850-824X rafaelalimberger@edu.unisinos.br Camilo Darsie Universidade de Santa Cruz do Sul https://orcid.org/0000-0003-4696-000X camilodarsie@unisc.br Recebido em 23 de abril 2024 Aprovado em 10 de junho de 2024 RESUMO: O estudo discute processos de subjetivação vividos por mulheres que foram internadas compulsoriamente no Hospital Colônia de Itapuã, o primeiro a receber pacientes com hanseníase no Rio Grande do Sul - Brasil. Diante disso, tensiona os modos pelos quais foram educadas para serem um determinado tipo de mulher considerado ideal no contexto deste ambiente. A investigação foi feita a partir de um documentário e um website, de 2012, baseada em uma perspectiva qualitativa, a partir de depoimentos, orientada por referencial teórico foucaultiano. Observou-se que as ex- pacientes constituíram-se enquanto parte do lugar que viveram/vivem por anos. Além disso, foram educadas na direção de serem boas esposas, contudo, jamais mães, visto que eram proibidas de criarem os filhos. Conclui-se que essas mulheres foram moldadas pelo ambiente hospitalar, mas também demonstraram resistências. Palavras-chave: Hospital Colônia de Itapuã; Relações de Gênero; Relações de poder; Subjetivação Feminina. ABSTRACT: The study discusses processes of subjectivation experienced by women who were compulsorily admitted to the Hospital Colônia de Itapuã, the first to receive patients with leprosy in Rio Grande do Sul - Brazil. In view of this, it puts tension in the ways in which they were educated to be a certain type of woman considered ideal in the context of this environment. The investigation was carried out based on a documentary and a website, from 2012, based on a qualitative perspective, based on testimonies, guided by a Foucauldian theoretical framework. It was observed that the former patients constituted themselves as part of the place they lived/live for years. Furthermore, they were educated to be good wives, but never mothers, as they were prohibited from raising children. It is concluded that these women were shaped by the hospital environment, but also demonstrated resistance. Key words: Colônia de Itapuã Hospital; Gender Relations; Power Relations; Female Subjectivization.
ARTIGOS LIVRES 142 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie Introdução O Hospital Colônia de Itapuã (HCI) foi inaugurado na década de 1940, em Viamão, cidade vizinha à capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Trata-se de uma estrutura clínica organizada para simular um pequeno município, localizada a, aproximadamente, 48 km dos centros urbanos mais próximos. Tal formato se deu em função da necessidade de isolamento de seus antigos pacientes e da in- tenção de oferecer modos de vida parecidos com os que existiam para além de seus muros. De acordo com Fontoura, Barcelos e Borges (2003), esses hospitais surgi- ram no Brasil no início do século XX, quando grupos beneficentes arrecadavam recursos para a construção de instalações de cuidado permanente para pessoas empobrecidas que viviam com hanseníase - ou lepra - em áreas periféricas ou ru- rais. O poder federal passou a atentar contra a doença durante a Era Vargas, por meio do decreto nº 1.473, de 1937, que declarava de utilidade pública a Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. O documento facilitou acordos e parcerias entre as instituições beneficentes e o Departamento Nacional de Saúde. “Assim, as associações que buscavam estabelecer hospitais-colônias através de campanhas de arrecadação de recursos passaram a contar com verbas estaduais e federais para a realização dos projetos”. Em 1944, “o decreto nº 15.484 aprovou o Regimento do Serviço Nacional de Lepra do Departamento Nacional de Saúde” que definiu as atribuições do serviço em assuntos relativos ao combate à hanseníase, incluindo-se aí os hospitais-colônias (FONTOURA, BARCELOS, BORGES, 2003, p. 399). Após o enfrentamento de dificuldades emergentes dos modos como a doença era compreendida pela sociedade e de tentativas associadas ao estabelecimento de uma área considerada segura para a construção do Hospital, optou-se por um terreno em Itapuã - distrito de Viamão - nas margens da Lagoa Negra. Para o seu funcionamento, “sem uma estrutura anterior que permitisse a colocação de quadros de pessoal especializado para atuar em novas instituições públicas [...] o governo estadual recorreu ao auxílio de entidades religiosas” (FONTOURA, BARCELOS, BORGES, 2003, p. 401). Assim, inicialmente, o HCI contava com a força de trabalho das Irmãs Fran- ciscanas de Penitência e Caridade Cristã, as quais residiam no local e ajudavam
ARTIGOS LIVRES 143 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie no tratamento de pacientes, na manutenção dos ambientes e na fiscalização das regras institucionais. As vidas dos pacientes eram constantemente controladas e todas as suas atividades demandavam autorização dos administradores. Alguns trabalhavam em serviços associados à manutenção da Instituição, enquanto ou- tros apenas passavam os dias à mercê das regras e tratamentos estipulados. Neste contexto, os internos eram separados por gênero (homens e mulheres) e os grupos podiam se encontrar, quando solteiros ou solteiras, apenas nos perío- dos e local de refeições, na rua e durante alguns eventos. Contudo, casamentos e relacionamentos amorosos eram permitidos, desde que aprovados pelo diretor da instituição, o que oportunizou a constituição de histórias afetivas e formação de núcleos familiares. Diante dessa dinâmica, o presente artigo problematiza, por meio de refe- rencial teórico de inspiração foucaultiana, alguns dos processos de subjetivação vividos por mulheres que foram internadas no HCI e que ainda vivem, enquanto moradoras, em suas instalações. O foco da investigação procurou entender como essas mulheres eram educadas como tais, diante do diagnóstico da doença em um ambiente marcado pelo confinamento compulsório e relações de gênero de uma determinada época. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, com metodologia de análise documental baseada em depoimentos registrados em um documentá- rio digital e em um website multimídia. Cellard (2008) aponta que a compreensão do que são fontes históricas e documentos de análise alterou-se no contexto da elaboração de pesquisas que envolvem experiências vividas. É nessa perspec- tiva que “tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é considerado como documento” (p. 296), inclusive os de natureza cinematográfica e iconográfica, desde que problematizados pelos pesquisadores. Segundo Luca (2021) um documento torna-se fonte de pesquisa através de seus pesquisadores e essa escolha não é mero acaso, visto que possui “vínculos com os desafios do seu próprio tempo” (p.45). Este é o caso da presente pesquisa, por se tratar de uma instituição com características específicas e estatal. Desse modo, foi utilizado o documentário A Cidade (2012), dirigido e pro- duzido pela cineasta gaúcha Liliana Sulzbach. Nele é mostrado o cotidiano dos, até então, moradores da estrutura que compunha o HCI e que hoje é organiza- da enquanto uma vila residencial em processo de desativação, já que, no início de 2024, teve seus últimos moradores removidos. Por meio de depoimentos, um
ARTIGOS LIVRES 144 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie grupo de idosos tornam públicas algumas de suas histórias de vida no contexto da instituição, permitindo observar os modos como eram atravessados por dis- cursos que envolveram suas existências em situação de confinamento e de pos - sível adoecimento. Além disso, articulou-se à análise o material complementar do website 1 A Cidade Inventada , onde se encontra disponível o documentário. Sua interface de navegação é interativa, permitindo que internautas visitem diferen- tes ambientes que compõem a estrutura do antigo hospital, bem como tenham acesso a fontes complementares como fotografias, documentos institucionais e outros depoimentos. A escolha por analisar um projeto transmídia pautou-se, por um lado, na di- ficuldade de acesso ao HCI, que só pode ser feito através de autorização do setor de pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul e, por ou- tro, na possibilidade de problematizar histórias que são postas em circulação por meio das atuais tecnologias de informação e arte. O uso do método qualitativo, através da análise documental com foco nas falas dos antigos pacientes, tem como intenção explicar os modos como os acontecimentos ocorreram dentro do Hospital, por meio das formas de ver dos antigos pacientes, buscando tensionar as maneiras como as internas foram educadas para serem “mulheres” de acordo com as normas da instituição. Desse modo, primeiramente, foi realizada a transcrição dos depoimentos do cotidiano das mulheres participantes do documentário e website , bem como de alguns homens. Isso tornou possível pensar sobre a relação entre esses sujeitos e o recorte espacial vivido por eles. Após, as transcrições foram separadas em eixos temáticos que oportunizaram tensionamentos sobre as relações de gêne- ro e subjetivação, buscando compreender como ocorriam esses processos. His- toricamente, os movimentos de “tornar-se” e “ser” mulher são perpassados por questões sociais e relações de poder que também se encontravam presentes 1 O documentário A cidade , e o website foram produzidos no ano de 2012. Possui roteiro, produção e direção de Liliana Sulzbach , fotografia de Francisco Alemão Ribeiro, montagem de Angela K. Pires, som direto de Cléber Neutzling, direção de produção Josie Demeneghi e Leilanie Silva, música de Carlos Badia, edição e mixagem de som kiko Ferraz Studios, finalização de imagem de Luis Otávio Feldens e empresa produtora Tempo Porto Alegre. Além do documentário que foi exibido em diversos festivais de cinema, o projeto conta com um DVD com material complementar e um website com o título A cidade inventada , no qual é possível fazer uma visita ao local do hospital de forma interativa. Trata-se de um projeto jornalístico que nasceu pela vontade da diretora em documentar o cotidiano dos moradores na época e igualmente para questionar “a representação do real” na instituição. http:// www.acidadeinventada.com.br/#presents .
ARTIGOS LIVRES 145 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie nas práticas hospitalares. A seguir, portanto, são apresentadas cinco seções: 1) A hanseníase e o encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã, que contextualiza a doença e os processos de encaminhamento para o confinamento compulsório; 2) A docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã que discute os processos de disciplinamento sob confinamento e tensiona a produção dos sujeitos enquanto parte do ambientes vivido; 3) Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas não mães , focada na discussão sobre os processos de subjetivação feminina no HCI; 4) Subjetivação, Resistências e Reexistências que apresenta pequenos, mas relevantes movimentos de resistência às normas do hospital; 5) Considerações finais, onde encerra-se o argumento. A hanseníase e o encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã A hanseníase 2 é uma doença infectocontagiosa e suas manifestações ocor- rem principalmente na pele, por meio da proliferação de lesões e perda da sen- sibilidade que resultam da predileção do Mycobacterium leprae . Ela agride as cé- lulas cutâneas e nervosas periféricas, além de ter potencial para atingir órgãos internos do corpo humano e causar deformações permanentes da pele (BRASIL, 2024). Os primeiros casos no Brasil foram registrados em 1600, no Rio de Janeiro, e logo se espalharam para outras regiões. No sul do país, onde se localiza o HCI, foram identificados casos da doença em imigrantes portugueses, espanhóis, franceses e russos. Contudo, foi a chegada e permanência significativas de imi - grantes alemães e italianos que pode ser apontada como um dos motivos para os primeiros focos da enfermidade no Rio Grande do Sul (EIDT, 2004). É importante destacar que existem relatos sobre a doença desde a antiguidade, pois como Eidt (2004) refere, há registros de casos de 4.300 anos antes de Cristo. Ainda, é possível identificar registros da “lepra” e dos “leprosos” na bíblia, como ocorre na passagem “Impuro! Impuro! Enquanto tiver a doença será impuro” (BÍBLIA, lev.13:45-46). Diante disso, foi a partir do discurso religioso 2 A lei n°9010/95 muda a nomenclatura da doença no Brasil para Hanseníase, não sendo mais ade- quado o termo “lepra”. Atualmente o tratamento é feito no Sistema Único de Saúde, sem necessidade de internação. Ver mais em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/h/hanseniase/ tratamento .
ARTIGOS LIVRES 146 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie da igreja católica que, inicialmente, se estabeleceram regras sociais relaciona- das à doença, sustentadas por uma lógica de pureza ou impureza moral. Desse modo, o entendimento sobre a hanseníase foi fortemente construído dentro de um imaginário fantasioso e religioso. Segundo Sontag (1984) qualquer doença cujas causas e tratamentos sejam desconhecidos é carregada de signi- ficação, o que corrobora o estigma a ela imposto. Partindo disso, passaram a ser criadas instituições que buscavam manter afastados os doentes da sociedade considerada sadia - ou pura. Essas instituições representam o que Goffman (2019) denomina como insti- tuições totais , as quais funcionam com o fechamento de determinados sujeitos sob uma ótica administrativa. Para além do fechamento, o autor refere que tais doentes eram atravessados pelo estigma associado ao adoecimento, especial- mente pelas marcas das doenças em seus corpos. Goffman (2008) diz que o con- ceito de estigma emergiu da cultura grega, sendo utilizado para designar alguém com marcas corporais, o que permaneceu, posteriormente, na era cristã, espe- cialmente associado aos casos de hanseníase. Neste contexto, diante de discussões estabelecidas em nível internacional, e das manifestações da doença em território brasileiro, definiu-se que o isola - mento compulsório seria a melhor maneira de controlar o surgimento de novos casos. Emergiu, portanto, a necessidade de criação e construção de instituições baseadas em hospitais europeus que simulavam cidades em menor escala, nas quais viviam pessoas acometidas pela doença. O Brasil deu início à construção de aproximadamente 30 instituições de isolamento, a partir da década de 1930 (BORGES; SERRES, 2012). Borges e Serres (2012) referem que no Rio Grande do Sul, o HCI foi a insti- tuição que representou tal modelo de estrutura de internação, sendo o último hospital a ser inaugurado no país, em 11 de maio de 1940, cercado por uma grande área de mata, distante do convívio social. A instituição contava com moeda pró- pria, escola, igreja, espaço de lazer e uma espécie de cadeia para os pacientes que tentavam fugir do local. Pessoas que viviam com hanseníase eram diagnosticadas pelo Serviço de Profilaxia da Lepra e, posteriormente, encaminhadas ao HCI. Eram separados entre homens e mulheres e esses grupos se encontravam apenas nos espaços destinados às refeições, na rua e durante alguns eventos organizados pelas ir- mãs franciscanas. Era permitido que se casassem, porém as crianças que nas-
ARTIGOS LIVRES 147 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie ciam no Hospital eram encaminhadas para o preventório Amparo Santa Cruz, na cidade de Porto Alegre, já que era proibida a permanência de crianças saudáveis no ambiente hospitalar. Construídos em 1940, os chamados preventórios eram locais especiais para crianças com certa disposição para determinadas doenças ou para filhos de portadores de hanseníase ou tuberculose, longe dos pais, a fim de evitar contágios e infecções. Eidt (2004) explica que a partir de 1960, a doença passou a ser tratada de forma ambulatorial devido à descoberta da sulfona, medicamento eficaz para a sua cura, não sendo mais necessária, portanto, a internação compulsória dos pacientes. Porém, alguns dos pacientes que já haviam criado vínculos de afeti- vidade com o local e, em muitos casos, perdido o contato com suas famílias ou enfrentando medos relacionados ao contato com pessoas de fora, resolveram permanecer em suas instalações. Por isso, foi concedido o direito de ocuparem as acomodações do HCI permanentemente. Se em um primeiro momento, abrigou pessoas que viviam com hansenía- se, posteriormente, a partir da década de 1970, passou a receber pacientes que necessitavam de tratamentos relacionados a transtornos mentais, conforme as práticas e diagnósticos correntes à época. Segundo Medeiros e Serres (2020) no ano de 1972 além dos hansenianos o HCI passou a receber pacientes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado na cidade de Porto Alegre - RS. O estado, com o intuito de aproveitar o espaço, transferiu alguns pacientes considerados mais “calmos” para o HCI. Criou-se um centro de tratamento agrícola no local, mas, isso durou até meados do início da década de 1980. Mesmo não contando mais com desenvolvimento estrutural, o HCI continuou ativo, transformando-se, gra- dativamente, no lar dos antigos pacientes que ainda permaneceram vivos. Diante dessas questões, observa-se que um dos principais fatores relacio- nados ao confinamento dos pacientes relaciona-se com dinâmicas de circulação e de relação com o espaço. Tanto no caso dos hansenianos quanto dos internos por questões de saúde mental, o confinamento produziu importantes efeitos so - bre os sujeitos por meio de suas relações com o espaço.
ARTIGOS LIVRES 148 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie A docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã Os leprosários ou hospitais colônia tinham formato de pequenas cidades di- vididas em três zonas: 1) sadia; 2) intermediária – onde moravam funcionários e se desempenhavam atividades administrativas; 3) doente – para os pacientes. A estrutura contava com áreas de lazer, igrejas, prefeitura, cadeia, cemitério, alojamentos, refeitórios, enfim, todos os ambientes considerados necessários para dar conta de vidas humanas desde o nascimento até a morte (ANDRES; MI- CHELETTI, 2020). No HCI, o refeitório era o local em que eram promovidos encontros cotidia- nos entre pacientes, em função da obrigatoriedade de as refeições serem feitas em seu interior. Conforme relata uma de suas antigas pacientes, “aquele refei- tório lá era cheinho. Aquelas mesas compridas eram de ponta a ponta cheias de gente. ‘Tudo faziam’ a refeição lá. Porque naquele tempo a gente não fazia nada no quarto. Não deixavam fazer. Era tudo no refeitório” 3 . O local foi um dos únicos ambientes do HCI em que homens e mulheres po- diam desempenhar atividades no mesmo horário. Contudo, entendia-se que era preciso que se mantivessem afastados, mesmo quando estabeleciam algum vín- culo afetivo. Ao se colocarem no refeitório, nos horários das refeições, era pre- ciso que respeitassem a divisão entre a ala masculina e a ala feminina. Segundo Eva 4 , Não podia ter gato, nem cachorro. E nem pessoas ‘amigadas’. Pessoas que tinham as- sim às vezes... vinham pra cá e ficava a mulher lá, né. E aqui se arrumava outro parceiro, abandonado pela família, né. E vice-versa. Tanto a mulher como o homem, né. Quando eles vinham no refeitório, era cada um pra um lado. A praça do Hospital Colônia de Itapuã era outro ambiente em que ocorriam encontros sociais, entre homens e mulheres. Mais uma vez, os encontros se- guiam rígidas regras de convivência impostas pela instituição. Os pacientes se encontravam constantemente monitorados pelos guardas do local e pelas irmãs franciscanas. Seguindo as mesmas regras do refeitório, mesmo em um ambiente ao ar livre e público, como a praça, homens e mulheres que viessem a namorar, 3 Através do áudio disponível no website não foi possível identificar de qual paciente é este relato. 4 Eva, paciente residente no hospital desde 1959.
ARTIGOS LIVRES 149 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie ao se encontrarem na Avenida Getúlio Vargas – onde ficava a praça –, durante a semana, ficavam separados pelo canteiro, conforme indica o seguinte depoi - mento: “Tinha essa avenida aqui, a avenida Getúlio Vargas, o rapaz era do lado de cá e a namorada do lado de lá do canteiro. Tinha sempre o canteiro no meio. Era severo mesmo. Muito severo”. Os casais do hospital podiam se encontrar aos sábados, na praça, sendo permitido sentarem-se em alguns bancos até o final da tarde. Após, era preciso que todos voltassem aos seus pavilhões. Conforme conta Eva, [...] entre o pavilhão 12... 12 e 13. Nós não podia cruzar, porque do lado de cá moravam os rapazes, né. Então as irmãs não gostavam de a gente passar ali. Os meninos mexiam com as gurias e ... as freiras eram muito “enjoadas” nessa coisa. Porque pra namorar aqui tinha que primeiro assim, ó: O rapaz ia lá no diretor pedir se podia namorar fulana de tal. E a moça, tinha que pedir pra Madre. “Madre tem um rapaz...Posso namorar, ou não.” Ia ver, se tinha condições, né. Além dos espaços de socialização, dentro da estrutura do hospital havia um pavilhão de diversões chamado de “Cassino”. Esse lugar era destinado ao lazer dos pacientes. Ali eles podiam ver a projeção de filmes, noticiários, peças de teatro encenadas pelos próprios internos, bailes e festas. Esse pavilhão permitia aos pacientes alguns momentos de lazer. Contudo, conforme ocorria em outros momentos, era necessário que tudo fosse feito sob o olhar atento das irmãs fran- ciscanas. Os pacientes do HCI eram constantemente vigiados para que seguis- sem as regras de convivência, instituindo-se assim, uma verdadeira instituição de sequestro. Conforme apresentado no documentário, o pavilhão permaneceu sendo uti- lizado para eventos de lazer, como a apresentação de bandas escolares. Nestas ocasiões, pelo que pode ser compreendido, as vidas se organizam em torno das atividades que são programadas, mesmo que simples, pois representam a possi- bilidade de quebra da rotina e convívio entre moradores e visitantes. Isso é des- tacado por meio da produção documental, pois seus primeiros minutos parecem demarcar a constância de rotinas diárias monótonas que é quebrada pela pers- pectiva de algo novo, ou diferente daquilo que se tornou cotidiano. A preparação para a “apresentação da banda” é marcada por cenas que de- monstram certos rituais de organização pessoal para o “novo” e ansiedade, ou seja, expectativa relacionada à participação em uma atividade que parece de- safiar algumas das normas que outrora moldaram aqueles sujeitos. Mesmo que
ARTIGOS LIVRES 150 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie simples, a quebra das normas é marcada pela presença de pessoas externas, sem medo de serem infectadas ou prejudicadas pelos moradores. Conforme aponta Foucault (2004), essas ações caracterizam-se por meio de relações de poder disciplinadoras, desempenhadas a partir de práticas de vigi- lância e cercamento de ambientes. A vigilância promove o constrangimento dos sujeitos às boas maneiras: “o condenado à boa conduta, o louco à calma, o ope- rário ao trabalho, o aluno à aplicação e o doente à observação das ordens, deixa de ser necessário o uso da violência” (CANDIOTTO, 2012. p. 21-22). Ao serem confinados em ambientes propícios à observação, os sujeitos têm seus comportamentos moldados pela visibilidade, deste modo, o poder se torna múltiplo, automático e anônimo. Trata-se de uma dinâmica que mesmo silencio- sa, se torna presente em todos os aspectos da vida, pois o poder se encontra nas múltiplas relações e múltiplos momentos e lugares. “Ele pode, ainda, ser pensado como um poder do olhar calculado, porquanto a disciplina se faz funcionar por seus próprios mecanismos. Segue-se que a vigilância hierárquica é eminente- mente uma estratégia de distribuição do olhar” (CANDIOTTO, 2012, p. 22). Com isso, são utilizadas ferramentas sutis para moldar os sujeitos quanto a seus comportamentos, desejos e experiências. “A disciplina fabrica assim cor- pos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2004, p. 119). A disciplina, conforme mencionado, às vezes exige a cerca, ou seja, os pacientes do hospital estavam conforme aponta o autor, cercados e confinados. Assim, mesmo considerando que, nos dias atuais não sejam mais controlados pelas normas hospitalares ou pelas cercas que os confinaram em outro momento, suas maneiras de portarem-se permanecem marcadas por elas. É possível pensar que a própria câmera que os filmam ainda representa um mecanismo de controle, que conduz a determinadas falas e posturas relacionadas ao lugar do qual fazem e se sentem parte. O fato de os pacientes terem estado reclusos em um determinado ambien- te contribuiu para que fossem disciplinados, docilizados, pois com o passar dos anos, modos de vida foram construídos no contexto do isolamento compulsó- rio, fazendo com que o passassem a avaliar suas situações a partir daquilo que conheciam enquanto realidade. A internação compulsória, por meio do discurso atuante no HCI, era compreendida como positiva e, até mesmo, prazerosa. As-
ARTIGOS LIVRES 151 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie sim, dentro de determinado espaço foi mais fácil fazer com que uma determina- da maneira de vida fosse considerada adequada a todos. O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multipli- cá-las e utilizá-las num todo (FOUCAULT, 2004, p. 143). Neste contexto, é possível pensar que tais sujeitos foram forjados a partir do espaço. Destaca-se que tornaram-se responsabilidade do poder público, es- pecialmente por terem sido internados compulsoriamente, mas, principalmente, por sentirem-se excluídos das relações que acontecem no exterior do ambiente em que passaram grande parte de suas vidas. Sobre isso, é importante refletir sobre o fato de que os sujeitos são subjetivados por meio de dinâmicas que en- volvem, também, as transformações e significações espaciais. Nesse sentido, não podem ser considerados, apenas, indivíduos que habitaram/habitam suas instalações. Eles fazem parte dos significados atribuídos à ela por meio das es - pacialidades que os conformam em quem são e que balizam suas falas e modos de entender o mundo. Nesta perspectiva, refletir sobre essas pessoas implica refletir sobre os processos que as envolveram em conjunto com o recorte espacial - HCI - que ocuparam e ocupam até os dias atuais (DARSIE, 2024; WEBER e DARSIE, 2019). É a partir desses processos – múltiplos – que os sujeitos são produzidos e reproduzidos por dinâmicas de subjetivação ocasionadas, conforme argumentamos, pelas recon- figurações espaciais que eles mesmos operacionalizam. Trata-se, no limite, de pro - cessos indissociáveis que, ao mesmo tempo em que subjetivam sujeitos, transformam estruturas espaciais que não se desvinculam das transformações que os envolvem, individual e coletivamente (SANTOS; DARSIE, 2024, p. 229). Portanto, se atualmente usufruem do direito à residência em casas que, an- tigamente, abrigavam dezenas de “pacientes”, essa lógica pauta-se nas dificul - dades que foram estabelecidas em relação aos ambientes externos - medos e evitação de situações vexatórias - e os vínculos que criaram com o lugar e seus outros moradores. Ainda, orientam-se pelas forma.
ARTIGOS LIVRES 152 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas não mães. Scott (1995) aponta que existem construções sociais ao longo da história que definem as diferenças sociais entre homens e mulheres, construídas em cima de um corpo sexuado. Assim o conceito de gênero torna-se importante por separar as questões relacionadas às práticas sexuais das que são implicadas nos proces- sos de subjetivação das identidades masculinas e femininas, ao longo do tempo. o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” - a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta definição, uma cate - goria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens (SCOTT, 1995, p. 75). Partindo da mesma perspectiva, Perrot (1992) refere que as mulheres fre- quentemente aparecem como invisíveis, pois estão atreladas às tarefas domés- ticas e à vida privada, enquanto os homens aparecem como protagonistas no espaço público. “A distinção entre público e privado implica uma segregação se- xual crescente no espaço. Uma das suas chaves talvez seja a definição de espaço público como espaço político reservado aos homens” (PERROT, 1992, p. 218). Fica estabelecido um discurso sexuado referente aos ofícios de homens e mulheres. O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predetermina- dos, até então seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios que faz da linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis (PERROT, 1992, p. 178). As mulheres no HCI, a começar pelas irmãs franciscanas, por exemplo, apa- recem associadas a tarefas relativas ao cuidado. Eram elas que tomavam con- ta dos pacientes em suas demandas clínicas e de manutenção e organização do ambiente em que viviam. Ainda, conforme pode ser observado por meio das his- tórias contadas, tanto no documentário quanto no website , as pacientes eram tidas como ameaças à ordem - por serem mulheres - e, portanto, precisavam ser contidas e separadas dos homens. É contado que as mulheres ocupavam cargos de auxiliares de serviços gerais, em que havia pouco contato com outras pessoas, enquanto os homens assumiam as tarefas consideradas públicas. As pacientes mulheres, por exemplo,
ARTIGOS LIVRES 153 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie ajudavam na limpeza do hospital apenas quando os ambientes estavam vazios. Isso corrobora com Scott (1995) quando argumenta que através do conceito de “gênero” ressaltam-se as diferenças sociais existentes entre homens e mulheres, baseadas no sexo. Analisar aspectos referente às mulheres é necessariamente analisar aspec- tos referentes aos homens, pois um está relacionado ao outro, “o mundo das mu- lheres faz parte do mundo dos homens, ele é criado nesse e por esse mundo mas- culino” (SCOTT, 1995, p. 75). O uso do termo destaca todo um sistema de relação que pode incluir o sexo, mas não está abertamente ligado a ele e nem determina a sexualidade do indivíduo. Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter - -relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1995, p. 86). Através dos apontamentos de Scott (1995), é possível compreender como ocorriam as relações de poder na instituição e de que modo estavam emaranha- das às normas que influenciavam os processos de subjetivação das pacientes mulheres. Nas palavras de Eva, ao contar sobre como conheceu seu esposo Dar- cy, fica clara a influência que a irmã exercia sobre os pacientes: “Vai lá buscar aquele rapaz, que aquele lá é o teu”. Destaca-se a autoridade da religiosa em escolher o marido para a pacien- te. Entendia-se que era necessário que as mulheres encontrassem maridos HCI, pois deste modo não estariam soltas e oferecendo perigo à ordem da instituição. Era naturalizada a ideia de que a figura da mulher devia estar atrelada ao matri - mônio. Cabia também às mulheres se aproximarem dos homens, dando-lhes a atender que se encontravam abertas para um futuro relacionamento. Destaca- -se, contudo, que mesmo as irmãs e o caráter religioso ter forte influência no HCI, tudo igualmente passava pela administração da instituição, incluindo a au- torização para os casamentos. As irmãs escolhiam pacientes considerados “fisicamente perfeitos” para trabalharem no refeitório, privilegiando pacientes que não eram atingidos com a forma mais severa da hanseníase. Assim, surgiam também aproximações ma- trimoniais entre pessoas consideradas mais saudáveis que trabalhavam na co-
ARTIGOS LIVRES 154 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie zinha e no refeitório. Eva, que fisicamente não era tão marcada pelas feridas e cicatrizes da doença, foi estimulada a casar com outro paciente que também não as tinha. A partir destes encontros, os casamentos eram oficializados no próprio hospital. Uma das pacientes, cuja voz não possibilitou a identificação de seu nome, descreve o dia do seu casamento: O dia que eu casei era de manhã cedo. Aprontaram a noiva, né. Primeiro o escrivão do Itapuã vem aqui. Aqui no consultório onde tem consulta, né. E lá nós ‘casemo’. E saímos de lá reto pra igreja. E dá igreja ‘saímo’ então caminhando. Até lá na chácara, os noivos. E a orquestra atrás de nós. Era bonito até. Conforme a descrição, o escrivão realizava a formalização da união civil den- tro do mesmo consultório em que os pacientes recebiam atendimento médico. Após formalizada esta questão, eram encaminhados para a igreja para a oficia - lização de caráter religioso e por fim havia uma confraternização para os noivos e amigos no hospital. Os pacientes usavam trajes típicos da união, mulheres de vestido branco e homens de roupa social. As mulheres no HCI constituíram-se por meio das regras de convivência do hospital, pela autoridade das irmãs franciscanas e pelo ambiente. Eram subjeti- vadas nos procedimentos de manutenção da vida privada, sendo dóceis, úteis e contidas. O casamento no hospital aparecia como uma estratégia sutil de contro- lar seus corpos, pois ao se casarem passavam a ser controladas. Foucault (2015), na perspectiva de controle sexual, apresenta algumas análises que aproximam o sexo às relações de poder. Ele diz que o sexo é usado para controlar os sujeitos através da relação negativa, da instância da regra, do ciclo da interdição, da lógi- ca da censura e da unidade do dispositivo. Conforme o autor, na relação negativa o poder diz não ao sexo, pois a rela- ção que se estabelece reforça a “rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda, mascaramento e ocultação” (FOUCAULT, 2015, p. 91). As relações de poder não podem exercer determinado poder referente ao sexo e ao prazer, apenas a nega- ção e de maneira geral, colocando-se limites. A instância da regra se coloca no sentido em que o poder é o que dita as regras referentes ao sexo. [...] que o poder age pronunciando a regra: o domínio do poder sobre o sexo seria efe- tuado através da linguagem, ou melhor, por um ato de discurso que criaria, pelo próprio fato de se enunciar, um estado de direito. Ele fala e faz-se a regra. A forma pura do po- der se encontraria na função do legislador; e seu modo de ação com respeito ao sexo
ARTIGOS LIVRES 155 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie seria jurídico-discursivo (FOUCAULT, 2015, p. 91). Bem como a instância da regra, o ciclo da interdição funciona através da proibição, o não faça para não deixar de existir. “Tua existência só será mantida à custa da tua anulação.” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Assim o poder resulta na opres- são do sexo por meio de uma interdição que confia entre o existir e o não existir. A lógica da censura supõe “que essa interdição tome três formas: afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que exista” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Já na unidade do dispositivo, o poder sobre o sexo acontece do mesmo modo em todas as instâncias: Em fase de um poder, que é lei o sujeito que é constituído como sujeito – que é “sujei- tado” – e aquele que obedece. À homogeneidade formar do poder ao longo de todas essas instâncias, corresponderia, naquele que o poder coage – quer se trate do súdito ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da criança ante os pais, do discípulo ante o mestre – a forma geral da submissão. Poder legislador, de um lado, e sujeito obediente de outro (FOUCAULT, 2015, p. 93). Ao analisar as abordagens das relações de poder sobre o sexo, observa-se como esses aspectos eram presentes no hospital: a negação em relação ao sexo, para que os pacientes se controlassem; a separação constante entre homens e mulheres em locais de convívio geral; a censura dos corpos, o não tocar, man- ter-se afastado e o casamento como forma de controle do sexo e também como forma de diminuir o desejo de fugir da instituição. O casamento era apenas um dispositivo de controle, nem mesmo considerado uma instituição de família, pois os pacientes que tivessem filhos dentro do hospital não poderiam ficar com eles. As crianças eram encaminhadas aos preventórios. Em função de não haver in- formações suficientes sobre o contágio da doença na época, era obrigatório a separação dos filhos “saudáveis” de seus pais logo após o seu nascimento, sendo desencorajado o contato. Nair 5 , mais uma antiga paciente que relata sua história, ao falar sobre seu casamento conta: “vai fazer 46 anos que nós estamos casados, dia 13 de abril do ano que vem. Daí, eu tive as filhas que foram tiradas, né... não podiam ficar junto. Eu sofri bastante assim, né. Mas tá, tá tudo bem, né. São coisas que passam com o tempo”. Sua história confirma que ela viveu 46 anos casada sem ter tido o direi - to de ser mãe. Pode-se observar o quanto as irmãs franciscanas influenciaram a 5 Paciente Nair, residente desde 1956.
ARTIGOS LIVRES 156 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie vida dos pacientes e, principalmente, das mulheres no que diz respeito aos seus comportamentos. O discurso é partido do sujeito detentor do poder dentro da instituição, in- terferindo assim no processo de subjetivação das pacientes. O discurso se arti- cula ao poder e ao saber. Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem oposta a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, esco- ra, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso vei- cula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições, mas também afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscu- ras (FOUCAULT, 2015, p. 110). O discurso vai além da linguagem, já que age como abertura para os pro- cessos de subjetivação. Também está relacionado ao que os sujeitos pensam e fazem, se constituindo através da influência dos discursos. A subjetivação é admissível dentro de relações de poder/saber, sendo assim, os pacientes do HCI não se constituíam à margem, pois foram produzidos enquanto parte das relações de poder na instituição. Sua principal asserção foi que ser um sujeito, um indivíduo socialmente reconhecível com intenções, desejos, e ações inteligíveis, só era possível dentro das redes de po- der/saber de uma sociedade. Na sua visão, todas as identidades eram criadas por meio de práticas de poder e saber. As relações de poder não existem entre sujeitos com identidades predeterminadas, mas são constitutivas dos próprios sujeitos, moldam condutas e instigam formas de autoconsciência. Os sujeitos em relação aos quais a rede de poder é definida não podem ser concebidos como existindo à margem dela (OKSALA, 2011, pp. 74-75). Desta forma, as pacientes mulheres do Hospital Colônia de Itapuã se cons- tituíram pelas regras em torno do sexo, separação de homens e mulheres e con- trole quanto a aproximação dos corpos. Também se constituíram influenciadas pela ideia do casamento, como tarefa imbuída às mulheres que não poderiam ser mães. Subjetivação, Resistências e Reexistências Apesar de todos os movimentos de vigilância e disciplina, observa-se por meio de suas narrativas movimentos contrários às imposições do local e da épo-
ARTIGOS LIVRES 157 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie ca. Mesmo quando as histórias se alinham às normas do lugar, é possível observar sinais de resistência e de reexistência, ou seja, de modos de tornarem-se mulhe- res a partir de outros atravessamentos, outras vivências. Na história contada por Elma 6 , por exemplo, destaca-se um posicionamento diferente daqueles apresen- tados por outras pacientes, o qual se configura enquanto uma verdadeira resis - tência às normas vigentes. Aqui era campo de concentração. Tudo fechado. Cerca, arame. Era ali. Tinha uma rua pra ir no refeitório. Quem não era casado, quem era solteiro. Preconceito rolava aqui. A gente... custou muito... Mas ainda...Sai ali fora tem gente que não olha pra ti. Namoro dos nossos filhos lá fora, quando sabem que...tem um familiar aqui dentro a coisa com - plica. Preconceito acho que não termina. Juraci 7 , que também reside no hospital, concorda com a fala da amiga: “Pre- conceito tem em tudo. É com aidético, é com a cor. Com tudo. Mas ninguém pede para nascer assim, né”. Ao comparar as narrativas anteriores com as de Elma e Juraci, observa-se que são compostas por enunciados conflitantes, pertencen - tes a um mesmo discurso. Apesar dessas mulheres serem moldadas pela insti- tuição, resistem ao modelo ao qual foram submetidas ao terem posicionamentos diferentes daqueles impostos pelos tempos de maior atuação do hospital. A ideia de um HCI “bom de se viver” não as comove, pelo contrário, as produz a partir das brechas que o envolvem. Eva ao contar como foi parar no hospital, deixa claro que sentia medo de ir para um lugar totalmente novo e desconhecido e que acreditava que pudesse ser morta, porém, após anos dentro do hospital, entendeu que aquele era o melhor lugar para ela viver: Eu tava ali em Esteio. Quando foi desconfiado da doença. Eu não me lembro bem se foi em 1958 ou 59. Por aí, nessa data. Meu avô... nós tinha criação [de cavalo]. Era raça, né, colono. Meu avô adotivo. E um dia eu ouvi meu avô falando lá pros rapazes. “Bah”, ele disse, “aquele cavalo que eu comprei tá leproso, tem lepra”. Aí eles mataram o cavalo, né. Mataram pra não alastrar. Quando eu ouvi o doutor dizer aqui que o que eu tinha era lepra. “Bah, paguei a doença do cavalo.” Digo. “Tá, tô ralada agora. Vai sobrar pra mim... porque se eu tenho essa doença eles vão me matar.” E me trouxeram pra cá. E mato, e mato, não se via uma casa. Lá de vez em quando que se via uma casa. Digo: “vão me matar bem longe”. Numa caminhoneta preta, ainda. Então tô ralada, já era. Mas não, cheguei aqui, no paraíso. Meu eu acho que até o “velhinho” lá já me deu lucro. Ele já me deu lucro. Eu vim pra cá pra durar só 3 meses, imagina. Tô com toda essa idade. Com 66 anos, né. E os que acharam que iam durar mais, já foram. Pra mim Itapuã é meu hotel 5 estrelas. Minha casa. Aqui eu tenho tudo que eu preciso. E tudo que me faz bem. 6 Paciente Elma, residente desde 1949. 7 Paciente Juraci, residente desde 1958.
ARTIGOS LIVRES 158 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie É possível pensar que suas lembranças trazem questões íntimas que servem como verdades individuais e que, talvez, escondam feridas que devem ser esquecidas. Certamente elas não fogem dos processos de subjetivação ocasionados por sua vivência no HCI, mas parecem concorrer com outras verdades que envolvem a situação. Ao considerar determinados relatos, pode- se dizer que o HCI foi descrito e produzido como um verdadeiro hotel de luxo. O enquadramento da narrativa das pacientes, com o passar dos anos de vi- vência no hospital, se reconstruiu. Eva, por exemplo, traz detalhes riquíssimos sobre o ambiente de vigilância do hospital, das regras e do poder das irmãs, mes- mo assim constrói sua narrativa apontando o hospital como um bom lugar. Outro depoimento que chama a atenção é de Valdeci 8 . Eu cheguei aqui nesse lugar, eu tinha 16 anos. Primeiro me casei com aquele ali da ar- vorezinha né. Aquele morreu com vinte e oito anos. Depois me casei com este aqui. Vivi um ano e sete meses junto com ele. Não deu certo porque ele me “pauleava” muito, né. “Se separemo”. Depois que deixei esse aqui, me casei com aquele outro, né. Aí fiquei 44 anos com aquele. “Moremo” junto. Tive oito filhos dele, e três filhos do primeiro, né. Desse aqui eu não tive nenhum. No fim, tive um caso, não deu certo. ‘Separemo’. Fiquei viúva, tô viúva. Não tenho mais substituto. Não quero mais, complicação. Porque é bra- bo, né. A gente fazer loucura. Mas não era loucura, né. Era a vida [...]. Esta mulher se casou quatro vezes, mas em seu segundo casamento sofreu agressões físicas por parte do esposo. Pode ser entendido como um ato de re- sistência e de reexistência a decisão de Valdeci de abandonar o ex-marido em um tempo e num espaço onde havia relações de violência e o abandono de um homem por uma mulher não era aceitável e igualmente por se casar quatro vezes. Contudo, a história de vida da paciente ajuda a pensar outra astúcia ao casar-se quatro vezes. Pacientes casados tinham o direito de ter uma casinha dentro da instituição, nos demais casos precisaria morar nos pavilhões com os demais pa- cientes do mesmo sexo. Outra questão que pode ser observada como ação de resistência, por parte das pacientes, são as suas relações com os filhos que eram concebidos dentro do hospital e separados das mães logo após o seu nascimento. Os “preventórios”, como eram chamados, abrigaram os filhos dos casais portadores de hanseníase, mais detidamente, os que nasceram dentro do Hospital Colônia de Itapuã. Após o nascimento, a criança deveria ser imediatamente encaminhada ao preventório, 8 A paciente Valdeci chegou no hospital com 16 anos, sem mencionar o ano.
ARTIGOS LIVRES 159 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie sendo proibido o contato físico entre pais e filhos. Limberger (2022) traz que tais instituições seriam responsabilizadas pela educação das crianças até a maiori- dade caso o paciente não contasse com familiares que pudessem ficar responsá - veis por seus filhos. Em alguns casos, as crianças eram colocadas para adoção. Marleci, filha de um casal de pacientes do HCI que, logo após seu nascimento, foi enviada ao preventório e, conforme conta, não teve contato com seus pais nos primeiros dias de nascimento, nem mesmo para ser amamentada por sua mãe. [...] De vez em quando a gente ia fazer visitas. Era um portão enorme, um portão gran- de. Eles ficavam de um lado, e nós, ficávamos do outro lado. Aí eu me lembro que as ir - mãs, muito queridas as irmãs lá do hospital. Elas diziam: “Aquela fulana lá é tua filha”. Aí nós assim, quando a gente já tinha 7 ou 8 anos, a gente ficava olhando uma pra outra e dizia: “Mas como é que ela vai saber, lá de onde ela está...” Porque nós estávamos todas com uma roupinha igual. Vestidinho igual. O cabelinho, o corte de cabelo normalmente era a mesma coisa, né. Um dia nós até chamamos a irmã. “Tia, mas como é que ele vai saber que sou filha deles se todas estão com a mesma roupa. E o corte de cabelo é pra - ticamente o mesmo.” Aí ela disse assim, “Não, pode deixar que eles sabem.” Daí a gente levantava a mãozinha, algum sinal a gente fazia. Mas eu me lembro assim, do meu pai, mesmo de ter visto ele 4 vezes na minha vida. Foram só essas vezes. Porque o meu pai era bastante doente. Meu pai, a lepra tinha pegado ele assim, bem. Ele ainda não tinha ainda atingido aquela deformação nas mãos. Mas ele já tinha, assim, dificuldade de andar. Aparecia muito. E daí quando a pessoa tá muito assim, atacada da doença, eles não deixavam se aproximar muito. Então eu abanava, ou ele abanava. E a gente só sa- bia, né. “Aquele lá é teu pai.” E a gente abanava e ficava nessa. E daí chegou uma época em que houveram dificuldades para manter o orfanato e para que os filhos ficassem lá. E daí foi que então definido pelo governo estadual, de as crianças serem adotadas por algum parente ou pra casas de famílias. E eu me lembro assim que a gente...Tinha dias da semana que a gente parava em fila, um do lado do outro. E daí vinham as pessoas escolher as crianças. Os meus pais tiveram muita dificuldade de achar alguém com quem eu ficasse. Aí no fim das contas um irmão dela disse.Aí eu nunca me esqueço. A minha tinha era costureira. E o meu tio trabalhava também numa empresa. Aí eu lem- bro assim que...Ele olhou, assim, pra mim,ele me olhou com um olhar tão terno, tanto ele como ela. E disse, “Onde comem 3, comem 4. Mulher, tu bota um pouquinho mais de água no feijão. E é com nós que ela vai ficar. Vai ser criada como nossa filha, e é aqui que ela vai ficar. Daí eu lembro assim, no momento que me deu uma explosão de emo - ção. Eu disse: “Puxa vida, finalmente. Que bom.” E daí fiquei com eles. Anos mais tarde, quando eu tinha saído já do orfanato. Eu lembro que a minha mãe resolveu... mais pra frente assim... Ela resolveu me tirar da casa dos meus tios. E eu não aceitava de forma alguma. E daí eu sei que no fim das contas ela acabou me levando. E me levou lá pro hospital. Mas me levou as escondidas. As autoridades não chegaram a ver. Eu lembro que a gente entrou escondida. Ela me puxava, me agarrando firme pela mão. E tinha uma guia, inclusive, até muitos doentes que a gente sabe que saiam lá do hospital, eles não saiam pelo portão da frente. Eles saiam muitas vezes escondidos. Eles não pode- riam fazer isso, mas saiam escondidos pelo mato. Eles já tinham uma trilha de acesso ao hospital, né. Eu era a única lá dentro. No meio daquele pessoal “tudo”. E eu lembro, assim, que a minha mãe sempre tinha o cuidado... Eu não podia sair muito do pavilhão. E era sempre assim: cuidando, porque eu estava irregular lá dentro. E aí eu me lembro que todos os anos eles tinham um baile. E todos os anos eles tinham também o time de futebol. A rainha. E existe essa foto. Está documentada, né. Onde eu fui (a rainha). Então nunca me esqueço da data. De quando foi e o canto. Eu tinha que cantar. Assim como o Internacional que é o meu time de coração, tem o hino deles. O Grêmio. Aí eu também tive que cantar o hino lá pra eles. E aí eu fui eleita a rainha do clube. “Hoje é dia 24 de julho, hoje é dia da inauguração. Nós todos só desejamos a amizade e cooperação.
ARTIGOS LIVRES 160 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie São estes os votos sinceros do Esporte Clube Itapuã. São estes os votos sinceros do Es- porte Clube Itapuã.” L embro tão bem desse cantinho. Eu fiquei dias e dias cantando e decorando no quarto pra cantar. E daí foi bacana. Isso foi um momento que me marcou também. A minha estadia lá, no caso, né. Alguns anos após, Marleci foi morar com os tios e sua mãe resolveu levá-la ao hospital. Conforme relata, ela morou escondida, na instituição, junto de sua mãe, por dois anos. Após a descoberta foi encaminhada a outro orfanato, mas um tem- po depois pode voltar a conviver com os tios. De modo que, neste depoimento o que chama a atenção é o fato da paciente levar às escondidas a filha para morar com ela dentro do hospital, revelando de certo modo uma resistência às normas e de igual modo uma necessidade de vínculo com a filha. Conforme Souza (2015), na perspectiva foucaultiana, as relações de poder nos atravessam enquanto su- jeitos, nos constituindo ora submissos, mas, também, ora resistentes: De um modo ou de outro, o estudo do poder ou dos micropoderes, na perspectiva Fou- caultianas, indica que o poder nos atravessa e nos constitui enquanto sujeitos, ora submissos, ora resistentes, mas sujeitos que se reconhecem neste ou naquele lugar, pois somos governados pelos outros e por nós mesmos e estamos totalmente inseri- dos em uma complexa rede de poderes da qual e pela qual não podemos escapar (SOU- ZA, 2015, pp. 177-178). Assim, em toda relação de poder há “forçosamente” resistência. Caso não houvesse possibilidade de certa liberdade, não seria uma trama de poder. Enten- de-se desse modo que os processos de subjetivação das mulheres no Hospital Colônia de Itapuã foram por vezes associado à submissão e à resistência. Mesmo se tratando de uma instituição com características de fechamento, as pacientes mulheres podiam exercer certa liberdade em questões específicas e até mesmo burlar as regras. Entendendo que as pacientes foram internadas compulsoriamente e que se constituíram dentro da instituição sendo constantemente perpassadas pela vi- gilância e por práticas disciplinares, ainda que sutilmente se tenham mostrado resistente a elas. Seja quando um depoimento revela os aspectos negativos da instituição, quando se casa mais de uma vez, ou quando escapa às regras e es- conde a filha por dois anos na instituição.
ARTIGOS LIVRES 161 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie Considerações finais Partindo do estudo apresentado, entendendo que as análises se deram cen- tralmente através um material cinematográfico, que foi produzido e editado den - tro de um jogo de intenções e interesses, destaca-se sua potência para a escrita da história do Hospital Colônia de Itapuã. Igualmente sua contribuição para en- tender o modo de ser e estar dos seus pacientes no cotidiano da instituição, com destaque aqui para as pacientes mulheres. Desse modo, evidencia-se que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã eram subjetivadas por meio de relações de poder que pautavam-se em verdades associadas ao confinamento e às relações de gênero. Ao serem internadas com - pulsoriamente tiveram seus modos de ser moldados. A inferioridade era imputa- da às pacientes mulheres que deviam ser reservadas ao privado e destinadas às tarefas relacionadas à limpeza e cozinha, de modo a aparecer o menos possível, enquanto aos homens não havia o mesmo tratamento. Além disso, eram direcio- nadas ao casamento, para que desta forma pudessem ser controladas quanto aos seus desejos de fugir da instituição e comportamentos sexuais. Também, por conta disso, pode-se refletir sobre como estes corpos eram censurados e como o sexo e o matrimônio tornou-se um dispositivo de controle dentro do hos- pital. Entretanto, estas mulheres estavam sujeitas a atos de violência física e emocional e de repressão. Dentro das relações de casamento, o interesse da madre de que pacien- tes considerados menos atingidos pela doença se casassem entre si, trata-se de uma política eugenista. Funcionando assim, como uma espécie de seleção, pes- soas doentes relacionam-se com outras pessoas doentes, e dentro dessa lógica ainda se aplicavam o estímulo ao casamento entre pacientes em que a hansenía- se fosse menos branda, e por fim, pessoas sem a doença deveriam se relacionar com pessoas sem a doença. Aponta-se juntamente com os conceitos foucaultianos, o conceito de gêne- ro de Joan Scott, que deixa claro que as questões de gênero eram impostas den- tro do hospital, havendo desigualdades entre homens e mulheres. Procurava-se evitar o contato físico entre os pacientes, as mulheres em virtude de sua sub- missão construída historicamente, deveriam ser sujeitos dóceis dentro do HCI. O ideal ao sexo feminino dentro do hospital seria o casamento, que conforme as
ARTIGOS LIVRES 162 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafaela Limberger / Camilo Darsie análises feitas, tinham o aval para “seduzir” os pacientes homens. Apesar de to- das as regras de convivência dentro da instituição e das regras impostas a todos os pacientes, bem como os discursos que os atingem, observa-se que, mesmo assim, temos narrativas diferentes dentro do hospital. Mesmo quando o depoi- mento é percebido como construído socialmente pelo lugar de convívio destes pacientes, é possível observar sinais de resistência. Destaca-se, desta forma, que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã se constituíram dentro de processos de subjetivação do hospital, enquanto sujeitos dóceis, e que seus discursos são produzidos de uma maneira geral de uma forma positiva sobre o Hospital. Estas mulheres foram subjetivadas a não questionar as regras de convivência, nem as regras de reclusão e confinamento do espaço. Porém, como toda dinâmica de poder produz resistência, tais mulheres também encontraram em seus movimentos de resistência modos de reexistirem. Por fim, levando em conta que historicamente as mulheres são tidas como sujeitos esquecidos da história, as narrativas destas pacientes salientam o quão importante é contar essas histórias, para que se entenda determinados espaços e suas relações de gênero, além dos sentimentos e relatos desses sujeitos. Referências bibliográficas ANDRES, Silvana Carloto; MICHELETTI, Vania Celina Dezoti. Conhecendo a história e estrutura do Hospital Colônia Itapuã, antigo leprosário: um relato de experiência . J. Nurs. Health, v. 10, n. espec. e20104019, 2020. BÍBLIA. Bíblia Sagrada . Disponível em: <https://www.bibliaon.com/>. Acesso em: 15 mar. 2024. BORGES, Viviane Trindade; SERRES, Juliane Conceição Primon. Narrativas sobre o velho le- prosário: as entrevistas realizadas com pacientes/moradores do Hospital Colônia Itapuã (Via- mão/RS). Boletim da Saúde , v. 16, n. 2, p 116-124, 2012. BRASIL. Hanseníase. Ministério da Saúde. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/ pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/h/hanseniase . Acesso em mar. de 2024. CANDIOTTO, Cesar. Disciplina e segurança em Michel Foucault: a normalização e a regulação da delinquência. Psicol & Soc., v. 24, n. espec., p. 18-24, 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0102- 71822012000400004 . CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa :
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ARTIGOS LIVRES 165 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz ANDANÇAS PELOS “CAMINHOS DA NOITE”: EXPLORANDO ARQUIVOS PESSOAIS DE MULHERES EM INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA EM SANTA CATARINA WALKING THE “PATHS OF THE NIGHT”: EXPLORING WOMEN’S ARCHIVES IN MEMORY INSTITUTIONS IN SANTA CATARINA. https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20095 Karla Simone Willemann Schütz Universidade Federal de Santa Catarina https://orcid.org/0000-0003-0177-078X karlawschutz@gmail.com Recebido em 23 de janeiro 2024 Aprovado em 04 de abril de 2024 RESUMO: O presente artigo analisa a presença de arquivos pessoais de mulheres em duas instituições de memórias do estado de Santa Catarina. O estudo direciona seu olhar metodológico para as práticas adjacentes aos procedimentos de arquivamento dessas instituições e as dinâmicas de construção da memória, observando ao mesmo tempo os contextos sócio-históricos e os conteúdos desses conjuntos documentais. Por meio dessa abordagem, observou-se o silenciamento da presença de documentos e arquivos de mulheres nos instrumentos de pesquisa de ambos arquivos, bem como, a ausência de ferramentas que auxiliassem a localização dessa documentação. Palavras-chave: Arquivos pessoais; Arquivos de Mulheres; Instituições de Memória; História das Mulheres. ABSTRACT: This article analyzes the presence of women’s personal archives in two memory institutions in the state of Santa Catarina. The study directs its methodological focus to the practices adjacent to the archiving procedures of these institutions and the dynamics of memory construction, while observing the socio-historical contexts and the contents of these documentary sets. Through this approach, we observed the erasure of the presence of women’s documents and files in the research instruments of both archives, as well as the absence of tools that would help locate this documentation. Key words: Personal files; Women’s Archives; Memory Institutions; Women’s History.
ARTIGOS LIVRES 166 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz Introdução Em seu artigo Tacit narratives: the meaning of Archives, o arquivista holan- dês Eric Ketelaar (2001) afirma haver, no interior das coleções que dão forma aos arquivos, inúmeras narrativas que não são visíveis e que não estão concentradas apenas nas informações que um documento carrega. Segundo ele, diversas ou- tras histórias estão escondidas por trás dos procedimentos de tratamento que visam tornar acessíveis os conjuntos documentais espalhados pelos mais diver- sos locais do mundo, tais como os processos de classificação e descrição docu - mental. Assim sendo, pelo que nos sugere Ketelaar, pode-se depreender que o arquivista também é um criador de narrativas. Esse mesmo autor defende que os arquivos e os registros que guardam são objetos passíveis de “ativações” em todas as etapas de sua vida: desde o arquivo corrente, passando pelo arquivo intermediário e, por fim, no arquivo permanen - te. Mas o que seriam essas ativações? De acordo com Ketelaar, ao longo do seu ciclo vital, o documento é ativado (ou seja, criado, processado, revisitado, inter- rogado) por seu criador, por seus guardiões, por seus usuários em potencial, e claro, pelo arquivista que, por meio de seus pressupostos e ferramentas, torna o documento passível de ser acessado. “Cada interação, intervenção, interrogação e interpretação por parte de um criador, usuário e arquivista é uma ativação do registro. O arquivo é uma ativação infinita do re gistro” (KETELAAR, 2001, p.137, tradução nossa). Ao se fazer um cruzamento entre essa perspectiva apresentada por Ketelaar, que traz à cena o entendimento da existência de narrativas tácitas, narrativas subjacentes aos documentos e o diagnóstico de sub-representação da mulher nos acervos de diferentes instituições de memória, propõe-se aqui uma reflexão sobre as “ativações” operadas por uma pesquisa que tem como objetivo identifi - car arquivos de mulheres espalhados por instituições catarinenses. Inserida em um panorama atual de discussões (SIMIONI; ELEUTÉRIO, 2018) que buscam observar as relações de gênero subjacentes também aos processos de arquivamento de diferentes instituições de salvaguarda, a pesquisa denomi- nada Jogos de sombra e de luz: a presença de arquivos de mulheres em instituições de memória em Santa Catarina , desenvolvida em nível de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal
ARTIGOS LIVRES 167 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz de Santa Catarina, tem como objetivo mapear, catalogar e divulgar a existência de arquivos em instituições de memória do estado de Santa Catarina que tenham mulheres como titulares. Ao fim do projeto, com a publicação de um instrumento de pesquisa (um guia) pretende-se visibilizar a atuação de diferentes mulheres da sociedade ca- tarinense, em especial aquelas que tiveram papeis ativos em suas comunidades. Em consonância com o que prevê Lei nº 18.226, de 13 de outubro de 2021 - a qual inclui como conteúdo transversal, no currículo da educação básica de escolas públicas e privadas do estado, a História das Mulheres do Campo e da Cidade - objetiva-se contribuir com o reconhecimento das trajetórias e com a produção de conhecimento sobre a história das mulheres no estado, o que pode fomentar ainda um incentivo à participação e envolvimento de mulheres mais jovens em suas próprias comunidades. As ativações sobre as quais pretende-se refletir são um recorte da pesquisa acima mencionada e se desenvolveram por meio de uma abordagem etnográfica dos arquivos, aqui entendida como um movimento metodológico que desloca a atenção especificamente dos documentos para os processos que os salvaguar - dam e os tornam acessíveis (HEYMANN, 2013). Ou seja, os arquivos que aqui são objeto de análise foram observados a partir das histórias que os constituíram, das políticas que definiram o que abrigam, dos instrumentos de pesquisa que tornam acessíveis seus acervos e, por fim, dos documentos que os integram. Essa abordagem deseja entender suas lógicas de constituição, seus con- textos, buscando ao longo desse processo as vozes não ouvidas nesses acervos, especialmente, as narrativas tácitas de mulheres que eles possivelmente abri- gariam. Na maioria das vezes soterradas pelas presenças masculinas, essas vo- zes demandam um olhar cuidadoso, quase como se procurássemos uma agulha no palheiro. Um cenário tributário não só da falta de documentos sobre essas mulheres, como ainda na década de 1980 afirmou a historiadora Michelle Perrot (1989), mas também da ausência de instrumentos de pesquisa que pudessem ajudá-las a “levantar suas vozes”, como se verá a seguir. Como apontado anteriormente, a pesquisa investiga instituições de memó- ria espalhadas por diferentes municípios catarinenses, porém, para refletir com maior atenção sobre essas narrativas, foram escolhidas duas instituições onde a busca já foi em um primeiro momento finalizada. São elas: o Arquivo Público de Santa Catarina (APESC) e o Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina,
ARTIGOS LIVRES 168 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz onde foram realizadas visitas semanais ao longo dos meses de junho e setembro de 2023. Antes de caminharmos pelos arquivos, vale enfatizar o porquê de entender esse trajeto como um percurso no “breu”. Aqui, a “andança pelos caminhos da noite” é uma expressão metafórica que descreve uma exploração em meio à in- certeza, sendo empregada para ilustrar a busca por algo que não é facilmente visível ou compreensível. No contexto aqui observado, sugere a investigação profunda e atenta nos arquivos, procurando desvendar e dar visibilidade a nar- rativas e experiências de mulheres que historicamente foram negligenciadas ou sub-representadas nos registros documentais. A ideia que quer se trazer é que essa exploração que ocorreu em meio a desafios e dificuldades, simbolizados pela escuridão, buscou ao mesmo tempo trazer à luz histórias que ao longo do tempo podem ter sido ignoradas ou obscurecidas. Os espaços de observação A iniciativa de criação do APESC remete a diferentes momentos da histó- ria catarinense e as informações sobre sua emergência, em certos momentos, parecem desencontradas. Algo que não é incomum quando tentamos buscar a origem histórica de instituições, personagens ou eventos históricos, por sua precisão e necessidade de encontrar fontes que a comprovem, esses dados são diversas vezes difíceis de encontrar. Segundo o website do próprio APESC, a idealização de sua construção já era um desejo manifestado pelo ex-governador do estado de Santa Catarina engenheiro civil Hercílio Pedro da Luz em fins do século XX (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO, 2023). Já de acordo com (SOUZA; LEITE, 2014), o APESC teria um de seus primeiros atos de fundação documentado no dia 26 de setembro de 1918, durante o mandato do governador Felipe Schmidt, por meio da Lei n.º 1.196. Porém, naquele momento, nenhum di- retor teria sido designado para administrá-lo, uma ocorrência que culminaria na sua imediata dissolução. Duas novas tentativas teriam buscado recriá-lo, porém ambas, mais uma vez, não obtiveram sucesso: a primeira em 28 de dezembro de 1931, por meio do Decreto n.º 186, no Governo do Interventor Federal Ptolomeu de Assis Brasil, e a segunda em 1933, no Governo do Interventor Federal Aristiliano Ramos, por meio do Decreto n.º 349, de 10 de maio (DEBATIN, s/d).
ARTIGOS LIVRES 169 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz A efetiva criação do APESC se concretizaria somente em 1960, por meio da Lei n.º 2.378 de 28 de junho. Naquele momento, sob a guarda da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Justiça (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMI- NISTRAÇÃO, 2006). Atualmente, por meio da Lei nº 381 de 07 de maio de 2007 o Arquivo mantém-se vinculado à Secretaria de Estado da Administração, em es- pecífico da Diretoria de Gestão Documental, sendo um órgão normativo do Siste - ma de Gestão Documental estadual. A sede do APESC passou por diversos locais da cidade de Florianópolis. En- tre os anos de 1960 e 1971 foi abrigado no Palácio do Governo, atual Museu Cruz e Sousa; entre os anos de 1971 e 1972 compartilhava o prédio localizado na esquina entre as ruas Tenente Silveira e Jerônimo Coelho com a Imprensa Oficial do Es - tado – IOESC; entre os anos de 1973 e 1976 foi instalado no Edifício das Direto- rias localizado na rua Tenente Silveira; em 1976 foi brevemente transferido para Rua Almirante Alvim e no mesmo ano para a Rua Felipe Schimidt, onde ficaria até 1992; entre 1992 e 2006 foi alojado na avenida Mauro Ramos; sua penúltima mu- dança ocorreu em 2006, quando foi transferido para edifício no bairro Saco dos Limões. Em 2022, por conta de problemas estruturais do prédio que o abrigava, a documentação do Arquivo foi transferida temporariamente para edifício na ci- dade de São José, no bairro Kobrasol. Por se tratar de um arquivo vinculado à administração pública, o acervo do APESC é composto por documentação em diversos suportes, tipos e gêneros documentais relativos à processos administrativos governamentais, totalizando aproximadamente 2.500 metros lineares. São documentos datados entre o início do século XVI até o fim do século XX tais quais: manuscritos, impressos, datilo - grafados, cartográficos, iconográficos (principalmente fotos e cartazes doados ao APESC por pessoas físicas e jurídicas). Há também coleções de leis, decretos- -leis, decretos e portarias estaduais desde 1830 até os dias atuais (originais com assinaturas e impressas em publicações), leis federais brasileiras datadas de 1811 até a década de 1980, além de leis portuguesas do período de 1791 a 1820 (SOUZA; SILVA, 2014). O segundo local de realização da pesquisa não teve o mesmo percurso do APESC que, como se viu acima, foi “vítima” de um itinerário repleto de mudanças, as quais geram sempre uma preocupação em relação à integridade da informa- ção que o arquivo tem o compromisso de preservar. O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina foi criado por decreto
ARTIGOS LIVRES 170 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz datado de 25 de novembro de 1949 e assinado por Dom Joaquim Domingues de Oliveira, naquele momento Arcebispo à frente da Arquidiocese de Florianópolis, função que exerceria até sua morte em 1967. O Arquivo Eclesiástico é de res- ponsabilidade da Mitra Metropolitana de Florianópolis, portanto, é o Arcebispo Metropolitano o responsável por delegar profissionais responsáveis pela gestão documental do acervo. No momento de sua criação, o arquivo ficava abrigado junto à Catedral Me - tropolitana de Florianópolis, onde permaneceu até 1966 quando foi transferido temporariamente para a avenida Rio Branco, em Florianópolis. Desde 1968 fun- ciona em prédio anexo à Cúria Metropolitana, na Rua Esteves Júnior, também na cidade de Florianópolis. O Arquivo Histórico Eclesiástico reúne e preserva inúmeros documentos de valor único, pois no período anterior à Proclamação da República todos os re- gistros de nascimentos, casamentos e óbitos no Brasil eram feitos pela Igreja Católica por meio das paróquias espalhadas por todo país. Sendo assim, a Arqui- diocese de Florianópolis é responsável pela guarda de documentação referente a nascimentos, matrimônios e falecimentos ocorridos na região entre os anos de 1751 e 1889. Entre esses registros, é possível encontrar um livro de casamen- tos que um dia pertenceu à Paróquia de Nossa Senhora do Desterro datado em 1714. Para além dessa documentação, associada ao cotidiano da população ca- tarinense entre os séculos XVI e XIX, o acervo da instituição também é formado por grande volume de documentação sobre a história da Igreja Católica em Santa Catarina (DIBRARQ, 2023). Esse breve histórico das instituições investigadas foi necessário para pos- teriormente apresentar de que forma a busca foi nelas efetuada e os vestígios documentais que elas preservam. Cada uma, a partir das atribuições e da docu- mentação que abrigam, precisou de um roteiro de investigação individualizado. Desenhando o “mapa da mina” Os primeiros encontros com os arquivos sempre são reveladores de surpre- sas boas, mas também de surpresas não tão positivas. Em relação aos arquivos apresentados acima, foi uma grata surpresa encontrar alguns instrumentos de pesquisa que permitiram fazer um “recorte” na documentação que seria inves- tigada. A disponibilidade dos funcionários de ambas as instituições também foi
ARTIGOS LIVRES 171 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz fundamental para elaborar um plano para as idas ao “campo”. Pode parecer estra- nho ressaltar a presença ativa desses servidores, porém o cenário nas institui- ções arquivísticas não é sempre assim receptivo, não raro, o acesso à documen- tação é negado aos pesquisadores por meio de justificativas como a ausência de organização dos documentos. Em relação ao APESC, as pesquisas puderam ser iniciadas em meio digi- tal, já que alguns dos instrumentos de pesquisa da instituição, bem como parte do acervo, estão disponíveis à consulta por meio da plataforma AtoM 1 . Tendo es- ses instrumentos em mãos, foi percebida a existência de fundos privados entre a documentação lá abrigada. Como o interesse da pesquisa é tratar de mulhe- res como titulares de arquivos, não seria relevante buscar por outros fundos do acervo da instituição, já que se referem a outras proveniências (seu “acumulador” não foi uma pessoa física), sobretudo, da administração pública. No total, segundo apontam os instrumentos de pesquisa, o APESC possui sob sua guarda nove fundos privados: o Fundo Privado Monumento Vidal Ramos, o Fundo Privado Álvaro Alves, Fundo Privado do José Vieira da Rosa (Gen.), Fundo Privado Ferdinand Knoll, Fundo Privado Rogério Duarte de Queiroz, Fundo Priva- do Candido Caldas (Marechal), Fundo Privado Aroldo Damiani Pessi e Alba Grisard Pessi, Fundo Privado Haroldo Paranhos Pederneiras e o Fundo Privado Jorge La- cerda. (APESC, 2018, p. 3-4) Apesar de um inventário analítico da documentação presente nesses fundos estar organizado em Catálogo disponibilizado à consulta, alguns detalhes dessa documentação, como a procedência ou destinatário, não eram passíveis de ave- riguação. Assim, após essa análise inicial, foi necessária a investigação em cada item documental, em especial no Fundo relativo ao ex-governador do estado de Santa Catarina, Jorge Lacerda, pesquisa que revelou algumas surpresas, como se verá à frente. A necessidade de fazer a observação documento a documento, remete, mais uma vez, à perspectiva da etnografia nos arquivos, em especial, a partir da pers - pectiva do “estar lá”. Nesse sentido, entende-se que a ida ao local de pesquisa foi essencial não só para investigar a fundo os conjuntos documentais, mas também para realinhar as expectativas de pesquisa, bem como, as próprias práticas da- queles que trabalham dentro desses arquivos. 1 Disponível em: https://acervo.arquivopublico.sc.gov.br/ Acesso em: 25 out. 2023
ARTIGOS LIVRES 172 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz Em relação ao Arquivo Histórico Eclesiástico, não havia instrumentos de pesquisa tão detalhados como aqueles encontrados no APESC. Os contatos iniciais foram feitos via e-mail com a funcionária responsável pelo acesso de pesquisadores ao acervo. A partir da explicação do tema da pesquisa, essa mesma funcionária apontou conjuntos documentais que poderiam servir ao objetivo da investigação. Foram selecionadas dentro dessa coleção vinte e três pastas plásticas onde estavam acondicionadas correspondências e documentação trocada entre religiosas, congregações religiosas femininas, irmandades religiosas e associações de mulheres católicas e a Cúria Metropolitana de Florianópolis. Como não havia nenhum inventário do conteúdo das pastas, o próximo passo da pesquisa, assim como no caso do APESC, foi verificar um a um o seu conteú - do. Elas foram, portanto, analisadas por item documental, documento por docu- mento, o que exigiu, novamente, um longo processo de idas e vindas ao arquivo. Andando pelos “caminhos da noite”, mas com companhia Ler nas entrelinhas é saber operar com escalas, a noção de “jogo de esca- las” foi proposta por Jacques Revel (1998) na obra Jogos de Escala: a experiên - cia da microanálise . Tal metodologia de análise busca romper com dicotomias que opõem o individual ao coletivo, dando maior importância a uma dimensão ou outra. A perspectiva do “jogo de escalas” demonstra que as abordagens que ora observam as estruturas, ora observam o particular, não são antagônicas, mas complementares, pois na “redução da escala de observação, em uma análise mi- croscópica e em um estudo intensivo do material documental” (LEVI, 1992, p.136), podemos observar como os indivíduos circulam entre as brechas, as rachaduras, que existem nas grandes estruturas de poder ou dominação. A observação dos arquivos aqui abordados se deu a partir de sucessivas aproximações e afasta- mentos que vão do plano micro ao plano macro e vice-versa, ou seja, do enten- dimento do contexto da instituição ao item documental, procurando as brechas onde estariam as mulheres nesses conjuntos. Uma abordagem antropológica, como mencionada anteriormente, vai ao en- contro desse “jogo” que opera a partir de diferentes lentes, pois além de práticas pontuais ou individuais, nela “devem ser considerados os contextos nos quais os
ARTIGOS LIVRES 173 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-históricos mais amplos, de uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados e dis- ponibilizados, de outra (HEYMANN, 2013). Para analisar mais de perto os acervos privados presentes no APESC, é preciso antes de tudo refletir sobre o que representam os arquivos institucionais públicos e a histórica cisão existente entre esse tipo de arquivo (público) e os arquivos de pessoas, divisão que poderia ser pensada também por meio de categorias como o “oficial” e “individual”. Segundo Cook (1998), existe em muitos países uma divisão incômoda entre tais tipos de arquivos e, por vezes, até mesmo uma tensão que emerge do caráter dos documentos que abrigam e os objetivos para os quais os documentos neles abrigados são criados e preservados. Ainda de acordo com Cook (1998), via de regra, em diversas partes do mundo, os arquivos nacionais não recolhem papéis de indivíduos particulares, um padrão que também ocorre em arquivos estaduais, provinciais, regionais e locais ou municipais. Em geral, os arquivos pessoais ou manuscritos privados, acabam sendo adquiridos pelas bibliotecas nacionais, regionais, ou ainda por universidades, museus e institutos de pesquisa ou de documentação especializados. Um cenário que vem se modificando no cenário nacional brasileiro nos últimos anos, à exemplo do Arquivo Nacional 2 , que institui em 2018 política de aquisição relativa ao tema. Porém, mesmo nesse panorama de abertura, a guarda desse tipo de documentação por arquivos públicos é aberta excepcionalmente aos documentos de indivíduos que tiveram algum tipo de projeção pública, normalmente, associada à prática política ou aos casos em que há a ameaça de destruição de algum conjunto documental, sendo assim, o arquivo é como um guardião passivo, que se propõe a guardar tal documentação, pois nenhum outro espaço tem disponibilidade para fazê-lo. Os fundos privados encontrados no APESC parecem se encaixar no último caso relatado acima. Os conjuntos analisados são em grande medida registros que foram reunidos com objetivos diversos, mas que não tem nenhuma relação com políticas de aquisição de acervos formalmente implantados pela instituição. Sendo assim, esses acervos privados estarem guardados no APESC parece uma 2 Importante destacar que, no caso do Brasil, o Arquivo Nacional instituiu formalmente em 13 de março de 2018 - 20 anos após a publicação do texto de Cook aqui usado como referência - a sua Polí- tica de Aquisição de Acervos Privados. O trabalho foi iniciado ainda em 2017 por meio de um Grupo de Trabalho criado pela portaria 477, de 11 de outubro 2017.
ARTIGOS LIVRES 174 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz “obra do acaso”: alguém, em algum momento, não é possível detalhar, intermediou as suas aquisições. O Fundo Privado Jorge Lacerda se enquadra nesse cenário, de acordo com o Catálogo dos Fundos Privados disponibilizado pela instituição, o acervo foi incorporado ao Arquivo Público com a autorização da família do titular, através do projeto Registro da Memória Pública de Santa Catarina , em meados de 1986 3 . Jorge Lacerda, registrado Jorge Cominos Lacerda e descendente de imigrantes gregos, foi uma figura política influente no estado de Santa Catarina sendo eleito governador do estado nas eleições de 1955 e assumindo o mandato em 1956, após duas legislaturas anteriores como deputado federal da bancada catarinense. Lacerda foi vítima de um acidente aéreo em 1958 que matou também outros dois políticos catarinenses ativos à época, Nereu Ramos e Leoberto Leal (MEMÓRIA POLÍTICA DE SANTA CATARINA, 2023). O fundo referente a Lacerda contém aproximadamente 20.000 documentos entre cartas, ofícios, telegramas, cartões, certidões, discursos, projetos, ensaios, fotografias, entrevistas, folhetos, artigos literários, plantas, desenhos, recibos, recortes de jornais, diplomas, certificados, bilhetes etc. Os documentos estão separados por tipo documental e ordenados pela ordem cronológica, dentro das séries, subséries e dossiês. Durante a pesquisa, as pastas e caixas foram observadas a partir da sequência numérica definida pelo próprio arquivo, porém em sentido decrescente, ou seja, começou-se pela pasta número “91” até chegar a pasta número “1” (além das pastas nomeadas como “Publicações variadas”). Vale ressaltar que em nenhum momento aparecem descritos nos conteúdos das mesmas a presença de documentos relacionados a esposa ou às filhas de Lacerda: Kyrana Atherino Lacerda, Irene, Cristina e Zoê, respectivamente. Porém, já na primeira pasta aberta essas vozes femininas marcaram sua presença, por meio de um caderno escolar (referente a disciplina de Língua Inglesa) pertencente a filha Zoê e a diversos cartõezinhos com felicitações e convites para eventos endereçados a Kyrana. Prestando atenção a este acervo e voltando às definições e normativas 3 Segundo Schütz (2020), que tratou da trajetória intelectual do historiador catarinense Carlos Hum - berto Pederneiras Corrêa, coordenador do projeto supracitado, a iniciativa teve como resultado dois livretos nos quais são elencados aspectos envolvendo as atuações políticas de governantes, bem como a publicação de entrevista realizada com o personagem temas das publicações. Os livretos foram lançados em 1986 e tiveram como figuras centrais os ex-governadores Celso Ramos e Ivo Silveira.
ARTIGOS LIVRES 175 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz construídas a partir da Arquivística, emergiram algumas questões para reflexão. De acordo com a Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados no Brasil, são considerados “arquivos privados os conjuntos de documentos produzidos ou recebidos por pessoas físicas ou jurídicas, em decorrência de suas atividades” (Brasil, 1991). Segundo Heloísa Bellotto, uma das principais referências na área, essa definição dada pela norma toca justamente em uma das características dos documentos arquivísticos, a sua relação com o conjunto ao qual faz parte: sua organicidade. Como tributária desse atributo advém a noção de fundo de arquivo, ou seja, o “aglomerado lógico, estruturado e indivisível, de documentos produzidos por um órgão ou por entidade no decurso de atividades que justificam sua própria razão de ser” (BELLOTTO, 2006, p. 253). Importante destacar, nesse sentido, que o Dicionário de Terminologia Arquivística (1996) considera as noções de “arquivo” – como um conjunto de documentos e não como instituição de guarda - e “fundo” como equivalentes. Sendo assim, à definição proposta por Bellotto podemos acrescentar a questão dos arquivos pessoais, ampliando a noção de arquivo privado, ou o fundo privado acima apresentada, afirmando que ela corresponde ao “conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades , independentemente da natureza do suporte” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996, p. 27, grifo nosso). Tomando essas definições como um parâmetro para observar o Fundo Jorge Lacerda, percebe-se duas inconsistências em relação a forma como é apresentado o conjunto documental abrigado pelo APESC e entendido como um “fundo”. Primeiramente, é possível notar que os documentos lá abrigados representam somente uma parcela dos “documentos produzidos e acumulados” por Lacerda “no desempenho de suas atividades”, pois como já dito, esse conjunto chegou até o Arquivo por intermédio de um projeto de pesquisa, portanto, por um recorte temático já definido anteriormente. Ainda, no que tange a expressão “no desempenho de suas atividades”, há um outro elemento a interrogar: a existência de documentos posteriores ao falecimento de Lacerda, portanto, datados posteriormente a 1958. Esses documentos, por sua vez, diversos telegramas e documentos pessoais têm como titular a viúva de Lacerda. Assim, nesse breve mirada, percebe-se que além da ausência das mulheres da família nos instrumentos de busca relacionados ao fundo, pode-se questionar
ARTIGOS LIVRES 176 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz também a nomenclatura do fundo, que, se fosse levada à cabo a definição acima descrita, não poderia ser denominado um “fundo”, mas sim uma coleção, a qual deveria ter também como titular viúva de Lacerda, Kyrana. Conforme o já mencionado Dicionário de Terminologia Arquivística, uma coleção pode ser definida como um “conjunto de documentos com características comuns, reunidos intencionalmente” (1996, p. 52), assim sendo, o fundo Lacerda, nada mais seria que uma coleção de documentos reunidos intencionalmente com objetivos de pesquisa, “papéis que se pretend[ia] analisar para elaborar trabalhos historiográficos” (BELLOTTO, 2006, p. 253)”, o projeto Registro da Memória Pública . Nesse caminho, portanto, se perderam tanto a organicidade dada por seu titular, bem como, a presença das mulheres, em especial de Kyrana, que por meio de seus papéis nesse conjunto foi percebida. Ao longo dessas longas tardes de “mergulho” nos documentos salvaguardados no APESC, a partir de uma abordagem etnográfica, foi possível tirar dos bastidores do acervo de um homem público e colocar no palco da memória os vestígios de mulheres que orbitavam esse personagem, mas que por conta de injunções sociais tiveram sua atuação subsumida no meio dessa documentação. Como apontam Cerchiaro e Alves (2022), a reflexão sobre os silenciamentos que se operam dentro dos acervos não pode estar desvinculada de processos sociais e políticos mais amplos que definem os espaços de atuação de mulheres e homens. “Assim como a história tradicional privilegiou em suas narrativas grupos e pessoas específicos, os acervos também o fazem em relação à salvaguarda documental” (CERCHIARO; ALVES, 2022, p. 13). Ainda vale destacar, tangenciando os debates que giram em torno daquilo que é guardado e que é “dado a ver”, especialmente ao considerar as políticas de conservação e divulgação de acervos, é possível questionar quais vestígios e agentes culturais recebem prioridade nesses processos. A partir dessa perspectiva, se levanta uma pergunta crucial sugerida por Ana Maria Camargo (2009, p.29): como evitar decisões de salvaguarda fundamentadas em cânones estabelecidos, que tendem a privilegiar aqueles com reconhecimento acadêmico e social? Ao estabelecermos outras prioridades de seleção, levando em conta a transitoriedade dos valores a elas associados, quais seriam as consequências futuras dessa escolha para os campos de preservação e pesquisa que diversas instituições buscam atender? Nesse sentido, quais as repercussões das escolhas tomadas pelo APESC? Dos nove fundos por ele abrigados vemos como titulares
ARTIGOS LIVRES 177 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz apenas uma mulher, Alda Pessi, ainda assim, em segundo plano e compartilhando essa titularidade com seu marido. Doravante esse diagnóstico, pode-se pensar que a lógica seguida pelo arquivo é aquela do reconhecimento público, um movimento que de certa forma, continua a reproduzir no arquivamento a mesma racionalidade do espaço público a ele exterior, o qual historicamente negou às mulheres locais de protagonismo. Porém, essa dinâmica não é exclusiva do APESC e outros exemplos ainda podem ser citados: dos 305 arquivos pessoais mantidos pelo Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, apenas 26 pertencem a mulheres. Na Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde há 88 arquivos pessoais sob a responsabilidade do Departamento de Arquivo e Documentação, somente seis são de indivíduos do sexo feminino (HEYMANN, 2020). Diferentemente do APESC, os arquivos eclesiásticos são considerados ar- quivos privados e, dentro dessa definição, são entendidos como arquivos so - ciais, os quais “abrangem um grande número de arquivos importantes, sobres- saindo-se os religiosos, os notariais e os de movimentos e entidades políticas” (BELLOTTO, 2006, p. 255). No caso brasileiro, como apontado anteriormente, os arquivos religiosos, em certa medida, adquirem um caráter público, dado o valor jurídico dos docu- mentos por eles lavrados no período anterior à Proclamação da República, quan- do não havia no país o registro civil. Dessa forma, esses arquivos também me- receram a atenção da Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que determina em seu Artigo 16 que “Os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência do Código Civil ficam identificados como de interesse público e social”. Portanto, o Arquivo Histórico Eclesiástico tem tanto um caráter público que obriga a Igreja Católica manter esse acervo protegido, mas também tem um caráter privado que permite o controle sobre o acesso à documentação que abriga. É importante ainda não perder de vista, quando se trata de arquivos de insti- tuições religiosas, o controle cuidadoso dessas organizações acerca de informa- ções que remetam a elas, assim é possível perceber que esses arquivos têm uma clara orientação institucional em relação àquilo que é preservado, que é excluído ou que pode ser acessado (EPP, 1990). Além disso, como as instituições religiosas têm seus cargos diretivos formados quase que integralmente por homens, como consequência, há uma maior dificuldade de encontrar vestígios documentais de mulheres junto a essas instituições. Nesse caso, «é preciso então aprender a ler
ARTIGOS LIVRES 178 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz nas entrelinhas” (EPP, 1990, p.167). Algo parecido ocorre com arquivos adminis- trativos do poder público, como é o caso do APESC brevemente analisado acima, como são poucas as mulheres que ascendem a quadros de relevância dentro da estrutura hierárquica da administração pública, é sintomático que menos docu- mentação referente a elas será possível encontrar nos acervos desses arquivos. O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina apresenta essas caracte- rísticas acima descritas: o grande controle sobre informação que pode ser aces- sada, a orientação institucional e a obrigação em dar acesso aos documentos referentes a registros de nascimento, casamento, óbito, por exemplo, que foram produzidos em momento anterior à criação do Código Civil. No caso específico desse arquivo, como já apontado, os documentos mais antigos são um livro de registros de casamentos referente a Paróquia Nossa Senhora do Desterro, que iniciou em 1714 , e um livro de registro de batismo dessa mesma paróquia , iniciado em 1751. Os documentos analisados durante as visitas a esse acervo não eram anti- gos como os acima citados e envolveram objetos documentais, datados entre o início e o final do século XX, referentes a congregações religiosas femininas, ir - mandades religiosas e associações de mulheres católicas. O gênero e a tipologia dos documentos é bastante variada, são cartas, ofícios, livros de contabilidade, livretos, fotografias, convites para eventos, santinhos, lembranças da ordenação de religiosas enviadas ao Bispo Arquidiocesano que estivesse à frente da Cúria no momento, por exemplo. Por se tratar de documentação relativa a organizações basilarmente femininas, é natural que se encontre nesse acervo documentos re- lativos a mulheres, nesse sentido, é relevante destacar que não existe nenhum fundo pessoal que tenha alguma mulher específica como titular. No entanto, par - tindo desse primeiro diagnóstico, foi possível perceber a presença recorrente e o interesse específico acerca da vida de algumas personagens, algo que só foi possível detectar por que se buscou “olhar nas entrelinhas”. Entre as vozes femininas que se destacaram nessa documentação, está a de Madre Benvenuta, religiosa vinda da Alemanha que teve uma atuação marcante na administração e organização da Congregação das Irmãs da Divina Providência em Florianópolis, o que legou a ela, inclusive, o nome de uma das principais ave- nidas da Ilha de Santa Catarina, localizada no bairro Santa Mônica. À vista disso, é interessante pensar que não foi possível localizar nenhum trabalho acadêmico que tangencie a vida dessa religiosa e que pouca coisa sobre sua vida é divul-
ARTIGOS LIVRES 179 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz gada. Como exceções dentro desse cenário , podem ser citadas três reportagens publicadas pelos periódicos virtuais ND Online 4 e NSC Total 5 , nas quais a curiosi- dade pela vida dessa personagem está justamente relacionada à existência de uma rua com o seu nome. De acordo com essas reportagens, o grande terreno que era posse da Congregação e que seria loteado - hoje correspondendo grosso modo ao Bairro Santo Mônica - teria sido um processo que teve como principal intermediadora a própria Madre Benvenuta. Porém, o que mais chama atenção nesses relatos é a presença recorrente de uma religiosa que parece se colocar como “voz autorizada” a falar sobre a vida de Madre Benvenuta: Irmã Enedina Sa- cheti, cenário que remete, mais uma vez, ao controle da informação preconizado nas políticas de instituições religiosas. Nos documentos encontrados no Arquivo Histórico Eclesiástico, a imagem de Madre Benvenuta diverge da representação laudatória trazida por Irmã Ene- dina Sacheti. Entre essas duas narrativas – a oficial e a do arquivo – aquela que se repete é a da sua atuação constante e da formação de uma sólida teia de re- lacionamentos que permitiu entrever sua presença até mesmo em documentos em que ela não estava diretamente envolvida, mas era mencionada. Esses ele- mentos apontam para uma presença marcante de Madre Benvenuta dentro da burocracia e administração da Congregação, mesmo que limitada àquilo que era permitido a uma mulher exercer dentro da hierarquia da Igreja Católica. Nesse cenário, é fundamental coomprender, como afirma Nunes (1985), que no catoli- cismo os homens não são apenas detentores do poder sagrado que faz a media- ção entre o mundo terreno e o divino, mas são ]também as vozes autorizadas que elaboram e reelaboram a narrativa oficial em que se naturalizam padrões sobre o que seria inerente ao mundo feminino e o que pertenceria ao mundo masculino. Outros documentos desse acervo também vão pouco a pouco revelando a presença de diferentes mulheres. Alguns têm caráter biográfico ou trazem dados biográficos de religiosas, que são tomadas pelas próprias congregações como mulheres de destaque e modelos a serem seguidas. Conjuntamente à documen- 4 STROISCH, Bruna. Além das placas: Conheça a história de três mulheres que dão nome a ruas de Florianópolis. ND+ , Florianópolis, 15 nov. 2019. Disponível em: https://ndmais.com.br/noticias/alem-das-placas-conheca-a-historia-de-tres- -mulheres-que-dao-nome-a-ruas-de-florianopolis/ Acesso em: 16 nov. 2023. e PRADO, Windson. Madre Benvenuta: quem foi a religiosa que dá nome a uma das principais vias de Florianópolis. ND+ , Florianópolis, 13 set. 2023.Disponível em: https://ndmais.com.br/cultura/madre-benvenuta-quem-foi-a-religiosa-que-da-nome-a-uma-das-principais-vias-de- -florianopolis/ Acesso em: 16 nov. 2023. 5 MARASCO, Carolina. Rita Maria, Madre Benvenuta e Antonieta de Barros: quem são as mulheres dos locais de Flo- rianópolis. NSC Total , Florianópolis, 6 mar. 2020. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/rita-maria-ma- dre-benvenuta-e-antonieta-de-barros-quem-sao-as-mulheres-dos-locais-de Acesso em: 16 nov. 2023.
ARTIGOS LIVRES 180 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz tação referente a Congregação das Irmãs da Divina Providência, da qual Madre Benvenuta era parte, há certo volume de objetos documentais pertencentes a outras religiosas como Irmã Heriburga, Irmã Emanuelle, Irmã Alina e Irmã Júlia. Há também alguns dossiês com documentos pessoais de duas religiosas: Irmã Bernadette Ingelbeck e Irmã Demétria. Nesses conjuntos referentes às mulheres que seguiram pela vocação reli- giosa é possível visualizar diversos elementos e ações dessas personagens, como por exemplo, aspectos relacionados às necessidades financeiras ou estruturais das congregações, certos conflitos internos e até mesmo uma documentação mais pessoal como cartas e fotografias. Já em relação ao documentos de irmandades religiosas leigas, quando são irmandades mistas, nas quais homens e mulheres são integrantes, as mulheres emergem apenas em funções como zeladoras ou responsáveis pela organização de espaços e eventos. Tais damas têm um maior protagonismo quando se tratam de Ligas ou Legiões de Mulheres Católicas, agremiações que têm somente mu- lheres participantes, como a Associação de Damas de Caridade ou a Legião Irmã Bernwarda, ambas de Florianópolis e formadas por mulheres de classes mais abastadas da cidade. Esses documentos foram importantes para demonstrar o espaço de atuação e quem eram as vozes que agiam nessas coletividades. Conclusão Como se tentou demonstrar ao longo do exposto, a perspectiva abraçada ao longo da análise, com o objetivo de tentar encontrar os vestígios de mulheres sal- vaguardados nos arquivos aqui investigados, apontou para algumas das manei- ras pelas quais as dinâmicas de gênero perpassam os processos de construção da memória. Essas dinâmicas se deram de diferentes modos: seja por meio um silenciamento, caso do Fundo Jorge Lacerda abrigado no APESC, que nos seus instrumentos de pesquisa obliterou a presença das mulheres da família nessa documentação, seja por meio das diferentes mulheres que estavam submetidas a um ambiente onde as relações de poder apontam para um domínio eminente- mente masculino, como é o caso do Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Ca- tarina, espaço no qual não há nem mesmo instrumentos de pesquisa que possam localizá-las.
ARTIGOS LIVRES 181 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz Espera-se que, ao longo dessas “andanças pelos caminhos noite”, tenha se demonstrado a importância de olhar para os arquivos desde suas particularida- des e, principalmente, nas suas entrelinhas, refletindo sobre seus contextos es - pecíficos e analisando as diferentes esferas que operam nas suas construções, conservações e também difusões e que, muitas vezes, deixam silenciadas as vo- zes das mulheres nesses espaços “guardadas”. Aqui foram vistas diversas ativações do arquivo, como sugere Keteelar, ati- vações que trouxeram à superfície os vestígios de algumas dessas mulheres pre- sentes nesses acervos. Porém, não se pode perder de vista que essas ativações são infinitas e que novas visitas a esses arquivos, lançando novos olhares para a documentação que abrigam, poderão trazer à tona outras vozes ainda silencia- das. Como apontado diversas vezes, as instituições arquivísticas refletem dinâ - micas de poder, assim sendo, o silêncio e a invisibilidade de determinados temas ou pessoas são produtos de operações que não são neutras e inferem diretamen- te na construção de acervos. Por meio da interrogação dessas dinâmicas, é pos- sível abordar questões como a negociação entre memória e esquecimento, a luta por reconhecimento e prevalência de certos interesses coletivos em detrimento de outros. Em um contexto em que as vozes femininas são frequentemente si- lenciadas, muitas vezes de maneira coercitiva e violenta, destaca-se a importân- cia dos processos de arquivamento de suas experiências como personagens his- tóricas, assim como o papel desempenhado pelas instituições de memória, que nas suas políticas determinam, por exemplo, quais os arquivos estão dispostas a receber, salvaguardar e tornar disponíveis. Por fim, reitera-se que as linhas aqui descritas e o projeto de pesquisa do qual elas são recorte, pretendem se articular às preocupações recentes que de- terminadas instituições arquivísticas no país têm no sentido de valorizar acervos femininos, tanto por meio do processamento e aquisição de arquivos de mulhe- res, quanto através de projetos de difusão de fundos dessas titulares. O debate ainda está em curso e, claro, não se esgota na presente análise. Existem ainda muitas narrativas tácitas a serem tiradas da escuridão.
ARTIGOS LIVRES 182 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz Referências ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Catálogo fundos privados APESC, 2018. Florianópolis: Secretaria de Estado da Administração, 2018. 43 p. Disponível em: https:// acervo.arquivopublico.sc.gov.br/uploads/r/arquivo-publico-do-estado-de-santa-catarina/4/ f/8/4f87b36317445bd4df97be63978f64388272a3b29f242b3996d08e0e902e16a7/CATALO- GO_DOS_FUNDOS_PRIVADOS.pdf Acesso em: 01 nov. 2023 BRASIL. Lei nº 8.159, de 11 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos pú- blicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, n. 08, 11 jan. 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Leis/L8159.htm. Acesso em: 16 nov. 2023. CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloísa Liberalli (Org.). Dicionário de termino - logia arquivística . São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996. CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos pessoais são arquivos. Revista do Arquivo Públi - co Mineiro, Belo Horizonte, n. 2, p. 26-39, jul./dez. 2009. Disponível em: http://www.siaapm. cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/2009-2-A02.pdf Acesso em: 04 out. 2023. CERCHIARO, Marina; ALVES, Carolina. Mulheres, histórias e arquivos. História e Cultura, Fran- ca, v.11, n.1, jul/2022, p. 15-21. Disponível em: https://periodicos.franca.unesp.br/index.php/ historiaecultura/article/view/3689 Acesso em: 16 nov. 2023 DEBATIN, Terezinha. Secretaria de Estado da Administração, Santa Catarina. Apresentação de Slides. Disponível em: https://docplayer.com.br/6178075-Arquivo-publico-do-estado-de- -santa-catarina-expectativas-e-horizontes-da-arquivologia-em-santa-catarina.html Acesso em: 01 nov. 2023. DIBRARQ. Arquivo Nacional , Arquivo Histórico e Eclesiástico de Santa Catarina. Disponível em: https://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/arquivo-historico-eclesiastico-de- -santa-catarina ). Acesso em: 02 nov. 2023. EPP, Marlene. Women’s History and Mennonite Archives. Archivaria , Londres, v. 3, p.167-170, jan. 1990. HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: HEYMANN, Luciana; TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joëlle (Org.). Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 67-77. KETELAAR, E. Tacit narratives: the meanings of archives. Archival Science , v. 1, n. 1, p. 131- 141, 2001. HEYMANN, Luciana Quillet. A invisibilidade dos arquivos femininos: entrevista com Luciana Quillet Heymann (Entrevista feita por Cristiane d’Avila). In : Café História – história feita com cliques. Publicado em 16 de março de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ entrevista-com-luciana-heymann/ . Acesso em: 20 out. 2023.
ARTIGOS LIVRES 183 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Karla Simone Willemann Schütz LEVI, Giovani. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 133-161. MEMÓRIA POLÍTICA DE SANTA CATARINA. Biografia Jorge Lacerda . 2023. Disponível em: <https://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/biografia/1244-Jorge_Lacerda>. Acesso em: 08 de novembro de 2023. NUNES, Maria José F. Rosado. Vida Religiosa nos meios populares . Petrópolis: Vozes, 1985. PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História , São Paulo, v.9, n. 18, ago./set. 1989. REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. SECRETARIA DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO. Secretaria de Estado da Administração , 2023. Sobre o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Disponível em: https://www.sea. sc.gov.br/arquivo-publico/sobre-o-arquivo/ Acesso em: 01 nov. 2023. SOUZA, Luiza M. K.; SILVA, Eva C. L. Arquivo Permanente: a gestão do patrimônio documental no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Ágora , Florianópolis, v. 24, n. 48, p. 260-283, 2014. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Mulheres, arquivos e memó- rias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros , São Paulo, n. 71, dez. 2018. SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Um historiador entre-lugares: a historiografia catarinen - se e a trajetória de Carlos Humberto Pederneiras Corrêa (1963-2010). 2020. 266 p. Tese (Dou- torado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educa- ção, Doutorado em História, Florianópolis, 2020. Disponível em: http://sistemabu.udesc.br/ pergamumweb/vinculos/000082/00008214.pdf
PRINCÍPIOS 184 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão OS IDEAIS NORTE-AMERICANOS E O PERIGO VERMELHO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO HOMEM DE FERRO (MARVEL) E DO LANTERNA VERDE (DC COMICS) THE NORTH-AMERICAN IDEALS AND THE RED MENACE IN THE COMIC BOOKS OF IRON MAN (MARVEL) AND GREEN LANTERN (DC COMICS) https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20106 Luís Eduardo dos Santos Universidade Regional de Blumenau (FURB) https://orcid.org/0009-0007-9463-7377 luis.dudu.santos@gmail.com Leonardo Brandão Universidade Regional de Blumenau (FURB) https://orcid.org/0000-0001-8306-1092 leobrandao@furb.br Recebido em 24 de janeiro de 2024 Aprovado em 23 de março de 2024 RESUMO: Este artigo, escrito no campo da História Cultural, utiliza-se das Histórias em Quadrinhos de super-heróis para se pensar a Guerra Fria, conflito ideológico que marcou a segunda metade do século XX. O objetivo é comparar dois gibis que, cada qual a sua maneira, dialogaram com este fato histórico, com um publicado pela Marvel e outro pela DC Comics. Concluiu-se que ambas as revistas se inseriam e fomentavam um imaginário social ligado ao anticomunismo e ao poder bélico, ambos valores dominantes nos Estados Unidos do período. Palavras-chave: Guerra Fria; Imaginário; Histórias em Quadrinhos ABSTRACT: This article, written in the area of Cultural History, employs superhero comic books to reflect on the Cold War, an ideological conflict that characterized the second half of the 20th century. The aim is to compare two comic books, each in its own way, engaging with this historical event, one published by Marvel and the other by DC Comics. It was concluded that both publications inserted themselves into and fostered a social imaginary linked to anti- communism and military power, both dominant values in the United States during that period. Key words: Cold War; Imaginary; Comic Books
PRINCÍPIOS 185 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Introdução ​Ao pensar o século XX, um marcante e extenso fator surge de forma predo- minante nos anos que o compõe: a Guerra Fria, conflito ideológico entre a União Soviética e os Estados Unidos. Ela tem seu início pouco tempo após a derrota da Alemanha, quando Josef Stalin buscava “reivindicar territórios antes alemães para a União Soviética, assim como garantir a constituição do império “externo” na Europa central e oriental” (PONS, 2008, p. 100), enquanto o novo presidente norte-americano Harry Truman colocava à prova a soberania norte-americana no mundo em relação ao armamento nuclear e as possíveis áreas de influência na Europa, já que no momento e “pela primeira vez na história, o tamanho do poder militar de um país não era mais condicionado pelo tamanho de seus exércitos” (TOTA, 2009, p. 176). Esse conflito de interesses por territórios de comando culminou em uma conferência realizada em Potsdam, na Alemanha, dos dias 17 de julho a 02 de agosto de 1945, onde foi definido que a Alemanha ficaria dividida em quatro par - tes: uma norte-americana, uma soviética, uma francesa e uma inglesa, sendo que “a partir dessa nova confrontação de forças, as potências capitalistas pas- saram ao enfrentamento com a URSS” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 15), visto que tanto a França quanto a Inglaterra foram beneficiadas com as políticas de apoio dos Estados Unidos para a reconstrução da Europa. É nesse período em que o medo instaurado de uma possível infiltração soviética em território norte-americano era um fator constante. A criação de um espaço governamental, conhecido desde o final da Segunda Guerra Mundial por Comitê de Atividades Antiamericanas, mostrava a preocupação de governantes estadunidenses com um suposto avanço silencioso por parte dos soviéticos, sendo, a partir de 1950, instaurado uma “caça às bruxas”, com um comitê assumido pelo senador Joseph McCarthy, inaugurando assim o chamado macarthismo. Para esse senador, as “bruxas” eram consideradas os supostos comunistas norte-americanos ou apoiadores do regime soviético, levando muitos cidadãos norte-americanos a serem exilados do país, mesmo que por falsas acusações. Anos depois, após a crise dos mísseis cubanos e o fracasso da manuten- ção pacífica entre as superpotências, a chegada ao poder de um novo presiden -
PRINCÍPIOS 186 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão te norte-americano com uma rigorosa política externa anticomunista, inaugura o período conhecido por “Nova Guerra Fria”. Ronald Reagan, antes de tornar-se presidente e “na condição de ator de cinema, colaborou (assim como outros) com o FBI e o Comitê de Atividades Antiamericanas, delatando vários colegas e parti- cipando de “campanhas patrióticas”” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 33). Utilizando-se da “oratória pública” (GADDIS, 2007, p. 214) como um grande aporte da sua polí- tica, o presidente voltou seus esforços para a revitalização de uma “autoridade social” (PURDY, 2007, p. 55), comandando a superpotência norte-americana até 1989, quando encerrou o seu segundo mandato. Em paralelo, após a ascensão de Mikhail Gorbachev como dirigente da URSS em 1985, foi elaborado um proje- to que baseava-se em longas reformas, acabando em resultar em ideias como a Perestroika (reestruturação) que seria implantado juntamente com uma propos- ta de abertura política ( Glasnot )” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 71). Essa reformulação do sistema da URSS acabaria por levar ao seu fim em 1991, pouco tempo após a queda do muro de Berlim (maior símbolo da Guerra Fria), marcando os Estados Unidos como “vencedores” do conflito. Durante todos os períodos da Guerra Fria, um recorrente fator foi a tentativa de criar um imaginário social que pudesse servir aos valores de cada nação. Para o filósofo Bronislaw Bazcko ( 1985, p. 297), “as ciências humanas punham em des- taque o facto de qualquer poder, designadamente o poder político, se rodea de representações colectivas. Para tal poder, o domínio do imaginário e do simbóli- co é um importante lugar estratégico”. Dessa forma, é possível interpretar que os agentes responsáveis (nas posições governamentais e detentoras de meios de produção) agiam com o financiamento de produtos a serem consumidos pelas massas, buscando a formação do imaginário via suas práticas discursivas. No caso norte-americano, a importância da continuidade de um sistema anticomunista ultrapassou a esfera política, adentrando os meios culturais por diversas vias. No cinema hollywoodiano, o filme War Hunt de 1962 ( dirigido por Denis Sanders, roteirizado por Stanford Whitmore) já trazia elementos exaltando a ação militar norte-americana na Guerra da Coréia, idealizando e justificando o papel dos Estados Unidos na intervenção e no combate aos núcleos de caráter socialista. Décadas depois, filmes como “Rambo: programado para matar ( First Blood , 1982), Rambo II: a missão ( First Blood – Part II , 1985) e Rambo III (Rambo III, 1988) representaram um conjunto de idéias que encontraram eco na sociedade estadunidense na década de 1980” (SILVA, 2009, p. 3), em relação ao papel do país
PRINCÍPIOS 187 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão na contenção comunista do Vietnã. Não muito distante desse universo cinematográfico, as Histórias em Quadri - nhos (HQs), também fizeram parte da formação de um imaginário social. Tanto na criação de personagens como o Homem de Ferro, um personagem originalmente anticomunista que “estava sempre disposto a sair em defesa do bloco capitalis- ta, comandado pelos EUA” (SANCHES, 2021, p. 74), quanto na reformulação de outros personagens mais antigos, como o Lanterna Verde, agora um policial es- pacial “que era alinhado com os com ideais patrióticos - que prende criminosos e ajuda a polícia” (KRAKHECKE, 2009, p. 66), serviram-se de enredos que tentavam utilizar de um imaginário social que visava fortificar os valores norte-americanos em relação a suposta ameaça comunista 1 . Por tratar-se de uma fonte documental que compõe um amplo merca- do e altos níveis de circulação, torna-se necessário estabelecer um recor- te editorial no ramo das Histórias em Quadrinhos de super-heróis norte-a- mericanos, delimitam-se as duas principais editoras da área: a Marvel e a DC Comics, abrindo assim, uma possibilidade de comparação entre as formas com as quais essas empresas representavam os valores da nação nesse pro- cesso de formação de um imaginário em parte de suas publicações que fa- zem referência direta a Guerra Fria, voltadas para as temáticas da corrida armamentista e da construção da imagem do soviético, selecionando enre- dos dos personagens que surgiram durante a Guerra Fria, o Homem de Ferro (Marvel) e Lanterna Verde (DC Comics), por como visto, compartilharem alguma similaridade prévia relacionada a este conflito. Breve síntese dos quadrinhos-fonte Antes de realizar as análises pretendidas, torna-se necessário proceder com uma síntese das Histórias em Quadrinhos que serão utilizadas como fonte para esta pesquisa. Constituem as histórias selecionadas, para fins de compa - ração entre as editoras, a The Green Lantern Corps (números 209 e 210 de 1987, produzidas por Steve Englehart e Joe Staton) para representar a DC Comics , e a 1 Não ignoramos aqui a ideia um “contra-imaginário”, constituído, como por exemplo a HQ Watchmen de Alan Moore, que criticava as ações norte-americanas em relação a Guerra Fria. (BA - CZKO, 1985, p. 301).
PRINCÍPIOS 188 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Iron Man Volume 1 (números 315, 316 e 317 de 1995, produzidas por Len Kaminski e Tom Morgan) representando a Marvel . Importante ressaltar que, em ambas as histórias, ocorre a participação de personagens da vida real da época, dando destaque para líderes políticos, como Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev. A premissa do enredo do Lanterna Verde tem como base dois grupos de per- sonagens da tropa, um nos EUA dialogando com Reagan e outro na URSS, dialo- gando com Gorbachev. O primeiro discute a possibilidade de uma intervenção em solo soviético caso os Lanternas lá se voltem contra os EUA, enquanto o segun- do, debate as diferenças dos sistemas capitalista e socialista, esse que recen- temente, havia ganhado uma nova frota de soldados com auxílio de tecnologia alienígena, equiparando-se ao poder dos Lanternas. O conflito esquenta e uma terceira guerra mundial, dessa vez nuclear, quase ocorre por conta de ações da URSS, mas é evitada graças aos Lanternas que estavam nos EUA. Para o Homem de Ferro e seu alter ego Tony Stark, o enredo desenvolve-se em uma Rússia que havia deixado de ser soviética há apenas alguns anos. O herói vai até o país abrir uma filial de sua empresa e encontra-se com Gorbachev e com o presidente Boris Iéltsin. No evento, um ataque do Homem de Titânio (inimigo soviético que havia enfrentado o herói durante vários períodos da Guerra Fria) ocorre, visando vingar o sistema derrotado. É então que dois heróis russos (antes inimigos), a Viúva Negra e o Dínamo Escarlate aparecem para auxiliar Stark no confronto contra seu inimigo. O aspecto armamentista das superpotências da Guerra Fria nas HQs Fator recorrente durante os anos iniciais da Guerra Fria, o medo de uma Guerra Nuclear como terceira Grande Guerra é um dos frutos do final da Segunda Guerra Mundial e início da década de 1950, quando tais armamentos avançaram de forma significativa, de modo que “ gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento, e devastar a humanidade” (HOBSBAWM, 1995, p. 174). Orival- do Biagi (2004, p. 89), ao estudar o imaginário social que constituí a Guerra Fria, aponta o medo de uma terceira Guerra Mundial como parte da construção desse imaginário, pois tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética procuravam “ter os arsenais nucleares mais numerosos e de tecnologia mais avançada”.
PRINCÍPIOS 189 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Para início das comparações sobre a questão do armamento, observemos algumas das capas das edições analisadas. Respeitando uma ordem cronológica de lançamento, inicia-se pela Tropa dos Lanternas Verdes: Figura 01 - Capa de The Green Lantern Corps 209 Fonte: DC Comics. 1987 ​A capa da publicação referente a tropa dos Lanternas Verdes, que apresen- ta em seu canto superior direito o selo regulamentador da Comics Code Authority (conhecido por CCA, trata-se de um Conjunto de regulamentações autoimpostas pelas editoras após a publicação da obra Seduction of the Innocent, de Fredric Wertham em 1954), também demonstra alguns interessantes elementos sobre uma ideologia armamentista que vigorava no período. A predominância da cor vermelha, além de ser a cor símbolo da URSS, também pode ser visto como uma alusão ao red scare das décadas anteriores, isto é, um medo de uma invasão co- munista na liberdade norte-americana, uma vez que os norte-americanos “en- xergavam no comunismo soviético uma nefasta negação da liberdade e da indivi- dualidade” (TOTA, 2009, 177). A expressão Red Dawn 2 - exposta para leitura no lado direto desta capa - também viabiliza um suporte para tal afirmação, sendo uma 2 Em tradução livre: Alvorecer Vermelho.
PRINCÍPIOS 190 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão projeção sobre o medo de um amanhecer com as cores inimigas atacando. Por sua vez, a capa da edição referente a história da Marvel Comics: Figura 02 – Capa de Iron Man Volume 1 315. Fonte: Marvel Comics, 1995 ​Para a Marvel, os meados da década de 1990 foram comprometedores, pois em questão de departamento de vendas, “há meros cinco anos respondia por 90% das vendas, agora representava apenas um terço dos negócios” (HOWE, 2013, p. 372). Como uma estratégia para tentar levantar os números de vendas, a editora inicia um processo de reutilizar personagens antigos. Temos então o retorno de personagens como Homem de Titânio em uma série que perdurava desde 1968. Na capa, no mesmo canto superior direito, é possível novamente verificar a pre - sença do selo regulamentador da CCA, mesmo 40 anos após sua criação. Talvez por ser publicada em um período pós-Guerra Fria, há uma menor presença das cores vermelhas inimigas, estratégia também para ressaltar a importância do herói presente na capa. Entretanto, vemos os olhos vermelhos do inimigo sovié- tico, uma possível alusão ao red scare . O balão de texto demonstra uma intenção ameaçadora e vingativa do personagem que não aceitou o final da URSS 3 . 3 Em tradução livre: “A pátria Russa caiu, Homem de Ferro, mas o Homem de Titânio vive para destruir você!”
PRINCÍPIOS 191 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Ambas as capas das publicações, mesmo com o distanciamento temporal de lançamento de oito anos, demonstram certas similaridades. A posição de grandeza e superioridade de um inimigo soviético trajando uma armadura tecno- lógica, alusão ao poder bélico da União Soviética, perdurou mesmo após o final da Guerra Fria, com uma continuidade até os dias atuais, pois o elemento é exa- tamente o mesmo presente tanto na história do Lanterna Verde de 1987, quanto na do Homem de Ferro de 1995, assim como uma primeira impressão de inferio- ridade norte-americana, ao ter ambos os heróis subjugados. As duas capas con- tam também com frases de cunho ameaçador pelo lado soviético, retomando um espírito macarthista dos primeiros anos, com um “fenômeno da sociedade nor- te-americana onde o Medo da Expansão Comunista foi utilizado intensamente” (BIAGI, 2004, p. 80) agindo no imaginário social. No decorrer do enredo do Lanterna Verde, temos a situação em que o herói simpatizante do sistema soviético descobre a traição de Gorbachev e o seques- tro de seus colegas: Figura 03 - Kilowog confronta Gorbachev em The Green Lantern Corps 210. Fonte: DC Comics. 1987 Na situação, a menção ao armamento se dá pela fala de um personagem, de- monstrando a sua prevalência até quando não é o foco do quadro. Ele também se relaciona mais intimamente com a questão da imagem do soviético em si, demo- nizada como alguém pronto para agressividade. Nas representações soviéticas, não é difícil notar como um ferrenho anticomunista os percebia, como indivíduos preparados para utilizar o elemento nuclear não como uma autodefesa, mas um ataque direto, reforçando assim, as tensões que gerariam o nome de Guerra Fria. ​Também no outro quadrinho, quando esse apresenta o confronto entre Tony Stark (com a armadura do Dínamo Escarlate) e o Homem de Titânio, temos uma situação similar.
PRINCÍPIOS 192 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Figura 04 –Dínamo Escarlate e Homem de Titânio em Iron Man Volume 1 317. Fonte: Marvel Comics. 1995 Conversando em russo, o Homem de Titânio assume a posição de não se preocupar com os inocentes, mesmo o povo russo, denominando a si mesmo de Boris the Merciless 4 . Essa afirmação liga da mesma forma o aspecto armamen - tista à figura íntima do soviético, com o personagem afirmando ser impiedoso mesmo antes de receber sua armadura soviética, sendo assim, como muitos an- tes dele, “representado como uma pessoa maquiavélica, disposta a difundir o co- munismo pelo mundo e a derrotar os Estados Unidos” (SANCHES, 2021, p. 74) ao atacar uma inauguração das indústrias Stark. O belicismo da Guerra Fria, aqui expresso tanto na questão de uma armadu- ra tecnológica quanto na vívida experiência nuclear, constituem uma parte im- portante do imaginário, mesmo que hoje saibamos que “o confronto real entre as duas ditas superpotências era praticamente impossível” (KRAKHECKE, 2009, p. 13). A realidade contemporânea da época era de que algo assim poderia aconte- cer, e ter isso representado tanto durante, quanto após a Guerra Fria, certamen- te possa ter gerado uma atividade na imaginação populacional. Por fim, no final de ambos os enredos, temos uma efetiva ação armamentis - ta acontecendo em grande escala: 4 Traduzido pela editora Abril como Boris, o impiedoso.
PRINCÍPIOS 193 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Figura 05 – Mísseis soviéticos em The Green Lantern Corps 210. Fonte: DC Comics. 1987 Gorbachev realmente lança seus característicos mísseis com estrelas ver- melhas, com o destino sendo os Estados Unidos. É perceptível a escala da amea- ça ao observar o tamanho dos mísseis, pois comparados com os super-policiais espaciais presentes, os Lanternas Verdes, podemos ver a razão de todos os nor- te-americanos estarem preocupados. Além disso, se observamos as falas dos Lanternas, até mesmo dos alienígenas, é possível observar que nem mesmo eles acreditam que o ataque direto foi de fato realizado, indo contra a principal regra da Guerra Fria. ​Já no confronto entre Dínamo Escarlate e o Homem de Titânio, temos a seguinte situação:
PRINCÍPIOS 194 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Figura 06 –Dínamo Escarlate atacando em Iron Man Volume 1 317. Fonte: Marvel Comics. 1995 Por mais que seja Tony Stark na armadura, quem controla o ataque da base central é Shatalov, o próprio Dínamo Escarlate. A armadura atual do Dínamo é uma armadura russa, e não soviética, pois recebe ordens dos militares pós-so- cialismo. É perceptível que, com o final da Guerra Fria e a adoção do capitalismo pelos russos, a armadura passou a se assemelhar mais com a tecnologia norte- -americana (basta olharmos para o próprio Homem de Titânio para comparar), assim como o armamento principal usado por ela: esse o raio de propulsor em seu centro, característica do Homem de Ferro. Com tais comparações sobre o armamento tendo sido feitas, é possível rea- lizarmos uma análise voltada para os elementos referentes aos valores culturais impressos nas páginas das Histórias em Quadrinhos em questão, pois Bazcko (1985, p. 307) relaciona a produção de tais aspectos com o imaginário, sendo que a “vida social é produtora de valores e normas e, ao mesmo tempo, de sistemas de representações que as fixam e traduzem”. Iniciando pelos personagens, temos que ambos os heróis representariam um modelo para o cidadão norte-americano, que se identificaria mediante a lei - tura da HQ, principalmente relacionado ao aspecto bélico posto nas histórias, na medida em que ocorre o enfretamento do inimigo soviético a qualquer custo, onde há também uma certa similaridade, sendo o inimigo um cidadão soviético que utiliza-se de uma armadura de alta tecnologia para o combate.
PRINCÍPIOS 195 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão A construção da imagem do soviético nas HQs do Homem de Ferro e do Lanterna Verde Na análise das Histórias em Quadrinhos em questão, outro fator a ser notado é a representação da imagem ligada ao soviético nos enredos. Se levado em con- sideração o maniqueísmo que se desenvolvia durante toda a Guerra Fria, era bus- cado criar uma representação não só da União Soviética, mas também de seus habitantes. Dessa forma, o historiador Alexandre Valim (2010, p. 44) descreve uma comparação entre a representação soviética norte-americana e a compa- ração do império romano em relação aos “bárbaros”, indicando que a mídia nor- te-americana, ao tratar dos soviéticos, “frequentemente descrevia estes como bárbaros que estariam à espreita preparados para qualquer chance de infiltração pelas frestas das defesas do Império”. Biagi (2004, p. 65), ao comentar sobre a construção do imaginário da Guerra Fria, estabelece que “a “criação” do inimigo soviético foi essencial para poder convencer o Congresso norte-americano da necessidade de uma política externa agressiva e participativa, pois os riscos da expansão comunistas eram muito grandes - mesmo não existindo, de fato, tais riscos”. Filmes, séries, jogos, quadrinhos, dentre outros elementos do cotidiano norte-americano passaram a fazer parte dessa representação dos inimigos so- viéticos e vigorar na imaginação social. Perto do início dos enredos, um dos primeiros soviéticos a ter destaque em sua representação é Vladimir Ilyich Ulianov, conhecido pelo apelido Lenin, antigo revolucionário comunista e ex-chefe soviético, considerado um dos mais impor- tantes revolucionários russos. No enredo do Lanterna Verde, temos uma partici- pação pictórica de Lenin, representado na forma de um quadro, no gabinete de Gorbachev:
PRINCÍPIOS 196 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Figura 07 – Vladimir Lenin em The Green Lantern Corps 209. Fonte: DC Comics. 1987 A cena é desenhada em um plano geral (enquadramento de desenho que realça o cenário, optando por um desfoque dos personagens para determinar o local e o período), tática comum na produção de quadrinhos. O destaque a Lenin é dado dentro de um aspecto superior, evocando uma autoridade e uma espécie de culto para sua figura e personalidade. Interessante é que pondo em perspectiva o neoliberalismo norte-americano durante a Era Reagan, percebemos uma demonização de seus opositores de esquerda, que “junto com a tradição marxista, é considerada velha e ultrapassada pelas ideologias dominantes” (CASTELO, 2020, p. 2). Tal quadro pode induzir a uma interpretação do imaginário dos leitores o quanto as políticas soviéticas estavam ultrapassadas, cultuando tais imagens em seu sistema. O quadrinho também mostra uma URSS necessitando de ajuda externa para aprimorar sua tecnologia, com Gorbachev agradecendo Kilowog pelo auxílio com seus soldados, ressaltando mais um aspecto ultrapassado da URSS. No enredo do Homem de Ferro, temos uma outra situação envolvendo não só a imagem, como os restos mortais de Lenin, em uma página completa sendo dedicada para isso:
PRINCÍPIOS 197 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Figura 08 – Vladimir Lenin em Iron Man Volume 1 315. Fonte: Marvel Comics. 1995 Nos quadros, o Homem de Titânio, triste pelo final da URSS e do sistema socialista soviético, visita o Mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, em Moscou. Na cena, acompanhamos o personagem enquanto relembra eventos importantes para a URSS, como a Revolução Bolchevique e a vitória na Segunda Guerra Mundial, e lamenta os desfechos desses acontecimentos, como a grande quantidade de mortos na Grande Guerra Patriótica (nomeação soviética para a Segunda Guerra Mundial), muito utilizada pelos russos para ressentimento de recordações do passado, pois “à medida que a guerra se afasta em direção ao passado, a memória sobre esse evento torna-se mais intensa e sobretudo mais emocional” (RODRIGUES, 2022, p. 340) , além da contaminação das pessoas pelos hábitos capitalistas na nova Rússia pós-socialismo. O personagem tece comentários sobre assassinatos, prostituição, desalojamento e sobre a figura de Vladimir Volfovich Zhirinovsky (político e advogado russo que concorrera nas
PRINCÍPIOS 198 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão eleições presidenciais do país em 2012, tendo sido fundador e líder do Partido Liberal Democrata da Rússia), com seus ideais considerados fascistas acerca do futuro da nação. Nessa ocasião, a figura de Lenin é colocada como uma forma de consolo para as mágoas do personagem, com o soviético falecido se desvinculando da imagem demonizada que seus sucessores carregaram nas representações norte-americanas. As duas editoras, ambas capitalistas norte-americanas, tecem suas repre- sentações de um dos mais famosos líderes comunistas com dedicações muito distintas, seja no espaço dedicado (um quadro ou uma página completa) ou na sua posição colocada (alguém extremamente cultuável ou um consolo para res- sentimentos). Os dois enredos se passam na mesma cidade, mas apenas um se dispõe a mostrar o monumento dedicado para Lenin (sendo justamente o que se passa após o final da URSS). A população soviética também marca presença nas HQs. Temos no Lanterna Verde, a seguinte situação: Figura 09 – População soviética em The Green Lantern Corps 209. Fonte: DC Comics. 1987. ​Durante o sequestro dos Lanternas Verdes que questionaram Gorbachev, podemos ver a posição em que o cidadão comum soviético é colocado, assim como as ações dos soldados soviéticos em armaduras. Essa representação de opressão estatal, vista nas feições e cores usadas para definir o papel da popu - lação soviética que havia presenciado o ataque aos Lanternas, acompanhados pela fala do soldado que diz, mesmo ao ar livre, de que ninguém havia visto nada,
PRINCÍPIOS 199 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão denota mais uma vez uma ideologia que supostamente seria “baseada na demo- cracia, na liberdade de direitos individuais e na independência” (VALIM, 2010, p. 53) tão defendida pelos norte-americanos e por consequência impraticável no socialismo. No enredo que envolve o Homem de Titânio, é exposta uma situação mais específica: Figura 10 – Conversa em russo em Iron Man Volume 1 316 Fonte: Marvel Comics. 1995 ​No quadro, temos a situação que mais se aproxima de uma representa- ção da população russa/soviética em todo o enredo. O vilão soviético menciona que o povo russo já teve o bastante de uma experiência ditada por estrangeiros (se referindo ao capitalismo e as intervenções norte-americanas durante toda a Guerra Fria). O personagem também justifica suas ações em um âmbito de pre - servar a nação mãe caída, que havia sofrido muito na Segunda Guerra Mundial, levando em consideração que “a criação do inimigo soviético foi essencial para poder convencer o congresso da necessidade de uma política externa agressiva e participativa, pois os riscos da expansão comunistas eram muito grandes” (BIA- GI, 2004, p. 65), mesmo que infundados. Nessas ocasiões analisadas, vemos uma distinção nas representações do soldado russo como parte da população soviética. Enquanto o Homem de
PRINCÍPIOS 200 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Titânio clama ser parte do “nós”, sendo esses o povo derrotado e forçado ao capitalismo, os Sovietes Supremos do Lanterna Verde abordam uma visão de superioridade para sua população, voando sobre elas com os capturados. Interessante é reparar como os dois personagens não diferem tanto em seus papéis, ambos são soldados russos que se utilizam de armaduras tecnológicas para sustentar uma manutenção/retorno do sistema socialista. De certa forma, as duas representações levam a um mesmo fator do imaginário social, o de que os soviéticos teriam certo “conformismo social” (VALIM, 2010, p. 44), com uma situação sendo perante a tirania estatal, e a outra um retrocesso para os tempos que eram socialistas. ​Para última comparação, cabe trazer parte do desfecho das duas histórias, por também partilharem de elementos pertinentes na construção do soviético, vez que em ambas, o inimigo de armadura é morto: Figura 11 – Kilowog lamenta a morte de seu amigo em The Green Lantern Corps 210. Fonte: DC Comics. 1987 ​Na HQ do Lanterna Verde, Gardner aparece dizendo que salvou seus cole- gas dos cientistas soviéticos e que Kilowog compreendia a verdadeira face so- viética, enquanto Jordan esclarece que impediram a Terceira Guerra Mundial de acontecer. Nesse momento, o Lanterna Guy Gardner diz que não existiu nenhuma
PRINCÍPIOS 201 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão glória ao se usar mísseis, sendo rebatido por seu companheiro dizendo que era um clichê da guerra, e citando outro muito importante para o contexto, proferin- do que War is hell 5 , se referindo a necessidade de Kilowog em matar o seu amigo, em nome de uma ideologia soviética, representada de uma forma maligna e trai- çoeira. O Homem de Titânio encontra um destino semelhante nas páginas do Ho- mem de Ferro: Figura 12 - A morte do Homem de Titânio em Iron Man Volume 1 316. Fonte: Marvel Comics. 1995 ​Ao combater Tony Stark usando a armadura do Dínamo Escarlate, que bus- cava revigorar o orgulho russo, o vilão é morto em um ataque proferido pelo seu ex-companheiro, sem que Stark tivesse o controle da armadura. O Homem de Titânio tem como suas últimas palavras (por alguma razão, em inglês) Papa? I’m Cold 6 , possível paralelo entre seu fim de vida e o clima russo com o qual passou 5 Traduzido pela editora Abril como “Nenhuma guerra vale a pena”. 6 Traduzido pela editora Abril como “Papa? Estou com frio”.
PRINCÍPIOS 202 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão toda sua existência, enquanto a luz de seus olhos literalmente vai se apagando quadro a quadro. É possível também ver Stark arrependido do desfecho que o conflito teve, chegando a indagar o Dínamo original posteriormente, pois teria sido responsável por eliminar um ex-companheiro de equipe. Considerações Finais ​Ambos os enredos representam um supersoldado soviético de armadura morto por alguém que consideravam um companheiro, que já havia acreditado na mesma ideologia política que eles. Os arrependimentos, tanto de Gardner quanto de Stark, relembram a imagem de um norte-americano “bom samaritano” (TOTA, 2009, p. 182), construído durante toda a Guerra Fria para justificar suas ações no mundo, levando isso para outros países com o American Way of Life , um campo de “disputa entre diversas culturas políticas que, por sua vez, são compostas por um conjunto de subculturas ligadas, por exemplo, à religião, à economia e ao anticomunismo” (VALIM, 2010, p. 40), propagado para os países que possuíam zonas de influência norte-americana por meio de veículos midiáticos e culturais, como o próprio quadrinho, fazendo assim parte de um imaginário social em grande escala, pois configura “uma linguagem narrativa com características próprias e cuja penetração e influência na sociedade contemporânea é inegável” (BERNARDO, 2006, p. 2). É representado que, mesmo após a Guerra Fria, os que se intitulam de soviéticos continuam a falecer em nome de uma ideologia que idealizavam, carregada por uma representação imaginária de antagonismo e tirania, essa apontada por Biagi (2004, p. 63) como supostamente construída para ser “abertamente dedicada à destruição da sociedade “burguesa” tradicional”. A imagem de Lênin, presente em ambas as histórias, assume, como visto, diferentes papéis em termos representativos. Na HQ do Lanterna Verde, sua função se exerce em um nível mais discreto, colocado como um quadro no gabinete do chefe de Estado. Já na HQ do Homem de Ferro, ela exerce uma função consoladora para o patriotismo do Homem de Titânio, o qual compadece de angústias e medo da abertura da Rússia para o capitalismo ocidental. Outra divergência feita é a representação da população socialista, onde no enredo referente ao Homem de Ferro é auto incluso o supersoldado Homem de
PRINCÍPIOS 203 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Titânio (contradizendo-se mais tarde ao se referir a si mesmo como impiedoso com inocentes), enquanto nos tempos de Guerra Fria do Lanterna Verde, existe uma clara diferença entre os supersoldados e o povo soviético. Esse fator pode se dar devido a visão tirânica que os EUA buscavam representar do governo soviético, demonstrado como autoritário e manipulador da liberdade das pessoas. Uma aproximação feita é no desfecho dos enredos, pois em ambos não é um norte-americano quem mata o supersoldado soviético. No Lanterna Verde, quem finaliza a HQ é o alienígena Kilowog, enquanto no Homem de Ferro, quem aciona a arma é o russo Valentin Shatalov. Esses acontecimentos podem ser ligados ao imaginário representado pelo American Way of Life , de uma forma que na reta final da Guerra Fria e após ela, não seria mais concebível ver um norte-americano assassinar outra pessoa, mesmo que um soldado socialista, indo contra o estilo de vida americano pretendido pelo governo na criação da imagem de seus heróis, levando assim a valores dominantes, que visam “poder, riqueza material, status, dinheiro, liderança, hierarquia” (VIANA, 2007, p. 12). Por fim, as camadas teóricas e práticas que cercam o campo da Guerra Fria possibilitam um grande leque de pesquisas documentais. A inserção dos quadrinhos enquanto uma fonte de pesquisa histórica passível de análise é responsável por permitir uma visão além da clássica dicotomia do período de conflito indireto, principalmente ao levar em consideração as temáticas do armamento bélico e da construção da imagem do soviético, de forma direta ou indireta. Como visto, ao pensar uma análise dos valores de uma nação em relação a constituição de um imaginário social, essa ocorre ligada a uma polarização imaginária no campo cultural. Em relação a comparação entre as duas editoras, verificou-se um modo de operação não muito distinto, com as duas utilizando-se de heróis criados e reformulados durante a Guerra Fria para trazer suas histórias, seja um conflito aberto na cidade de Moscou ou a morte de um soldado soviético de armadura.
PRINCÍPIOS 204 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão Referências Bibliográficas BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social” In: LEACH, Edmund. Anthropos-Homem . Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BERNARDO, Thiago Monteiro. História e Histórias em Quadrinhos: um debate sobre possibi- lidades analíticas. In: XII Encontro Regional de História Anpuh - Rio: Usos do Passado, 2006, Niterói. XII Encontro Regional de História Anpuh, 2006. BIAGI, O. L. O Imaginário da Guerra Fria . Nethistória (Brasília) , v. 1, 2004. CASTELO, Rodrigo. 150 anos de Vladimir Ilyich Ulianov, o bolchevique Lenin. Germinal : Mar- xismo e Educação em Debate, Salvador, v. 12, n. 2, out. 2020. FARIA, Ricardo de Moura; MIRANDA, Mônica Liz. Da Guerra Fria à nova ordem mundial - 2. ed. - São Paulo: Contexto, 2021. GADDIS, John Lewis . História da Guerra Fria . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos : o breve século XX, 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 1995. HOWE, Sean. Marvel Comics : A História Secreta. 1° Edição – São Paulo: LeYa. 2013. KRAKHECKE, Carlos André. Representações da Guerra Fria nas histórias em quadrinhos Batman O Cavaleiro das Trevas e Watchmen (1979-1987). 2009. 145 f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. PONS, Silvio. Império, estado e ideologia na URSS Stalinista. Lua Nova , São Paulo, 75, 2008. PURDY, Sean. O Século Americano. In: KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos : das origens ao Século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. RODRIGUES, Henrique Canary. Rússia: a Grande Guerra Patriótica como política de memória. Tempo Niterói. Niterói. Vol. 28 n. 3 Vol. 28 n. 3 Set./Dez. 2022. SANCHES, Rogério Luís Gabilan. O Homem De Ferro e As Representações Estereotipadas Dos Comunistas Na Guerra Fria. Revista Horizontes Históricos / São Cristóvão (SE), vol. 3, n. 1, jan-jun 2021. SILVA, Rodrigo Candido da. Em missão de guerra: os filmes Rambo na era Reagan e a emer - gência da nova Guerra Fria. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25. 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. TOTA, Antonio Pedro. Os Americanos . São Paulo: Contexto, 2009. VALIM, Alexandre Busko. Imagens vigiadas : cinema e guerra fria no Brasil, 1945-1954. 1. ed. Maringá - PR: Editora da Universidade Estadual de Maringá - EDUEM / Fundação Araucária, 2010. VIANA, Nildo. Os valores na sociedade moderna . Brasília, D.F: Thesaurus, 2007.
CADERNO ESPECIAL 205 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher EUCLIDES DA CUNHA - UMA VIDA NAS “JANELAS” DA REPÚBLICA EUCLIDES DA CUNHA - A LIFE IN THE “WINDOWS” OF THE REPUBLIC https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21662 Anna Paula Teixeira Daher* 1 Rede Pública Municipal de Goiânia https://orcid.org/0000-0001-5333-7705 aptd78@gmail.com Recebido em 07 de abril 2024 Aprovado em 23 de maio de 2024 Euclydes da Cunha era uma celebração de rara força, servida por um coração vibrátil e fragílimo . (Jornal do Commércio (RJ) de 16 de agosto de 1909). Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, Santa Rita do Rio Negro, distrito de Cantagalo-RJ 2 , no dia 20 de janeiro de 1866. Filho de Eudóxia Moreira da Cunha e do guarda-livros 3 Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, órfão 4 de mãe aos três anos de idade, passou os primeiros anos de vida 1 * Doutora em História pela UFG. Membro do Grupo de Estudos de História e Imagem da UFG e da Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora da Rede Pública Municipal de Goiânia. E-mail: aptd78@gmail.com. 2 Desde 1943 o distrito leva o nome de Euclidelândia, em homenagem ao ilustre filho (DOLZAN, 2016). 3 Nas fazendas de café que então tomavam o Vale do Paraíba (ABREU, 1998). 4 O pesquisador Antenor da Silva Ferreira destaca que, dos aspectos na trajetória pessoal de Euclides, a orfandade é fator preponderante para o resultado de seu engajamento social e político. Segundo ele, tamanha perda foi de grande influência para a “personalidade quixotesca” de Cunha, com sua propen - são a tomar a defesa dos oprimidos. (FERREIRA, 2019, p. 17).
CADERNO ESPECIAL 206 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher sob os cuidados de parentes 5 e voltou ao Rio para estudar, em 1879 6 , e se tornar nome maiúsculo da cultura brasileira e do elenco de escritores do cânone 7 nacio- nal. Viveu brevemente e morreu assassinado aos 46 anos de idade, em 1909, quando confrontou Dilermando de Assis, o jovem amante da sua esposa, Ana, em um episódio que ficou conhecido como a Tragédia da Piedade , comoveu o país e, até hoje, o torna tão famoso quanto a sua maior obra, Os Sertões . A publicação desse livro, em 1902, o erigiu a um lugar especial na história intelectual do Bra- sil, tendo em vista que, naquele momento, os pensadores, escritores, e demais atores da República encontravam-se prontos para a crítica da sua formação e atuação – em Canudos 8 e de modo geral (GALVÃO, 2009a). Walnice Nogueira Galvão, em texto que trata da chef d´oeuvre de Euclides, mas não foge da sua vida, anota um desvio: as décadas de reflexões sobre a obra arrebanharam grupos apaixonados e odiosos, e esses sentimentos facilmente se transmite ao próprio autor, e esses críticos cheios de sentimento muitas vezes se espantam com as ocorrências da vida dele. Mas, a pesquisadora também já se adianta, “não é que o que ocorreu com Euclides da Cunha tenha sido tão ex- traordinário. Nos quadros habituais da família patriarcal brasileira, os feitos são perfeitamente compreensíveis”, mas ela reconhece, e externa, “talvez se tornem chocantes quando se constata como, num autor de postura tão científica, a vida seja ao contrário tão pouco científica, sua ação pessoal seja tão irracional” (GAL - VÃO, 1981). Quando Euclides, arma em punho, chegou à casa de Dilermando em busca de Ana – e dele, o fez em seu lugar de homem bom que reagia à má conduta da es- 5 A partir de 1869 em Petrópolis (RJ), com os tios maternos Rosinda e Urbano Gouveia e, com a morte de Rosinda em 1871, sob os cuidados dos tios maternos Laura e Cândido José de Magalhães Garcez em São Fidelis - RJ. Além disso, em 1877 passou um breve período com a avó paterna em Salvador - BA (VENTURA, 2003) 6 Nessa ocasião Euclides foi acolhido pelo tio paterno, Antônio Pimenta da Cunha. 7 O cânone literário é o conjunto de obras (e seus autores) que a sociedade e as instituições conside- ram perenes, geniais, seminais por comunicarem valores humanos essenciais, devendo ser estudadas e transmitidas de geração em geração. 8 A Guerra de Canudos, em resumo, foi um confronto entre o Exército e os participantes de um movimento popular de fundo religioso liderado por Antônio Conselheiro, ocorrido na comunidade que o exército brasileiro chamou de Canudos (mas que era conhecida como Arraial Belo Monte), no interior da Bahia, em 1897. Conselheiro chegou ao sertão baiano no final da década de 1870, mas não despertou maior preocupação no Império, que entendia ser aquele um problema local. Mas a nascente República via a atuação messiânica do Conselheiro de modo diferente, como uma ameaça à ordem. (JUNQUEIRA, s/d, s/p).
CADERNO ESPECIAL 207 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher posa, e para isso não deveria haver punição. Mas o escritor pagou com sua vida. Dilermando infringira todo tipo de expectativa ao se relacionar com uma mulher casada, e Euclides tinha o direito moral (segundo se entendia na ocasião) de co- brar a honra enxovalhada, Dilermando tinha o direito de se defender. Ao final, Eu - clides falhou e não sobreviveu. Nos dias e anos que se sucederam à Tragédia da Piedade, inúmeras vozes se levantaram a favor de Euclides, construindo uma narrativa elogiosa, sempre ressaltando as qualidades do falecido, construindo a trajetória do herói e contri- buindo para sua mitificação. Essas circunstâncias pessoais muitas vezes tomarem frente a outros as- pectos da vida de Euclides, e é também Walnice Galvão (1981) quem é cuidadosa em destacar que esse lado mais explícito da vida do escritor não deve fazer som- bra ao seu papel de homem público. De fato, aos seus papeis de homem público, que foram muitos: como militar, como escritor/intelectual (e a partir daí como jornalista e atuante defensor da implantação da República) e também como en- genheiro, profissão instrumental no desenvolvimento do Brasil de então. De fato, é na caserna, como aluno da Escola Militar da Praia Vermelha 9 , que Euclides aprende a pensar o mundo, e, enquanto autor, constrói sua carreira de escritor sempre analisando e argumentando acerca da República, pedra de to- que em sua obra, seja nos livros que escreve (aspectos da República são analisa- dos não só em Os Sertões , mas também em Contrastes e confrontos , inicialmente publicado em 1907, e em À margem da história, que é de 1909, por exemplo), seja na sua atuação como repórter. Mas Euclides era engenheiro porque um dia foi militar. Ser militar abarcava ser engenheiro, cartógrafo, ser uma frente ativa no papel de civilizar o vasto in- terior, trazendo a moralidade e a organização social, além de garantir, ao mesmo tempo, a paz necessária para o bom crescimento da nação. E isso tudo obser- vando os princípios da honra e do pundonor 10 . A família de Ana era de militares, 9 A Escola Militar e de Aplicações da Praia Vermelha foi criada no Rio de Janeiro imperial de 1875, uma adição a até então única instituição de ensino superior do Exército, a Escola Central, que formava engenhei- ros civis e militares. “A geração da Escola Militar a que pertenceu Euclides é aquela que vai viver em cheio a renovação de todas as ideias. Religião católica, instituições monárquicas, escravidão, prestígio da grande propriedade rural, ecletismo filosófico e espiritualismo, romantismo artístico-literário, tudo isso será levado de roldão por “um bando de ideias novas”. (GALVÃO, 2010, p. 14) 10 Oliveira Viana é outro intelectual que reconhece a presença do espirito de classe e de honra entre os militares. Segundo ele, entre pares que demonstram “sensível espírito de corpo e um vivo pundo- nor profissional” (VIANA, 2010, p. 116).
CADERNO ESPECIAL 208 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher seus amigos foram feitos principalmente nas fileiras da Escola Militar e todos eles estiveram envolvidos com o Exército ao longo daqueles primeiros anos da República. Dilermando de Assis também era militar. José Murilo de Carvalho (2017) lembra que o exército fez frente a dois mo- mentos fundamentais da vida de Cunha: o episódio da espada 11 na Escola Militar e a sua própria morte (pelas mãos de um oficial do Exército). Também é Carvalho (2017) a lembrar outra função muito importante da estrutura militar na vida de Euclides: incutir-lhe um senso de brasilidade – o que, ao final, foi fundamental para que ele escrevesse Os Sertões e passasse a ocupar os lugares que ocupou. A instituição da República no Brasil tem um grande peso na vida de Eucli- des, em sua formação, em sua vida pessoal, em seu trabalho. Expulso da Praia Vermelha, Euclides parte então para São Paulo e é aí que começa a sua vida de jornalista e escritor junto ao jornal A Província de São Paulo a convite de Júlio de Mesquita 12 , onde estreia escrevendo artigos defendendo a República e criticando a Monarquia e a Família Real brasileira. Retorna ao Rio de Janeiro no ano de 1889 e, sem deixar de atuar na imprensa, com a chegada da República, é reintegrado ao Exército – e à Praia Vermelha. Desde os seus anos de Escola Militar, que moldariam a maneira como ele via o mundo, até as novas lentes com as quais ele passa a ver a República e o país a partir da forma como o Brasil foi governado nos primeiros anos do novo regime – o que fez com que ele mudasse sua opinião 13 sobre o que acontecia em Canudos e 11 é favorita entre seus biógrafos e estudiosos a passagem de sua expulsão da Escola Militar da Praia Verme- lha, no ano de 1886, onde o então cadete Euclides joga sua espada aos pés do ministro da guerra do Imperador D. Pedro II. Sobre o ocorrido, Bernucci (2009) afirma haver duas versões sobre o ocorrido. Na primeira delas, alega que o comportamento de Euclides se deu em razão de uma manifestação acerca da falta de promoção para alferes-alunos, conforme prescrevia a lei. A segunda versão atribui o protesto de Euclides a mudança do dia da visita do Ministro da Guerra do Império, Thomaz Coelho, impedindo que os alunos assistissem ao de - sembarque do republicano Lopes Trovão, que voltava da Europa. Esta segunda versão é a comumente aceita e analisada por pesquisadores como Ventura e Galvão, e relatada em biografias como a de Pontes (1938), e é peça importante para a construção da figura pública de Euclides. 12 Filho de portugueses, passa parte da infância no país europeu, onde inicia seus estudos. Contudo, bacha- rela-se em Direito no Brasil. Pouco milita na área, dedica-se ao jornalismo e à política ao longo de sua vida adulta, crescendo com o regime republicano brasileiro, o qual apoia. Trabalha no jornal Província de São Pau - lo alguns anos até tornar-se sócio da empresa e, então, proprietário do jornal que viria a se chamar O Estado de São Paulo . O convite para Cunha cobrir a Guerra de Canudos é benéfico ao jornal de Mesquita, que vê a tiragem do periódico saltar para 18 mil exemplares diários, em razão do interesse do público pelo conflito. (De acordo com informações constantes de http://cpdoc.fgv.br . Acesso em 24 mar 2020). 13 Euclides chamou Os Sertões de livro vingador justamente porque apontou os erros do governo. Em carta a Francisco Escobar, discorreu, “alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá. Nem outra coisa quero. Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos as - sassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária” (GALVÃO E GALOTTI, 1997, p. 133).
CADERNO ESPECIAL 209 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher colocasse isso em texto, primeiro como repórter do jornal O Estado de São Paulo , e depois em Os Sertões . Cunha deixou logo a vida militar, mas o fato é que o exército esteve sempre, de alguma forma, envolvido nos grandes momentos e nas grandes decisões da vida de Euclides, esse homem “fora do lugar” (CARVALHO, 2009), militar sem disciplina e sem interesse na guerra, um engenheiro preso a um mundo que não lhe despertava maior ânimo e tampouco auxiliava sua criatividade, um homem da cidade 14 que sonhava com a natureza em seus extremos - o sertão e a floresta (DAHER, 2022). No entanto, dedicou-se a engenharia, trabalhou como funcionário público, nunca pôde se dedicar somente à escrita, apesar do seu sucesso nesta seara, notadamente em Os Sertões 15 . Florestan Fernandes (1997, p. 35) a nominou como obra que “possui valor de verdadeiro marco” por dividir o “desenvolvimento teórico-social da sociologia no Brasil”. Antônio Cândido (2000, p. 122) também cimentou o lugar de Euclides no Olimpo da intelligentsia 16 nacional ao apontar que “ Os Sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”. Cumpre aqui destacar o que esses intelectuais professam competências específicas e, por terem uma socialização comum estabelecem mais facilmente laços de afinidade entre si, entre os membros desta intelligentsia , o que os une, normalmente superando divergências e rivalidades existentes. Segundo Martins (1987), “esses laços comuns, esse sentimento de pertencer a um certo nós ( wefeeling ), se traduzem em símbolos próprios, numa linguagem e em hábitos mais ou menos 14 Euclides, por exemplo, era um crítico ácido dos melhoramentos aos quais a cidade do Rio de Janeiro foi submetida ao longo dos primeiros anos do séc. XX. Brito Broca fala desse incômodo: “o remodelamento do Rio, a mentalidade arrivista que daí surgia, tudo era de molde a irritá-lo. Não podia suportar aqueles arremedas de civilização européia. Em carta de 12 de fevereiro de 1908 a Francisco Escobar, convidando-o para uma visita ao Rio dizia: ‘Admirarás os célebres melhoramentos. Fulmi - naremos, juntos, o pioramento dos homens. Daremos pasto à nossa velha ironia ansiosa por enterrar- -se nos cachaços gordos de alguns felizes malandros que andam por aí fimfonando desabaladamente, de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós outros, pobres altivos diabos que teimamos em andar nesta vida, dignamente, pelo nosso pé’”. (BRITO BROCA, 2005, p. 134). 15 A primeira edição se esgotou em cerca de dois meses. Walnice Galvão (2009b) argumenta que o livro, se lançado nos dias atuais, teria sido considerado um best seller . 16 O termo, de origem latina, foi famosamente empregado para determinar um grupo distinto de pes- soas na Rússia da segunda metade do séc. XIX e que não se encaixavam nas distinções sociais então existentes. Desde então, por extensão, é geralmente utilizado para determinar um grupo de intelec - tuais de um país (KIMBALL, s/d), um grupo bem-educado da sociedade, que defende os interesses da pátria e do povo a partir da razão e do conhecimento (VIEIRA, 2008).
CADERNO ESPECIAL 210 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher compartilhados, por intermédio dos quais os membros da intelligentsia se reconhecem e são reconhecidos enquanto tais”. Ao longo do tempo a crítica se repete: Euclides era brilhante na forma e no estilo, rico na linguagem, e abordava tema histórico de relevância considerando as consequências dos atos do governo brasileiro nos habitantes dos sertões – que este mesmo governo parecia sempre ignorar (LIMA, 1997, p. 21). Mas a permanência de Euclides nesse Olimpo não se deu sem julgamento ao longo dos anos, é bom ressaltar. O próprio Antônio Cândido (2000) nominou o texto de Cunha como de um barroquismo exagerado e de mau gosto. Mário de Andrade discordava da visão da obra que Cunha ganhou pelo público e grande parte da crítica ao atestar que “Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura” (LIMA, 1997, p. 22). Sevcenko, por sua vez, via a questão por um ângulo diferente do de Mário de Andrade, ele refletiu sobre a posição de Euclides diante de diferentes correntes de pensamento que faziam parte de sua vida e formação: o idealismo romântico e o realismo científico: “sem ligar-se em particular a nenhuma dessas correntes (romantismo, realismo, parnasianismo), Euclides entreteceu-as todas, imprimindo-lhes a unidade de uma trama tensa a serviço de suas convicções filosóficas e científicas.” (SEVCENKO, 1983, p. 159). Essa recepção da obra por nomes de peso para a compreensão (e construção) do lugar do intelectual no Brasil é arrematada pela afirmação de Regina Abreu (1998) quando refletiu que a obra de Euclides se tornou um símbolo nacional, por si só um lugar de memória, o mesmo efeito de um bem tombado pelo patrimônio histórico – um monumento. Mas, também como a obra de Euclides vai além de Os Sertões , a sua contribuição para o pensamento brasileiro ultrapassa este marco 17 : Cunha em muito favoreceu a inserção da Amazônia na questão da formação nacional, e, mais 17 Note-se que Berthold Zilly, trabalhando Os Sertões , entende que a grande força e maior importân- cia da obra está no fato de que Cunha constrói sua narrativa para interligar história natural e história social: “Euclides da Cunha narra uma espécie de gênesis, a origem do hinterland e da sua população, mais ainda, as origens da terra e nação brasileiras. Estuda os traços distintivos, as deficiências e po - tenciais de desenvolvimento do sertão e de todo o Brasil, bem como a posição do país num mundo cada vez mais homogeneizado por aquilo que mais tarde se chamaria de globalização, e ao mesmo tempo profundamente cindido pelo darwinismo social, defendido e ao mesmo tempo criticado pelo próprio autor” (ZILLY, s/d).
CADERNO ESPECIAL 211 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher que isso, inaugurou um novo modo de perceber a história da região, ao observar a vivência da população amazonense à margem a história (PINTO, 2012). Neste ponto, seja no Alto Purus, seja em Canudos, o que é importante destacar é como Euclides enxergava o fato de que a discussão da identidade e da nacionalidade no Brasil deveria passar pelas figuras tanto do sertanejo quanto do caboclo 18 (FERREIRA, 2019). O período da vida adulta de Euclides é um período de intensa atividade intelectual/cultural no país, e os nomes envolvidos nessa dinâmica são também os envolvidos na organização política brasileira. No período entre o final do Império e a primeira metade do séc. XX, o que se vê são gerações de pensadores dedicados a diagnosticar o país e apresentar projetos aptos a alçar o Brasil ao seu lugar de país civilizado. Desde a chamada “geração de 1870”, que teve uma forte atuação nas discussões sobre a escravidão, a abolição, a República e a introdução de um “bando de novas ideias”, conforme se referia Silvio Romero, os intelectuais brasileiros acreditavam que a modernização, o progresso e a construção de uma nação civilizada não seriam possíveis sem a condução dos intelectuais e a intervenção direta da ciência e da técnica nesse processo. (SOUZA, 2018, p. 07). Euclides e seus pares não se reconheciam apenas nas agremiações de intelectuais (o escritor foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB 19 e da Academia Brasileira de Letras – ABL 20 , por exemplo), eles se agrupavam no mundo da política e do trabalho, eles atuavam juntos, como engenheiros, médicos, professores, membros das forças armadas, advogados, jornalistas, funcionários públicos, muitas vezes perpetuando nas profissões escolhidas tradições de família 21 . Essas pessoas, geralmente educadas formalmente nos 18 Acerca das diferenças entre os termos “sertanejo” e “caboclo”, Silva é cristalino ao trazê-la, en - quanto pondera sobre a definição de outro termo de múltiplas explicações, o “caipira”: “Estudos no campo acadêmico, como o 19 Euclides foi indicado como sócio correspondente do IHGB em 6 de março de 1903 - e alçado a sócio efetivo 3 anos depois, por proposta de Rocha Pombo, entre outros membros, que o consideravam “um observador erudito, um cientista aplicado e um historiador independente” (EUCLIDES DA CUNHA E O IHGB, s/d). 20 Euclides foi empossado em dezembro de 1906, na cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves, suce - dendo ao crítico literário Valentim Magalhães (1859-1903). 21 Seguir a profissão do pai era uma tradição das elites do início do século XX e mais uma forma de perpetuar seu poder (MICELI, 2001).
CADERNO ESPECIAL 212 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher mesmos lugares, se agregavam para servir ao Estado– no caso, a República 22 . Fazer parte de um grupo de homens pensantes a serviço de uma mesma causa foi um importante degrau na escada que Euclides galgou até alçar a condição de mito. Seus pares o reconheceram e o defenderam porque entre eles já estava determinado o valor das tradições culturais que eles protegiam em um contexto que eles também ajudavam a construir, em uma narrativa sobre a qual eles detinham o controle (informações, linguagem, vocabulário) e a partir das mesmas sensibilidades, das mesmas visões de mundo – ou pelo menos bastante aproximadas. (GOMES e HANSEN, 2016). Euclides da Cunha não é o único autor brasileiro alçado ao Olimpo literário e com memória festejada. Há atuação similar dos admiradores de Guimarães Rosa. Machado de Assis e Monteiro Lobato, por exemplo. Walnice Nogueira Galvão 23 , grande estudiosa das obras de Cunha e Rosa, afirma, quanto à Rosa, que a canonização de sua obra “elevou o escritor a um patamar onde goza da companhia de poucos outros nomes” (GALVÃO, 2000, p. 70). Mas, como bem aponta Ventura (1993), Cunha é o único escritor a ter se tornado objeto de culto pessoal – cabe lembrar o lema do movimento euclidiano 24 , “por protesto e adoração”. Hoje, é praticamente impossível separar o lugar ocupado por Euclides da Cunha do próprio movimento euclidiano. Como assevera Regina Abreu (1998) o papel desses euclidianistas após a morte do autor é fundamental para a manutenção da atualidade não só de Os Sertões, mas de todo o pensamento de Cunha. 22 Embora Euclides, ao longo dos anos, tenha ficado a cada dia mais desapontado com os rumos do Brasil República, “estou nessa reserva desde os vinte anos, quadra que me assaltou o pessimismo in- curável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. ” (CUNHA, 1909 apud GALOTTI e GALVÃO, 1997, p. 423). 23 Galvão (1998) corrobora essa impressão ao ser indagada se as pessoas mitificam Euclides: sem dúvida. Isso aparece na atribuição de demasiadas virtudes a ele: patriota, honesto, decente, corajo- so... todas as virtudes cívicas possíveis. No fim, vira um santo. Mas essa hagiologia reflete um ideal extremamente pequeno-burguês, eu acho. Sou grande admiradora de Rimbaud, que era uma praga, não tinha virtude alguma. Mas admiro tanto a vida quanto a obra. No caso de Euclides, sobressai a imagem de um cidadão extremamente correto. 24 É em torno da memória desse homem (tido merecedor das honras dos amigos e dos lugares os quais ocupou nos espaços da intelectualidade) que se formam as bases do que hoje se chama de euclidianismo: pelo respeito e pela admiração, mas também pela construção da narrativa que trou- xesse ao público essa visão de Cunha, a visão de homem inteligente, do gênio da literatura que era bom amigo, bom pai, e que foi um marido traído que morreu defendendo a família e a honra: uma figura elevada (DAHER, 2022).
CADERNO ESPECIAL 213 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher A passagem de Euclides pela ABL (e pela cena literária brasileira de seu tempo) foi breve, dada a sua morte repentina, e na ocasião, sucedeu-lhe na cadeira 7 o médico e escritor Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) que, além de seu amigo, coincidentemente foi o legista responsável pela sua necropsia. Ao falar, como manda a tradição329, de seu antecessor, Peixoto não economizou adjetivos. “ [...]depois d’ Os Sertões, exerceu Euclides da Cunha engenharia e fez arte. Teve a celebridade. Se não se pejaram do crime que ele denunciou, regozijaram-se ao menos com a pompa esplendorosa do seu estilo. E glorificaram-no.” (PEIXOTO, 1911). Ainda que o seu tempo de produção literária tenha sido curto, ele deixou uma produção que refletiu sua formação científica, “um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnólogo, de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista” (SOUZA, 2010, p. 38), e a sua produção desperta interesse até hoje, existe uma significativa produção envolvendo a obra euclidiana, especialmente Os Sertões , um tributo ao lugar que o autor ocupa na memória historiográfica brasileira; além da grande quantidade de artigos e entrevistas, por exemplo. Como lembra José Carlos Barreto Santana no prefácio da (inacabada) biografia de Euclides escrita por Roberto Ventura, Cunha é objeto de “uma fortuna crítica que não encontra paralelo na cultura brasileira, ultrapassando a dezena de milhar de livros, artigos, folhetos, teses” (VENTURA, 2003, p. 17). Essa intelectualidade brasileira, que nos anos finais do séc. XIX e o início do séc. XX então se organizava, o fazia com a ideia de uma missão civilizatória, no papel de defensora dos interesses da sociedade, indo de encontro aos conceitos de intelectual desenvolvidos por Mannheim (o intelectual como mediador de conflitos sociais) e por Gramsci (o intelectual como organizador da cultura), como lembra Miceli (2001). O percurso intelectual de Euclides da Cunha dialoga com essas premissas, se considerarmos que ele é alçado ao cânone por discutir Canudos (no papel de intelectual mediador de conflitos) e por jogar uma nova luz na forma como se discutia a identidade do país, olhando para os homens do sertão, ampliando a forma de ver a nação (no papel de organizador da cultura); ainda que pesquisadores como Martins (1987), que chama a literatura de Euclides de “vigorosa”, ressalvem que os protestos apresentados por ele e por outros escritores do quilate de Lima Barreto não se tornam projetos de transformação social, permanecendo no
CADERNO ESPECIAL 214 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher campo da condenação moral. Ainda assim, eles ressoam, e o eco alcança longe porque as situações que eles discutiram no final do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX perduram 25 e, enquanto perdurarem, Euclides da Cunha fará muito sentido. REFERÊNCIAS ABREU, Regina de. O enigma de Os Sertões . Rio de Janeiro: Rocco,1998 BERNUCCI, Leopoldo Marcos Garcia Lopes. Os Sertões : (campanha de Canudos). São Paulo: Ateliê Editorial, 4ª ed., 2009. BROCA, Brito. Vida Literária no Brasil – 1900. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2005. CÂNDIDO. Antônio, Literatura e sociedade : estudos de teoria e história literária. 8ª ed. São Paulo, 2000. CARVALHO. José Murilo de, Euclides da Cunha e o Exército. In ______. O pecado original da república : debates, personagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017, p. 110-126. _____. Radicalismo e republicanismo. In _____ & NEVES, Lúcia M. B.(orgs). Repensando o Bra- sil do Oitocentos : Cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. DAHER. Anna Paula Teixeira, O abysmo das suspeitas : as narrativas da Tragédia da Piedade (1909) e a construção do mito de Euclides da Cunha (1866-1909). 2022. 218 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História (FH), Programa de Pós-Graduação em História, Goiânia, 2022. DOLZAN. Márcio, As cidades de Euclides. In Euclides da Cunha 150 anos : Especial O Estado de São Paulo. 2016. Disponível em https://tinyurl.com/3cadx7uv . Acesso em 20 jul 2019. FERREIRA. Antenor da Silva, Euclides da Cunha : da terra seca à terra molhada. Curitiba: Appris, 2019. GALVÃO. Walnice Nogueira, Os Sertões para estrangeiros. In Gatos de outro saco . Ensaios crí- ticos. São Paulo, Brasiliense, 1981. _____; GALOTTI, Oswaldo (Org.). Correspondência de Euclides da Cunha . São Paulo (SP): 25 Os Sertões tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto acontecerem tragédias como as de Mariana e Brumadinho (NOGUEIRA apud OLIVEIRA, 2019).
CADERNO ESPECIAL 215 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher Edusp, 1997. _____. (Org.) Euclides da Cunha : autos do processo sobre sua morte. São Paulo (SP): Editora Terceiro Nome, 2009a. _____. (Org.) Euclidianos e Conselheiristas : um quarteto de notáveis. São Paulo (SP): Editora Terceiro Nome, 2009b. _____. Euclides da Cunha. Militante da República . São Paulo: Editora Expressão Popular, 2010. GOMES. Ângela de Castro e HANSEN, Patrícia Santos (Orgs), Intelectuais mediadores. Práti - cas culturais e ação política. (E-book). Rio de Janeiro (RJ): Civilização Brasileira, 2016. JUNQUEIRA, Eduardo. Guerra de Canudos . s/d. Disponível em https://tinyurl.com/2p82mzk9 . Acesso em 12 out 2023. MARTINS, Luciano. A gênese de uma intelligentsia os intelectuais e a política no Brasil, 1920 a 1940. In Revista Brasileira de Ciências Sociais. V.2. N. .4. São Paul, jun. 1987. Disponível em https://www.anpocs.com/index.php/publicacoes-sp-2056165036/rbcs/233-rbcs-04 . Acesso em 15 jun 2021. MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira . São Paulo: Cia das Letras, 2001. OLIVEIRA, Joana. ‘Os Sertões’ tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. In El País . Cultura. 10 jul 2019. Disponível em https://brasil.elpais.com/ brasil/2019/07/10/cultura/1562785827_446579.html . Acesso em 10 jan 2021. PEIXOTO, Afrânio. Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras . 14 ago 1911. Disponível em https://www.academia.org.br/academicos/afranio-peixoto/discurso-de-posse . Acesso em 17 jan 2022. PONTES, Eloy. A vida dramática de Euclydes da Cunha . Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.  SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão . São Paulo, Brasiliense, 1983. SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Prefácio. In CARVALHO, Leonardo Dallacqua de; BARCHI, Fe- lipe Yera (Orgs.). Intelectuais e Nação: Leituras de Brasil na República. Curitiba: Appris, 2018. VENTURA. Roberto, Euclides da Cunha. Esboço biográfico . Organização Mario Cesar Carva- lho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Cia das Letras.2003. _____. Euclides da Cunha e a República. In . Estudos Avançados . São Paulo, v. 10. Nº26. P. 275- 291.1996. Disponível em: http://www.scielo.br/. Acesso em: 03 set. 2019. VIANA, Oliveira. O ocaso do Império . Brasília: Edições do Sendo Federal, 2010.
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CADERNO ESPECIAL 217 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Anna Paula Teixeira Daher
CADERNO ESPECIAL 218 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz O PROTAGONISMO DE RITA LEE NA SUBVERSÃO DO AMOR ROMÂNTICO RITA LEE’S LEADING ROLE IN THE SUBVERSION OF ROMANTIC LOVE https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21008 Silvio Antonio Luiz Anaz 1 York University https://orcid.org/0000-0002-4851-4903 silvioanaz@hotmail.com Recebido em 27 de abril 2024 Aprovado em 12 de maio de 2024 1 Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pós-doutorado pela ECA-USP. Foi pes- quisador-visitante na York University. RESUMO: As canções de Rita Lee contribuíram para alimentar o imaginário do rock nacional em temas como a celebração da liberdade, da rebeldia e do que é profano. Além de trazer esses temas, seu trabalho contribuiu para adicionar um elemento original: a erotização do amor romântico. Aborda-se aqui, a partir da análise de alguns de seus principais sucessos, o protagonismo da artista na subversão das canções de amor que predominavam no pop- rock brasileiro. Palavras-chave: Rita Lee, rock brasileiro, amor romântico, erotização, imaginário ABSTRACT: Rita Lee’s songs contributed to feed the national rock imaginary in themes such as the celebration of freedom, rebellion and the profane. In addition to bringing these themes, his work contributed to adding an original element: the eroticization of romantic love. From the analysis of some of her main hits, we approach the role of the artist in the subversion of the love songs that predominated in Brazilian pop-rock. Key words: Rita Lee, Brazilian rock, romantic love, eroticization, imaginary
CADERNO ESPECIAL 219 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz ​A mais importante fase criativa de Rita Lee, ou aquela em que a artista lan- çou a maior parte de seus principais sucessos, se inicia quando a Jovem Guarda e o Tropicalismo estão acontecendo, na segunda metade da década de 1960, e perde força quando há a ascensão do chamado BRock nos anos 1980 2 . A obra de Rita Lee insere-se num rock que espelha, na maior parte do tem- po, a trajetória dos subgêneros e movimentos do rock internacional, predomi- nantemente do anglo-americano. De toda forma, elementos sociais, culturais e históricos brasileiros estão quase sempre presentes de alguma forma na sono- ridade e nos temas das composições dos artistas nacionais desse megagênero. Em alguns momentos, os elementos do contexto brasileiro fundem-se às carac- terísticas do rock internacional a ponto de se sobreporem e caracterizarem um gênero ou movimento original com significativas marcas locais. Parte das can - ções do movimento Tropicalista (segunda metade dos anos 1960) é um exemplo desses momentos de originalidade. Nos demais, o rock brasileiro se caracteriza por transpor as tendências e movimentos do rock britânico e norte-americano. A Jovem Guarda (segunda metade da década de 1960), em que muitas das canções reproduzem a sonoridade do beat britânico, do surf-rock e da black music norte- -americanos dos anos 1960, e o chamado Rock Brasil ou BRock (anos 1980), cujos principais sucessos seguem a sonoridade e as estéticas do punk e do pós-punk britânico e norte-americano, são exemplos desses momentos de predomínio das estéticas internacionais no rock brasileiro. É nesse contexto, mais especificamente entre as décadas de 1960 e de 1980, que as canções de Rita Lee contribuem para alimentar o imaginário do rock na- cional em temas que são definidores da natureza desse megagênero como a ce - lebração da liberdade, da rebeldia e do que é profano. Além de trazer esses temas, o trabalho de Rita Lee contribuiu para adicionar um elemento original no âmbito do rock nacional: a erotização do amor romântico predominante nas canções. O amor romântico é um dos principais temas das canções que mais fazem sucesso. Na segunda metade do século 20, sete em cada dez das canções que ocuparam o primeiro lugar na parada anual de sucessos norte-americana, apu- rada pela Billboard , tinham o amor romântico como tema central (WHITBURN, 2001). No Brasil, ele também é um dos temas mais frequentes nas canções po- 2 Dados do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição mostram que dentre as vinte canções mais executadas de Rita Lee, entre 2013 e 2022, quatorze delas (70%) foram lançadas entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira dos anos 1980 (ECAD, 2022).
CADERNO ESPECIAL 220 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz pulares bem-sucedidas. Considerado uma crença emocional inventada histori- camente pelo ser humano em que “nenhum de seus constituintes afetivos, cog- nitivos ou conativos é fixo por natureza” (COSTA, 1988, p. 12), o amor romântico é um fenômeno universal relativo a um tipo de envolvimento afetivo e sexual entre seres humanos, manifestado em elementos como união, paixão, provas de amor, ciúme, culpa, infidelidade, carinho, erotismo, sexo, angústia, nostalgia, sedução, separação e solidão, entre outros. Na obra de Rita Lee, o amor romântico ocupa um lugar central. Dentre as dez mais bem-sucedidas canções compostas e lançadas por ela entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1980 (ECAD, 2022) 3 , sete têm o amor romântico como motivo principal. Além disso, os termos mais utili- zados por Rita Lee nessas canções (Figura 1), como querer, prazer, sentir e rolar, entre outros, já indicam uma considerável presença de significações que dão um caráter erotizado ao amor romântico abordado nelas. Figura 1: Termos mais frequentes nos dez maiores sucessos de Rta Lee Fonte: Autor ​O erotismo é um componente essencial do rock desde seus primórdios. O 3 São elas: Mania de você (Rita Lee / Roberto de Carvalho); Agora só falta você (Rita Lee / Carlini); Caso sério (Rita Lee / Roberto de Carvalho); Desculpe o auê (Rita Lee / Roberto de Carvalho); Ove - lha negra (Rita Lee); Lança perfume (Rita Lee / Roberto de Carvalho); Ando meio desligado (Sergio Dias / Arnaldo Baptista / Rita Lee); Baila comigo (Rita Lee); Doce vampiro (Rita Lee) e Saúde (Rita Lee / Roberto de Carvalho).
CADERNO ESPECIAL 221 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz termo rock and roll , que tem seus primeiros registros nos anos 1920, surge como uma gíria com conotações sexuais usada principalmente pelos negros no sul dos Estados Unidos. Seus significados incluíam pôr pra quebrar, agitar, rolar e tran - sar. Os sentidos sensuais do termo foram apropriados por gêneros como o jazz , o blues , o jump blues e o boogie-woogie , sendo que as canções que usavam essas expressões ficaram sonoramente cada vez mais rápidas e mais insinuantes nas letras (ANAZ, 2011, pp. 9-10). Quando o rock and roll se consolida como um novo gênero musical na década de 1950, elementos que remetem ao erotismo estão presentes principalmente nas letras dos artistas negros, em canções como I Just Want to Make Love to You (1954), de Willie Dixon, e Tutti-Frutti (1955), de Little Ri- chards, e também na estética visual do gênero, principalmente em função do jei- to de dançar de Elvis Presley 4 . Já, no Brasil, nos primórdios do rock nacional, um erotismo mais evidente está praticamente ausente das canções que fizeram sucesso. Na década de 1960, enquanto há uma ampliação da erotização das canções no rock internacional, graças ao sucesso de canções que abordam temas sexuais de forma direta ou metafórica, como Little Red Rooster (1965) e Let’s Spend the Night Together (1967), do The Rolling Stones, e também por conta das transformações socioculturais impulsionadas principalmente pela contracultura 5 norte-americana e britânica dos anos 1960, no Brasil, a Jovem Guarda 6 , mais importante movimento asso- ciado ao rock, traz um repertório em que o amor romântico é abordado ainda de uma forma ingênua. Rita Lee observava que nos microgrupos sociais dos quais participava na adolescência havia uma sexualidade muito mais atrevida do que a cantada nas canções da Jovem Guarda (BARTSCH, 2006, p. 38). Nessa época, Rita Lee ingressa no grupo Os Mutantes, que se tornaria um dos mais importantes representantes do movimento tropicalista, junto com Tom Zé, Rogério Duprat, Caetano Veloso e Gilberto Gil. É com Os Mutantes que ela ini- 4 Era tão marcante a sensualidade no jeito de dançar de Elvis Presley, em parte inspirado nas formas de dançar dos negros norte-americanos, que lhe rendeu o apelido Elvis “The Pelvis” Presley. 5 A contracultura da década de 1960 surge nos Estados Unidos e no Reino Unido e torna-se rapida- mente um fenômeno internacional, caracterizado por estilos de vida comunais e não-conformistas, em que se valorizava a postura anti classe média, a liberdade sexual e o uso de drogas. O movimento hippie foi uma das principais vertentes da contracultura dos anos 1960 (SHUKER, 1999, pp. 79-80). 6 A Jovem Guarda surge como um movimento jovem construído em torno do programa televisivo homônimo, apresentado nas tardes de domingo entre 1965 e 1968. Apesar de introduzir mudanças estéticas e comportamentais em sintonia com o rock e o pop internacionais, o programa adequava-se aos limites morais da época no Brasil, que estava sob o governo de uma ditadura militar (1964-1985).
CADERNO ESPECIAL 222 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz cia seu protagonismo na subversão do amor romântico cantado no rock brasilei- ro. O primeiro momento desse protagonismo acontece no final dos anos 1960, ainda de forma bastante sutil, com a canção Ando Meio Desligado (1970), que ela compõe em parceria com Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Muito distante da estética sonora e das letras ingênuas da Jovem Guarda, trata-se de uma canção com influências da estética do rock psicodélico, cuja proposta era explorar nas letras e na musicalidade as experiências relacionadas às drogas psicoativas (SHUKER, 1999, p. 244). A letra de Ando Meio Desligado aborda os efeitos corporais e mentais provocados pela sensação angustiante causada pelo desejo ou necessidade em se declarar à pessoa amada. O amor é causa de entorpecimento e de alienação e o contraste entre a batida acelerada e a cadência da voz, que remete a um canto de sedução e erotizado, enfatiza esse efeito de entorpecimento causado pelo amor O segundo momento da erotização do amor romântico no rock brasileiro protagonizado por Rita Lee vem da fase seguinte a Os Mutantes, em sua trajetó- ria acompanhada do grupo Tutti-Frutti. Uma canção que exemplifica essa fase é Menino Bonito (1974), que tem a sedução como tema central. A canção trata do percurso que alguém que está apaixonado faz, indo do encantamento que a beleza física da pessoa amada causa ao desencanto pela superficialidade dessa beleza ou pela não retribuição amorosa esperada. Há na construção da letra um jogo entre a atração pelo erotismo e o desejo frustrado pelo romance . Ser sedu- zido pela beleza física da pessoa amada é interpretado como algo perigoso, que leva a um nomadismo amoroso. O terceiro momento acontece na virada para os anos 1980, quando a artista explora uma sonoridade mais próxima ao pop. Nesta fase, a erotização em suas composições alcança um novo patamar, mais explícito. Dois de seus sucessos mais representativos disso são Doce Vampiro (1979) e Mania de Você (1979). Em Doce Vampiro (1979), a sensualidade é o tema central. A canção recorre à metáfora do vampiro romântico para comparar o tipo de relacionamento que os protagonistas mantêm. A carga de erotismo e sedução é construída ao longo da canção com várias metáforas: Vou abrir a porta / Pra você entrar; Que me bebe quente / Como um licor / Brindando a morte e fazendo amor . O doce vampiro por quem a protagonista está incondicionalmente seduzida e apaixonada é huma- nizado a partir da descrição de seus defeitos banais: Me acostumei com você /
CADERNO ESPECIAL 223 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz Sempre reclamando, da vida / Me ferindo, me curando... a ferida / Mas nada disso importa. A imagem da morte, com duplo sentido, é associada à do sexo como ponto alto do erotismo: Vou abrir a porta / Pra você entrar / Beijar minha boca / Até me matar . Mania de Você (1979) também tem a sedução como tema central, acrescida de um erotismo mais explícito. A canção enfatiza a questão da fantasia sexual no relacionamento com a pessoa amada. O relacionamento sexual é visto como uma mania, uma obsessão, e assume uma dimensão preponderante na relação amorosa, sendo que elementos do mundo natural, como o mar e a lua, ajudam também a enfatizar a sua importância. A atmosfera de erotismo é construída não só pelos versos que o explicitam, mas também pelo tom da voz, pelas simulações de gritos e gemidos e pela ênfase dada no cantar a certos elementos simbólicos como a loucura e o ato sexual (rolar, fazer amor). ​Nos momentos aqui representados por essas canções – final dos anos 1960 e meados e final da década de 1970 –, as composições de Rita Lee foram protago - nistas no pop-rock nacional de uma crescente erotização do amor romântico. O trabalho da artista foi inovador nesse aspecto em relação ao restante do pop-ro- ck brasileiro e estava sintonizado com o que acontecia contemporaneamente no pop-rock internacional, no qual o tema da sexualidade tornava-se cada vez mais presente nas canções midiáticas, muitas vezes protagonizadas também por ar- tistas do sexo feminino. Exemplo disso é o sucesso da canção Physical , que, na interpretação de Olivia Newton-John, chega ao primeiro lugar da Billboard em 1981. Nela enfatiza-se o sentimento de desejo bruto, que transforma a pessoa amada em um objeto sexual. A partir daí, a narrativa da sexualidade e do poder de sedução feminino alcançará outro patamar no pop-rock internacional nos anos seguintes com o sucesso de canções como Like a Virgin , de Madonna. ​Ainda que as canções de Rita Lee, em que predominam a erotização do amor romântico, se inserissem no recorrente processo de aceitação e assimi- lação das ousadias comportamentais e rompimentos de barreiras morais que caracteriza a lógica da indústria fonográfica e do mercado, elas foram pioneiras ao colocar em evidência no pop-rock nacional a perspectiva da mulher sobre a questão da sexualidade. Assim, uma dentre as importantes contribuições de Rita Lee ao longo de sua trajetória artística foi a de subverter a expressão do amor romântico para torná-la menos ingênua e também mais representativa de uma visão feminina e erótica.
CADERNO ESPECIAL 224 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Silvio Antonio Luiz Anaz REFERÊNCIAS ANAZ, Sílvio. O que é rock . Popbooks: São Paulo, 2011. BARTSCH, Henrique. Rita Lee mora ao lado . São Paulo: Panda Books, 2006. COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor : estudo sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ECAD. Rita Lee festeja 75 anos com “Mania de você” como sua música mais tocada no Brasil. Notícias. 31 Dez. 2022. Disponível em: https://www4.ecad.org.br/noticias/rita-lee-festeja-75-anos-com-mania- -de-voce-como-sua-musica-mais-tocada-no-brasil/ Acesso em: 6 Fev. 2024. SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop . São Paulo: Hedra, 1999. WHITBURN, Joel. Billboard Top 1000 Singles 1955-2000 . Milwakee: Hal Leonard, 2001.
RESENHAS 225 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva UMA HISTÓRIA DE AMIZADE & AMOR: QUESTÕES DE LUTO E GÊNERO EM “AS INSEPARÁVEIS” DE SIMONE DE BEAUVOIR A STORY OF FRIENDSHIP, LOVE, AND GENDER ISSUES IN “THE INSEPARABLES” BY SIMONE DE BEAUVOIR https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21235 Jessica Ferreira Alves Universidade Federal de Mato Grosso https://orcid.org/0000-0002-4073-6608 alves.jessica12@hotmail.com Róbson Pereira da Silva Universidade Federal de São Carlos (DCSo/UFSCar) https://orcid.org/0000-0001-6517-0842 rpsilva@ufscar.br Recebido em 10 de fevereiro de 2024 Aceito em 20 de abril de 2024 BEAUVOIR, Simone de. As inseparáveis . 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021. Quem sabe Um dia Por uma alameda Do zoológico Ela também chegará Ela que também Amava os animais Entrará sorridente Assim como está Na foto sobre a mesa Ela é tão bonita Ela é tão bonita Que na certa Eles a ressuscitarão O século trinta vencerá O coração destroçado já (Poema de Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski - Tornado canção por Caetano Veloso / Ney Costa Santos Filho)
RESENHAS 226 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva “Tem pessoas que a gente Não esquece nem se esquecer.” (Rita Lee) a amizade é o espaço em que a maioria de nós tem seu primeiro vislumbre de amor redentor e comuni- dade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos fortalece de formas que nos permitem levar esse amor para outras interações com a família ou com laços românticos. ( bell hooks) As inseparáveis é um romance póstumo autobiográfico que foi escrito em 1954, no qual Simone de Beauvoir remonta memórias de sua juventude e amizade com Élisabeth Lacoin (Zaza). Publicado em 2021, pela editora Record, o livro conta com 127 páginas, sendo que dentre elas está também uma seleção de fotografias da própria Beauvoir que contam sobre algumas das personagens que fizeram parte desta história. A obra incluí um prefácio breve, mas também rico e esclarecedor, que foi es- crito por Sylvie Le Bom de Beauvoir, filha de Simone de Beauvoir. Logo de início Sylvie Le Bom narra a forma como as duas amigas se conheceram, que foi ainda durante a infância quando Simone tinha apenas nove anos e uma garotinha se sentou ao seu lado na escola católica Adeline Desir. Apenas alguns dias mais ve- lha que Beauvoir, Zaza contrastava com aquele ambiente e pessoas, pois era uma garota ousada, espontânea, divertida. Não demorou muito para que as meninas se aproximassem bastante, logo as duas começaram a disputar o primeiro lugar na classe e algumas professoras estavam as definindo como as inseparáveis. Embora não fosse triste com sua família, Simone passa a nutrir um forte sentimento por Zaza e, então, passa a venerá-la, a querer sempre agradá-la. As suas conversas com a amiga eram de grande importância para: [...] O que é esse sentimento inominado que, sob o rótulo convencional da amiza- de, abrasa seu coração jovem no deslumbramento e nos transes, senão o amor? Bem depressa ela entende que Zaza não sente um apego análogo, nem desconfia da intensidade do seu, mas que importa, diante do êxtase de amar? (BEAUVOIR, 2021, p. 06)
RESENHAS 227 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva No dia 25 de novembro de 1929, um dos maiores medos de Beauvoir se tor- nou realidade, Zaza faleceu, repentinamente, um mês antes de completar 22 anos de idade. Foi totalmente imprevisível, essa tragédia viria a assombrar Si- mone por muitos anos, e a forma que ela encontrou para não deixar com que a amiga caísse no esquecimento foi utilizando a literatura. Deste modo, Beauvoir tentou “ressuscitar” Zaza por meio de quatro de suas obras, em romances de sua juventude, na sua coletânea Quando o espiritual domina , bem como em um trecho suprimido de Os mandarins . No ano de 1954, a filósofa tentou “reviver” a amiga em uma novela que ficou sem título e que, posteriormente, viria a ser publicada como As inseparáveis , em 1958. Zaza também apareceu no texto autobiográfico de Simone chamado Memórias de uma moça bem-comportada , no qual acrescen- tou a história da falecida amiga. Sylvie Le Bom de Beauvoir relata no referido prefácio que o fato de Simone ter sobrevivido fez com que ela desenvolvesse uma espécie de culpa. Um quadro desencadeado e sustentado pela culpa de quem sobreviveu a uma perda inestimável. Além disso, a visão que ela tinha em relação ao falecimento de Zaza é de que a garota foi assassinada pela vida social, pois em meio a pressão de forçá- la a se encaixar naquele padrão exigido para a época, isso foi a desgastando até matá-la: “[...] Zaza morreu porque tentou ser ela mesma e foi convencida de que essa pretensão era um mal.” (BEAUVOIR, 2021, p. 08) Quanto a escolha de Beauvoir pela ficção para narrar a história desta amizade, foi necessário que várias modificações e transposições fossem feitas. Sendo que uma delas é a mudança de nomes dos personagens, pois Simone de Beauvoir passará a ser Sylvie Lepage, Élisabeth Lacoin dá lugar a Andrée Gallard, demais nomes e lugares também sofrem modificações, e não menos importante, Maurice Merleau-Ponty recebe uma nova identidade na narrativa, passando a se chamar Pascal Blondel. Antes do início do primeiro capítulo, Beauvoir escreveu uma dedicatória para Zaza, onde fica evidente o sentimento de tristeza com o qual ela estava lidando desde a partida da amiga, e não se limitando a isso. Em poucas palavras, fica bem óbvio a forma como ela se culpa por estar viva, e que somente a literatura tornou possível para que lhe falasse, embora Élisabeth não pudesse ler. E por fim, reforça que não se trata da história de Zaza, é apenas uma história inspirada nelas, pois no fim, Sylvie e Andrée não são de fato seus nomes.
RESENHAS 228 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva Simone de Beauvoir inicia o primeiro capítulo narrando a história de uma Sylvie de apenas 9 anos de idade, que segundo ela, se tratava de uma garotinha muito comportada. Mas que isso nem sempre foi assim, pois na primeira infân- cia tinha um gênio que muitas vezes era considerado como difícil, chegando ao ponto de uma vez até mesmo uma de suas tias declarar seriamente que “Sylvie estava possuída pelo demônio”. (BEAUVOIR, 2021, p. 17). Como foi exposto no prefácio, a história de As inseparáveis e Memórias de uma moça bem comportada se conectam em vários pontos, deste modo, Beauvoir relata em sua autobiografia como se deu essa passagem da primeira infância para uma garota bem comportada: “Eu me metamorfoseara definitivamente em menina bem-comportada. No início, criara artificialmente a personagem: valera-me tantos elogios, de que tirei tão grandes satisfações, que acabei me identificando com ela: tornou-se minha única verdade” (BEAUVOIR, 2018, p. 33) . Grande parte da razão desta mudança acontecer foi por causa da religião, guerra e a relação familiar de Sylvie/Simone com os seus pais. Assim, quando Andrée aparece no Colégio Desir, ela imediatamente chama atenção por seu jeito espontâneo e personagem que até mesmo parecia impertinência. Sylvie a descreve como uma garotinha de cabelo curto, liso e preto, com olhos brilhantes e escuros que a olhava com intensidade, seu rosto era magro e ela parecia ser mais nova, fato este que logo em seguida foi esclarecido por An- drée, ao relatar que ela tinha crescido pouco e também parecia mais nova do que realmente era, graças a um acidente que aconteceu ainda na infância, do qual resultou uma queimadura profunda em sua coxa direita a ponto de chegar até o osso. Ao explicar para Sylvie que foi preciso interromper seus estudos por cerca de um ano, Andrée pede o caderno da garota emprestado sob o argumento de que haviam lhe informado de que ela era a aluna número um da sala. Foi a partir disso que surgiu a amizade das duas, ainda que logo de início foi possível notar grandes diferenças em relação a elas. Enquanto Sylvie tinha uma família menor, estudava no colégio já a algum tempo e que a mãe tinha cuidado de buscá-la to- dos os dias após a aula, Andrée vinha de uma família maior e graças a isso sua educação até então tinha sido toda dentro de casa, com uma grande quantidade de irmãos, isso fazia com que a sra. Gallard permitisse que a garotinha fosse em- bora sozinha, pois não poderia ficar se dedicando a ir busca-la na escola. Com receio de uma menina tão nova estar andando sozinha, Sylvie e sua mãe passam
RESENHAS 229 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva a acompanhar Andrée por grande parte do caminho. A amizade das meninas foi se fortalecendo, a ponto de elas também mante- rem o contato mesmo durante as férias, onde trocaram correspondências. O carinho que Sylvie sentia por Andrée aumentava cada vez mais, em diver- sas situações perguntava-se se era correspondida por ela igualmente, ou se a amiga também tinha medo de algum dia perdê-la também. Devido a admiração e o afeto que tinha pela outra, a jovem sentia cada vez mais necessidade de a agradar, presentear. E foi em meio a uma dessas situações, que ao dar uma bolsa a Andrée pelo seu aniversário em que ela mesmo fizera e sua mãe a ajudou, Syl - vie pôde notar pela reação da sra. Gallard diante do presente que agora ela tinha deixado de gostar dela. No entanto, Sylvie demonstra admiração pela perspicácia da sra. Gallard, pois naquele momento a mulher já tinha notado que ela estava mudando. Com uma personalidade mais atrevida, passou a ter dificuldades em simplesmente aceitar tudo que lhe era dito e imposto na igreja, se até algum tempo atrás ela via a imagem do padre como o representante direto de Deus, agora já conseguia ver também a hipocrisia que vinha dele. Então se reconfortou ao perceber que não só seu próprio pai, mas também vários autores que admiravam não acreditavam em Deus, então não estava de fato errada. Porém, com isso vinha outro temor, de que Andrée em algum momento descobrisse seu segredo. Seu único conforto em relação a isso é que elas não costumavam conversar a respeito de sexualidade ou religião, portanto, pelo menos por enquanto seu segredo estava seguro, embora o medo de ser descoberta ainda lhe aterrorizava. A medida que foram envelhecendo, as garotas tinham perspectivas diferen- tes sobre a vida, enquanto Andrée tinha se acostumado com a ideia de se casar, embora ela afirmasse que não o faria antes dos 22 anos, Sylvie ainda preferia se manter focada nos estudos, nos livros, sem ter que se preocupar com quem iria casar e se teria que casar. No capítulo dois podemos notar que após muita insistência a sra. Gallard permitiu que Andrée estudasse três anos na Sorbonne, então a garota escolheu o curso de letras e Sylvie o de filosofia. Ainda que estudassem juntas na biblioteca por várias horas, nas aulas, Sylvie permanecia sozinha, e foi aí que ela descobriu ter afinidades com um rapaz chamado Pascal Blondel (Maurice Merleau-Ponty), que após várias horas de conversa, por fim decidiram formar uma equipe.
RESENHAS 230 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva Essa proximidade de Sylvie e Pascal foi o que tornou possível a aproxima- ção dele e de Andrée, que acabaram se apaixonando. No entanto, dada a idade dela e o fato de pertencer a uma família tão grande, os deveres que ela tinha que cumprir estavam a deixando desgastada e exausta, dores de cabeça se tornaram comuns e até mesmo a sua amizade com Sylvie passou a ser vista como um pro- blema, pois agora elas nem mesmo poderiam compartilhar um quarto sozinhas durante a temporada de férias. Isso foi deixando Andrée tão desesperada que na tentativa de obter um pou- co de paz, a garota cortou o próprio pé com um machado, mas que de acordo com Sylvie, após um pouco de repouso, a amiga parecia realmente melhor e até mais corada, era como se tivesse se recuperando parcialmente de toda aquela exaustão. Essa mudança que aconteceu na vida de Andrée se deve a passagem da in- fância para a adolescência. Sobre essa fase, Beauvoir aborda essa questão em O segundo sexo em um capítulo intitulado “A jovem”: Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus es- tudos e jogos, descobria-se então como uma transcendência: nada fazia senão so- nhar com sua futura passividade. Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. [...] Já desligada de seu passado de criança, o presente só lhe aparece como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. (BEAUVOIR, 2019, p. 75) Ainda que Sylvie tivesse vindo de uma família com status parecido com o da família de Andrée, o fato de seu pai ter perdido parte da fortuna e não ter condi- ções de oferecer bons dotes para casar as filhas fez com que ela não vivenciasse essa situação da mesma forma que a amiga, que já temia desde cedo acabar em uma situação semelhante com a da irmã mais velha que aos 28 anos ainda era uma “solteirona”, e naquele período isso era considerado como fracasso, portan- to, seria necessário um bom casamento para livrá-la desse “terrível destino”. A infelicidade de Andrée não parou por aí. Depois de muita luta para que seus pais aceitassem Pascal como um pretendente, uma vez que ele pertencia a uma posição social um pouco inferior se comparada com a da família Gallard, ainda assim o rapaz não quis noivar com ela naquele momento mesmo dizendo a
RESENHAS 231 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva amar muito. A tristeza, decepção aliadas aos exaustivos deveres de casa foram minando toda a felicidade da jovem, que nem mesmo podia se dar ao luxo de ficar mais do que cinco minutos conversando com a amiga de infância. Andrée adoeceu e sua piora aconteceu durante a visita a casa de Pascal em busca da aprovação do pai dele. Diante do seu estado, o médico prescreveu cal- mantes, falou de meningite, encefalite, mas não se definiu o diagnóstico preci- samente. Após uma noite de delírios, a sra. Gallard informou que a filha precisou ser isolada por ordem médica. Após três dias internada e acompanhada por uma enfermeira, em meio as divagações ela pedia sempre por: Pascal, Sylvie, o violino dela e champanhe. (BEAUVOIR, 2021, p. 126) Pouco antes de falecer, a jovem apertou a mão da mãe, que era uma das pessoas que ela mais admirava e lhe disse a seguinte frase: “Não fique triste. Em todas as famílias alguém não presta: quem não presta sou eu.” (BEAUVOIR, 2021, p. 126) Andrée que era uma moça tão viva, espontânea, faleceu em uma clínica, em meio as paredes brancas e sufocada por elas. Esse sentimento da perda é constantemente abordado também em Me- mórias de uma moça bem-comportada , onde Beauvoir não só descreve todos os acontecimentos, mas também detalha como a morte de Zaza lhe afetou e as re- flexões resultantes disso: Os médicos falaram de meningite, de encefalite, nada se soube ao certo. Tratava-se de uma doença contagiosa, de um acidente? Ou Zaza sucumbira a um excesso de fadiga e angústia? Muitas vezes à noite ela me apareceu, toda amarela sob o chapeuzinho cor- -de-rosa, e me olhava com reprovação. Juntas havíamos lutado contra o destino abjeto que nos espreitava, e pensei durante muito tempo que pagara minha liberdade com a sua morte. (BEAUVOIR, 2018, p. 313) Para Simone de Beauvoir não foi possível superar a morte tão repentina da amiga, e como dito anteriormente, foi através da literatura que a filósofa mante - ve a memória de Zaza viva, a ressuscitando em várias obras, mas sendo As inse- paráveis totalmente dedicada a história delas. Isso foi possível pois ela utilizou a literatura para corporificar parte da sua dor. Neste sentido, André Salomão das Neves em sua monografia intitulada A escrita autoficcional como estetização do luto e da dor , ao analisar duas obras, que são intituladas Fora do Tempo (2011) de David Grossman e O pai da menina morta (2018) do autor Tiago Ferro, com as quais os pais lidam com a dor de perder os filhos, afirma que:
RESENHAS 232 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva Em outras palavras, percebe-se que os autores fizeram uso do que é factual para se simularem ficcionalmente. Além do denominador comum que trata do processo de ficcionalização da realidade, que é uma das engrenagens do mecanismo auto ficcio - nal, em relação às duas obras aqui debatidas, desprende-se um outro denominador: o luto. A pessoa enlutada passa por várias fases até que o trauma de perder um filho, por exemplo, seja reelaborado, portanto, passe a ter um novo sentido. (NEVES, 2021, p. 17) Esse processo de misturar fato e ficção é o que se denomina escrita autofic - cional, e é através dela que Simone de Beauvoir conseguiu expressar seu luto em relação a Zaza, utilizando da literatura para demonstrar todo o seu sofrimento, angústia e culpa. Seja em Memórias de uma moça bem comportada onde o texto tem estruturas de um diário e se trata de uma autobiografia, ou até mesmo em As inseparáveis , que tem o formato de ficção e que inclusive os sujeitos assu - mem outros nomes como se tratassem de outras personagens, Beauvoir invoca Zaza em cada uma dessas obras tentando demonstrar o quão doloroso tem sido ter que lidar com o luto da perda de sua melhor amiga, e não somente isso, mas que isso também vem acompanhado do sentimento de sobreviver, e também por possivelmente conseguir ter sua liberdade enquanto Élisabeth Lacoin teve sua individualidade tão sufocada a ponto de ir morrendo aos poucos ao ser submeti- da as obrigações e costumes exigidos na época. Embora o luto tenha sido um dos principais motivos que levou Simone de Beauvoir a ressuscitar Zaza em tantas obras, de acordo com Larissa Carolina de Andrade em As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito do di - zer , ao analisar o romance autobiográfico pela ótica da filosofia, ela afirmou que Beauvoir não tinha como único objetivo retratar a morte da melhor amiga, mas também buscava refletir a respeito de si mesma através dessa escrita do eu: Nota-se, portanto, que essa narrativa não é nem nunca foi somente um memorial dedicado a Zaza, pois, por meio desse discurso também sobre si mesma, Simone de Beauvoir volta a refutar suas crenças passadas, condena um modo de existir apenas aparente, submete-se a uma revisão, não atestando, para tanto, nenhuma máxima conclusiva a respeito de um (im)possível encontro com sua identidade como manifes- tação de um ser essencial; Sylvie é à medida que faz de si o que é, circunscrita pela situação econômica de sua família, que fora definidora, em certa medida, de sua forma de existir. Sylvie é no presente, enquanto manifestação da consciência discursiva de Simone de Beauvoir, a qual, ao fim de seu projeto autobiográfico, afirma-se inacabada. (ANDRADE, 2022, p. 10)
RESENHAS 233 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva Essa escrita do eu de Beauvoir se dá por meio de um sujeito constituído na alteridade, na internalização dos amores perdidos e na própria exibição da expe- riência da perda. Pela literatura, a filósofa faz do enfrentamento da experiência do luto para fora da vida privada de uma amizade, mas torna o amor um instru- mento de criação de laços sociais e comunitários de luta contra a precarização da construção mortífera de gênero, sobretudo, quando narra os motivos que mataram a amiga além da doença, ou seja, quando expõe a violência social e de gênero vivida por uma mulher. Segundo Carla Rodrigues (2021), ao dialogar com Judith Butler, o luto produz uma zona de indeterminação do sujeito a partir da condição de despossuído; Eis o argumento de que a função do luto na filosofia de Butler é a de constituir um laço social a partir da experiência de perda. Há uma zona de indeterminação no sujeito constituído pela alteridade, mas é como se essa indeterminação se tornasse mais ex- plícita na experiência da perda. Aqui é importante observar a dimensão de um segredo: não somos capazes de saber o que perdemos no objeto perdido, e a sua incorporação não se dá completamente. Quando perdemos alguém, nem sempre sabemos o que se perdeu daquela pessoa, mas fazemos a experiência de nos tornar despossuídos. E a despossessão é uma maneira de politizar a perda e o luto, como ela argumentará em 2013, ao publicar Dispossession: The Performative in the Political. Assim, o luto se faz como uma política de memória, na qual nos damos conta de nossa construção social e subjetiva que se apresenta por meio da alteridade, segundo Carla Rodrigues (2021): Eu como aquele que se constitui na relação com o outro. Minha vida começa antes e continua depois de mim, de tal modo que a própria noção de indivíduo autônomo fica abalada. Somos feitos e desfeitos uns pelos outros, numa rede de relações que nos antecedem, das quais dependemos mesmo sem saber, e continuamos a existir em um trabalho de luto como política de memória. A obra, As inseparáveis , trata então de tornar o luto de duas amigas em uma espécie de totem da complexidade de tornar-se mulher na companhia de outra mulher, mesmo com a perda de uma delas. Assim, quando se manifesta a experiência de perda de uma amiga, a morte se torna um absoluto na configuração de um laço social que, anteriormente, enquanto se construía, o amor era o sustentáculo desse respectivo laço. Assim, escrever sobre esse amor que sobrevive a morte é ingressar numa política de memória. Outrossim, é através dessas reflexões que Beauvoir faz, ao longo de As inseparáveis e também em Memórias de uma moça bem comportada, que podemos observar o quanto
RESENHAS 234 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva ela não só sofreu com o luto pela morte de Zaza, mas que também se culpa por projetar que possivelmente foi graças a tudo que aconteceu que ela pôde ter um destino diferente e, com isso, ter sua liberdade, objeto de suas reflexões estéticas e filosóficas, se tornando posteriormente uma mulher independente 1 através dos estudos e o trabalho, o que não pôde ter acontecido com o destino trágico de Zaza. Aqui deixamos um convite para a leitura de uma obra que retrata a relação complexa de duas mulheres e um futuro interrompido pela morte de uma delas, mas que sobreviveu e ressuscitou constantemente nas obras de Simone de Beauvoir, contra a possibilidade do silenciamento de uma vida em seus segredos indecifráveis, na busca constante “do que está perdido no objeto perdido” (RODRIGUES, 2021, p. 128). Referências ANDRADE, Larissa Carolina de. As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito do dizer. Revista Água Viva , [S. l.], v. 7, n. 3, 2023. BEAUVOIR, Simone de. A Força das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. BEAUVOIR, Simone de. A Força das idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. BEAUVOIR, Simone de. As inseparáveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021. BEAUVOIR, Simone de. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – A Experiência Vivida . 5. ed.Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2019. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos . São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. NEVES, André Salomão das. A escrita autoficcional como estetização do luto e da dor (Monografia em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021. RODRIGUES, Carla.  O luto entre clínica e política : Judith Butler para além do gênero. Autêntica Editora, 2021.[e-book] 1 Simone de Beauvoir na segunda parte de O Segundo Sexo define que a mulher não consegue sua independência somente com o direito de votar ou pelas liberdades cívicas, pois não são elas que vão trazer autonomia a mulher. Assim, a mulher só conseguiu cobrir a maior parte da distância que a se - parava do homem através do trabalho, então é somente o trabalho que possibilita a uma mulher a real possibilidade de se tornar independente. (BEAUVOIR, 2019, p. 503)
RESENHAS 235 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior GOIÂNIA, 90 ANOS GOIÂNIA, 90 YEARS OLD https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21228 Rafael Alves Pinto Junior Instituto Federal de Goiás (IFG- Jataí) https://orcid.org/0000-0002-8439-9586 rafael.junior@ifg.edu.br Recebido em 15 de maio de 2024 Aceito em 18 de junho de 2024 OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de; MENDONÇA, Jales Guedes Coelho; CHAUL, Nars Fayad; JAIME, Nilson. Goiânia, 90 anos . Goiânia: Edições Goiás + 300, 2024, 336 p. Se na atualidade, é uma verdade científica que a arte traduz as tendências da civilização, como a música e a pintura, o estilo de nosso edifício, simples, rígido, harmonioso, mas sem artifícios de abóbadas e enfeites inúteis de doceis e capiteis, mais exata, mais positiva, que preside a orientação da cultura histórica em nossos dias. Na nova Capital que é, ao mesmo tempo, a síntese de todas as conquistas e glórias do Passado 1 , a consciência do momento histórico da civilização do Presente e a previsão arrojada, sábia, científica, do Futuro – não era possível que se deixasse de erguer uma guarida para a cultura da história, para o estudo da geografia. ( SILVA, 1940, p. 14). Essas palavras foram proferidas pelo presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), Colemar Natal e Silva, em 25 de junho de 1938 no lançamento da pedra fundamental da sede própria da instituição. O Instituto havia sido concretizado ainda na antiga capital em 1932, resultado dos esforços de José Honorato da Silva e Souza que participava do governo do Interventor Pedro Ludovico Teixeira no cargo de Secretário do Interior e Justiça. José Honorato, além de regulamentar o ensino 1 Destaque em negrito no original.
RESENHAS 236 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior normal, lutou para a criação do Arquivo Histórico e Geográfico de Goiás. Goiás era naquela época, à sua avaliação, o único estado da Federação que não tinha sua história escrita. Os documentos jaziam inertes nos arquivos aguardando alguma iniciativa. Mas o momento, proporcionado pela “soberba arrancada liberal que teve seu epílogo no memorável 24 de outubro”, era de exacerbado otimismo (SOUSA, 1931, p. 39). Ao interventor Pedro Ludovico e na presença de 15 dos 23 sócios fundadores, o advogado e professor Colemar resumiu as imodestas pretensões do IHGG na nova capital. Um empreendimento que se colocava, ao mesmo tempo, sendo síntese de todas as conquistas do passado, consciência do momento histórico do processo civilizatório e previsão de um futuro de bem- aventuranças. Enquanto projeto, Goiânia era então a cidade das realizações ousadas dado que já havia nascido “grande’ e projetada para “irradiar o progresso”. Para que este futuro glorioso se concretizasse, a nova capital não poderia seguir esquecendo a antiga. Eram cidades que se completavam e deviam entender que deviam “viver unidas” daí em diante. Uma representava a tradição, tradução de um passado “repleto de recordações gratas e afetivas, de glorias legítimas, de louros imperecíveis”. A outra representava o futuro, a materialização do espírito da “época e um prenúncio da vertigem do porvir” (SILVA, 1940, p. 15). Para Colemar Natal e Silva, o Estado Novo em Goiás, apresentado como inevitabilidade histórica e desfecho racional do conturbado panorama político do país, não devia apagar o passado colonial que a antiga capital representava. Aos ideais de afirmação política de Pedro Ludovico, a ideia de progresso e mudança servia como uma luva para anular os entraves da elite encravada na velha cidade. Diante deste cenário de mudança inevitável da capital, a intelectualidade reunida no IHGG se preocupava em não apagar o passado. A modernidade oferecia a oportunidade de um lastro que, para eles, deveria ser mantido. A ação política do IHGG, ao se afirmar com autoridade intelectual, se propunha a modelar o novo quadro social que se desenhava. Inserindo-se enquanto fonte de um estado colocado frente a ação imperativa de ressignificar localmente a própria nacionalidade. Reflexo de um movimento que havia sido desencadeado pelo pensamento de Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda. A mudança da capital de Goiás, notadamente para os membros do IHGG, não foi recebida com temeridade. Ao contrário. Tratava-se de uma oportunidade imperdível de afirmação. Estava na própria gênese da instituição que representava, em Goiás, a conciliação de uma contradição aparente: o espaço
RESENHAS 237 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior moderno, internacionalista, não determinava a exclusão das especificidades regionais que constituíam sua própria identidade cuja valorização integrava-se ao contexto regionalista. Oitenta e cinco anos depois das palavras do professor Colemar Natal e Silva, o IHGG realizou, entre 18 e 20 de outubro de 2023, o simpósio 90 anos de Goiânia , reunindo uma plêiade de intelectuais dedicados à análise da cidade nonagenária. A publicação Goiânia, 90 anos é o produto dos estudos do referido simpósio, preludiando o vindouro centenário a ser celebrado em 2033. A disposição em se posicionar frente à relação entre as dimensões coletivas da história e a ação intelectual individual, para a instituição, aparece de maneira similar àquela de seu momento inaugural. Frente às questões e questionamentos impostos pela contemporaneidade urge, aos interessados em uma mínima compreensão, reflexionar. Diante de novos caminhos, importa ressignificar. Organizado por Eliézer Cardoso de Oliveira, professor da Universidade Estadual de Goiás; Jales Guedes Coelho Mendonça, promotor de justiça e atual presidente do IHGG; Nars Fayad Chaul, professor aposentado da Universidade Federal de Goiás e Nilson Jaime, engenheiro agrônomo e atual presidente do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado, a publicação está dividida em três partes. Não cabe aqui uma análise dos artigos individualmente para impor uma frustração aos interessados. A perspectiva de uma obra coletiva é, por definição caleidoscópica. A primeira parte, nomeada História e Injunções Políticas , contem seis artigos dedicados a aspectos da história local sob a ótica dos interesses e pressões políticas que resultaram na criação da cidade. Higienismo, Intervenção médica e Mudança da Capital , de Francisco Itami Campos, analisa o discurso higienista enquanto justificativa ideológica para a mudança da capital. Os 10 anos do livro “A Invenção de Goiânia: o outro lado da mudança” e os rastros de genocídio cultural , de Jales Guedes Coelho Mendonça está dedicado a revisitar as hipóteses pesquisadas em sua obra em torno da questão da transferência de instituições e funcionários públicos da cidade de Goiás para Goiânia. Campinas, a Igreja e Goiânia , de Antônio César Caldas Pinheiro, destaca o apoio dos religiosos católicos Redentoristas sediados em Campinas em oposição ao então bispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira. Goiânia: os impactos de sua criação em Campinas , de Itaney Campos salienta a relação entre a capital e o processo de fagocitose da cidade de Campinas. Goiânia, entre o racionalismo da técnica e o pragmatismo
RESENHAS 238 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior da política , de Eliézer Cardoso de Oliveira recorta as escolhas aparentemente técnicas – o nome “Goiânia” e a escolha do dia 24 de outubro para o lançamento da pedra fundamental – que estavam na superfície do discurso. Sob este estavam os interesses políticos que produziriam o domínio do interventor Pedro Ludovico. O último artigo desta parte, O irresistível progresso de Goiânia na primeira metade dos anos 1950, de Iúri Rincon Godinho mostra a década de 1950 como período decisivo para a consolidação sociológica da cidade. Ainda relativamente provinciana e desarticulada, Goiânia passaria a outro patamar com o novo panorama desencadeado com a implantação de Brasília na década de 1950. A segunda parte, nomeada Arquitetura e Urbanismo , contém quatro artigos. A Arquitetura e o Urbanismo goianiense na poética produzida em Goiás , de Elizabeth Abreu Caldeira Brito trata-se de uma abordagem poética da representação do próprio fazer arquitetônico que a autora identifica e relaciona com Goiânia. Goiânia pré-moderna e aspectos do planejamento: planos diretores de 1960, 1970 e 1980 , de Jacira Rosa Pires é produto de um testemunho autobiográfico enquanto profissional do urbanismo. Uma personalidade diretamente envolvida na elaboração de diversos planos diretores que ambicionaram impor algum controle no crescimento e no uso do espaço urbano continuamente crescente. O mesmo caráter de depoimento biográfico pode ser identificado em Goiânia, cidade bem- nascida: convivência com a capital desde a infância , de Narcisa Abreu Cordeiro. O último texto desta parte, Marcos da Arquitetura em Goiânia (1930-1980), os arquitetos e urbanistas e Eurípedes Afonso da Silva Neto e Lenora de Castro Barbo brilhantemente destacaram uma produção arquitetônica que vai além da já estudada Art Déco , que não foi a única expressão arquitetônica na capital. Marcada pela renovação e modernidade a arquitetura construída em Goiânia no período selecionado aparece resultante da produção de diversos profissionais e obras em vários estilos. Nomes locais, de outros estados e até personalidades reconhecidas internacionalmente contribuíram para formar um outro conjunto patrimonial. A terceira e última parte, nomeada Elementos Culturais e Estéticos , com seis artigos encerram a coletânea. Goiânia, 90 anos, de Nars Fayad Chaul recapitula suas já conhecidas reflexões referentes à identidade goianiense: cidade inserida na dualidade progresso e sertão para equacionar o pensamento utópico dos entusiasmados apoiadores da Revolução de 30. As culturas em Goiânia: enraizamento, tensões e travessias , de Eguimar Felício Chaveiro reflete
RESENHAS 239 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior sobre outros olhares à cultura local que vai além dos monumentos. Inclui, ao reconhecer o dinamismo característico do processo cultural, outros saberes e práticas oriundas do cotidiano da relação dos habitantes com o próprio território. Os textos A cena musical goianiense e a banda Nilo Peçanha , do Instituto Federal de Goiás, de Marshal Gaioso Pinto, A gênese dos festivais musicais em Goiânia , de Hamilton Carneiro e A cultura erudita em Goiânia: o Teatro de Miguel Jorge , de Ademir Luiz Silva formam um conjunto. Constroem um panorama de expressões culturais que permitem ver contribuições além do tradicional universo sertanejo divulgado pela mídia local e nacional. Orquestras, bandas, rock, música popular brasileira, festivais musicais, produções literárias e teatrais demonstram a existência de diálogos criativos construídos localmente. Finalizando a terceira parte e, consequentemente, a coletânea, o texto O cronista e historiador Bernardo Élis: arquétipo de um cidadão geral que adotou a erma Goiânia , de Nilson Jaime analisa a obra e a ação política de Bernardo Élis. Para isto, destacou-se a crônica “Receita goiana para mudar uma capital” publicada em “Goiás em sol maior” datado de 1985. O célebre escritor, imortalizado na ABL, praticamente resumiu a angustiosa dualidade do processo de mudança da capital: da ancestral Cidade de Goiás que se abandonava à sonhada Goiânia que se ambicionava construir. Um processo não indolor marcado pelo autoritarismo tutelado por Pedro Ludovico, por personagens anônimos da antiga capital que apoiavam a mudança e pelas dificuldades, agitações e arbitrariedades no cotidiano dos primeiros anos da nova cidade. Os organizadores, junto a cada capítulo, tiveram a sensibilidade de incluir ilustrações em bico de pena executadas pelo artista plástico Divino Ferreira de Magalhães. Natural de Goiás e formado em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Goiás, o artista retratou diversos pontos de vista, edifícios marcantes da produção Art Déco e ângulos que seu olhar atento destacou como identitários do espaço urbano. A coletânea marca uma data e fecha um ciclo de debates. A partir daí outro deve ser aberto. Um que inclua a responsabilidade social que envolve um projeto urbanístico, tratado como construção atenta às múltiplas subjetividades que compõe o espaço urbano. Ao mesmo tempo em que intelectuais se reúnem para refletir sobre os 90 anos da capital de Goiás, na prática, a crise urbana torna-se mais aguda: segregação socioespacial, incapacidade de retomada econômica, degradação ambiental incontrolável, insegurança crescente, violências e
RESENHAS 240 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior dificuldades de mobilidade parecem obstáculos intransponíveis. Tudo isto inscrito em uma perspectiva de alterações climáticas drásticas e imprevisíveis a cobrar ações urgentes. Aos pensadores, questões da história, fundiárias, o acesso ao solo urbano, a democratização da gestão e a participação social no processo de planejamento são aspectos contemporâneos que tornar-se-ão imprescindíveis quando, daqui a dez anos, novos questionamentos se colocaram diante da cidade centenária. Resta-nos aguardar. Referências SILVA, Colemar Natal e. Lançamento da pedra fundamental do edifício do Instituto Histórico e Geográfico de Goiaz. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiaz . Goiânia, n. 1, mai, 1940, p. 14. Disponível em: https://hemeroteca.ihgg.org/publicacao.asp?PUB_IDEN=36&E- DI_IDEN=47. Acesso em 22 mai 2024. SOUSA, José Honorato Silva e. Regulamento do Ensino Normal em Goiás. A Informação Goyana . Rio de Janeiro, n. 6 e 7, v. XV, jan e fev, 1931, p. 39. Disponível em: http://memoria. bn.gov.br/DocReader/176648/2605. Acesso em 22 mai 2024.
PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO 241 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO REVIEWERS FOR THIS EDITION Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jul. de 2024 https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21698 Colaboraram com este periódico nos pareceres dos manuscritos submetidos pelo sistema de avaliação revisão por pares duplo-cego (Double-Blind Peer Review): Collaborated with this journal in the manuscripts reviews by Double-Blind Peer Review: Ana Carolina Cerqueira Medrado - Universidade de Brasília (UnB), Brasil André Luis Bertelli Duarte – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil Antonio Ricardo Calori de Lion - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Brasil Bruno Nantes – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Carla Lisboa Porto – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), Brasil Edvaldo Correa Sotana – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil Fábio Eduardo Cressoni - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasi- leira (UNILAB), Brasil Felipe Biguinatti Carias - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - Campus Alta Floresta (IFMT), Brasil Flávio Vilas-Bôas Trovão – Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Brasil Grace Campos – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil Hélton Santos Gomes - Escola Municipal Professora Cecy Cardoso Porfírio (E.M.P.C.C.P), Bra- sil. João Alberto da Costa Pinto –Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Kennedy Cabral Nobre - Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasilei- ra (UNILAB), Brasil Lays da Cruz Capelozi (ad hoc) – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil Lucas Rodrigues do Carmo – Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO 242 Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024 I e-issn: 2526-7280 Marcos Antônio de Menezes – Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil Miguel Rodrigues de Sousa Neto – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Mírian Garrido – Universidade de Taubaté, Brasil Noemia Moura – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Odemar Leotti – Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Brasil Osvanilton de Jesus Conceição - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Brasil Robson Pereira da Silva – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil Rodrigo Matos de Souza - Universidade de Brasília (UnB), Brasil Ruth Pavan - Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Brasil