Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024
I
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SUMÁRIO
Albuquerque
vol. 16, n. 31, jan. - jul. de 2024
Expediente ........................................................................................................................... 4
Editorial ................................................................................................................................. 7
Autor(es) Aguinaldo Rodrigues Gomes, Miguel Rodrigues de Sousa Neto
Artigos Livres
1.
RAÇA COMO TECNOLOGIA: APONTAMENTOS BÁSICOS SOBRE RAÇA, RACISMO ESTRUTURAL
E INTERSECCIONALIDADE ....................................................................................... 10
Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro dos Santos
2.
APROXIMAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ENTRE A PERSPECTIVA ENUNCIATIVO-DISCUR-
SIVA E A GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL: AS METAFUNÇÕES COMUNICATIVAS E O ENSINO DOS GÊ-
NEROS MULTISSEMIÓTICOS ...................................................................................... 36
Peterson José de Oliveira
3.
A TERRA FANTÁSTICA DA AMAZÔNIA: DISCUTINDO A COLONIZAÇÃO DE ALTA FLORESTA A
PARTIR DA DRAMATURGIA DE “FRAGMENTOS DE VIDA” (1995) ..................................... 61
João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana
4.
DECOLONIALIDADE E TESSITURAS INDÍGENAS: ARTICULAÇÃO POLÍTICA DOS TERENA ... 82
Iara Quelho De Castro
5.
DEMOCRACIA RACIAL, ELITE E A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO .................... 101
Juliana Mendes Arnaldo Vieira Sousa, Flávio Luiz de Castro Freitas
6.
DO COLONIAL AO CONTEMPORÂNEO: UMA RELEITURA DA OBRA DE ROGER BASTIDE E FLO-
RESTAN FERNANDES PARA REPENSAR A MEMÓRIA AFRO-PAULISTANA................... 123
Claudelir Correa Clemente
7.
O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO FEMININA NO
CONTEXTO DO CONFINAMENTO COMPULSÓRIO ................................................................. 141
Rafaela Limberger, Camilo Darsie
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8. ANDANÇAS PELOS “CAMINHOS DA NOITE”: EXPLORANDO ARQUIVOS PESSOAIS DE
MULHERES EM INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA EM SANTA CATARINA ........................ 165
Karla Simone Willemann Schütz
Princípios
9. OS IDEAIS NORTE-AMERICANOS E O PERIGO VERMELHO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
DO HOMEM DE FERRO (MARVEL) E DO LANTERNA VERDE (DC COMICS) ........................ 184
Luís Eduardo dos Santos, Leonardo Brandão
Caderno Especial
10. EUCLIDES DA CUNHA - UMA VIDA NAS “JANELAS” DA REPÚBLICA .................... 205
Anna Paula Teixeira Daher
11. O PROTAGONISMO DE RITA LEE NA SUBVERSÃO DO AMOR ROMÂNTICO ............... 217
Silvio Antonio Luiz Anaz
Resenha
12. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE & AMOR: QUESTÕES DE LUTO E GÊNERO EM “AS
INSEPARÁVEIS” DE SIMONE DE BEAUVOIR .................................................................. 225
Jessica Ferreira Alves, Róbson Pereira da Silva
13. GOIÂNIA, 90 ANO ................................................................................................. 235
Rafael Alves Pinto Junior
PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO .............................................................................. 241
EXPEDIENTE
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EXPEDIENTE
vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024
Editores-Chefes
Aguinaldo Rodrigues Gomes, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus
de Aquidauana, Brasil
Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
Câmpus de Aquidauana, Brasil
Editores de Seção
Robson Pereira da Silva, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
Antonio Ricardo Calori de Lion, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP/Assis), Brasil
Revisão de Língua Inglesa
Maíra Dutra de Oliveira, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais
Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS),
Câmpus de Aquidauana, Brasil
Conselho Consultivo
Alexandre Busko Valim - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Alexandre de Sá Avelar - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Ana Paula Squinelo - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Camila Soares López - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Junior - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Brasil
Eduardo José Reinato – Pontifícia Universidade de Goiás (PUC Goiás), Brasil
Edvaldo Correa Sotana - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Fábio Henrique Lopes - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Brasil
EXPEDIENTE
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Flávio Vilas Boas Trovão - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Helen Paola Vieira Bueno - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Iara Quelho de Castro - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Jiani Fernando Langaro - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
João José Caluzi - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
João Pedro Rosa Ferreira - Universidade Nova de Lisboa (NOVA), Portugal
José Marin - Université de Genève, Suíça Leonardo Lemos de Souza – Universidade Esta-
dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
Lúcia Helena Oliveira Silva- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), Brasil
Lúcia Regina Vieira Romano - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), Brasil
Luisa Consuelo Soler Lizarazo – Universidad Autónoma de Chile (UA), Chile
Márcio Pizarro Noronha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Maria Betanha Cardoso Barbosa - Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Brasil
Marcos Antonio de Menezes – Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Murilo Borges Silva - Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Nadia Molek - Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina
Patrícia Zaczuk Bassinello - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Raquel Gonçalves Salgado - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Regiane Corrêa de Oliveira Ramos – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),
Brasil
Renan Honório Quinalha - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
Robson Corrêa de Camargo - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
Rosangela Patriota Ramos - Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil
Sebastián Valverde – Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina
Tadeu Pereira dos Santos - Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Brasil
EXPEDIENTE
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Tanya Saunders - University of Florida (UF), Estados Unidos da América
Thaís Leão Vieira – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Tiago Duque - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Zélia Lopes da Silva - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Brasil
Capa
Imagem: Emerson Rocha (@de.saturno) – o azul onde reina Yemanjá – 2024 - acrílica,
nanquim, lápis de cor, marcador, waji e pigmento ouro sobre papel kraft 55x55cm
Capa: Roger Luiz Pereira da Silva e Róbson Pereira da Silva
Projeto Gráfico e Diagramação
Roger Luiz Pereira da Silva
Contato
albuquerque: revista de história
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Aquidauana
Unidade I
Praça Nossa Senhora Imaculada Conceição, 163 - Centro, Aquidauana/Mato Grosso
do Sul, Brasil.
CEP 79200-000. Aquidauana - MS, Brasil
Telefone +55 67 3241-0309.
E-mail: revista.albuquerque@ufms.br
EDITORIAL
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REPARAÇÕES NECESSÁRIAS, ATUAÇÃO DO ESTADO E PROTAGONISMOS OUTROS –
EDITORIAL
NECESSARY REPAIRS, STATE ACTION AND OTHER PROTAGONISMS – EDITORIAL
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21692
O trigésimo primeiro número de Albuquerque: revista de história é publi-
cado em meio à escalada da violência em âmbito internacional, com o avanço
dos confrontos relativos à invasão da Ucrânia pela Rússia a partir de fevereiro
de 2022, e a violentíssima ofensiva militar de Israel contra a Palestina na faixa de
Gaza, a partir de outubro de 2023. Israel tem sido acusado de limpeza étnica e
de ações genocidas diuturnamente, mas o efeito prático das acusações parece
longe de ocorrer, seja com o fim dos ataques, seja com a culpabilização em razão
das ações.
Os grupos/sujeitos/estados hegemônicos neste tabuleiro geopolítico rara-
mente sofrem sanções efetivas, ou têm prejuízos significativos decorrentes de
suas ações violentas. Apesar disso, é preciso que sejam denunciados, que as
pessoas, instituições e movimentos sociais se coloquem contrariamente à ne-
cropolítica transnacional que observamos neste momento.
No Brasil, os dados sobre a violência contra a população negra, contra as
mulheres, contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis,
intersexos, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de orien-
tação sexual (lgbti+), contra os povos indígenas permanecem demonstrando o
quanto os setores hegemônicos de nossa sociedade são violentos e o quanto Es-
tado é lento e/ou pouco se mobiliza no enfrentamento da situação.
Em 7 de agosto de 2024 o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Ro-
berto Barroso, pediu desculpas, em nome do Poder Judiciário, a Maria da Penha,
em razão da demora nos trâmites de seu caso de violência doméstica, tão em-
blemático que ela empresta seu nome à lei nº 11. 340, de 7 de agosto de 2006, que
criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar e que completou
dezoito anos. O Monitor de Feminicídios no Brasil, iniciativa do Laboratório de Es-
EDITORIAL
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tudos de Feminicídios da Universidade Estadual de Londrina, aponta para cres-
cimento de números estaduais que chegam a cerca de 170% de 2023 para 2024.
A Lei Maria da Penha permanece, portanto, tão relevante quanto o era quando de
sua publicação.
Aos 64 anos, Maria Luiza Silva, aposentada compulsoriamente vinte e dois
anos atrás pela Aeronáutica ao se declarar uma mulher trans, recebeu sentença
final do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu que ela foi vítima de
discriminação e que deveria ser reparada por isso. As garantias de dignidade e de
não discriminação às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis,
intersexos, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de
orientação sexual (lgbti+) permanecem inexistentes, demoradas, inviáveis...
Parte significativa desta população ainda carece de acesso efetivo aos benefícios
do Estado e a uma existência plena.
Em Douradina, Mato Grosso do Sul, os indígenas da Terra Indígena Panambi-
Lagora Rica estão sofrendo ataques dos produtores rurais, conclamados por
meio de
fake news
a agirem violentamente contra os indígenas. Mesmo com a
força nacional presente na região, produtores e seus capangas não têm sido
intimidados e a violência permanece: são mais de cinco séculos de genocídio
dos povos indígenas, seja pelas pestes, pela bala, pelo epistemicídio realizado
pelos missionários desde que os primeiros europeus puseram seus pés nestas
plagas.
A população negra continua sendo a que mais sofre com o racismo, seja por
ataques à sua coletividade ou individualmente, injúrias, mortes violentas, inclusive
aquelas causadas pelas polícias, o racismo religioso – inclusive aquele praticado
por órgãos do Estado brasileiro, como a recente destruição de um terreiro de
jarê no Parque Nacional da Chapada Diamantina por agentes do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade em 21 de julho deste ano.
E, em meio a essas cenas de violência contra a população negra e contra
as mulheres, são as mulheres negras as grandes protagonistas da participação
brasileira nos Jogos Olímpicos Paris 2024: Beatriz Souza e Rebeca Andrade foram
medalhistas de ouro em suas modalidades (judô e ginástica artística/solo feminino,
respectivamente). Duas mulheres negras, empenhadas profissionalmente em
suas atividades esportivas, conquistaram o lugar mais alto do pódio. Rebeca
Andrade, conquistando outras medalhas ainda, tornou-se a maior medalhista
brasileira da História das Olimpíadas. E outras mulheres e outros homens também
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conquistaram medalhas de prata e bronze, demonstrando a importância de uma
educação que contemple o esporte para o desenvolvimento do país.
Há que se ressaltar que, onde antes prevaleceu a presença de pessoas
brancas e de origem abastada, o protagonismo de mulheres negras, de origem
empobrecida se fez. Que se faça!
E que os artigos e resenhas publicados neste número de Albuquerque:
revista de história, que trazem reflexões sobre quadrinhos da Marvel e da DC
Comics, sobre raça, racismo e interseccionalidade, a democracia racial e a
recepção de “Orfeu Negro”, o aquilombamento na cidade de São Paulo, sobre
o ensino de gêneros multissemióticos, a Amazônia, a decolonialidade e suas
tessituras pelos indígenas, os processos de subjetivação feminina e os arquivos
pessoais de mulheres. No Caderno Especial, reflexões sobre Euclides da Cunha e
Rita Lee exploram a República e as subversões do amor. Jéssica Ferreira Alves,
Robson Pereira da Silva e Rafael Alves Pinto Júnior encerram o número com duas
resenhas. Agradecemos a todas as autoras e todos os autores por contribuírem
com Albuquerque: revista de história nos enviando seus textos. E esperamos que
as leitoras e os leitores apreciem o que têm em mãos.
Aguinaldo Rodrigues Gomes
Miguel Rodrigues de Sousa Neto
Editores.
ARTIGOS LIVRES
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Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro
dos Santos
RAÇA COMO TECNOLOGIA: APONTAMENTOS BÁSICOS SOBRE RAÇA, RACISMO
ESTRUTURAL E INTERSECCIONALIDADE
RACE AS TECHNOLOGY: BASIC NOTES ON RACE, STRUCTURAL RACISM, AND
INTERSECTIONALITY
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21195
Roger Luiz Pereira da Silva
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
rogerluizsilva98@gmail.com
https://orcid.org/0009-0007-6255-4163
Marinês Ribeiro dos Santos
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
https://orcid.org/0000-0002-9925-9949
ribeiro@utfpr.edu.br
Recebido em 22 de abril 2024
Aprovado em 02 de junho de 2024
RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo
discorrer como o racismo está posto na
sociedade brasileira, partindo da ideia de que
raça é uma tecnologia, isto é, raça é uma
mediação social que ordena e produz técnicas e
sentidos práticos que estruturam uma cultura.
Como procedimento metodológico, foi realizado
uma revisão bibliográfica acerca das definições
de raça, racismo estrutural e interseccionalidade
alicerçados em dados históricos e dados
estatísticos retirados de pesquisas realizadas
durante a pandemia do covid-19 pelas revistas
NEXO, Gênero Número e o Informativo de
Desigualdade Racial publicado pelo núcleo
de Pesquisa AFRO. A escolha por privilegiar
as pautas interseccionais advindas das lutas
do Movimento Negro Antirracista se dá na
importância de entender como as estratégias
de combate ao racismo estrutural estão sendo
desenvolvida no campo das ciências, tecnologia
e sociedade.
Palabras Clave:
Raça, racismo estrutural,
interseccionalidade.
ABSTRACT:
This work aims to discuss how
racism is present in Brazilian society, starting
from the idea that race is a technology, meaning
that race is a social mediation that orders and
produces practical techniques and meanings
that structure a culture. As a methodological
procedure, a bibliographic review was carried
out on the definitions of race, structural
racism, and intersectionality based on historical
data and statistical data taken from research
conducted during the COVID-19 pandemic
by the journals NEXO, Gênero Número, and
the Racial Inequality Newsletter published
by the AFRO Research Center. The choice to
privilege intersectional agendas arising from the
struggles of the Anti-Racist Black Movement is
important in understanding how strategies to
combat structural racism are being developed
in the fields of science, technology, and society.
Key words:
Race, Racism, intersectional.
ARTIGOS LIVRES
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Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro
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Tecnologia é quando você consegue sintetizar uma lógica para
viver, para facilitar determinada coisa… Uma tecnologia de so-
brevivência é quando você encontra formas e meios de se manter
vivo em um lugar que pensa na sua morte o tempo todo. Quando
eu falo sobre isso, eu tô determinando de onde eu venho, onde eu
vivo e qual é minha realidade. Então por que eu preciso de uma
tecnologia de sobrevivência? Por que eu vivo em um país que a
cada 23 minutos mata um jovem negro. Eu preciso de uma tecno-
logia de sobrevivência porque eu vivo em um país que mais mata
a população LGBTQ no mundo…
Bia Ferreira
Introdução
Em uma entrevista para o evento online brasileiro “O Futuro é Preto:
Afrofuturismo”
1
, a artista e escritora afrofuturista estadunidense Ytasha Womack
afirmou que “Race is a technology” (raça é uma tecnologia, em livre tradução),
relatando como a branquitude se apropria de meios técnicos para a tentativa de
consolidação das opressões de raça na cultura ocidental. No contexto brasileiro,
pessoas negras são constituídas a partir dessa tecnologia que visa marcá-las e
demarcá-las socialmente em posições de subalternidade.
O Movimento Negro Antirracista, para Nilma Lino Gomes (2017, p. 23), é
composto pelas “mais diversas formas de organização e articulação das negras
e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam
à superação desse perverso fenômeno na sociedade”. O Movimento Negro
Antirracista é um movimento social que ressignifica a ideia de raça, politizando-
a e tornando-a afirmativa enquanto potência de emancipação, ao mesmo tempo
que denúncia o caráter regulador e opressor em torno da mesma. No seu papel
denunciativo e crítico, essa articulação emancipatória indaga a história do
Brasil construindo narrativas e instrumentos teóricos, políticos e analíticos para
explicar o racismo brasileiro e como ele opera na vida cotidiana das pessoas
negras. Ativistas deste movimento trabalham para desvelar as construções de
poder pautadas na raça, rompendo visões distorcidas e naturalizadas sobre o
corpo negro, sobre a história e cultura da comunidade negra, retirando pessoas
negras da suposta inferioridade racial (GOMES, 2017).
1
Evento que ocorreu na plataforma Youtube no dia 19 de Junho de 2020, em que profissionais ne
-
gros(as), debateram sobre as temáticas afrofuturistas em diversas áreas do conhecimento. Ver em
<
https://www.youtube.com/watch?v=b912jgriot8&t=10972s
>. Acesso em 16 de mar. de 2022;
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Existem várias formas de organização do Movimento Negro Antirracista, al-
gumas delas são comunidades tradicionais (comunidades quilombolas), mobili-
zação política (criação de políticas públicas), protestos antirracistas (passeatas
em repúdio e denúncia as violências racistas cotidianas), produções artísticas
(música, cinema, artes plásticas, artes digitais, dança, teatro poesia), literárias
(romances afros, livros sobre raça e racismo), religiosas (terreiros), recreativas
(como clubes e bailes de cultura negra), acadêmica (textos, seminários, coletivos
que debatem sobre raça e racismo) e assistenciais (ONGS e organização de base
para comunidades periféricas).
Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre como o racismo opera na
sociedade brasileira, partindo da ideia de que raça é uma tecnologia, isto é, raça
é uma mediação social que ordena e produz técnicas e sentidos práticos que
estruturam uma cultura. Para isso, recorre-se a Silvio Almeida, bell hooks e Frantz
Fanon para entendermos teoricamente os conceitos de raça e racismo estrutural.
Para entender o conceito de Interseccionalidade, trabalhos das autoras Joice
Berth e Carla Akotirene são utilizados como aporte teórico. Para compreender
como estes conceitos estão efetivados nas relações sociais e culturais foram
analisadas pesquisas divulgadas pelas revistas NEXO, Gênero Número e o
Informativo de Desigualdade Racial publicado pelo núcleo de Pesquisa AFRO.
O racismo se estrutura por meio da tecnologia chamada raça
O significado do termo raça está atrelado ao caráter classificatório entre
seres vivos e em meados do século XVI passa a ser utilizado para a distinção de
seres humanos (ALMEIDA, 2020). A ideia de raça se modifica de acordo com os
contextos de uso, se tornando um termo não fixo, sofrendo alterações depen
-
dendo de seu recorte histórico. A partir do século XVIII, a noção de raça é tomada
como verdade biológica no ocidente. Enquanto marcador classificatório de seres
humanos, raça serve como métrica de diferenciação pautada em supostos atri-
butos biológicos que se manifestariam em características físicas morfológicas e
étnico-culturais. Esta distinção inscreve valores e julgamentos sociais que mar-
cam grupos que possuem características em comum em comparação a outros.
Deste modo, raça categoriza e dá nome a corpos que formam o que entendemos
no contexto brasileiro enquanto negros, brancos, indígenas, amarelos (GOMES,
2005), tornando-se um registro social da diferença.
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Além de registro social da diferença, raça serve como categoria de hierarqui-
zação de corpos racializados. Corpos brancos são definidos enquanto superiori
-
dade e padrão cultural, em relação aos corpos não brancos. É por esse proces-
so de hierarquização que se constitui a branquitude. Entende-se a branquitude
como uma estrutura de poder pautada na ideia da superioridade da identidade
racial branca e que opera no sentido de conferir vantagens para este grupo social
nas esferas culturais, políticas e econômicas (GOMES, 2017). A branquitude é uma
construção discursiva de uma superioridade racial que produz efeitos concretos
nas relações sociais (VAINER, 2022). Na branquitude, a ideia de raça está atrelada
ao pensamento de que características morfológicas estão naturalmente relacio-
nadas com hierarquias acerca de atributos de ordem moral, intelectual e estéti-
ca. Tais hierarquias sustentam, por exemplo, a crença de que homens brancos
são propícios a serem líderes e racionais (VAINER, 2022; ALMEIDA; 2020). Isto é,
pela predefinição que os consideram brancos, esses corpos já carregam valores
tomados como positivos socialmente.
A branquitude visa conferir privilégios aos corpos brancos, tomando estes
como padrões exemplares, ao mesmo tempo que, no contexto brasileiro, povos
indígenas e negros são estigmatizados e tidos como antagônicos aos seus valo-
res. A dominação branca se constitui mediante a atribuição de vantagens e privi-
légios políticos, econômicos, culturais e afetivos. Deste modo, a branquitude se
torna mecanismo hegemônico, ou seja, um modo de dominação que é exercido
não apenas pelo poder bruto, mas também por mediações e consensos ideológi-
cos (ALMEIDA, 2020).
Quando Ytasha Womack afirmou que
“Race is a technology”
(raça é uma
tecnologia, em livre tradução), relatando como a branquitude se apropria de
meios técnicos para a tentativa de consolidação das opressões de raça na
cultura ocidental, ela associa esta percepção com a ideia de que a tecnologia
é entendida como uma mediação social (CHUN, 2009). Enquanto mediação, a
tecnologia não produz neutralidade (FEENBERG, 1991), uma vez que quem possui
seu domínio, tem como finalidade utilizá-la visando resultados específicos e
muitas vezes em vantagem própria. Quando um grupo detém majoritariamente
a produção de tecnologias como estratégia de efetivar a sua centralidade e seu
controle sobre corpos e culturas, se criam opressões e desigualdades. Sobre
isso, Feenberg (1991, p. 106) elucida que: “A tecnologia é uma das principais fontes
de poder público nas sociedades modernas. Em relação às decisões que afetam
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nosso dia-a-dia, a democracia política é inteiramente obscurecida pelo enorme
poder exercido pelos senhores dos sistemas técnicos”
2.
Para Winner (1986), tecnologias são processos sociais contínuos, em que
são entrelaçados padrões de poderes econômicos e políticos e percebidos como
estruturantes do cotidiano social, criando assim uma ordem que influencia e es
-
tabelece parâmetros que perduram a longo prazo. A ideia de raça foi concebida
para estabelecer uma ordem social imposta pela branquitude. Para Wendy Hui
Kyong Chun (2009), focar a raça como tecnologia, como mediação, nos permite
ver a continuidade da função da raça que nunca foi simplesmente biológica ou
cultural, mas sim um meio pelo qual ambos são estabelecidos e negociados.
Na história do Brasil, os meios técnicos e os meios de produção foram
construídos a partir das mescla de tecnologias realocadas do continente europeu
com as tecnologias trazidas pelos africanos escravizados (CUNHA JUNIOR,
2010). Muito se fala da contribuição do trabalho dito braçal feito pelos negros
escravizados no Brasil Colônia e Brasil Império, como forma de efetivação da
suposta predisposição de tais corpos para essa finalidade de trabalho, porém é
pouco explicitado como o conhecimento técnico e científico (a força pensante)
dessas pessoas foram importantes para a sociedade brasileira (CUNHA JUNIOR,
2010). Por meio de diversos aprimoramentos advindos a mais de 4000 anos antes
da era cristã, das civilizações da antiguidade da região do vale do Rio Nilo, na região
do vale do Rio Níger (onde localiza-se Gana, Mali e Songai) os meios técnicos do
Brasil foram influenciados diretamente por essas heterogêneas culturas (CUNHA
JUNIOR, 2010).
Existiram a contribuição dos saberes farmacológicos advindos dos africa-
nos escravizados, tais como utilização da arruda para tratamento de infecções
transmitidas pelos insetos, o café ser uma planta advinda da Etiópia, são exem-
plos de técnicas africanas ainda presentes no cotidiano brasileiro. Isso faz en-
tender que “a mão de obra africana o Brasil foi em parte um conjunto de trabalha-
dores com formação profissional esmerada e com especializações importantes
para a economia da época em diversas áreas de ofícios” (CUNHA JUNIOR, 2010,
p. 20). Esses procedimentos técnicos são invisibilizados até na contemporanei-
2
Tradução livre do texto: “Technology is one of the major sources of public power in modern so-
cieties. So far as decisions affecting our daily lives are concerned, political democracy is largely
overshadowed by the enormous power wielded by the masters of technical systems” (FEENBERG,
1991, p. 301).
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Roger Luiz Pereira da Silva, Marinês Ribeiro
dos Santos
dade, pela ideia racista que não identifica o continente africano anterior a sua
exploração.
Mas, a partir da apropriação das técnicas africanas, a branquitude produziu
e produz a raça afim de efetivar e justificar as tomadas dessas técnicas em prol
do benefício próprio, podendo se favorecer em vários âmbitos sociais, como por
exemplo a economia fomentada pela produção do café. E por meio dos valores e
parâmetros criados pela branquitude, esta se apoderou das técnicas africanas
pelo discurso de civilizar e melhorar tais métodos advindos das sociedades su-
postamente inferiores, demarcando assim quem detém o controle de todos os
processos tecnológicos.
A raça enquanto tecnologia medeia sistemas de opressão, que entendemos
por racismo estrutural. Este sistema articula preconceitos, discriminações e vio-
lências que sustentam uma estrutura de poder pautada na raça como elemento
constitutivo dos sujeitos. Isto é, a marcação racial, ou racialização, produz cor-
pos carregados de valores, funções e posições sociais pré-definidas. Sendo as
-
sim, é preciso entender o racismo não como atos individuais, mas sim como uma
complexa estrutura social que organiza o exercício do poder, criando vantagens
sociais para certos grupos em detrimento de outros (ALMEIDA, 2020). Os grupos
subalternizados ficam sujeitos a processos de vulnerabilidade que os colocam
em múltiplas situações de desvantagem, uma vez que a estrutura do racismo
está construída na articulação entre três relações:
·
as econômicas;
·
as políticas/institucionais;
·
e as ideológicas.
Racismo econômico
Por economia é entendido como a sociedade se organiza para produzir
as condições materiais necessárias para a sua continuidade (ALMEIDA, 2020).
Enquanto constructo do racismo, a economia se dá pela desigualdade. A
desigualdade é um fenômeno social que é mensurado de forma relacional, ela
se dá a partir de uma relação entre pessoas ou conjunto de pessoas na qual a
interação gera mais vantagens para um dos lados (LIMA, MILANEZI, et. al.,
2020). Pessoas negras são economicamente mais desfavorecidas que pessoas
brancas, isso torna sua mobilidade social mais precária. Uma das explicações
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acerca de como a desigualdade econômica está associada ao racismo, parte
das heranças escravocratas nas estruturas sociais contemporâneas (ALMEIDA,
2020). Por mais que tenha ocorrido o fim oficial dos regimes escravistas, ainda
há resquícios dos padrões mentais e institucionais que permearam e permeiam
as relações econômicas e sociais, uma vez que não existiram políticas públicas
de distribuição de renda e direitos básicos para as pessoas negras e suas famílias
ex-escravizadas no período posterior à abolição da escravatura. Mas é pertinente
compreender que existe uma atualização dessas opressões de raça, para que não
se possa idealizar o racismo enquanto problema do passado.
Percebe-se que, na contemporaneidade, o racismo econômico faz com que
os marcadores subalternizados de raça, gênero e classe sejam vistos como fatores
não desvinculados, como podemos ver nos seguintes dados da desigualdade.
Pesquisas apresentam as informações de como a pandemia de Covid-19 teve
impacto direto na desigualdade racial econômica no Brasil. Desde o primeiro
caso da doença causada pelo coronavírus no país, oficialmente divulgado em
fevereiro de 2020, iniciou-se uma crise sanitária, social e política (LIMA, et. al.,
2020). Em uma pesquisa sobre
A desigualdade racial e de gênero no mercado
de trabalho no Brasil
3
realizada no segundo trimestre de 2020 pela plataforma
acadêmico-jornalística
NEXO políticas públicas
, foi diagnosticado que no Brasil,
homens brancos possuíam os maiores salários, seguido por mulheres brancas,
enquanto mulheres negras têm os mais baixos índices de rendimento salarial no
país. Na questão sobre desemprego, a pesquisa mostra que mulheres negras são
as mais afetadas, possuindo uma taxa de 18,2%, sendo que a média geral é de
13,3%. Homens negros possuem 14% e mulheres brancas e homens brancos são
os menos afetados pelo desemprego segundo a pesquisa. Veja os
gráficos 1 e 2:
3
Ver em
https://pp.nexojornal.com.br/Dados/2021/02/11/A-desigualdade-racial-e-de-g%C3%AA-
nero-no-mercado-de-trabalho-no-Brasil
. Acesso em 06 de Jun. de 2022.
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Gráfico 1 - Rendimento médio mensal considerando gênero e cor/raça no Brasil no primeiro trimestre de 2020
Fonte: NEXO
Gráfico 2: Taxa de desocupação considerando gênero e cor/raça no Brasil no primeiro trimestre
de 2020
Fonte: Nexo
Após reivindicações de organizações do Movimento Negro Antirracista
brasileiro, o Ministério da Saúde começou a colocar os marcadores de raça
enquanto elementos de base de dados sobre a pandemia do Covid-19. Antes disso
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essas informações não eram levantadas (LIMA, et. al, 2020; BERTOLDO, 2020).
Nas pesquisas realizadas em abril de 2020 foi levantado que a doença é mais
letal para pessoas negras, que representam 1 em cada 4 brasileiros internados
com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,9%), chegam a 1 em cada 3 entre os
mortos (34,3%) e são o único grupo racial que tem a taxa de mortalidade (34,3%)
maior do que internação (23,9%) (BERTOLDO, XAVIER, 2020).
Como consequência do racismo de classe ou racismo econômico, o acesso à
saúde é um problema que pessoas negras enfrentam no contexto brasileiro. Se-
gundo o informativo publicado em outubro de 2020 pelo Afro Núcleo de Pesquisa
e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, pessoas negras são o grupo que
mais sofre de doenças associadas a diabetes, tuberculose, hipertensão e doen-
ças renais crônicas no país, doenças essas consideradas agravantes da Covid-19
(LIMA, MILANEZI, et. al., 2020). A população negra é o grupo que vive em locais
com pior acesso aos serviços públicos, sofre com a precariedades de mobilidade
urbana, acesso a hospitais e postos de saúde (LIMA, et. al., 2020). Assim, a pan-
demia não se restringe apenas à esfera da saúde, ela perpassa pelos problemas
de território, trabalho, renda e educação, sendo uma ferramenta de produção e
reprodução de desigualdade racial. Em questão de mortalidade foram os corpos
negros que foram mais atingidos pela covid-19 (BERTOLDO, XAVIER, 2020).
Racismo Político/Institucional
No aspecto político/institucional do racismo, entende-se que o Estado é
uma forma política que alimenta e reproduz a divisão de grupos e pessoas por
meio das estruturas estatais. O Estado é a relação material da força (ALMEIDA,
2020) isto é, ele é construído pela institucionalização e a centralização do
poder de uma sociedade. O Estado é um elemento fundamental para reproduzir
comportamentos sociais racistas, pois ele institucionaliza todos os parâmetros
da vida social, inclusive o racismo.
As instituições são formadas para orientar, rotinizar e coordenar
comportamentos sociais que estabilizam as sociedades, ou seja, estabelecem
normas e padrões que orientam os indivíduos. O grupo social que domina as
instituições é um exemplo prático dos efeitos do racismo institucional brasileiro.
Homens brancos possuem o domínio sobre as instituições públicas, tais como
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cargos de poder nos legislativos, nos judiciários, nos ministérios públicos e nas
reitorias de universidades (ALMEIDA, 2020). Esse cenário mostra quais corpos
são ou não aceitos nas instituições e para quem elas são formadas.
Vejamos como exemplo as instituições educacionais. Estudos mostram
como a educação tem um papel crucial na mobilidade social. Porém,
enquanto ferramenta estrutural do racismo, a educação se torna produtora de
desigualdades (VENTURINI, et. al, 2020). Assim, racismo econômico e racismo
político/institucional se interrelacionam. No caso da presença de pessoas negras
enquanto estudantes nas instituições educacionais do ensino superior, tais como
universidades públicas, historicamente esses corpos eram excluídos, uma vez
que, as vagas dos cursos mais disputados eram preenchidas majoritariamente
por estudantes brancos oriundos de escolas de ensino fundamental e médio da
rede privada (VENTURINI, et. al, 2020). Após a implantação de ações afirmativas,
como as cotas raciais para adesão de estudantes pretos, pardos e indígenas nas
universidades públicas brasileiras, houve um aumento significativo de pessoas
negras nas universidades. No entanto, esse aumento se deu de forma desigual,
havendo uma maior participação desse grupo em áreas como Humanidades
e Ciências Sociais Aplicadas em comparação as outras áreas, como Ciências
Exatas e Ciências da Natureza (VENTURINI, et. al, 2020).
A política de cotas para ingresso de estudantes oriundos de escola pública,
inicialmente foi instaurada em 2002 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e a Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021). Desde então, organizações
ligadas ao Movimento Negro Antirracista brasileiro fomentaram a discussão sobre
a implantação desta política a partir do recorte racial, uma vez que, pessoas pretas,
pardas e indígenas são as que menos ingressam nas universidades públicas do
país. Dez anos depois, em 2012 no governo de Dilma Rousseff, foram colocadas
como lei federal as políticas de cotas raciais e cotas para estudantes de escola
públicas do ensino médio (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021). Alguns resultados dessa
ação afirmativa reverberam positivamente, uma vez que, segundo os dados da
Associação de Reitores de Instituições Federais (Andife), o acesso de negros e
pardos ao ensino superior público passou de 34,4% em 2003, 47,6% em 2014 e
em 2018 foi para 50,3% (GUIMARÃES, ZELAYA, 2021).
Deste modo, entende-se que as políticas de cotas raciais são uma
estratégia de combate ao racismo político/institucional que não têm a finalidade
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de demonstrar qual grupo racial possui uma suposta capacidade intelectual
em adentrar em uma universidade. As cotas têm como objetivo reconhecer e
combater as desigualdades construídas historicamente pelos marcadores de raça
e classe que dificultam as oportunidades para corpos negros, pardos e indígenas
ocuparem espaços que são de direitos básicos. Elas visam reparar a forma de
como o Estado historicamente produziu racismo e exclusão nos processos de
escolarização nas universidades públicas.
Além de exclusões de pessoas negras no âmbito acadêmico, o racismo
institucional utiliza o discurso academicista como produtor de poder da
branquitude. A ciência, produto da academia, possibilita criar discursos de
autoridade, que muitas vezes são incontestáveis. Pelo caráter restritivo de quem
produz e consome, essa restrição acontece não por questões de capacidade,
mas sim por questão de hegemonia (ALMEIDA, 2020). É formado uma ordem de
validação do conhecimento que dita “a verdade” que é controlada por pessoas
brancas para pessoas brancas, gerando assim a autopreservação do discurso
feito pela branquitude acadêmica.
Por meio da “verdade científica” a academia classificou, hierarquizou e no
caso de conhecimentos advindos da cultura negra desvalidou práticas de saberes
africanas e afro brasileiras. Assim, outras formas de conhecimento que não
combinem com as diretrizes academicistas da branquitude não são reconhecidas
enquanto constructo de saberes. Portanto, “a ciência não é, um simples estudo
apolítico da verdade, mas a reprodução de relações raciais de poder que ditam o
que deve ser considerado verdadeiro” (KILOMBA, 2019, p.53). Com isso, entende-
se a academia como um espaço de violência simbólica.
Porém, a universidade pode ser um espaço de disputa de discursos, uma
vez que, intelectuais ativistas do Movimento Negro Antirracista reivindicam
o poder de fala sobre os discursos produzidos pela academia. Grada Kilomba
(2019) salienta que o discurso da negritude acadêmica surge para transgredir a
linguagem academicista clássica, como uma forma de produção emancipatória
alternativa, que configura o conhecimento e transforma o poder em prol da
abertura de novos espaços da teorização e da prática.
Na pandemia de Covid-19, o racismo político/institucional se intensificou
por meio das desigualdades presentes nas diferentes condições entres as
escolas públicas e as escolas privadas do ensino básico, fundamental e superior;
as expressivas desigualdades regionais no território nacional; assim como nas
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estruturas domiciliares e de acesso a equipamentos que viabilizem o ensino
remoto (VENTURINI, et. al, 2020). Nas instituições básicas, negros e pardos são
os grupos que mais compõe o corpo discente, e por conta das medidas repentinas
causadas pela pandemia as escolas públicas em primeiro momento decidiram
suspender as atividades e depois houve uma adaptação do ensino remoto,
com enfrentamento de dificuldades de infraestrutura tanto dos professores
quanto dos alunos (VENTURINI, et. al, 2020). Com o cenário das adaptações
voltadas ao ensino remoto, recorreu-se à utilização de computadores, celulares,
demandando acesso à internet e espaço domiciliar adequado para presenciar as
aulas remotamente. Com isso, foi percebido que o acesso a esses recursos não é
democraticamente obtido por todos os alunos.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada
em 2019, 16% dos estudantes nos níveis de escolaridade da alfabetização e do
ensino fundamental público não possuem acesso à internet e em ambos os níveis
de escolaridade, a proporção de estudantes negros sem acesso à internet é maior
do que a de brancos (VENTURINI, et. al, 2020). Nas regiões do Norte e Nordeste,
onde existe a maior concentração de pessoas negras no país, a proporção de
pessoas sem acesso à internet é três vezes maior do que as de pessoas da região
do Sudeste, Sul e Centro-Oeste (VENTURINI, et. al, 2020). Esses dados mostram
que a estrutura educacional do Brasil não contempla de maneira igualitária todos
os alunos.
Racismo ideológico, Estereótipos e Imagens Racistas
Entender o racismo enquanto relação ideológica, é considerar a ideologia
enquanto uma prática, um processo de constituição de subjetividades de
indivíduos cujas consciências e afetos estão de algum modo conectados com as
práticas sociais (ALMEIDA, 2020). Uma pessoa não nasce negra ou branca, ela
assim se torna a partir da situação em que seu corpo é ligado a uma rede de sentidos
compartilhados coletivamente. O racismo, enquanto ideologia, só consegue
perdurar porque produz um sistema de ideias que fornece uma explicação pseudo-
racional para a desigualdade racial, que consiste em naturalizar papéis sociais
subalternizados para pessoas negras. Neste processo constitui também, sujeitos
que não se sentem abalados diante da discriminação e da violência racial que é
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classificada como normal e natural a partir da branquitude (ALMEIDA, 2020). Isto
é, como ideologia, o racismo torna a violência contra pessoas negras a norma,
ao mesmo tempo que opera na constituição de afetos e interpretações que não
consideram tais agressões problemáticas, sejam elas simbólicas ou físicas. Para
que essa naturalização ideológica se estabeleça como majoritária, tais valores
precisam circular nas relações sociais. Logo, os meios de comunicação, as mídias
e os sistemas educacionais constituem espaços privilegiados por meio dos quais
o racismo opera na criação de um imaginário social que naturaliza estereótipos
raciais.
Entende-se os estereótipos como certo tipo de categorias simplificadoras
ou atalhos cognitivos que podem participar dos exercícios de poder (BIROLI,
2011). São dispositivos cognitivos facilitadores de acesso a novas informações,
pois permitem previsibilidade e equivalem a padrões que correspondem às
expectativas normativas. Consistem, portanto, em categorias que estabelecem
padrões de aproximação de valores e julgamentos, tendo caráter produtivo e de
naturalização (BIROLI, 2011). Isto é, os estereótipos são criados como uma forma
de reduzir, simplificar e naturalizar significados em uma cultura. As mídias e os
meios de comunicação de massa são instituições que produzem estereótipos e
os colocam em circulação.
Segundo bell hooks (2018), é possível visualizar em revistas, programas
de televisão, filmes e fotografias, imagens de pessoas negras que reforçam
estereótipos que implicam opressões. Para a autora, as imagens podem
desempenhar um papel importante no controle do poder político e social
em relação a certos grupos. A relação entre indivíduos e o mundo é sempre
mediada por variados fatores, entre eles estão as imagens produzidas pela TV,
internet e páginas de revistas, entre outras mídias (BIROLI, 2011). Essas imagens
recorrentemente cristalizam certas convenções de linguagem, ligadas aos
regimes de representação historicamente constituídos, que foram consolidadas
nas próprias práticas profissionais envolvidas em suas produções.
No campo do design ou das artes gráficas existem rotinas que favorecem a
naturalização de certas convenções visuais ligadas a estereótipo. Uma vez que
nas instituições de formalização e capacitação de tais profissionais, existe uma
certa recorrência a fórmulas e soluções já consagradas na busca por resultados
entendidos como eficazes. Nas produções de design gráfico, pode-se identificar
convenções visuais institucionalizadas nas bibliografias dos cursos de design, nos
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bancos de imagens utilizados para criação de projetos gráficos e em produções
historicamente utilizadas como referencial de projeto gráfico. Nas práticas de
criação de imagens, as naturalizações de estereótipos estão ligadas à ausência de
reflexão crítica acerca das rotinas de previsibilidade. Quando não questionadas,
tais rotinas tendem a ser incorporadas como um repertório compartilhado nas
formações de profissionais (BIROLI, 2011)
4
.
Por mais que a mídia e os meios de comunicação de massa sejam
propagadores de estereótipos, produzindo e reproduzindo imaginários
hegemônicos, existem alguns aspectos que complexificam as análises sobre a
relação entre estereótipos e mídias (BIROLI, 2011). A complexidade da relação
entre estereótipos e mídia decorre da grande variedade de narrativas veiculadas
que não são homogêneas na mídia dominante. Além disso, existem também
narrativas produzidas em sistemas alternativos de comunicação. Sendo assim,
os estereótipos não são capazes de dar sentido à totalidade das experiências
dos grupos sociais, pois existe um campo de disputas em que os discursos
alternativos utilizam de fissuras e contradições dos discursos dominantes para
produzirem novas formas de representação.
Mas como ressalta Biroli (2011), deve-se levar em conta, nos sistemas de
circulação, as assimetrias no alcance e nos pesos atribuídos às narrativas
hegemônicas e às narrativas alternativas (contranarrativas). O acesso à ampla
circulação e à legitimação das informações não são igualmente distribuídos,
favorecendo certas vozes sociais em detrimento de outras. Isso contribui
para a dinâmica que torna alguns grupos invisíveis e estereotipados, já que “a
invisibilidade está relacionada ao fato de que suas perspectivas sociais são
silenciadas” (BIROLI, 2011, p.79). No campo de disputas por representação, quem
detém os meios dominantes, tem o poder de divulgar ampla e positivamente seus
valores, enquanto marca negativamente outros grupos sociais.
Os grupos socialmente estigmatizados pelas imagens criadas pela cultura
4 A autora enfoca os estereótipos nas produções jornalísticas. Aqui ampliamos a discussão para as
produções de Design Gráfico, que são utilizadas na criação de imagens que circulam nos meios de
comunicação. Tal aproximação é possível, uma vez que, assim como o jornalismo, o Design Gráfico
é uma ferramenta de comunicação. Segundo Rudinei Kopp (2009), a primeira vez que o termo design
gráfico foi utilizado por William Addison Dwiggins em 1922, foi para definir sua atuação enquanto
um trabalho de ordem visual para as formas de comunicação. Deste modo, entende-se o Design Grá-
ficoenquanto prática comunicativa, assim como o jornalismo.
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dominante, que carregam estereótipos de opressão, reivindicam e tornam a
imagem uma ferramenta de luta cultural (HALL, 2003). Desta luta cria-se um
campo de disputa que ocorre na complexidade entre resistir, recusar e denunciar
estereótipos que produzem violência contra estes corpos, que identificam que a
construção negativa da imagem tem uma motivação sociopolítica (BERTH, 2019).
Pessoas negras denunciam como alguns estereótipos são prejudiciais para as
culturas negras, quando carregados de valores e julgamentos de subalternização
de raça, gênero, sexualidade e classe.
Frantz Fanon (2020) ressalta como historicamente as imagens dos corpos
e das culturas negras foram estigmatizadas pelo olhar da branquitude. O autor
observa que
:
Na Europa, o negro representa, seja concreta ou simbolicamente, o lado mau da per-
sonalidade. Enquanto não tivermos compreendido essa proposição, estaremos con-
denados a falar em vão sobre o “problema negro”. O negro, o obscuro, a sombra, as
trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, denegrir a reputação
de alguém; e, do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz
feérica, paradisíaca. Uma magnífica criança loira, quanta paz nessa expressão, quan
-
ta alegria e, acima de tudo, quanta esperança! Nada comparável com uma magnífica
criança negra: literalmente, é algo insólito. Apesar de tudo, não haverei de revistar as
histórias dos anjos negros. Na Europa, ou seja, em todos os países civilizados e civili-
zadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado
pelo negro. (FANON, 2020, p. 200)
Neste trecho, Fanon ressalta como, no ocidente, a branquitude utilizou da
dualidade entre branco/preto e bem/mal para construir marcadores racistas em
que o imaginário negativo se impregna no corpo negro. A dualidade construída
pela branquitude coloca valores socialmente positivados nas representações
das culturas eurocêntricas enquanto sinônimos de bom, bem, agradável, bonito,
maior e melhor, já as referências às culturas africanas são entendidas enquanto
mal, ruim, desagradável, feio, menor e pior, causando efeitos de inferiorização,
homogeneização, invisibilização, objetificação, demonização e fatalização das
experiências negras. Deste modo, são naturalizados imaginários racistas que
não questionam estes valores (FANON, 2020). Os veículos de comunicação de
massa tendem a reproduzir esses imaginários mediante o trabalho imagético de
reiteração da inferioridade negra em favor da hipervalorização branca, enquanto
sinônimo de perfeição (BERTH, 2019).
Enquanto prática do racismo ideológico, as imagens presentes nos meios
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de comunicação dominados pela branquitude possuem um papel de controle so-
cial. Isto é, desde a escravização em diante, a branquitude utiliza a imagem como
uma das ferramentas centrais para a manutenção do racismo (HOOKS, 2018). Es-
sas imagens sustentam as noções de superioridade branca, mediante a subor-
dinação de corpos não branco (HOOKS, 2018). Imagens racistas são veiculadas
de forma massiva e constante pela mídia dominante, contribuindo para ocultar a
responsabilidade da branquitude em responder pelas violências contínuas liga-
das às múltiplas formas de explorações vivenciadas pelos povos negros (BUENO,
2019).
Deste modo, os meios de comunicação participam da criação de valores ra-
cistas sobre os corpos negros, produzindo opressões de raça, gênero, sexualida-
de e classe social. Tais corpos, aqui, se encontram enquanto carne carregada de
estereótipos e dificuldades definidas pela branquitude. Quando circulam nos es
-
paços embranquecidos vivenciam negações, incertezas e opressões corporais
pois “é em sua corporeidade que o negro é atingido” (FANON, 2020, p. 177). Assim,
coexistindo com as imagens racistas, pessoas negras podem internalizar valores
deturpados sobre si mesmas, como sugere Silvio Almeida (2020, p. 65):
Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo
de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a
personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas
profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades
complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações.
As imagens presentes na história da televisão e das telenovelas brasileiras
majoritariamente propagam estereótipos de opressão contra as pessoas negras.
Segundo uma pesquisa realizada para o documentário
A Negação do Brasil
(2000)
de Joel Zito Araújo, em 75% dos papéis interpretados por atores negros, seus
personagens estavam atrelados a narrativas de submissão (FERREIRA, 2017). O
diretor do filme, ao ser entrevistado por Bruce Douglas (2015) para o jornal
The
Guardian,
afirmou que as imagens de pessoas negras presentes nas telenovelas
brasileiras estão ligadas, em sua maioria, a representações de moradores de fa-
velas, servos domésticos e criminosos.
Segundo Araújo (2008), na década de 1960, atrizes negras interpretaram
regularmente apenas escravizadas e empregadas domésticas, sendo uma
reedição dos estereótipos comuns presentes no cinema e na televisão
estadunidense. Um dos exemplos de sucesso comercial de personagens negras
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como domésticas foi a de Maria Clara, na novela
Antônio Maria
(1968), interpretada
pela atriz Jacyra Silva. O autor da novela, Geraldo Vietri, em entrevista para a
revista
Melhores Momentos
(1980), relatou que a trama da personagem “mudou
quase completamente a mentalidade de patrões em relação a empregados. Recebi
cartas de domésticas que transformaram Maria Clara em um ídolo”. Subentende-
se na fala do autor que é um homem branco, uma suposta harmonia entre patrões
brancos e empregadas negras. Isso esconde a relação de inferiorização social
dos negros causada pelo racismo econômico, maquiada pelas telenovelas que
representavam uma certa amistosidade e convivência pacífica entre as raças. As
representações convencionais da branquitude acerca das mulheres negras que
trabalham como empregadas domésticas geralmente tendem a criar a presunção
de um possível afeto entre as famílias brancas e suas empregadas, criando assim
um marcador normativo quanto ao comportamento profissional das mulheres
negras. Tal marcador opera sob um mito no qual as empregadas se dedicam a
cuidar e amar as famílias brancas (BUENO, 2017). Essas imagens, que associam
majoritariamente mulheres negras com representações de trabalhadoras
domésticas, constituem um imaginário que naturaliza a percepção destes
corpos como supostamente destinados para estas únicas funções de serviçais.
Logo, operam como uma atualização das premissas racistas advindas do período
escravocrata, que entendiam as mulheres negras enquanto exemplo de mão de
obra doméstica a serviço da família branca.
Na década de 1970, houve uma pequena mudança nas atribuições
profissionais ligadas a personagens negros. Araújo (2008), cita como exemplos
o psiquiatra, Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves em
Pecado capital
(1975) e Dona Elisa, interpretada por Ruth de Souza, que era uma professora e
dona de escola na novela
Duas Vidas
(1976). As duas novelas foram escritas por
Janete Clair. Porém, esses personagens não faziam parte do enredo principal
das histórias, sendo colocados como secundários. Foi apenas em 1996 que, pela
primeira vez na história da teledramaturgia brasileira, uma mulher negra ocupou
o lugar de protagonista. A personagem Xica da Silva foi interpretada por Taís
Araújo na novela de nome homônimo. Entretanto, Xica da Silva foi construída
a partir dos estereótipos de gênero, raça e sexualidade que constituíram as
imagens das mulatas sedutoras e destruidoras de lares (ARAÚJO, 2008). Na
trama, Xica da Silva é uma mulher ex-escravizada que consegue sua alforria ao
se relacionar afetivamente com o explorador de diamantes João Fernandes de
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Oliveira durante o período colonial. Com teor erótico, a novela foi transmitida pela
emissora Rede Manchete, que caracterizava a personagem como “uma mulher
lasciva e dominadora, uma mulher insaciável e capaz de dominar qualquer homem
com o poder de seu corpo” (NUNES, 2019).
No caso da Rede Globo, pessoas negras foram, e ainda são, minoria nas
narrativas presentes nas novelas produzidas pela emissora. Segundo a pesquisa
feita por Joel Zito Araújo (2008), em um terço das telenovelas produzidas pela
Rede Globo, até o final da década de 1990, não havia nenhum personagem negro.
Em outro terço, o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar
levemente a marca de 10% do total do elenco. Esses números contrastam com o
percentual de pessoas que se identificam como negros no país, que segundo o
IBGE é de 54% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2016). Isso mostra
que as novelas da emissora não se preocupam em contemplar o perfil do povo
brasileiro em suas narrativas. Além disso, um corpo negro interpretando uma
protagonista em uma novela da emissora só pode ser visto em 2004, na novela
Da Cor do Pecado
de João Emanuel Carneiro. A personagem, Preta de Souza,
também foi interpretada por Taís Araújo. Destaca-se aqui o título da novela, que
associa o corpo e a cor negra com a ideia de pecado, caracterizando a beleza e
a sexualidade negra como algo provocativo. Araújo (2008) ainda destaca outro
aspecto comum nas narrativas das telenovelas brasileiras, que diz respeito a
tratar o racismo como um problema individualizado, tal como um desvio de caráter
dos personagens vilões nas tramas. Isso não contribui para um entendimento
mais complexo da temática, que deveria ser tratada como algo sistemático e
estrutural, como um traço recorrente e ainda presente na sociedade e na cultura
brasileira (ARAÚJO, 2008).
Interseccionalidade
As opressões de raça não funcionam de modo isolado. Para que as
desigualdades do racismo estrutural existam, é preciso ter uma articulação com
outros marcadores das diferenças que fortaleçam o sistema da branquitude. É
na análise dessas articulações que a perspectiva interseccional trabalha para
identificar como ocorre essa dinâmica social que atinge os mais diversos corpos
negros. O termo “interseccionalidade” foi cunhado em 1989 pela pesquisadora
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estadunidense Kimberlé Crenshaw no artigo
Demarginalizing the Intersection
of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine,
Feminist Theory and Antiracist Politics
. A partir disso, o termo foi apropriado
por pesquisadoras e ativistas do Feminismo Negro enquanto abordagem e
intervenção política nas práticas de resistência e experiência de mulheres negras
(AKOTIRENE, 2020).
Nesta perspectiva destaca-se a importância de não desvincular as opressões
que atravessam as vivências de mulheres negras, cujas trajetórias articulam
múltiplos marcadores sociais de diferença. Sendo assim, esta perspectiva
funciona enquanto ferramenta analítica para entender os contextos múltiplos das
desigualdades que emergem da intersecção entre raça, gênero, sexualidade e
classe social, entre outros marcadores possíveis. Além de denunciar as opressões
estruturais da sociedade, a discussão teórica pautada na interseccionalidade foi
construída a partir da consciência da invisibilidade das experiências de mulheres
negras nas agendas do Movimento Negro Antirracista e do Feminismo Branco.
Este último tende a universalizar o “ser mulher”, a partir das experiências e
vivências apenas de mulheres brancas (AKOTIRENE, 2020).
Quanto ao Movimento Negro Antirracista, Grada Kilomba (2019) ressalta
que a literatura antirracista na primeira metade do século XX falhou em abordar
as posições específicas de mulheres negras e as formas pelas quais gênero e
sexualidade se relacionam com as reflexões de raça. A ausência da perspectiva
interseccional nas pautas do Movimento Negro Antirracista pode produzir
problemas de invisibilidade sobre as experiências de mulheres negras, como
também nas de pessoas LGBTQIAP+
negrxs
. Deste modo, a interseccionalidade
tira das pautas dos movimentos sociais o essencialismo sobre gênero e raça,
demonstrando que nem toda mulher é branca e nem todo negro é homem
(AKOTIRENE, 2020). Essa perspectiva estimula o pensamento complexo, a
criatividade e evita que grupos subalternizados produzam novos essencialismos.
De acordo com Carla Akotirene (2020), a perspectiva da interseccionalidade
é uma sensibilidade analítica de entender as identidades subalternizadas e as
opressões que tal subalternização estão relacionadas com o poder. É uma
construção teórico-metodológica iniciada pelo feminismo negro para as mulheres
negras, mas isso não significa que seja exclusiva a este grupo, pois mulheres
não negras também devem refletir sobre o modo que suas vivências identitárias
são articuladas. Essa abordagem possibilita, ainda, que LGBTQIAP+ sejam
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incorporados nas pautas da interseccionalidade. Deste modo, os marcadores
basais da perspectiva da interseccionalidade são raça, gênero, sexualidade e
classe social.
Quando Carla Akotirene (2020) ressalta que gênero inscreve o corpo
racializado, entende-se que estes corpos, produtos da subalternização, mesclam
marcadores da diferença de gênero e de raça, como aponta Tanya Saunders
(2020, p. 192) “As premissas de gênero e sexualidade entrelaçaram firmemente
com um sistema de classificação racial, emergente, de tal forma que é impossível
entender um eixo [...] sem entender como ele coexiste e é estruturado pelo outro”.
Saunders (2020) evidencia que durante o século XIX, o racismo científico
hegemônico juntamente com o marcador da sexualidade, sustentou o
entendimento de que o corpo negro lésbico fosse classificado como o pervertido
feminino “não humano”, provido de perversidade e o oposto da ordem social
guiada pelo corpo, cisgênero
5
, masculino, heterossexual, burguês e cristão.
Desta forma, compreendemos que mulheres negras, bem como corpos negros
não cis e não heterossexuais, carregam em sua identidade cultural construções
históricas pautadas pela noção de “outro”.
Gênero, assim como raça, também foi entendido como uma categoria
da diferença que a partir da ideia que o homem (branco) é universal, mulheres
foram tidas como “o outro”. Anteriormente às teorias feministas, “gênero não
pertencia ao homem, gênero era a marca da mulher, a marca de uma diferença
que implica a condição de subordinação das mulheres à família e à sociedade”
(LAURETIS, 2021, p.167). Enquanto conceito crítico, gênero foi introduzido e
articulado por feministas em diversos campos disciplinares, como uma forma de
denunciar e criticar as opressões vindas dos sistemas que produzem normativas
androcêntricas (AKOTIRENE, 2019; LAURETIS, 2021).
Segundo Teresa de Lauretis (1994), a categoria gênero opera como
representação e autorrepresentação, produto de diferentes tecnologias
sociais, de discursos, epistemologias e práticas institucionalizadas presentes
na vida cotidiana. Para Lauretis (1994) gênero medeia as relações do sistema
“sexo-gênero”, que são concepções culturais que marcam corpos masculinos e
femininos como complementares e opostos ao mesmo tempo. Essas marcações
5 Identidade de gênero em que o indivíduo se reconhece com o gênero atribuído em seu nascimento
(CAZEIRO; SOUZA; BEZERRA, 2019).
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formam sistemas de significação que produzem valores e hierarquias sociais,
posicionando as masculinidades como superiores às feminilidades. Sobre os
valores impostos pelo sistema sexo-gênero mulheres são supostamente frágeis,
são designadas a cuidar do ambiente doméstico, e subordinadas aos homens,
já os homens são fortes, não são formados para o trabalho doméstico e são
superiores em relação as mulheres. Os sistemas sexo-gênero estão ligados
a fatores políticos e econômicos, produzem assimetria de posições sociais,
produzindo desigualdades pautadas no gênero.
Assim como a pedagogia dos opostos binários medeia e sustenta o racismo,
como destacado antes, nas questões de gênero isso também ocorre. Os sistemas
de classificação se apropriam de valores e significações de bem/mau, forte/frágil,
bom/ruim, racional/emotivo, para produzir hierarquias e opressões. Racismo
estrutural e o sistema sexo-gênero são articulações sistêmicas que produzem
e reproduzem preconceitos, discriminações e violências. Eles sustentam uma
estrutura de poder pautada na raça, sexualidade e gênero como elemento
constitutivo dos sujeitos em uma sociedade. Existem exemplos de estereótipos
que mostram como a intersecção de gênero e raça produz esses binarismos
e preconceitos, tais como, a ideia de que mulheres brancas são frágeis em
comparação a homens brancos e negros, mulheres negras têm mais propensão
ao trabalho doméstico pesado do que mulheres brancas, homens negros tem
mais facilidade para atividades “braçais” do que homens brancos.
A sexualidade está ligada ao termo sexo, que historicamente foi utilizado para
definir as diferenças anatômicas entre corpo lidos como masculinos e femininos
(LOURO, 2000). Com isso, as noções de gênero e sexualidade, muitas vezes são
tratadas como equivalentes e entendidas, em alguns casos, como inerentes. A
sexualidade, enquanto marcador da diferença, é ao mesmo tempo um fator que
constrói a norma. A normativa, pautada na heterossexualidade como algo natural,
tira o caráter político e social que esse marcador carrega. Tal qual o gênero e
a raça, a sexualidade foi constituída historicamente a partir de discursos e
práticas que regulam, normatizam e instauram saberes que produzem supostas
“verdades” (LOURO, 2000). Antes do século XIX, a sexualidade no ocidente era
uma preocupação da religião hegemônica cristã e da filosofia moral. A partir
do século XIX, a sexualidade passa a ser considerada um fenômeno que deve
ser estudado e entendido mediante a sua introdução nas áreas da psicologia,
biologia e antropologia. A disciplina de sexologia, se especializa na elaboração de
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discursos científicos sobre os comportamentos sexuais e no século XX o tema
foi pauta de discussões da sociologia e da história (LOURO, 2000).
A heterossexualidade e a associação entre sexo e gênero marginalizava e de
certo modo ainda marginaliza corpos cujos desejos não são entendidos enquanto
heteronormativos, tais como aqueles identificados com a homossexualidade
e a bissexualidade, colocando-os como desviantes. Historicamente, a
homossexualidade foi tida como doença e desvio comportamental. A mesma
coisa acontecia com a identidade de gênero de travestis e transexuais, que até a
década de 2010 estava inscrita como patologia psicológica.
A interseccionalidade de raça, gênero, classe e sexualidade, quando enfocadas
por um olhar antirracista, trabalham para um futuro que se opõem às práticas
da cultura dominante que tendem a violentar mulheres negras heterossexuais e
corpos LGBTQIAP+
negrxs
. Aqui a heteronormatividade é entendida como sistema
racializado de poder. Assim, Tanya Saunders (2020) salienta a importância de
corpos negros serem mais críticos ao abraçarem a heternormatividade, uma vez
que esta se enquadra nas políticas racistas dominantes.
Conclusão
Este trabalho visou apresentar alguns conceitos básicos sobre as relações
raciais no Brasil. Foram apresentados dados históricos e estatísticos que
demonstram como o racismo estrutural é uma articulação complexa que
juntamente com outros marcadores sociais, tais como de gênero, classe e
sexualidade produzem um fenômeno que estigmatiza, violenta e subalterniza
corpos que são inferiorizados pela branquitude. Tal branquitude criou raça como
uma tecnologia que medeia e efetiva opressões no intuito de criar uma ordem
hegemônica.
Foi levado em conta como o racismo estrutural é sistemático e atinge várias
instâncias sociais, na história e no cotidiano brasileiro. Foi explicitado que essa
articulação produz desigualdades econômicas, institucionais e ideológicas,
em que ambas se entrelaçam e se complementam para efetivação do sistema
de hegemonia: a branquitude. Foi observado como a Branquitude, se beneficia
socialmente na propagação da suposta superioridade que pessoas brancas têm
em relação às outras raças.
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Neste contexto, a raça opera como uma tecnologia. Isto é, enquanto mediação
social alicerçada por meios e artefatos tecnológicos, raça ajuda a construir
uma ordem em que são produzidas técnicas de opressão e subalternização que
qualificam a branquitude como detentora desses instrumentos normativos. Isso
ajuda a entender, que a tecnologia não é neutra (FEENBERG, 1991) e é um processo
social contínuo, em que são entrelaçados padrões de poderes econômicos e
políticos no cotidiano social (WINNER, 1986). Entender raça enquanto tecnologia,
elucida que não se trata simplesmente de um conceito biológico/científico e
nem apenas de um conceito ideológico cultural, mas sim de um processo em
que ambos são estabelecidos e negociados no sentido de sustentar um certo
ordenamento social (CHUN, 2003).
Recorreu-se à bell hooks (2018) para entender o porquê das imagens serem
tão importantes para a comunidade negra. Neste momento, percebemos que
as imagens funcionam como ferramentas de controle social que, uma vez
portadoras de valores ligados à branquitude, operam como forma de efetivar
estereótipos racistas que legitimam a
pseudo
superioridade branca. As imagens
carregam significados e valores. Não somente nelas, mas principalmente nelas
são produzidos os estereótipos. Como observado, estereótipos são dispositivos
cognitivos facilitadores de acesso a novas informações que podem participar
dos exercícios de poder quando carregam previsibilidades e equivalem a padrões
que correspondem às expectativas normativas.
O emprego destes dispositivos facilitadores faz parte das formações de
profissionais que trabalham com criação de imagens, tal como os designer
e artistas gráficos. As rotinas e convenções visuais institucionalizadas nas
bibliografias dos cursos de design, nos bancos de imagens utilizados para criação
de projetos gráficos e a falta de criticidade frente à presença ou a falta dos corpos
negros são técnicas concretas do racismo que circulam por meio das visualidades.
Mas o Movimento Negro Antirracista vê as imagens e os meios de comunicação
como um campo de luta cultural, em que reivindicam a autorrepresentação e o
dever crítico sobre as representações dos corpos e das culturas negras.
Foi observado, a partir dos dados sobre a desigualdade no período da
pandemia do Covid-19 no Brasil, que o grupo de maior vulnerabilidade social
foi o de pessoas negras. Isso pode ser identificado nas métricas da economia
produzida pelas oportunidades de mercado de trabalho, pelas condições básicas
para o ensino a distância, pelos números de qual grupo racial teve mais mortos
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pela Covid-19. Dadas as circunstâncias, em primeiro momento, parece ser injusto
demandar para que pessoas negras pensem no futuro próximo ou distante, uma
vez que, com tais dados da desigualdade que assola a vivência dessas pessoas,
elas estão preocupadas em produzir estratégias de sobrevivência para o presente
de forma imediata.
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APROXIMAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ENTRE A PERSPECTIVA ENUNCIATIVO-
DISCURSIVA E A GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL: AS METAFUNÇÕES
COMUNICATIVAS E O ENSINO DOS GÊNEROS MULTISSEMIÓTICOS
THEORETICAL-METHODOLOGICAL APPROACHES BETWEEN THE ENUNCIATIVE-
DISCURSIVE PERSPECTIVE AND THE GRAMMAR OF VISUAL DESIGN: THE
COMMUNICATIVE METAFUNCTIONS AND THE TEACHING OF MULTISEMIOTIC GENRES
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21011
Peterson José de Oliveira
Universidade Federal de Uberlândia
https://orcid.org/0000-0002-8367-585X
petersonoliveira@ufu.br
Recebido em 28 de abril 2024
Aprovado em 23 de maio de 2024
RESUMO:
Neste trabalho visamos uma
compreensão dos gêneros multissemióticos,
em que trazem imagem e palavra, a partir de
elementos teórico-metodológicos da gramática
do design visual (GDV) de Kress e van Leeuwen
(2006), buscando mostrar como a GDV está
em consonância com as bases metodológicas
enunciativo-discursiva encontradas na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), de
2017.). Ao final, a análise de um exercício
didático mostrou várias afinidades para aplicar
elementos da GDV à análise visual em aulas de
língua portuguesa.
Palavras-chave:
ensino de língua
portuguesa; gramática do design visual;
multissemiose; metafunção comunicativa.
ABSTRACT:
In this work we aim to
understand multisemiotic genres, in which they
bring image and word, based on theoretical-
methodological elements of the visual design
grammar (GDV) of Kress and van Leeuwen
(2006), seeking to show how GDV is in line
with the enunciative-discursive methodological
bases found in the National Common Curricular
Base (BNCC), 2017.). In the end, the analysis
of a didactic exercise showed several affinities
for applying GDV elements to visual analysis in
Portuguese language classes.
Key words:
Ensino de língua portuguesa;
gramática do design visual; multissemiose;
metafunção comunicativa
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Introdução
A aula de língua portuguesa passou por profundas transformações
metodológicas ao longo de sua história no Brasil. Desde aulas nas quais o próprio
professor, a partir de gramática e literatura, preparava os próprios pontos, até o
modelo atual, fundamentado no uso do livro didático, que facilita e, muitas vezes,
limita a prática e criatividade docente.
Os livros didáticos de língua portuguesa, desde a década de 1960, têm
incluído em suas lições textos ou gêneros multimodais, como é o caso de peças
publicitárias, canções populares, tiras/quadrinhos e charges, para ficarmos nos
mais conhecidos. A partir de então, a quantidade de gêneros multissemióticos
ou multimodais
1
que aparece nos livros só aumentou, para incluir, desde a virada
para os anos 2000, os gêneros digitais, que na sua maioria são multimodais.
A última mudança dos materiais didáticos de língua portuguesa deveu-se à
implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2017. Nesse
documento, os gêneros multissemióticos e digitais ganharam destaque. Porém,
nos cursos de Letras raras são as disciplinas que tratam de uma formação mínima
dos futuros professores de português em habilidades como a linguagem musical,
os elementos da linguagem visual e a leitura e produção de gêneros digitais.
Nos livros didáticos, entretanto, percebemos que o tratamento com os
gêneros multimodais ainda é intuitivo, esporádico e assistemático
2
. Por exemplo,
mal se fala dos aspectos visuais dos quadrinhos e anúncios publicitários, para
mencionar apenas os gêneros multissemióticos que mais aparecem, como
apontado em outros estudos como (OLIVEIRA, 2021). Para remediar tal situação,
o professor de português pode recorrer a artigos que abordem especificamente
alguns desses gêneros, mas pouquíssimos são os materiais que se debruçam
sobre o desenvolvimento de habilidades de leitura e interpretação de gêneros
1 Neste artigo, usaremos indistintamente esses dois termos para indicar textos que se utilizam de
mais de um modo semiótico ou linguagem, como textos que contenham imagens e palavras, ou sons
e imagens etc.
2 Em trabalhos anteriores, fizemos pesquisa sobre a abordagem da imagem em livros didáticos de
língua portuguesa onde encontramos tal assistematicidade e uso intuito de critérios analíticos. in:
Desafios para uma abordagem efetivamente multimodal dos gêneros discursivos em livros didáticos
de Língua Portuguesa
.
Albuquerque
: Revista de História, Aquidauana, v. 13, n. 26, p. 138-159, 28
dez. 2021.
,
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multissemióticos ou que (re)pensam os critérios teóricos a partir dos quais a
análise deve ser feita.
Neste trabalho, refletimos sobre alguns elementos da gramática do design
visual (GDV) – proposta por Gunther Kress e Theo van Leeuwen (2006) no livro
Reading images: a grammar of visual design
– que podem ser utilizados com
proveito na construção de critérios mais amplos e gerais para um letramento visual
sistemático e, principalmente, que sejam coerentes com a proposta metodológica
da BNCC. Assim, tentaremos mostrar que a GDV não só é compatível teórica e
metodologicamente com a perspectiva enunciativo-discursiva da BNCC, como
também pode apresentar uma forma mais organizada de lidar com a diversidade
de gêneros multimodais que o professor de língua portuguesa vai enfrentar. Nesta
trajetória de leitura, buscaremos entender como essa teoria, além de incorporar
certo viés crítico da análise discursiva, também traz importantes considerações
para a abordagem dos aspectos ditos “formais” do texto visual multimodal, que é
do que mais se ressentem as análises propostas nos livros didáticos.
Em nossa análise, utilizaremos uma lição sobre um anúncio publicitário,
retirada de um livro didático de língua portuguesa, e mostraremos como alguns
conceitos da GDV contribuem para o aprofundamento da leitura dos elementos
visuais – isso sem entrar em contradição com a BNCC ou trazer elementos
teóricos desnecessários ou inacessíveis às(os) docentes em geral.
A semiótica social e a GDV
A GDV deriva diretamente do pensamento linguístico de Halliday e Hasan
(1991), de sua perspectiva sistêmico-funcional e principalmente da própria noção
de semiótica social. Para esses autores, a língua não é um conjunto fixo de
regras ou estruturas, mas existe para atender à função comunicativa e, portanto,
adapta-se a diferentes instâncias e propósitos sociais e individuais. Nesse
sentido, Halliday alinha-se ao funcionalismo linguístico que entende a língua a
partir da finalidade ou
função
comunicativa a que essa se destina (NEVES, 2013).
A semiótica social, então, seria uma teoria que procura entender como os
indivíduos se comunicam em contextos sociais específicos, como eles criam
significados e usam signos. As especificidades de tais contextos interferem na
escolha de signos e outras formas de materialização para além da linguagem
verbal. A motivação e os objetivos comunicacionais são fundamentais para
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a criação do discurso. A língua, vista como um sistema semiótico, porque é
composto de signos, torna-se resultado dessa motivação dos indivíduos de
produzir significação em contextos sociais específicos.
A GDV insere-se na semiótica social, de acordo com Kress e van Leeuwen
(2006). Segundo os autores, o trabalho com a imagem baseia-se em uma ideia
da representação visual que é parte da semiótica social e teria dois momentos-
chave: a Escola de Praga, na década de 1930, e a semiologia de Roland Barthes,
na década de 1960. Para eles, a semiótica social seria um terceiro momento da
semiótica, ainda em desenvolvimento e ao qual pertencem. Não afirmam uma
ruptura com esses pensamentos, mas uma reformulação deles. Para Kress e van
Leeuwen (2006), o signo é a junção motivada de formas (significantes) usadas
para realizar significados: o fato de os signos serem considerados
motivados
os afasta da noção tradicional saussuriana, para quem o signo é imotivado ou
arbitrário. Tal motivação deve ser pensada a partir do ponto de vista do criador
do signo e do contexto em que ele se insere, ou seja, em que o signo é produzido.
Kress e van Leeuwen (2006), mesmo assumindo sua filiação parcial a
essa dicotomia proposta por Saussure (
langue
/
parole
), dizem que a produção
concreta de signos pelos falantes-usuários – a fala ou
parole
– não é limitada
por um sistema de significados disponíveis – a língua ou
langue
. O potencial
semiótico de um signo é definido por recursos semióticos disponíveis para um
indivíduo específico em um contexto social específico; recursos semióticos
disponíveis para pessoas reais em contextos reais. Esse aspecto, longe de ser
um detalhe da GDV, fundamenta o caráter fortemente social de sua semiótica.
As palavras “comunicação” e “representação”, por sua vez
,
ganham destaque em
sua argumentação, pois enfatizam o contexto real em que a comunicação ou o
discurso se realizam. Entende-se que os indivíduos são criadores de signos e
escolhem formas para expressão do que têm em mente, formas que consideram
mais adequadas e plausíveis em determinados contextos (KRESS; VAN LEEUWEN,
2006).
Tal ênfase na escolha e na motivação individual na criação sígnica se justifica
a partir do conhecimento que o criador de signos possui: quando uma criança usa
um signo, ela estaria criando-o, porque o usa para um contexto e uma finalidade
comunicativa específica. Mesmo que um conjunto de restrições exista em um
sistema de signos, o ato individual de apropriação do sistema é soberano para
a constituição de um pensamento da semiótica social proposta pelos autores
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(KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). A interação e o contexto real remetem a semiótica
a uma perspectiva funcionalista do funcionamento da(s) linguagem(ns). No Brasil,
o funcionalismo linguístico tem ganhado destaque com os estudos do texto, do
gênero textual-discursivo, entre outros, como atesta o prestígio dos estudos
nesse campo. Para a concepção funcionalista da linguagem, as regras linguísticas
sempre são vistas em termos de função comunicativa – do uso, melhor dizendo –,
em contextos específicos, e não em termos de estrutura ou sistema. Ainda nessa
linha teórica, as perspectivas do estudo do texto, da chamada linguística textual,
não se realizam sem considerar o campo da enunciação, que leva em conta o
modo como o sujeito se apropria do sistema linguístico, ou seja, da apropriação
concreta da língua por um indivíduo.
3
A gramática do design visual
Na introdução de
Reading images: a grammar of visual design
, Kress e van
Leeuwen (2006) apontam que há muitas obras tratando da constituição de um
“léxico” visual, isto é, trabalhos enfatizando elementos visuais de modo isolado,
ao modo como tratamos palavras. O projeto deles, porém, é outro: elaborar
uma “sintaxe” da linguagem visual. Ou seja, interessa-lhes a combinação desses
elementos – sua “sintaxe” em composições que seriam “frases”, ou melhor,
“textos” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Os autores destacam a importância
de um letramento visual em nossa sociedade, na qual palavra e imagem se
conjugam cada vez mais na comunicação cotidiana. Para eles, nossa cultura
historicamente valorizou a escrita em detrimento do visual, por entender, muitas
vezes, que este não tinha regras ou a importância da palavra. O ensino formal
reflete tal valorização, pois ao longo da vida escolar os livros, que começam
cheios de imagens, vão se tornando mais repletos de textos. Pelo menos, assim
vinha sendo até o final do século XX. Com a emergência das redes sociais e dos
smartphones
e uma forte melhoria na transmissão de dados pela
internet
, o visual
é hoje, sem dúvida, tão fundamental quanto o verbal na comunicação digital, que
acaba por se tornar um parâmetro até para programas de ensino, por seu caráter
3 Sobre os fundamentos do funcionalismo em linguística, ver
A gramática passada a limpo
(NE-
VES, 2012) e
Gramática do português brasileiro
, de Ataliba T. Castilho (2014). Como um balanço
do funcionalismo em termos de linguística textual, ver
Linguística textual: interfaces e delimitações
(SOUZA; PENHAVEL; CINTRA, 2017).
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aberto, multimídia, interativo, entre outros aspectos.
A noção de gramática dentro da expressão “gramática do design visual” não
opera por meio de uma importação automática da terminologia da linguística para
a representação visual. Para Kress e van Leeuwen (2006), sintaxe, pragmática
e semântica são indistinguíveis nos termos da comunicação ou representação
visual. Os autores deixam claro que cada modo semiótico
4
(verbal, visual,
gestual etc.) tem suas possibilidades e limitações. Algumas relações são melhor
explicitadas em um que em outro, mas os significados, construídos social e
historicamente, são expressos por várias semioses (KRESS; VAN LEEUWEN,
2006). A principal relação afirmada pelos autores entre a linguística e a GDV é
sua
abordagem global
, pois, assim como a linguagem verbal, a linguagem visual
apresenta regularidades que podem ser objeto de uma descrição relativamente
formal (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 20). Nesse sentido, eles se utilizam das
metafunções
presentes em quaisquer modos semióticos: função ideacional,
função interacional e função textual (HALLIDAY; HASAN, 1996). Falaremos com
mais detalhes dessas metafunções mais adiante, quando tratarmos da análise de
um exercício sobre um anúncio publicitário.
O fato de essas metafunções serem compartilhadas por todos os modos
semióticos foi o ponto de partida para que os criadores da GDV vissem nessa
teoria uma perspectiva interessante de abordar o universo da multimodalidade
ou da multissemiose. Apesar disso, eles ressaltam o fato de que o verbal, com
o predomínio da cultura escrita no Ocidente, não é simplesmente verbal, pois
participam da sua leitura recursos específicos da visualidade: cor, disposição na
página, orientação direita-esquerda, formato e tamanho das letras, entre outras
características que informam a multimodalidade já presente no universo da
escrita. Ainda que pensemos fora de sociedades ocidentais modernas, nas quais
o prestígio da escrita é inegável, na fala há o papel do gestual, que desempenha
função importante na produção de significado. Antes de propormos de que modo
a BNCC e a GDV podem ter afinidades teórico-metodológicas, traçaremos as
linhas gerais da concepção de linguagem da BNCC.
4 Modo semiótico pode ser entendido, no âmbito da teoria da GDV, como um sistema regular, social-
mente organizado, de representação por um meio específico (ou substância material), como visual,
som, gesto, movimento etc. Ou pode ser definido como um sistema completo de comunicação que
atenda a vários requisitos representacionais e comunicacionais. Ver Kress, Jewitt, Ogborn e Tsatsa-
relis (2001, p. 15).
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BNCC: bases teórico-metodológicas
A BNCC, em vigor desde 2017, trouxe várias mudanças em relação aos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998. No campo da organização
discursiva do documento, a BNCC incorpora um vocabulário mais técnico, que
demanda formação continuada do docente, se comparado com a linguagem
mais simples dos PCN. Destaca-se também a continuidade da perspectiva
metodológica geral de trabalhar com competências e habilidades, escolha
teórico-metodológica que tem recebido numerosas críticas de educadores,
sobretudo por conta de seu caráter neoliberal e tecnicista (BRANCO
et al
., 2019;
SAVIANI, 2016). No entanto, interessa-nos aqui, em especial, identificar algumas
diretrizes metodológicas principais desse documento para assim indagar sua
compatibilidade com a perspectiva apontada por Kress e van Leeuwen (2006) na
GDV.
O primeiro elemento que trazemos é o enfoque no ensino da língua
portuguesa a partir da noção de gêneros discursivos, talvez a mais importante
diretriz metodológica da BNCC e que está implicada no ensino-aprendizagem
das habilidades de leitura, produção textual e análise linguística. De acordo
com Dias, Ferreira e Silva (2019), o embasamento do ensino nos gêneros
discursivos, de origem bakhtiniana, já estava presente nos PCN e se destacava
pela materialidade textual-composicional, pelos aspectos contextuais e,
principalmente, ideológicos. Temos na BNCC a centralidade do texto, visto como
ponto de partida da aula de língua portuguesa, ancorado no gênero discursivo
a que pertence. Os gêneros discursivos são divididos/reunidos em campos de
atuação, a partir das diferentes áreas da comunicação pública.
A noção de gênero em Bakhtin revela uma especial leitura crítica e a
importância do posicionamento ideológico dos falantes na produção de sentido.
O caráter crítico dessa teoria bakhtiniana aparece em destaque, entre várias
outras ocasiões, quando os elaboradores da BNCC fazem menção repetidamente
às
condições de produção
, termo que intitula vários
objetos de conhecimento
em todos os campos de atuação – isto é, que devem ser trabalhados em
quaisquer gêneros, nas habilidades de leitura/compreensão. Esses
objetos de
conhecimento
aparecem com algumas variações: “reconstrução das condições
de produção, circulação e recepção” (BRASIL, 2018, p. 156) ou “Reconstrução das
condições de produção e recepção dos textos e adequação do texto à construção
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composicional e ao estilo de gênero” (BRASIL, 2018, p. 150)
.
Isso se desdobra nas
habilidades que tais objetos do conhecimento implicam. Em muitas passagens,
a noção de “condições de produção” vem explicada em uma habilidade como
esta, relativa aos textos jornalísticos e integrante do quadro “Reconstrução das
condições de produção, circulação e recepção dos textos”: “(EF89LP01) Analisar
os interesses que movem o campo jornalístico, os efeitos das novas tecnologias
no campo e as condições que fazem da informação uma mercadoria, de forma a
poder desenvolver uma atitude crítica frente aos textos jornalísticos” (BRASIL,
2018, p. 175). Podemos observar nessa habilidade um interesse em entender a
leitura-compreensão como um ato de interpretação das posições ideológicas do
enunciador do texto jornalístico (os interesses de que fala a habilidade). Portanto,
em relação ao ensino dos gêneros, a BNCC substitui o sociointeracionismo
discursivo dos PCN por uma abordagem enunciativo-discursiva, mas que de
certo modo continua a perspectiva dos PCN:
Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em
outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais
a linguagem é “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade es
-
pecífica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes
numa sociedade, nos distintos momentos de sua história” (BRASIL, 1998, p. 20). (BRA
-
SIL, 2018, p. 67)
Esse caráter enunciativo-discursivo é definido de forma bem ampla, o que
dificulta ao leitor mais leigo entender, apenas a partir da citação do PCN, como
se materializa tal concepção da língua, uma vez que
enunciação
e
discurso
são
objetos teóricos muito discutidos e fontes de diversas interpretações no campo
dos estudos da linguagem. De acordo com Flores e Teixeira (2005, p. 101), “as
teorias da enunciação linguística da enunciação”. Na verdade, para esses au-
tores, o objeto conceitual “enunciação” marca uma ruptura com os estudos lin-
guísticos que seguiam a esteira do estruturalismo de Ferdinand de Saussure.
Aos estudiosos da enunciação, interessam os aspectos singulares da ocorrência
contextual muito mais que os aspectos sistêmicos e gerais da estrutura linguís-
tica. Estudos sobre referência, dêixis, subjetividade e modalização, para ficar em
poucos exemplos, extrapolam os limites tradicionais do pensamento formalista
da linguagem, que se apoiou fortemente nos sistemas fonético-fonológicos da
língua, na morfossintaxe e, algumas vezes, até na semântica.
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Mais recentemente, as ideias de Émile Benveniste sobre
discurso
e
enuncia-
ção
têm recebido atenção no pensamento linguístico brasileiro e podem também
ter servido de base para a elaboração de algumas competências e habilidades da
BNCC. Para Benveniste (20086), a língua tem um duplo modo de significação: o
semiótico e o semântico. O semiótico diz respeito ao nível intralinguístico da lín-
gua, cujas unidades, os signos, têm relação recíproca uns com os outros e assim
criam uma teia de significação, sem se importar com os objetos que tais signos
denotam na realidade. No modo semântico temos os enunciados, que só ganham
sentido se referidos a quem fala, quando e onde se fala – em suma, à situação. Aí
estamos na ordem do discurso ou da
enunciação
, que é definida como “este colo
-
car em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE,
2006, p. 82). Passa a interessar agora como o sujeito usa o aparelho enunciativo
da língua para criar sentido situado.
Dessa maneira, entendemos que o aspecto “enunciativo” da expressão “enun-
ciativo-discursiva”, que define a perspectiva metodológica do documento, pode
ser associado tanto à teoria de Benveniste quanto à de Bakhtin. O mesmo vale
para o termo “discursivo”, encontrado nessa expressão. Talvez a diferença fun-
damental seja que, para Bakhtin, o sentido de um enunciado (unidade do discur-
so, não da língua-sistema) sempre é dependente das circunstâncias históricas e
ideológicas, não apenas da situação comunicativa específica.
Mas a frequência de duas expressões na BNCC, “condições de produção” e
“efeitos de sentido”, sempre associadas a competências e habilidades leitoras
importantes para quaisquer gêneros discursivos a serem estudados, aproxima
o documento de uma outra teoria do discurso: a análise de discurso de linha
francesa, inaugurada por Michel Pêcheux. Essa teoria, marcada por uma hete-
rogeneidade teórica, possui três pilares: o dialogismo bakhtiniano, o marxismo
e a psicanálise. Nesse campo de estudos, o discurso é definido como efeito de
sentido entre interlocutores, e tal expressão é fundamental para entender que o
sentido é decorrente das formações discursivas e ideológicas de determinado
momento histórico. O sentido não é prévio nem efeito da língua enquanto siste-
ma: “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção da-
das” (GADET; HAK, 1993, p. 77). Dessas condições de produção, Pêcheux destaca
relações de poder, posições políticas, ideológicas etc.
Outro aspecto importante do alinhamento da BNCC às teorias da enuncia-
ção e do discurso está, de modo geral, na ênfase dada à produção textual feita
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a partir da consideração do seu enquadre enunciativo-discursivo básico: na lei-
tura e produção de qualquer gênero é necessário saber qual o papel social de
quem produz o texto-gênero, para quem este é feito, com que intencionalidade,
em que meio, mídia e semiose. Assim, todos os
campos de atuação
5
da BNCC tra-
zem como objeto de conhecimento não apenas as habilidades de identificar ca
-
racterísticas formais e composicionais do texto, ou temas já conhecidos, como
coesão, coerência e sequências ou tipos textuais. O documento em muitas pas-
sagens enfatiza a atitude crítica por parte dos futuros leitores-autores. Acima
de tudo, a organização de competências, habilidades e objetos do conhecimento
tem a ver com o que os autores chamam de “práticas de linguagem”, expressão
que revela a perspectiva ancorada no discurso, na língua encarnada em práticas
sociais concretas e o letramento que as envolve.
Assim, leitura e produção textual são
práticas de linguagem
que participam
de “práticas sociais”. Nesse sentido, a preocupação com o letramento digital e
com a multiplicidade de linguagens aponta para a necessidade do letramento dos
próprios professores nesses gêneros e semioses. E é nesse ponto que o estudo
de teorias e metodologias como as da GDV pode ser útil para a tarefa hercúlea de
letramento multissemiótico que a BNCC sugere.
Afinidades teórico-metodológicas entre GDV e BNCC
Tentamos até agora oferecer um olhar panorâmico sobre alguns elementos
teórico-metodológicos da BNCC que acreditamos poder ser alinhados a alguns
aspectos da GDV e tornar o trabalho com a imagem ou a multissemiose mais
profícuo. A GDV, acreditamos, é compatível com os pressupostos da BNCC aqui
apresentados em três aspectos: a ideia de que a criação sígnica é parte do indi-
víduo e responde à situação concreta, o que a aproxima das abordagens funcio-
nalistas; o trabalho com noções como ideologia, criticidade e dependência de
fatores históricos para a criação de signos visuais ou de uma gramática visual;
e, por fim, a tentativa de trazer para o primeiro plano o trabalho multissemiótico
como missão educacional de grande valor atualmente. Vejamos cada um desses
elementos.
5 Na BNCC, são as cinco grandes áreas de atuação social em que os gêneros são agrupados: campos
jornalístico-midiático; campo artístico-literário; campo das práticas de estudo e pesquisa; campo da
vida cotidiana; e campo de atuação na vida pública.
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Podemos dizer que, ao tratar da comunicação visual e de todas as formas de
discurso multissemiótico, os autores da GDV abordam uma forma de
enunciação
,
porque enfatizam sempre o contexto concreto, situado, em que as mensagens
são produzidas: “a comunicação exige que os participantes tornem suas mensa-
gens o mais compreensíveis num contexto particular” (KRESS; VAN LEEUWEN,
2006, p. 13). A ênfase nesse papel ativo dos indivíduos ao selecionar e criar signos
(pois atribuem aos signos disponíveis novos sentidos na situação concreta) faz
os autores se aproximarem de teorias da enunciação como a de Benveniste.
Por outro lado, a GDV quer tratar muito mais do que de aspectos formais ou
enunciativos da mensagem visual ou multissemiótica. Em várias passagens de
Reading images
, os autores reforçam o compromisso de sua teoria com a critici-
dade:
A análise da comunicação visual é, ou deveria ser, uma parte importante das disci-
plinas “críticas”. Embora neste livro nos concentremos na exibição das regularidades
da comunicação visual, em vez de nos seus usos (“interessados”, isto é, político-ideo-
lógicos), vemos imagens de qualquer tipo como inteiramente dentro do domínio das
realizações e instanciações da ideologia, como meios – sempre – para a articulação de
posições ideológicas (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 14, tradução nossa).
6
Embora a expressão “ideologia” não seja usual na área de língua portuguesa,
certamente em decorrência do momento em que o documento foi publicado
7
, a
BNCC enfatiza o papel fundamental de um letramento crítico para a formação de
cidadãos politizados. No trecho a seguir, seus autores parecem prever as ques-
tões mais delicadas e trágicas do mau uso das redes sociais, como redes de men-
tiras e bolhas, destinadas a impedir um debate esclarecido e que descambaram
na onda de
fake news
que tiveram papel decisivo nas eleições de 2018:
6 No original: “Analyzing visual communication is, or should be, an important part of the ‘critical’
disciplines. Although in this book we focus on displaying the regularities of visual communication,
rather than its (‘interested’, i.e. political/ideological) uses, we see images of whatever kind as entirely
within the realm of the realizations and instantiations of ideology, as means – always – for the artic
-
ulation of ideological positions”.
7 O governo de Michel Temer encerrou a participação pública na escrita da BNCC de modo abrupto,
para então fixar e publicar uma versão do texto que não era exatamente a que vinha sendo discutida.
No contexto político inflamado contra a chamada “ideologia de gênero”, uma expressão que fala
mais de posições políticas conservadoras do que das políticas de igualdade de gênero (aliás, palavra
também alvo de disputa e exclusão no documento), a noção de ideologia teve de ser diluída em ter-
mos mais gerais, como “ensino crítico” ou “criticidade”. Na BNCC, a expressão “ideologia” aparece
apenas duas vezes na área de linguagens e códigos, em competência de caráter geral (ver BRASIL,
2018, p. 87).
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Eis, então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas
novas práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas
demandas sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC [tecnolo
-
gias digitais da informação e comunicação] – necessário para o mundo do trabalho,
para estudar, para a vida cotidiana etc. –, mas de também fomentar o debate e outras
demandas sociais que cercam essas práticas e usos. É preciso saber reconhecer os
discursos de ódio, refletir sobre os limites entre liberdade de expressão e ataque a
direitos, aprender a debater ideias, considerando posições e argumentos contrários
(BRASIL, 2018, p. 69).
Valemo-nos da citação anterior para encerrar este tópico de alinhamento da
GDV ao entendimento da BNCC quanto à importância dos gêneros multissemió-
ticos. Na verdade, a BNCC fala da importância do trabalho com diferentes lingua-
gens em tantas passagens que seria tedioso elencá-las: já no início, os textos
multissemióticos são destacados na competência específica 3, da área da língua
portuguesa. Ainda na parte introdutória, os autores do documento trazem um
parágrafo muito esclarecedor, porque aborda os elementos formais dessas vá-
rias linguagens ou semioses tão referidas ao longo do texto:
Já no que diz respeito aos textos multissemióticos, a análise levará em conta as formas
de composição e estilo de cada uma das linguagens que os integram, tais como plano/
ângulo/lado, figura/fundo, profundidade e foco, cor e intensidade nas imagens visuais
estáticas, acrescendo, nas imagens dinâmicas e performances, as características de
montagem, ritmo, tipo de movimento, duração, distribuição no espaço, sincronização
com outras linguagens, complementaridade e interferência etc. ou tais como ritmo,
andamento, melodia, harmonia, timbres, instrumentos, sampleamento, na música
(BRASIL, 2018, p. 81).
Os elementos da linguagem visual – seu “vocabulário” básico – seriam:
plano, ângulo, lado, figura/fundo, profundidade, foco, cor e intensidade. Já
expressões como “formas de composição e estilo” estão próximas do que Kress
e van Leeuwen (2006) chamariam de “gramática” da linguagem visual. A BNCC,
porém, dá apenas indicações sumárias do que tratar a respeito dessas semioses.
A verdade é que existe uma dificuldade muito grande em traçar, para os objetivos
de ensino fundamental em língua portuguesa, quais teorias de leitura do visual
são mais produtivas nesse contexto. A dupla ênfase em um tratamento que se
queira ao mesmo tempo crítico e traga uma abordagem da composição formal
dos textos visuais é uma dificuldade a mais para encontrar teorias que estejam
à altura dessa tarefa. Pelo que tentamos trazer ao leitor, pensamos que a GDV
pode tornar-se um recurso precioso aos docentes interessados em ensinar os
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elementos e a gramática da linguagem visual em textos multissemióticos como
HQs, publicidades, pinturas etc., pois essa teoria contempla os dois aspectos
apontados. No tópico seguinte, tentaremos mostrar a compatibilidade e a
propriedade de alguns conceitos da GDV em consonância com os elementos
teórico-metodológicos da BNCC.
Análise de um anúncio publicitário à luz da GDV
No exemplo trazido para análise (Figura 1), retirado de um livro didático de
língua portuguesa, nos interessamos em mostrar como o conceito de
metafun-
ção
ou metafunções comunicativas
8
auxilia os professores a construir uma es-
tratégia de leitura de textos publicitários, os quais aparecem em muitas lições de
praticamente todos os livros didáticos de língua materna.
Figura 1: Anúncio publicitário de livro didático.
Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2017, p. 131).
8 Tal conceito aparece na gramática sistêmico-funcional de Halliday e Hasan (1991) e é endossado
pelos criadores da GDV.
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O anúncio acima foi colocado em um livro de 6º ano, num tópico intitulado
“Como funciona um anúncio publicitário?”. Não foi usado apenas para exempli-
ficar um termo sintático ou gramatical; nesse exemplo, o anúncio é tratado en
-
quanto
gênero discursivo
. Por isso, vários exercícios relacionados direcionam
a atenção do estudante para questões enunciativo-discursivas, como propõe a
BNCC. Vale também ressaltar que a peça aqui reproduzida é a segunda usada
como exemplo de anúncio publicitário. Antes dela, os autores introduziram esse
gênero com um pequeno parágrafo apresentando o tema. Depois, definiram o
gênero
anúncio publicitário
num pequeno quadro, em que destacam apenas o
objetivo de estimular o leitor a consumir um produto ou serviço ou a agir de de-
terminada maneira. Por fim, destacam o valor da criatividade nesse tipo de texto
(ORMUNDO; SINISCALCHI, 2017, p. 131).
Os autores seguem de modo bastante satisfatório as recomendações da
BNCC para a idade/ano escolar a que se destina o exercício, pois em vários mo-
mentos são destacados elementos concretos da enunciação: quem faz, para
quem é feito, qual o objetivo do gênero e seus elementos composicionais. Tudo
isso de forma muito esquemática e resumida, é verdade, mas levamos em consi-
deração aspectos como o espaço e o tempo disponíveis para esse tema.
Só então Ormundo e Siniscalchi (2017) tratam do anúncio que abordaremos.
Resumimos os exercícios a respeito dele para entendermos melhor o contexto
específico em que aparece. Para esse texto multissemiótico, os autores propõem
cinco questões, com subdivisões. A primeira e a quinta tratam da linguagem ver-
bal do anúncio, sua síntese, os recursos que tornam a linguagem mais expressi-
va, os tipos de orações que trazem esses efeitos, a ordem das orações, o tempo
verbal etc. São exercícios bem elaborados pois relacionam satisfatoriamente os
elementos de análise linguística (relação causa-consequência, condição, alter-
natividade etc.) com elementos enunciativos.
Já os exercícios 2 e 3 abordam a parte “não verbal” do anúncio, ou seja, a par-
te considerada visual. No exercício 2, pergunta-se sobre a motivação da figura
do porquinho, a qual palavra se relaciona a figura do peixinho, que cor predomina
no anúncio e por quê. Até se pede que os estudantes imaginem o texto sem o
peixinho, para verificar se o sentido prevaleceria o mesmo. Esse exercício é um
exemplo apropriado de como os autores exploram com cuidado vários elementos
visuais do texto, como as figuras, seus significados e cores; e buscam até mes
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mo a relação entre palavra e imagem de modo circunstanciado – pouco usual em
lições de livros didáticos. O exercício 3 faz referência à cor do anúncio e ao seu
significado, bem como a outro elemento do anúncio, o
slogan
, que é definido em
um quadro ao lado do enunciado. A questão 4 fala dos anúncios de modo geral,
distinguindo os que veiculam uma atitude ou um valor daqueles que comparam
produtos e tentam vender a superioridade do item anunciado.
As atividades interpretativas foram bem realizadas e, se complementadas
com comentários ou materiais trazidos pelo professor, oferecem uma aborda-
gem satisfatória para interpretar o texto. Nas páginas seguintes, os exercícios
continuam a tratar da peça publicitária, com atividades para a produção de um
anúncio pelos estudantes. Desse modo, os autores seguem as sugestões da
BNCC de utilizar as três práticas de linguagem para abordar qualquer gênero:
atividades de leitura, de produção e de análise linguístico-semiótica integradas
às de leitura e produção.
Apesar disso, muitas coisas ficaram de fora, mesmo considerando-se a ida
-
de e a fase escolar do público-alvo, tais como a estrutura do anúncio publicitário,
sua composição e até mesmo uma melhor análise dos aspectos enunciativo-dis-
cursivos: de quem seria o público do anúncio, onde ele foi veiculado originalmen-
te, qual a relação entre o tema e a linguagem verbal e visual, que relação existe
entre a quantidade de informação verbal e visual e o gênero e o objetivo do anún-
cio, qual sua relação com o contexto, entre outros aspectos.
Não existe livro ou material didático completo, plena ou universalmente ade-
quado a todos os tipos de público. Estamos cientes de que o livro didático deve
servir de apoio à aula e ao planejamento dos professores, facilitando o preparo
de atividades e oferecendo um material básico e acessível para todos os estu-
dantes. No entanto, as lacunas encontradas nos exercícios apontam gestos de
leitura que se tornam comuns em livros didáticos quando se trata dos gêneros
multissemióticos publicitários.
Em artigo publicado sobre o tema, Oliveira (2021) afirma que os autores de
livros didáticos usualmente fazem questionamentos genéricos sobre o aspecto
visual dos textos multissemióticos usados em suas lições. São questões do tipo
“qual a relação entre a imagem e a parte verbal”, “o que significa a imagem usada
pelo autor” ou, mais raramente, sobre a cor ou o formato de uma figura. Não há
um trabalho metódico de abordagem do multissemiótico. Além disso, a interpre-
tação é bastante fragmentada: fala-se da linguagem verbal e da linguagem vi-
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sual, mas muitas vezes não se fala da relação entre elas, que é o mais importante.
Os aspectos enunciativo-discursivos, por sua vez, são melhor representados que
os aspectos visuais ou verbo-visuais em livros didáticos mais contemporâneos.
Nestes, é muito mais comum encontrarmos questões que se referem ao público
esperado de um texto ou à função social do autor (mesmo que isso não apareça
no livro e no exemplo que trouxemos).
No quesito da composição visual dos textos e de sua “gramática” – mais do
que seus elementos isolados ou vocabulário –, os livros ainda se ressentem de
muitas lacunas. Nos parágrafos seguintes falaremos da composição e da organi-
zação tal como apresentas na leitura da GDV. No anúncio em tela, os autores não
falam da cor, da posição ou da dimensão das palavras, nem de sua relação com
as figuras. Também não tratam da distribuição do visual e do verbal no formato
retangular do anúncio, ou da direção – ou melhor, das direções – de leitura do
anúncio, isto é, do trajeto do olhar sobre o texto.
Nessa peça publicitária, por exemplo, há o uso composicional muito claro da
simetria: bilateral, criada pelo fio de água que divide as duas frases imperativas.
A direção de leitura é da esquerda para a direita, como a da escrita ocidental em
geral, e estabelece uma relação de causa e efeito visualmente reforçada, já que
essa associação é evidenciada também pelo sentido e pela ordem das palavras.
O que é visto primeiro, a frase colocada à esquerda, intuitivamente “acontece”
primeiro. O fio de água ao mesmo tempo divide e une as duas frases, e é uma
representação visual do argumento “poupe água/poupe vida”. Desse modo, os
criadores do anúncio realçam a mensagem principal de sua peça publicitária por
meio de uma redundância verbo-visual. Esse reforço acontece também na figura
do cofre de vidro, com a ideia de poupar e com a figura do peixe, que remete à
ideia de vida. A redundância visual se realiza ainda pelo esquema de cores utili-
zado no texto, de tons azulados, que remetem à água pura. Há uma configuração
visual que atenua a diferença entre figura e fundo, pois os tons azulados, unidos
à transparência da água e do cofrinho, bem como as letras em azul, provocam
uma sensação de transparência suave no anúncio, muito agradável de ver e ler.
Em contraste, para evitar a monotonia, o peixe de cor alaranjada brilhante atrai
o olhar e gera uma empatia que em geral
pets
suscitam. A cor fisga o olhar e ser
-
ve como ponto de ancoragem e reforço, em uma estratégia argumentativa que
traz para o nível concreto o que a palavra “vida”, por seu caráter abstrato e geral,
não conseguiria trazer. Observe-se como as duas cores contrastam e se comple-
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mentam, dando unidade visual e novidade ao conjunto.
O segundo eixo de leitura, que foi pensado cuidadosamente pela equipe re-
datora, foi a direção acima-abaixo: acima o fio de água, embaixo o cofrinho. Trata
de um processo, de uma ação: o ato de poupar é visualmente representado, claro
como a água. O texto tem uma estrutura ou organização simétrica: esquerda e
direita, pelas frases; acima e abaixo, pelo conjunto do fio de água e do cofrinho.
O fio de água divide o anúncio em duas metades iguais; já a relação entre palavra
e imagem não é tão simétrica, apesar de bastante organizada e clara. A parte
verbal em letras um pouco mais escuras que o fundo tem fonte neutra, mas es-
pessura e tamanho considerável, ocupando pelo menos 15% da área superior do
anúncio. A figura do porquinho é vista de uma perspectiva próxima o bastante
para que vejamos seu interior, com as bolhas de água; mas também é vista de
cima e ligeiramente de lado para que o leitor tenha mais elementos de sua tri-
dimensionalidade, como a pata direita dianteira e o formato do focinho e seus
furinhos. Assim, parte importante do “rosto” do porquinho fica visível, inclusive
os olhos. Enfim, fica evidente o objeto porquinho, apesar de transparente ou azu
-
lado (o que é difícil discernir por estar em um fundo azul). Tais detalhes do cofre,
seu volume quase preenchido por água, as bolhas sugerindo que a água continua
a cair – tudo isso envolve ainda mais o leitor para aderir à campanha. O cofrinho
junto com o peixinho remetem à infância, e por isso o anúncio pode ser endere-
çado às crianças, mas mesmo que o hábito de poupar usando cofres em formato
de porcos não seja tão comum hoje, em tempos de dinheiro digital, a remissão
à infância dos adultos traz um sentimento de empatia e cuidado, reforçado pelo
belo peixinho-dourado.
Talvez a única coisa que torne o anúncio menos estético seja a necessidade
de assinalar o principal enunciador do anúncio: a Prefeitura Municipal de Japurã.
Isso é feito num retângulo branco na parte inferior esquerda do anúncio, o que
perturba de forma desnecessária a bela simetria e unidade do texto. Se os cria-
dores tivessem optado por uma fonte laranja-escuro e centralizassem o texto,
quem sabe com uma faixa azul-escuro percorrendo toda a parte inferior, talvez
esse elemento ficasse mais integrado ao restante do conjunto.
Nesses parágrafos, falamos de alguns elementos visuais do texto que podem
ter sido tratados. Não temos pretensão de esgotar todas as possibilidades
de leitura dessa peça; aliás, nem fizemos menção ao discurso conservador
implícito nas campanhas públicas para poupar água, quase sempre endereçadas
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à população urbana, quando sabemos que os maiores gastadores de água
são a agricultura e a indústria. Sempre há um desejo dos governantes de se
mostrarem preocupados com o meio ambiente, escamoteando o fato de que os
proprietários dos meios de produção usam recursos públicos como a água para
seus empreendimentos cujos lucros são privatizados, enquanto os prejuízos de
um modelo agroexportador baseado em monoculturas e pecuária extensiva têm
impactos nefastos sobre os recursos hídricos de todos. Os aspectos ideológicos
do anúncio são parte fundamental dele e têm vital importância para uma leitura
afinada à GDV. Afinal, ao propor uma atitude aos cidadãos, atribui-se a eles
uma responsabilidade e não se mencionam outros fatores da escassez de água,
social e economicamente desigual. Fizemos apenas um pequeno aparte que não
desenvolveremos, porque esses aspectos não são representados visualmente,
mas estão nas entrelinhas, ou seja, no não dito que comporta qualquer discurso.
Agora procuraremos suplementar nossa análise com alguns elementos que
consideramos extremamente promissores na GDV, a partir da noção de
meta-
função
comunicativa. O objetivo não é que os professores levem os estudantes
à metalinguagem dessa teoria, pelo menos não no ensino fundamental. O que a
noção de metafunção ou metafunções – ideacional, interacional e textual – traz
é a possível indicação de um caminho de leitura ou interpretação que possa ser
usado em todo texto visual ou multissemiótico.
O pensamento linguístico de Halliday contrapõe-se explicitamente ao
gerativismo formalista de Noam Chomsky e de toda linguística que considera
suficiente e adequado estudar a língua em seus termos estruturantes sem discutir
como nestes já estão envolvidas suas funções. A perspectiva radicalmente social
de Halliday é uma das vertentes mais influentes do funcionalismo, pois procura
mostrar como a estrutura gramatical de uma língua é, desde seus fundamentos,
determinada pelo seu entorno social. Nesse sentido, a ideia de
metafunção
procura se afastar das noções comuns de funções comunicativas da linguagem
que são encontradas em vários autores, filósofos e linguistas, como Jakobson
e outros que viam tais funções da linguagem como o uso e propósito da língua.
Para Halliday e Mathiessen, o termo “
metafunction
” (metafunção) é mais radical
do que “função”, pois mostra como são intrínsecas à linguagem tais funções
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estruturantes.
9
Dito isso, ele propõe três metafunções: a ideacional, a interacional
e a textual, integrantes de qualquer sistema semiótico. Mas é claro que estas
não estão presentes da mesma maneira. Tais metafunções são manifestações,
no sistema linguístico e em outros dos objetivos inerentes a todos, dos usos de
sistemas semióticos: compreender o meio (ideacional); relacionar-se com os
outros (interacional ou interpessoal); e organizar a informação (textual). Cada
uma das metafunções se relaciona a uma variável do contexto situacional: ao
campo, a ideacional; às relações, a interpessoal; e ao modo, a textual. Elas
ainda possuem subdivisões, termos integrantes etc. Não é nosso objetivo tratar
detalhadamente de cada uma delas, mas nos interessa especialmente o fato de
que, em toda linguagem, as três metafunções operam ao mesmo tempo, ainda
que de forma desigual, com ênfase em uma ou outra, dependendo do texto e da
situação. O próprio contexto é definível pela linguagem ou pelos termos usados.
Vale lembrar que Kress e van Leeuwen (2006, p. 41) remetem essas metafunções
àquilo que chamam de “teoria semiótica social da comunicação”, que, apesar de
ser oriunda do pensamento de Halliday, não aborda a linguagem verbal apenas.
A metafunção ideacional atende à necessidade de um modo semiótico ser
capaz de representar aspectos do mundo tal como vivenciado pelos humanos,
isto é, de representar objetos e suas relações num mundo fora do sistema
representacional. A representação de objetos em interação entre si é feita por
meio do que os autores chamam de vetores de ação-processo, ou por meio de
uma representação ideacional de caráter classificatório do tipo objeto-atributos,
muitas vezes em esquema de “árvore” ou classificação (KRESS; VAN LEEUWEN,
2006). No caso do anúncio analisado, os objetos representados – ou participantes,
como a GDV denomina – são tanto as partes verbais quanto o fio de água, o cofre,
o peixinho. No texto da campanha publicitária há dois vetores: um verbal, que
estabelece um direcionamento entre leitor e autor; e um visual, que estabelece
um vetor no qual a ação de poupar é representada simbolicamente pelo despejo
9 “Why this rather unwieldy term ‘metafunction?’ We could have called them simply ‘functions’;
however, there is a long tradition of talking about the functions of language in contexts where ‘func
-
tion’ simply means purpose or way of using language, and has no significance for the analysis of
language itself (cf. Halliday and Hasan, 1985: Chapter 1; Martin, 1990). But the systemic analysis
shows that functionality is intrinsic to language: that is to say, the entire architecture of language is
arranged along functional lines. Language is as it is because of the functions in which it has evolved
in the human species. The term ‘metafunction’ was adopted to suggest that function was an integral
component within the overall theory” (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 30-31).
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de água no cofre e mostra a relação entre os dois participantes do texto, cofre/
peixinho e fio de água.
Mas também pensamos que o modo de representar o mundo aqui, o mun-
do da ameaça de escassez de água, aparece numa redução a poucos elementos
visuais e verbais. A situação comunicativa do anúncio obriga seus criadores a
apresentar seu propósito e sua argumentação por meio de poucos recursos vi-
suais, já que dispõem de apenas uma página e têm de “fisgar” o leitor primeiro
pela imagem e depois pelas palavras. Essa representação do mundo é ao mesmo
tempo naturalista e simbólica. As imagens do peixe e do cofre-aquário, bem como
a representação da água, são bastante realistas e provavelmente derivadas da
manipulação de fotos pré-existentes (algo comum em anúncios modernos). Em
se tratando dessa metafunção ideacional, a forma escolhida de representação
dos objetos-participantes do anúncio, colocados sobre um fundo azul-claro, e
seu realismo fotográfico intensificam a persuasão obtida pelo desejo de criar um
olhar empático no leitor. O brilho da água e do peixinho, o formato arredondado
do porquinho, a transparência agradável da água, com reflexos luminosos: tudo
isso cria uma atmosfera de limpeza e frescor, quase tátil. A representação do
mundo também opera simbolicamente, visto que o peixe simboliza a vida frágil
e bela a ser preservada, enquanto o cofre emula a atitude responsável e (quase)
carinhosa do leitor de depositar água para que o peixe sobreviva – jogar água num
objeto que é, ao mesmo tempo, uma espécie de aquário-cofre ou cofre-aquário,
que preserva e poupa o recurso frágil e escasso que é a água potável.
A
metafunção interpessoal
, por sua vez, mostra como a linguagem – verbal
ou visual – projeta as relações entre os interlocutores ou emissores-receptores
dos signos. Qualquer modo semiótico deve ser capaz de representar uma relação
social particular entre o produtor, o espectador e o objeto representado. A
expressão “relação social” é um termo usado pelo criador da linguística sistêmico-
funcional, Halliday(2004), quanto por Gunther Kress(2006), mas tem um sentido
propositalmente amplo para abarcar relações econômicas, político-culturais,
entre outras. A expressão de hierarquia na linguagem verbal é bastante conhecida:
hierarquias de status social, gênero e idade são presentes em muitas línguas,
mas as metafunções interpessoais também podem ser tratadas em signos ou
linguagens não verbais. É preciso lembrar que essa função está intimamente
ligada às outras, isto é, os mesmos elementos ou signos apresentam caráter
multifuncional, pois desempenham ao simultaneamente essas três metafunções.
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Assim, no anúncio que viemos comentando, a função interpessoal se realiza
de modo mais evidente pelo entrelace entre o verbal e o visual, característico
de gênero discursivo. A parte verbal, com os verbos no modo imperativo e na
segunda pessoa do singular, instancia dois lugares sociais: o de quem tem o
direito de sugerir/ordenar e o daquele que deve obedecer. Evidentemente, para
ter eficácia, o dever de poupar água, que a prefeitura deseja reforçar para seus
cidadãos, deve ser “textualizado” de forma específica – e aí entramos na terceira
metafunção, a textual. Deixemos isso em suspenso para continuarmos a falar
da função interpessoal. A relação instituída pelos verbos no imperativo pode
denotar sugestão, pedido ou ordem, dependendo de como isso interpela o leitor
do anúncio. Isso mostra como a comunicação institucional pública atualmente
é atravessada tanto pelo discurso do dever cívico quanto pelos aspectos mais
emocionais associados ao universo da persuasão publicitária. A perspectiva
dos criadores do anúncio não é a dos políticos ou burocratas da prefeitura: a
linguagem mais eficaz, nesse caso, não é a da lei, da regra, do regulamento ou
das proibições. A publicidade é mais do que conhecida como uma arma política
importante, e sua linguagem e seu recurso põem e depõem políticos e políticas
no mundo todo. A criação de uma relação amistosa entre prefeitura e cidadãos-
eleitores é cuidadosamente trabalhada, misturando a firmeza verbal de um
imperativo e projetando uma imagem de autoridade necessária aos governantes,
mas amenizada pelo caráter suave e agradável da imagem, assim como pela
ternura e tranquilidade associadas ao porquinho e ao peixinho-dourado.
Por fim, a metafunção textual é aquela que corresponde ao aspecto compo
-
sicional, ao modo como a mensagem é estruturada. Essa função é extremamente
importante e quase sempre relegada a notas de rodapé em comentários, inter-
pretações ou tarefas escolares que lidam com textos multimodais ou multisse-
mióticos. A coerência interna e externa desses elementos composicionais são o
que Kress e van Leeuwen (2006) chamam mais especificamente de “gramática
visual”, mesmo que as outras funções também façam parte dela. A metafunção
textual é muito importante porque dela dependem as outras duas:
O que isso significa é que (1) toda mensagem é sobre algo e se dirige a alguém, e (2) es
-
ses dois motivos podem ser combinados livremente – em geral, eles não se restringem.
Mas a gramática também apresenta um terceiro componente, outro modo de signifi
-
cação que se relaciona com a construção do texto. Num certo sentido, isto pode ser
considerado uma função capacitadora ou facilitadora, uma vez que ambas as outras
– construir a experiência e encenar relações interpessoais – dependem da capacida-
de de construir sequências de discurso, organizar o fluxo discursivo e criar coesão e
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continuidade à medida que este avança. . Isso também aparece como um motivo cla-
ramente delineado na gramática. Chamamos isso de metafunção textual (HALLIDAY;
MATHIESSEN, 2004, p. 30).
Se cada imagem é sobre alguma coisa e feita para alguém, o modo como
podemos combinar esses dois elementos depende de estruturas gramaticais
que possibilitem essas variações. O caso de nosso anúncio é muito eloquente
a esse respeito. Primeiramente temos de ter em mente que os criadores do
anúncio tinham várias diretrizes gerais para quaisquer anúncios publicitários,
independentemente do tema, do público ou de quem os encomenda: espera-
se “vender” a ideia ou o produto unindo recursos visuais e verbais. Mesmo que
não houvesse figuras representadas, o tamanho, o formato, a cor das letras e do
fundo são visuais – não apenas verbais – e influenciariam fortemente a eficácia
comunicativa. Também o veículo onde circulará o anúncio delimita o tempo e o
tipo de atenção do leitor, o que introduz critérios como clareza, detalhe, dimensão
das figuras, posição do texto e das imagens, e outros tantos. As ferramentas
de produção e manipulação de imagem, como o
offset
e o uso de
softwares
de edição de imagem, representaram uma grande revolução para a linguagem
publicitária, oferecendo uma liberdade quase infinita na criação de imagens para
a publicidade. Assim, em termos metafuncionais textuais, o anúncio publicitário
é uma mistura muito bem elaborada de recursos visuais e verbais que não param
de se transformar, pois absorvem toda sorte de recursos técnicos disponíveis.
Mas e quanto ao seu objetivo fundamental, que é o de tornar conhecidos
ao público produtos ou ideias, com vistas a persuadi-lo a “comprá-los”? As
estratégias em geral são as de apelo ao emotivo, de identificação com figuras
admiradas consumindo, de idealização do produto, de simplificação tanto dos
fatos quanto das ideias… Tudo isso e muitos outros elementos que os estudiosos
da comunicação vêm tratando há tempos. Todos esses recursos são colocados
à disposição tanto de grandes grupos econômicos quanto de governos, o que faz
com que o letramento visual se torne um importante elemento de emancipação
de grupos subalternizados. No anúncio analisado, a textualização simplificadora
do problema da escassez de água está de acordo com a lógica discursiva
da publicidade: aparar arestas, aspectos desagradáveis ou complexos dos
problemas e criar uma comunicação o mais intuitiva e rápida possível, por meio
de imagens de grande impacto emocional, com apelo mais a sentimentos que ao
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raciocínio.
Hoje existe já algum senso de urgência redobrada a respeito dessas
estratégias textuais usadas pela publicidade, que têm de se reinventar para
dar conta de demandas novas, como a da representação não preconceituosa
de grupos tradicionalmente invisibilizados ou estereotipados pelo discurso da
propaganda. Graças à luta por representação é que hoje vemos mais negros,
pardos, indígenas, pessoas com deficiência e velhos retratados de formas mais
justas ou complexas em anúncios. Assim também questões como a idealização
corporal proposta em vários anúncios de produtos relacionados a alimentação,
vestuário, saúde e outros, que passam por um escrutínio crítico do público
sobre a criação de padrões inalcançáveis e pouco representativos de corpos.
As estratégias publicitárias tornadas obsoletas veem cedendo espaço a outros
discursos, como o da multiculturalidade e da inclusão, para que as empresas
não sejam rejeitadas pelos consumidores. No entanto, o recurso ao visual e
ao instantâneo irá permanecer, bem como a simplificação, o uso do humor e o
escapismo consumista se darão em novas formas.
Considerações finais
De que modo professores de língua portuguesa podem usar as ferramentas
da GDV, como o conceito de metafunções, para criar rotinas ou métodos de
interpretação que ultrapassem a leitura caso a caso ou o aspecto intuitivo de
cada lição? Se observarmos bem, as três metafunções acabam por percorrer os
elementos a serem trabalhados numa perspectiva de letramento proposta pelos
documentos sociais. As metafunções ideacional e interativa (ou interpessoal)
estão em consonância com as perspectivas de enunciação e discurso: assim
como nessas metafunções, um leitor-produtor proficiente em vários modos
semióticos deverá ser capaz de utilizar os recursos dessas linguagens para
representar o mundo e criar uma imagem de si e do outro para atingir seus
objetivos comunicacionais. Para isso, precisa saber qual papel social representa
em determinada situação/interação (função interativa), além de ser capaz
de elaborar uma imagem de seu interlocutor, sua posição ideológica, seu
conhecimento e suas expectativas (funções interativa e ideacional). Ele precisa,
ainda, levar em conta como irá representar o mundo para esse interlocutor
(função ideacional) e, para tanto, deve estar a par dos recursos linguísticos-
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semióticos (a composição, a estrutura textual ou metafunção textual). A BNCC
explicita essa integração dos três aspectos, a saber, a leitura e a produção que
devem ser articuladas pela análise linguística-semiótica.
Estamos conscientes de que o percurso aqui percorrido é provisório
e aprofundamentos sobre muitos conceitos da GDV seriam necessários.
No entanto, consideramos tratar-se apenas de uma primeira tentativa de
aproximação com as possibilidades interpretativas da GDV para o contexto do
ensino em língua portuguesa. Em trabalhos subsequentes, iremos nos deter em
elementos mais específicos e ferramentas de leitura dessa teoria que podem
enriquecer o trabalho com a multissemiose nos contextos escolares. Quando se
trata de leitura de imagem como ferramenta de ensino aprendizagem de gêneros
multissemióticos, o desafio é encontrar, entre as teorias disponíveis, aquelas
mais afinadas com a nossa realidade – desafio que estamos apenas começando
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João Vítor Marques Lima, Edvaldo Correia Sotana
A TERRA FANTÁSTICA DA AMAZÔNIA:
DISCUTINDO A COLONIZAÇÃO DE ALTA FLORESTA A PARTIR DA DRAMATURGIA DE
“FRAGMENTOS DE VIDA” (1995)
THE FANTASTIC LAND OF THE AMAZON:
DISCUSSING THE COLONIZATION OF ALTA FLORESTA FROM THE DRAMATURGY OF
“FRAGMENTOS DE VIDA” (1995)
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21145
João Vítor Marques Lima
Universidade Federal de Mato Grosso
https://orcid.org/0009-0002-1805-8406
jvmarqueslima@gmail.com
Edvaldo Correia Sotana
Universidade Federal de Mato Grosso
https://orcid.org/0000-0001-7493-0997
edsotana11@gmail.com
Recebido em 15 de maio 2024
Aprovado em 18 de junho de 2024
RESUMO:
O objeto e fonte de estudo deste
artigo é a dramaturgia teatral “Fragmentos
de Vida” (1995), montada pelo grupo Teatro
Experimental de Alta Floresta (TEAF), em 1996.
Especificamente, pretende-se trabalhar com
os seguintes recortes temáticos do texto: a) a
participação do Governo Federal e a colonização
na Amazônia Mato-grossense; b) a propaganda
realizada pela colonizadora que buscava atrair
famílias do interior do Paraná para o norte
de Mato Grosso e c) a relação de colonos e
colonizadora com o garimpo na região durante
a década de 1980.
Palavras-chave:
Dramaturgia,
Colonização, Alta Floresta e Amazônia Mato-
grossense.
ABSTRACT:
The object and source of study
of this article is the theatrical dramaturgy
“Fragmentos de Vida” (1995), staged by the
group Teatro Experimental de Alta Floresta
(TEAF), in 1996. Specifically, it is intended to
work with the following thematic excerpts from
the text: a) the participation of the Federal
Government and colonization in the Mato
Grosso Amazon; b) the advertising carried out
by the colonizer that sought to attract families
from the interior of Paraná to the north of Mato
Grosso and c) the relationship of settlers and
colonizers with mining in the region during the
1980s.
Key words:
Dramaturgy, Colonization, Alta
Floresta, Mato Grosso Amazon.
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INTRODUÇÃO
O grupo Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF) foi fundado em 1988
na cidade de Alta Floresta, tendo à frente, o ator, diretor e dramaturgo Agostinho
Domingos Bizinoto Macedo (1952-2017). Além dele, também integravam o grupo, no
período de sua fundação: sua esposa Elisa Gomes Machado, Marcos Roberto Tiso,
Márcia Trindade, Everson Luiz Tiso, Ronaldo Pereira, Clélio Eduardo de Freitas,
Cláudio José Freitas, Dalva Lúcia Lautori, Andréia Silva, Hermes Rodrigues de
Araújo, André Villaverde de Araújo, Arnaldo Batista da Silva, Antônio Gonçalves
Franco
1
.
O TEAF produziu e encenou a dramaturgia “Fragmentos de Vida”,
organizada por Agostinho Bizinoto, no ano de 1995. Foi montada pelo TEAF em
1996 e remontada em 2006. A peça tem como base a dissertação de mestrado
da professora Regina Beatriz Guimarães Neto, defendida em 1986, intitulada “A
Lenda do Ouro Verde”. Além da dissertação, a elaboração do texto teatral se valeu
de memórias dos integrantes do grupo que colaboraram na produção textual. A
dramaturgia busca abordar os primeiros anos da colonização da região norte
do estado, desde a chegada dos primeiros colonos, a questão do garimpo que
toma conta da cidade na década de 1980, a influência da colonizadora Integração
Desenvolvimento e Colonização
2
(INDECO) e a questão do indígena, apagado da
memória coletiva da cidade e da região. Em seguida, trata da descoberta e dos
impactos do ouro na vida da nova cidade, finalizando seu percurso em questões
e problemáticas da cidade na década de 1990.
Com relação à sequência, “Fragmentos de Vida” (1995) foi estruturada sem
cenas definidas, mas para colaborar na discussão levantada no artigo, durante
o processo de análise foi identificada que o espetáculo pode ser dividido em
11 cenas, que abordam sobre a “história da migração para esta região do país,
incluindo o extremo norte de Mato Grosso já pertencente à Amazônia, utilizando
uma linguagem poética nesta saga humana em plena selva, abrindo caminhos,
grandes clareiras e construindo moradias” (MACEDO, 2008, p. 93). Em suas
duas versões, o espetáculo tinha como adereço cênico e recursos luminosos a
presença de tochas, lamparinas e lampiões, o que ambientava o espaço cênico
1 Nomes registrados na Ata da Reunião (Assembleia) do dia 26 de novembro de 1988.
2 A empresa Integração Desenvolvimento e Colonização (INDECO) foi fundada no ano de 1973, é
caracterizada como uma empresa do ramo de construção.
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DOSSIÊ
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Sofa Sousa / Paula Barros
com fumaça e odor de querosene, remontando os anos iniciais da ocupação
assim como as queimadas presentes na cidade de Alta Floresta durante a década
de 1990, devido ao recorte documental selecionado para essa pesquisa, não nos
aprofundaremos na encenação, e escolhas estéticas do espetáculo, mas sim na
sua dramaturgia e nas representações que ela constroi a partir da nossa análise
juntamente a historiografia sobre o período da colonização da região.
Cumpre observar que Alta Floresta foi fundada em 1976 pela colonizadora
INDECO. Teve sua emancipação enquanto município em 1979
3
. Durante os
primeiros anos, a intenção da colonizadora era gerar um ambiente de produção
agrícola a partir do café e guaraná. Com o fracasso dessas culturas, na década de
1980, teve como principal produto econômico a extração de ouro. Após a decaída
da atividade mineral aurífera na região, a cidade passou a ter como principal
geração de receita a extração de madeira e a criação de gado. Já nos anos 2000,
a produção de gado para o abate e a presença de frigoríficos se tornou a produção
principal do município. Na última década (2010) o agronegócio, com a cultura da
soja, que já era forte no centro sul do estado, começa a ganhar força na região.
Portanto, o artigo tem a pretensão de discutir o processo de colonização
do extremo norte do estado de Mato Grosso a partir da dramaturgia teatral
“Fragmentos de Vida” (1995). De modo específico, pretende-se trabalhar com
os seguintes recortes temáticos do texto: a) a participação do Governo Federal
e a colonização na Amazônia Mato-grossense; b) a propaganda realizada pela
colonizadora que buscava atrair famílias do interior do Paraná para o norte de
Mato Grosso e c) a relação de colonos e colonizadora com o garimpo na região
durante a década de 1980.
Para pensar a pesquisa que tem como fonte a dramaturgia, é necessário
trazer para a discussão a historiadora Rosangela Patriota, que problematiza a
relação entre a encenação e a dramaturgia. A pesquisadora aponta à seguinte
problemática para pensarmos na produção do conhecimento histórico:
3 O município foi criado em 18 de dezembro de 1979, através da Lei Estadual nº 4.157.
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Da mesma forma, estudar a obra de um dramaturgo requer, do pesquisador, particular
atenção com o momento da escrita, de modo que apreenda as referências e o reper-
tório utilizado pelo autor, além de estabelecer as interpretações que ela foi obtendo
ao longo do tempo, dos estudiosos e/ou críticos teatrais. Contudo, quando a proposta
volta-se para a análise do impacto histórico de uma montagem teatral, os recursos a
serem mobilizados envolvem, preponderantemente, a interlocução do espetáculo com
os segmentos sociais, que interagem com a sua proposta. Especificamente, nesse
contexto, as intenções iniciais do dramaturgo podem ser subvertidas, dando origem a
outros significados e objetivos, muito mais condizentes com as expectativas do dire
-
tor e do elenco, responsáveis pelo trabalho. (PATRIOTA, 2008, p. 44)
Deve-se, ainda, apontar as contribuições do historiador Roger Chartier que
norteiam nosso estudo. Destaca-se suas posições sobre a literatura impressa,
notadamente as publicações dos textos teatrais. Afinal de contas, o teatro é a
Arte do encontro e, quando tiramos esse encontro entre ator e público, o jogo
teatral se perde:
O teatro não é escrito para que um leitor o leia numa edição saída dos prelos, ele é feito
para ser encenado. É isso que Molière chama de ‘ação’ ou ‘jogo do teatro’. […] É a priori
ilegítimo separar o texto teatral daquilo que lhe dá vida: a voz dos atores e a audição
dos espectadores. (CHARTIER, 1998, p. 26-27, grifo do autor)
A partir disso, utilizaremos o conceito de representação em nosso artigo.
Para Chartier,
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universali-
dade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses
de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discur-
sos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p. 17)
Assim, é possível tratar nosso objeto de pesquisa como produto de um olhar
sobre a colonização de Alta Floresta
4
, buscando, assim, compreender a forma
utilizada para apresentar na dramaturgia acontecimentos e figuras presentes na
vivência daqueles envolvidos em sua produção. Dessa forma “[...] esta investiga-
ção sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num
campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em ter
-
mos de poder e de dominação.” (CHARTIER, 2002, p. 17).
4 É importante compreendermos o conceito de “colonização”. “Para Moreno e Higa (2005), ‘[…]
processo de ocupação e valorização de áreas disponíveis para o povoamento e exploração econômica
[…].’ A colonização é, também, ‘[…] um processo indissociável da migração. A migração envolve
múltiplos condicionantes de natureza econômica e social, e também causas subjetivas, de difícil ava
-
liação’”. (MORENO; HIGA, 2005, 52-3 apud GALVÃO, 2013, p. 2).
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Tem-se em mente que analisar a dramaturgia pode auxiliar no entendimento
das relações de poder, dessa forma fizemos a leitura do documento em questão,
em seguida, delineamos alguns temas, separamos os trechos relativos a tais
temas e registramos em fichas. Três eixos do material pesquisado constarão
nas páginas seguintes. São eles: Participação do Governo Federal, Propaganda
e Garimpo. Considerando os temas que serão explorados, as representações
engendradas na peça e a discussão sobre território, inserimos nosso trabalho na
chamada história política renovada. Notadamente observando que “as iniciativas
dos poderes públicos, as decisões dos governos são apenas a expressão da relação
de forças.” (RÉMOND, 2003, p. 20), buscamos identificar a partir da produção
cultural, aqui utilizada como fonte e objeto de estudo, uma intrínseca relação
de poder entre governo federal, colonizadora, colonos, garimpeiros, natureza e
povos indígenas. Em nosso trabalho o objeto de estudo se encontra no fato de
que o “historiador de uma época distribui sua atenção entre os diversos objetos
que solicitam seu interesse na proporção do prestígio com que a opinião pública
envolve os componentes da realidade.” (RÉMOND, 2003, p. 15). A dramaturgia
utilizada em nossa pesquisa é fruto de um determinado grupo de pessoas que,
inseridas na realidade de Alta Floresta, produz a partir de suas inquietações sobre
os processos de colonização e ocupação da região da Amazônia Mato-grossense.
É preciso observar que existem alguns estudos sobre o Teatro Experimental
de Alta Floresta. Em sua dissertação de mestrado “O lugar e a cena: a
territorialidade na poética do Teatro Experimental de Alta Floresta” (2020),
Ronaldo Adriano Freitas Lima propõe uma discussão sobre a relação do grupo
com o território no qual está inserido. O pesquisador aponta o fazer teatral do
TEAF e discute a relação do grupo com a região da Amazônia Mato-grossense,
bem como as poéticas teatrais abordadas e utilizadas pelo grupo durante sua
trajetória.
Em todos os espetáculos trabalhados na dissertação, assim como na
discussão elaborada pelo autor, podemos identificar a relação entre o grupo e
o espaço no qual ele está inserido. Lima (2020) estabelece um recorte muito
específico no capítulo 3 intitulado “Fragmentos de Vida – A ocupação da Amazônia
Mato-grossense nos palcos da cidade”. O pesquisador se debruça sobre a peça
e discute a poética teatral ligada ao processo de montagem do espetáculo,
caminhando pelo processo de criação da dramaturgia e da encenação, assim
como demonstrando e discutindo a remontagem do espetáculo em 2006. Lima
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também realiza em sua dissertação uma discussão a partir da dramaturgia,
apontando questões importantes para o grupo. Já o nosso trabalho, pretende
apresentar a discussão presente na dramaturgia do espetáculo, que estão
diretamente ligadas a ocupação e colonização da região norte de Mato Grosso.
O trabalho aqui desenvolvido, busca abordar uma região pouco trabalhada na
historiografia
mato-grossense, devido sua integração recente. Mas para além
da discussão do acontecimento histórico, essa pesquisa busca abordar o teatro
enquanto fonte para pesquisa histórica.
“FRAGMENTOS DE VIDA” (1995)
Como documento para a realização da pesquisa, tivemos o texto teatral de
Agostinho Bizinoto, a dramaturgia “Fragmentos de Vida” (1995) que está publicada
no livro “Textos Teatrais de Agostinho Bizinoto: Dramaturgia Popular Surgida de
Experiências em Grupo” (2008). Assim, a pesquisa documental foi realizada com a
dramaturgia do espetáculo intitulado “Fragmentos de Vida”, escrito e organizado
em 1995, publicado em 2008, já com alterações no texto original,
O texto é uma colagem dramatúrgica organizada por Agostinho Bizinoto, a partir de
fragmentos ou textos escritos baseados na obra de Regina Beatriz Guimarães Neto;
trechos da letra da música ‘Luz do Sol’ de Caetano Veloso; um texto inspirado no poema
‘A Bomba’ de Carlos Drumond de Andrade, poema ‘Rio’ de João Cabral de Melo Neto e
texto inspirado na letra da música ‘O Pulso’, composição de Toni Bellotto, Marcelo Fro-
mer e Arnaldo Antunes, gravada pela Banda Titãs. Everson Luiz Tiso (então membro do
Grupo) assina o texto ‘luz’ e os demais são de autoria de Bizinoto [...] (MACEDO, 2008, p.
93
apud
LIMA, 2020, p. 74-5)
O processo de construção e montagem, tanto da dramaturgia quanto da
encenação do espetáculo, não foi amplamente documentada. Por isso, o presente
trabalho opta por realizar um recorte documental somente na dramaturgia
enquanto fonte histórica e objeto de pesquisa. Mas para compreender a análise
da dramaturgia, vemos necessária a compreensão do contexto do espetáculo
teatral montado a partir da dramaturgia aqui analisada. A peça teatral estreou no
dia 24 de março de 1996 e ficou em cartaz como repertório do grupo por 10 anos
(LIMA, 2020, p. 71). A primeira montagem foi pensada para ser apresentada em
espaços convencionais, como um palco, urdimento e com apoio de equipamentos
técnicos. Em 2006, o TEAF, como parte do projeto “Teatro no Campo”, contou com
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recursos do Fundo Estadual de Fomento à Cultura e produziu uma remontagem
do espetáculo com a intenção de apresentá-lo em espaços alternativos. Nessa
remontagem as apresentações aconteciam preferencialmente em ambientes
naturais, próximos a matas e florestas, assim como lagos e rios, aproximando
o público de um ambiente similar ao encontrado pelos primeiros colonos ao
chegarem na região. Nas duas versões, o espetáculo possuía cerca de 30 minutos
de duração, contando com 8 atores em cena e 1 técnico de luz.
Entrando na discussão realizada a partir da análise da dramaturgia,
iniciamos apresentando uma importante problemática presente na dramaturgia
que nos demonstra uma construção da representação da Participação do Governo
Federal no processo de ocupação da Amazônia.
1. Campanha do Governo Federal sobre a Amazônia, lançada pelo Presidente Geisel e
muito bem continuada pelo Presidente Figueiredo.
2. INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR
3. Integrar o HOMEM sem pensar na Natureza / Integrar sem pensar no Solo / Sem pen-
sar nos bichos / Sem pensar nos rios / Sem pensar nas consequências
1. Não entregar a Amazônia / Possuí-la com coragem de matar / Não entregar a Amazô-
nia / Ateando fogo com facilidades
2. Integrar criando cidades / Pisando nos índios / Matando histórias / Sufocando os
tempos
3. INTEGRAR PARA NÃO ENTREGAR / ASSIM QUER O GOVERNO / CUSTE O QUE CUS-
TAR. (MACEDO, 2008, p. 101-2, grifos do autor)
Durante o Regime Militar (1964-1985) o lema do programa de integração na-
cional foi “ocupar para não entregar” (SANTANA, 2009, p. 3), demonstrando que a
visão do governo era de um vazio demográfico na região amazônica, e que deveria
ser ocupado para evitar a perda desse território, dado o contexto de Guerra Fria
(1945-1991). Essa busca pela conquista da Amazônia, diferente da incorporada
no processo do Estado Novo (1937-1945)
5
, possuía a lógica de “[...] INTEGRAÇÃO
NACIONAL, fundamentada na concepção militar de SEGURANÇA NACIONAL.”
(GUIMARÃES NETO, 1986, p. 39, grifos da autora). Deve-se salientar que essa ocu-
pação não levava em consideração populações que habitavam essas regiões, ge-
5 O Estado Novo foi um regime político resultado do golpe de 1937 organizado pelo então presiden
-
te Getúlio Vargas, utilizando de pretextos como a ameaça do comunismo no Brasil, para garantir que
se mantivesse no poder, tendo em vista que segundo Maria Celina D’Araújo (2000, p.8)“O ‘novo’
aqui representava o ideal político de encontrar uma ‘via’ que se afastasse tanto do capitalismo liberal
quanto do comunismo, duas doutrinas políticas que, desde meados do século XIX e mais intensamen-
te a partir da revolução soviética, competiam entre si no sentido de oferecer uma nova alternativa po-
lítica e econômica para o mundo. Havia em ambas a ambição de corrigir os problemas do capitalismo:
desigualdade social, crises, insegurança econômica, conflito de classes e de interesses”.
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rando, assim, diversos e diferentes conflitos. Quando observamos a ocupação
desses “vazios” podemos problematizar as políticas de colonização e de povoa-
mento dessas regiões,
O governo utilizou a colonização no Brasil como estratégia para o povoamento e a ex-
ploração econômica de ‘novas terras’, com a finalidade de ocupar espaços que tinham
pouca ou quase nenhuma densidade populacional no interior do país. Desconsidera-
va-se, porém, nos programas de colonização, que nesses espaços vazios morava uma
população indígena, como também ‘garimpeiros, posseiros, além de povos e comuni-
dades tradicionais representados por extrativistas, pescadores, quilombolas e ribeiri-
nhos’. (MENDES, 2012, p. 201
apud
GALVÃO, 2013, p. 1)
Na década de 1970, surgiu o Programa de Integração Nacional (PIN) que ti-
nha como objetivo gerar a integração da região amazônica com o restante do
país, assim como gerar investimentos na Amazônia (JOANONI NETO; GUIMARÃES
NETO, 2017, p. 6). Essa integração teria como motor a proposição de empreen-
dimentos imobiliŕios e empreendimentos agropecuários que possuíam políticas
de incentivos fiscais para se fixarem e promovessem suas atividades na região
amazônica como parte das políticas de segurança e integração nacional. Esses
empreendimentos imobiliários em alguns casos eram organizados e promovidos
por empresas do setor privado, como foi o caso da empresa INDECO S/A dona do
projeto de Alta Floresta, essa participação do setor privado os estabelece como
intermediador entre o INCRA e os colonos. (JOANONI NETO; GUIMARÃES NETO,
2019, p.115).
Uma das principais ações dessa intenção de integrar o Brasil, foram as cons-
truções de rodovias federais que ligam remotas regiões do norte do país com
rotas nacionais ao sul do território, como é o caso da BR-163, que liga Cuiabá -
MT a Santarém - PA. Essa rodovia foi primordial para a existência dos diversos
projetos de colonização localizados no norte de Mato Grosso, como o da cidade
de Sinop, principal polo da região na atualidade, que está às margens da BR-163.
Alta Floresta está a aproximadamente 200 km desta rodovia, “Certamente que
a construção da MT-208, estrada que liga a BR-163 a Alta Floresta, já estava nos
planos da ditadura militar em 1976, […]. A construção da estrada foi finalizada em
1981.” (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016, p. 210).
A venda e autorização para o estabelecimento dessas empresas sobre áreas tão gran-
des partiam do pressuposto de que estavam desocupadas, o que não correspondia às
realidades locais como bem sabia o governo federal. Os relatos de conflitos, mortes,
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ameaças, expulsão de comunidades inteiras com o uso da força tornaram-se frequen-
tes, (Guimarães Neto, 2014). É importante destacar que a analogia do discurso histórico
que associa essas empresas e empresários que desenvolvem projetos de colonização
na Amazônia aos bandeirantes, terem sido chamados na grande mídia de bandeirantes
‘modernos’ ou ‘do século XX’ guardavam em seu avesso a mesma semelhança com as
incursões sertanistas do XVIII, que os marcou como matadores de índios, destruidores
de comunidades locais. (GUIMARÃES NETO, 2014
apud
JOANONI NETO; GUIMARÃES
NETO, 2017, p. 16)
No caso de Alta Floresta, não existe na memória da cidade, a existência de
populações indígenas na região que compõe hoje a cidade. Nos primeiros anos
de colonização da cidade a própria colonizadora INDECO aponta a não existência
de populações originárias nessa região, o que facilitaria a integração deste ter-
ritório,
De fato não era comum a observação de indígenas e realmente o senso comum foi
convencido de a cidade ter sido instalada em lugar onde não havia índios. Até na
atualidade são raras as referências a povos indígenas no município, muito embora
exista uma grande fazenda, historicamente ligada à empresa ‘colonizadora’, com o
nome Kaiabi; os nomes dos municípios de Apiacás e Paranaíta, de origem indígena; e
centenas de sítios arqueológicos na região. (LIMA, 2020, p. 83)
Também existem relatos de ex-funcionários da colonizadora que explicam
investidas que eram realizadas a serviço da empresa, que buscavam capturar e
assassinar grupos indígenas que estavam presentes na região, antes mesmo da
abertura da clareira da cidade e da chegada dos primeiros compradores das ter-
ras da gleba de Alta Floresta (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 83).
A dramaturgia aborda essa questão do “vazio” na cena 3 do espetáculo, na
qual um ator diz: “2. Era uma vez um lugar muito bonito, de lenda e solidão, e que
só não podia ser mais bonito porque ‘não tinha homens’, e não existindo homens
não haveria família abençoada, terra trabalhada e tudo se perderia…” (MACEDO,
2008, p. 96). Essa fala contrapõe a cena anterior da dramaturgia, na qual o públi-
co escuta o relato do indígena anunciando a destruição promovida pelo homem
branco. Como apresentado acima, a não presença de populações indígenas na
cidade é um fato construído pela colonizadora para facilitar a ocupação da re-
gião, assim como um rastro da política governamental de “vazios demográficos”,
ao mesmo tempo que essa fala aponta para a inferiorização do indígena enquanto
ser humano que não foi “escolhido por Deus” para tornar a terra próspera.
Ainda sobre a presença de povos indígenas na região, pode-se apontar as
“limpezas” realizadas pela própria empresa. Em sua dramaturgia, Macedo (2008,
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p. 96) aponta “3. Será fácil rasgar a carne do índio e abrir as veias da Floresta!”.
E a historiadora Regina Beatriz também aponta esse processo em sua disserta-
ção, “A esse respeito, referindo-se à expulsão dos indígenas que se encontravam
nas terras da Indeco, um funcionário dessa Colonizadora foi categórico: ‘Nós aqui
domamos os índios e fizemos a limpeza da área’” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 83).
Esse relato de um funcionário entrevistado pela historiadora em abril de 1982
deixa claro a construção do projeto de ocupação e integração que a colonizadora
e os governos militares possuíam para essas terras, assim como podemos iden-
tificar a importância da presença da dissertação da professora no processo de
construção da dramaturgia, dando ao espetáculo teatral um embasamento teóri-
co e historiográfico, na construção de suas representações.
Importa, assim, abordar o tema da Propaganda a partir da dramaturgia. Para
isso, selecionamos a terceira cena do espetáculo.
Nesta cena, figuram cinco
atores, caracterizados como migrantes colonos, a rubrica do texto anuncia que
chegam no espaço cênico pelo rio, em uma canoa - provável alusão a balsa da
INDECO. A região escolhida para o empreendimento imobiliário da Colonizadora
possui uma demarcação natural que é o Rio Teles Pires (ou São Manuel), o que im-
possibilitava o acesso às terras da colonizadora. Por ser um rio de grande escala,
dificilmente se conseguia adentrar na região sem que fosse pelo acesso cons
-
truído e controlado pela empresa, a Balsa da INDECO:
Barreira natural que ajudava na determinação de características socioculturais, distin-
tas para Alta Floresta, se comparada com outras cidades da região. Sabe-se que houve
um rigoroso controle para a entrada na área da INDECO, controle este favorecido pelo
fato de o único acesso ser a balsa. (LIMA, 2020, p. 107)
Dessa forma, o acesso à área de povoamento só era permitido para pes-
soas que comprovassem possuir terras já adquiridas na cidade. Esse movimento
perdeu força no início da década de 1980. Durante os primeiros anos da coloniza-
ção da região a entrada de grupos “indesejáveis” era controlada. Tal expediente
dava à colonizadora a função de controlar o grupo social a ter acesso à cidade. A
empresa iniciava esse processo de seleção ainda na compra das terras. As pro-
pagandas e divulgações dessa “terra fantástica da Amazônia” (MACEDO, 2008, p.
96) possuíam um público-alvo definido. Buscava grupos populacionais do estado
do Paraná. Em parte, as terras eram vendidas em escritórios da colonizadora,
instalados em cidades do Paraná.
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A propaganda não se restringia somente às cidades que tinham um escritório da INDE-
CO. Corretores em outras cidades apresentavam as novas terras nos municípios que
não tinham ponto específico de vendas. Nessas cidades eram feitas reuniões na resi
-
dência de alguns moradores, que chamavam os amigos para participarem, e durante
as reuniões eram exibidas fotos do projeto da INDECO. (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016,
p. 216)
A colonizadora buscava pela população sulista por se tratar de um grupo
descendente de imigrantes europeus que, segundo a colonizadora, já possuíam
relação com a migração e com o trabalho na terra. Vale recordar o texto “A Terra
Para Quem Nela Não Trabalha (A especulação com a terra no oeste brasileiro nos
anos 50)”, de Alcir Lenharo (1986), no qual compreendemos que parte do Estado
do Paraná e do atual Mato Grosso do Sul foram ocupados a partir de projetos de
colonização das décadas de 1940 e 1950
6
.
[…]. Em primeiro lugar, abriu-se espaço para o colono do sul, branco, de origem euro-
péia, preferido em relação ao nacional, geralmente de origem nordestina. O colono do
sul já teria passado pela experiência da colonização, traria seu pecúlio para aplicar na
sua propriedade e, acima de tudo, com outra mentalidade em relação ao trabalho faria
da produção uma atividade realmente lucrativa. Produziria, pois, como um capitalista.
(LENHARO, 1986, p. 50)
Dessa forma, pequenas propriedades de terra eram foco da INDECO. Nas pe-
ças de propaganda, a colonizadora apontava para uma terra próspera, fértil, que
teria lugar para todos os que estivessem dispostos a nela trabalhar e que nessa
nova terra os problemas que os estavam afetando, como as geadas, não eram
uma realidade. É importante termos em mente que nos anos anteriores ao início
dos empreendimentos em Alta Floresta, uma geada atingiu a região sul, causan-
do danos para as diversas plantações em território paranaense
7
. Então, quando
aparece uma oportunidade, apresentada pela empresa como a salvação para os
problemas locais, muitas dessas famílias optam por vender sua pequena quan-
tidade de terra no interior do Paraná para se aventurarem na Amazônia, lugar no
6 No texto, Alcir Lenharo (1986) problematiza a presença dos conflitos por terra no interior do Brasil.
É comum abordarmos esses conflitos nessa região do país pós 1964, porém Lenharo nos mostra que
esses conflitos já ocorriam anteriormente, e que eles se agravam durante os governos militares pós
1964.
7 Em sua dissertação, Regina Beatriz Guimarães Neto entrevistou diversos colonos que “[...], quando
entrevistados, aponta a seca ou a geada como fatores importantes para a sua saída” (GUIMARÃES
NETO, 1986, p.12).
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qual eles poderiam, segundo a empresa, prosperar de forma fácil e rápida. Na
cena selecionada um dos atores anuncia essa terra amazônica.
1. A terra fantástica da Amazônia arrastou um sem número de famílias pobres do campo
para cá, provenientes de várias regiões do país. Abra a porta, escuta, sinta, veja, eu lhe
apresento: A AMAZÔNIA oferece a você, agricultor, e sua família, uma nova opção de
vida. (MACEDO, 2008, p. 96, grifos do autor)
A primeira frase da citação acima é uma referência direta à dissertação de
Guimarães Neto (1986, p. 1). Essa é a primeira frase de seu trabalho, a qual foi uti-
lizada na primeira fala dos colonos na dramaturgia. Essa fala apresenta a ideia de
terra fantástica e prometida que é retomada nesta cena diversas vezes. Ao com-
por as propagandas da colonizadora, busca atrair a população com a idealização
de uma terra cobiçada e próspera para as famílias.
Durante a cena temos falas que abordam a realidade encontrada por mui-
tos dos colonos e a ideia de paraíso contada pela colonizadora em suas propa-
gandas. Como é o caso dessas duas falas ditas em sequência, “5. Corra, chegou a
sua vez / Não haverá outra oportunidade / Morra de mosquito, de malária / A mor-
te bela é a Amazônica” seguindo de “1. Venha plantar conosco nas terras férteis
de nossos projetos, as culturas do café, arroz, feijão, milho e mandioca. Desfrute
da infra-estrutura que uma nova cidade lhe oferece.” (MACEDO, 2008, p. 97). Duas
ideias estão em conflitos nessa sequência de falas: relatos de problemas encon
-
trados pelos colonos que enfrentavam novas doenças e a ideia da terra fértil, pa-
rafraseada de forma muito interessante por Regina Beatriz, que a chama de “Ouro
Verde”. Sabe-se que as culturas citadas no texto não prosperaram e logo foram
substituídas pelo gado e a exploração madeireira, assim, como a busca pelo ouro.
Compondo uma representação criada pelo espetáculo de que aquilo que se es-
tava sendo vendido não seria capaz, já que a produção teatral tem ciência dos
caminhos percorridos pela economia local.
Outra questão importante que colabora para a migração desses agricul-
tores foi o avanço do grande latifúndio na região paranaense e a automação das
lavouras. Grandes latifundiários estavam ampliando suas propriedades a partir
da compra de terras de pequenos agricultores que não viam outra opção senão
vender suas terras e abandonar aquele território. Sobre essa opção de se bus-
car colonos no sul do país, Guimarães Neto apresenta a seguinte declaração de
Ariosto da Riva.
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Indagado a respeito dos motivos pelos quais procurou vender os lotes da gleba de Alta
Floresta preferencialmente no Paraná, Ariosto Da Riva respondeu de maneira incisiva:
‘Porque no Paraná a mecanização estava expulsando o pequeno, a lavoura mecanizada
exige um volume de terra. O pequeno começou a ficar esprimido lá, e o homem que
vendesse dez alqueires no Paraná podia comprar cem aqui. […]’. (GUIMARÃES NETO,
1986, p. 100)
Macedo também aborda na dramaturgia esses problemas enfrentados pelos
paranaenses ainda em sua terra natal. Os problemas climáticos afetaram de
forma dura a região sul do país na década de 1970, desde a falta de água, até as
geadas que destruíram plantações. Na mesma fala é possível identificar o avanço
das empresas latifundiárias sobre as terras de pequenos agricultores.
2. Era uma terra sem geada, que nem precisava ser adubada, com quase tudo de gra-
ça (só módicas prestações mensais), mas a família seria assegurada e poder-se-ia até
pensar em não mandar o filho para a cidade, pois ‘naquelas terras’ havia terra… (MACE
-
DO, 2008, p. 97)
Em relação às migrações causadas por problemas naturais, Guimarães
Neto (1986, p. 12-3, grifos da autora) diz,
Ainda que estes fenômenos naturais possam em determinados momentos acelerar a
migração, não devem, no entanto, ser considerados os seus causadores. A maioria dos
colonos, quando entrevistados, apontam a
seca
ou a
geada
como fatores importantes
para a sua saída. Contudo, vejo mais como
dificuldades que parecem não ter solução
,
para uma população pobre, oprimida politicamente e que sofre uma espoliação cons-
tante de seu saber, incompatível com os novos
modelos tecnológicos
, que somente
atendem poderosos grupos econômicos de ‘pai para filho’
O apelo pelo sentimento de colono desbravador também se faz presente na
dramaturgia, assim como o papel de conquista da Amazônia.
5. Seja errante sempre à procura de alguma coisa, não desistindo nunca, acreditando
no desconhecido, recomeçando histórias, obedecendo uma voz interior: ‘algo indefini
-
do que impõe ao espírito e ao coração convicção’… (MACEDO, 2008, p. 97)
Dessa forma, “conquistar a Amazônia, deixava de ser simplesmente uma
questão de luta por melhores condições de vida e realização pessoal do colono,
para ser também uma
contribuição do cidadão à sua nação
” (GUIMARÃES NETO,
1986, p. 35, grifos da autora). Essa necessidade da conquista também estava pre-
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sente na propaganda apontada na dramaturgia sobre a conquista da Amazônia e
da terra prometida.
5. Tornem homens fortes e poderosos, capazes de enfrentar perigos nunca vistos,
saindo de lugares distantes para lugares tão distantes! Atravessem uma densa e ingê-
nua mata, sofram golpes de morte! Saltem de um sonho para outro, da terra da geada
para a prometida terra de abundância… (MACEDO, 2008, p. 98)
As ideias de prosperidade e “terra prometida” presentes na cena em ques-
tão foram retomadas nas últimas falas da cena: “2. Era uma terra em que o co-
meço está fora do tempo, não conta tempo não, porque é lá que está o futuro, um
futuro de fartura e até que enfim o sossegar… [...] 1. Nós lhe esperamos, porque
inventamos um paraíso, onde não há misérias.” (MACEDO, 2008, p. 98). Como já
abordamos anteriormente, essa ideia de uma terra de fartura e de futuro foi ex-
plorada pelas propagandas da INDECO. Ainda sobre essa concepção de “paraíso
terrestre”, Regina Beatriz aponta o pensamento de Ariosto da Riva, dono da colo-
nizadora:
Decididamente, nesse imaginário o mundo era fantástico, não se falava de dificuldades
e tampouco de sacrifícios. […]. Ariosto construía a representação da
terra prometida
e não admitia outras figurações que tentassem substituir a
realidade
pela
imaginação
.
Ele, o colonizador, nomeava o real. […]. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 113, grifos da au-
tora)
Deve-se ressaltar que havia uma diferença entre os projetos de colonização
públicos e privados, “[…]. A principal diferença entre colonização privada e públi-
ca é a seleção de colonos. A primeira, escolhe as pessoas que têm condições de
comprar uma porção de terra, e a segunda é destinada para aqueles que justa-
mente não têm como adquiri-la” (TAFNER JUNIOR; SILVA, 2016, p. 219). No caso
da colonização de Alta Floresta, a INDECO realizou uma seleção sociocultural, na
qual ela não recebe somente aqueles com condição financeira; porém, sua esco
-
lha por realizar campanhas e propagandas somente em uma determinada região
do país demonstra o interesse em selecionar possíveis colonos.
O último eixo temático a ser discutido está relacionado com o Garimpo. Se-
gundo Joanoni Neto, em seu livro “Fronteiras da Crença: Ocupação do Norte de
Mato Grosso após 1970” (2007, p. 59), “Alta Floresta fez parte de uma das mais
importantes reservas auríferas do Brasil […]”. Durante a década de 1970, estu-
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dos apresentaram a qualidade do solo na região amazônica e de suas riquezas.
A exploração do solo em busca do ouro, no caso de Alta Floresta, e de outros
projetos do mesmo período, não era propagada, para que não se atraísse uma
população indesejada pelas colonizadoras, devido ao número de pessoas pobres
que migravam para a cidade sem pretensões de permanecerem nela, mas sim
aproveitar a existência do ouro para tentar enriquecer. O foco inicial da coloni-
zação era a agricultura, porém, diferente das propagandas sobre a terra, aquele
não era um lugar de terra fértil para as mesmas culturas e meios de produção
do Paraná. Dessa forma, com o ciclo da agricultura perdendo força e a busca do
ouro se mostrando próspera, “Os problemas com as lavouras, [...], aos poucos
iam sendo conhecidos. Mais tarde, quando a
fama
já corria deste mundo, o
pro-
gresso da cidade de Alta Floresta
e o ouro dos garimpos vinham ampliar e elevar o
mito da terra de riqueza” (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 33, grifos da autora). Assim,
Alta Floresta passa a atrair pessoas não mais para trabalhar com a terra, mas sim
para desbravar-lá com o garimpo.
O primeiro diálogo sobre esse tema na peça ocorre na quarta cena. Sozinho
em cena um ator caracterizado de agricultor/colono fala com o público.
– Óia, seu moço! Tá uma correria danada pela cidade! De uma hora pra outra a cidade
virou um formigueiro de gente! O ouro – não sei se isso é bendito ou maldito – deu sua
cara pra estas bandas e o povo endoidou cavando buraco pra todo lado. Nem os atolei-
ros na estrada segura esse montão de gente que quer chegar aqui e chega. Só se esta
terra for somente ouro pra dar pra todo mundo. Ninguém tá respeitando nada. A Natu-
reza, coitada! Tá virando um balaio furado escorrendo uma lama esquisita! (MACEDO,
2008, p. 98)
Nesse trecho, podemos identificar o relato da chegada em grande número
de pessoas em busca do ouro que havia sido encontrado nas terras da coloniza-
dora, tornando foco desses migrantes, que vinham de lugares distantes na tenta-
tiva do enriquecimento. Na continuidade da cena, entra outro ator caracterizado
de colonizador, e se inicia um diálogo entre o colono e o colonizador sobre a pre-
sença do ouro e dos garimpos nas terras do projeto da colonizadora.
– Senhor, onde foram todos?
– Deus colocou também ouro nessas terras e eles foram em busca da maldição.
– Maldição?!
– Sim, tudo será alterado. Não haverá mais planos nem planejamento. Chegarão mul-
tidões da noite para o dia com seus sonhos brilhantes e rasgarão o solo por todos os
cantos. No ar já se sente um cheiro de morte em todos os sentidos.
– Eles morrerão?!
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– Não somente eles, mas nós também. Para sobreviver às imposições da garimpagem
será preciso estar disposto a matar ou morrer. Mataremos e morreremos. É a lei da
sobrevivência.
– Mas e se mandássemos todos embora?!
– Não é mais possível. Já estão vindo de toda parte. Usaremos a polícia para o extermí-
nio de muitos, mas todos, será impossível. O ouro é um atrativo que endoida os homens
tornando-os como lobos famintos.
– É terrível!
– Não se preocupe. Haveremos de tirar proveito de toda a situação. Afinal, temos o po
-
der de nosso lado. Pediremos auxílio à Igreja para apaziguar os mais afoitos em nome
de Deus. O ouro passará e os que aqui permanecerem sofrerão na busca de seus pró-
prios caminhos. No momento, uma coisa é importante: a cidade crescerá rapidamente
sem o ônus da propaganda.
– Pra natureza, isso pode ser pior que uma bomba! (MACEDO, 2008, p. 99-100)
Na cena acima, no diálogo entre colono e colonizador podemos analisar
como uma representação da busca pelo ouro, assim como a opressão realizada
pela colonizadora INDECO no processo de avanço do garimpo e o crescimento
que a cidade teve na década de 1980. No caso de Alta Floresta, o papel repressor
da colonizadora e da figura de seu dono, Ariosto da Riva, proliferaram uma per
-
seguição aos garimpeiros, além das mortes e expulsões. É possível identificar
repressão e menosprezo pelos garimpeiros, que partiam da própria população
que chegara anteriormente, Ariosto da Riva foi o rosto de uma propaganda anti-
-garimpo na cidade.
Os garimpeiros, que não eram sulistas, foram condenados por Ariosto da Riva. Eles
eram os invasores de sonhos e traziam para a sociedade valores antagônicos aos da
família, como a violência e a promiscuidade. Quando os garimpeiros, atraídos pela no-
tícia de que havia ouro no entorno de Alta Floresta, estes chegaram aos milhares e o
desprezo, o preconceito e a violência contra os garimpeiros. (TAFNER JUNIOR, 2016.
p. 220)
Além desse processo de controle, que deixou de existir no início nos anos
1980, o projeto de Alta Floresta da colonizadora INDECO promoveu uma caça a
garimpeiros, diferente de outros projetos do norte do estado,
No caso do garimpo de Paranaíta, na área do Projeto Alta Floresta, os garimpeiros que
insistiam em entrar foram expulsos com violenta repressão: […] grande parte dos ga-
rimpeiros expulsos […] por um grande número de jagunços, alguns policiais fardados
[e pelo] delegado de Sinop, José Carlos Conte […] Calcula-se em 300 o número de mor-
tes […] quem caminha naquelas matas não raro encontra cadáveres já praticamente
decompostos. E diga-se que no mês de novembro um grupo de garimpeiros encontrou
18 cadáveres amontoados, mortos recentemente. (JOANONI NETO, 2007. p. 65)
Deixando claro a violência sofrida pelos garimpeiros nos anos iniciais do
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projeto e a utilização das forças de repressão do estado em processos que bene-
ficiavam as empresas privadas de colonização na garantia de suas terras (JOA
-
NONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2019, p.109). Podemos ainda citar o episódio co-
nhecido como “taca”, na qual
Quase todos os garimpeiros (cerca de 3.500) foram torturados pelos bandidos. Em al-
guns introduziram o cano do mosquetão e outros objetos no ânus, outros eram pen-
durados pelos pés (muitos até morreram), outros eram obrigados a manterem relação
sexual com os próprios companheiros. As mulheres eram violentadas na presença dos
maridos pelos policiais e jagunços. Chegou ao ponto de colocarem gasolina na vagina
e em seguida atear fogo. Davam coices de mosquetão no ventre de mulheres grávidas.
(SCHAEFER, 1985, p. 150
apud
LIMA, 2020, p. 86)
Então, podemos compreender o uso dessas tentativas da colonizadora de
buscar desmoralizar o garimpo e seus praticantes. Em sua dissertação de mes-
trado “A Lenda do Ouro Verde” (1986), Regina Beatriz Guimarães Neto aponta como
havia uma necessidade de diferenciar os migrantes do sul dos migrantes do nor-
deste, ideia presente nos discursos que frisavam como o colono do sul buscou a
terra amazônica para prosperar a partir do trabalho, preservando, ainda, a lealda-
de a sua família; enquanto os garimpeiros, na sua maioria nordestinos, buscavam
apenas o enriquecimento rápido a partir do ouro sem interesses em se fixar na
cidade. A tentativa da colonizadora de frear o avanço e a proliferação do garimpo
falha, mas esse movimento impulsionado pela empresa gera uma descriminação
ainda presente na cidade entre paranaenses e nordestinos.
Nesta representação do novo lugar, o colono é sempre mencionado como o homem da
terra, que mais parece carregar uma ‘sina’ - a de cultivar, cultivar. E ocupar. Outros são
garimpeiros, grileiros, aventureiros sem rumo, sem lugar, que acompanham o brilho da
riqueza e não podem parar. (GUIMARÃES NETO, 1986, p. 67)
Sobre a repressão realizada pela colonizadora, a dramaturgia aponta de
forma camuflada. Em sua dissertação, Lima ressalta que essa era uma temática
delicada. No ano em que o espetáculo estreou (1996) o filho de Ariosto da Riva, Vi
-
cente da Riva, foi eleito prefeito de Alta Floresta. Com isso, havia um certo receio
da reação dele e da família Riva como um todo, pelo fato de que eram (e ainda
estão) presentes na vida política e detentores de grandes poderes no município
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(LIMA, 2020, p. 73-4). Sobre o receio em abordar o episódio de repressão denomi-
nado “taca”, Lima (2020, p. 86) diz,
Discussões sobre a ‘taca’ foram longamente travadas pelo TEAF, mas a escolha pelo
desvio foi consciente. Seria uma opção demasiadamente espinhosa e perigosa. Do
ponto de vista da relação do Grupo com a cidade e os controladores dos espaços de
poder, poderia causar problemas para a própria existência do coletivo teatral. Ainda
assim, no diálogo das personagens são sugeridas práticas hostis e violentas que foram
entendidas pelo espectador mais atento.
No trecho selecionado acima da dramaturgia, também pode-se identificar
o crescimento da cidade durante o ciclo do ouro, quando a personagem do colo-
nizador afirma:
Não se preocupe. Haveremos de tirar proveito de toda a situação. Afinal, temos o po
-
der de nosso lado. Pediremos auxílio à Igreja para apaziguar os mais afoitos em nome
de Deus. O ouro passará e os que aqui permanecerem sofrerão na busca de seus pró-
prios caminhos. No momento, uma coisa é importante: a cidade crescerá rapidamente
sem o ônus da propaganda. (MACEDO, 2008, p. 100)
Durante esse período, a cidade foi sede de um dos principais garimpos do
país. Assim, a colonizadora passa a receber investimentos em suas terras sem a
necessidade da propaganda, a cidade passa a se tornar famosa e o fruto do de-
sejo de diferentes brasileiros, que sonham com essa terra de riquezas. E, assim
como a personagem diz, o ouro deixa de ser abundante no final da década de 1980
início de 1990, gerando na cidade um debandada, levando a permanecer somente
aqueles que tinham interesse de permanecer, ou que não tinham condições de se
aventurar em outros lugares. Durante a década de 1990, o comércio de madeira
passa a ser o principal produto da região, sendo ultrapassado pela pecuária nos
anos 2000.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso artigo buscamos compreender as representações engendradas
na dramaturgia “Fragmentos de Vida” (1995), do TEAF, a partir dos recortes dos
eixos temáticos: Participação do Governo Federal, Propaganda e Garimpo, dis-
cutidos nos tópicos anteriores. Procuramos identificar e relacionar os trechos
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da dramaturgia com o dissertação de mestrado da historiadora Regina Beatriz
Guimarães Neto (1986) e com outros textos historiográficos que discutem as te
-
máticas abordadas. Assim, buscamos uma primeira aproximação com as possi-
bilidades de se utilizar uma produção teatral como fonte histórica.
A partir da dramaturgia, observamos ser fundamental estabelecer o lugar
político-social do dramaturgo Agostinho Bizinoto e do grupo Teatro Experimental
de Alta Floresta e sua relação com o território no qual está inserido, abordando,
em seu espetáculo, problemas importantes para a realidade de Alta Floresta e da
Amazônia Legal, como seu posicionamento perante a cidade e seu processo de
colonização.
Podemos identificar a partir das representações construídas e contidas
na dramaturgia teatral uma relação similar às pesquisas historiográficas, muito
porque o texto teatral possuiu como principal referência a dissertação de mes-
trado de Regina Beatriz Guimarães Neto, aproximando a discussão proposta pelo
espetáculo do conhecimento histórico. Mas também foi possível identificar na
análise da dramaturgia e da dissertação de mestrado de Ronaldo Adriano Freitas
Lima, que a produção da obra teatral carregou a presença das relações de poder
presentes na cidade, evitando em alguns momentos a discussão mais aflorada e
direta sobre o papel e a presença da empresa colonizadora nas relações com os
colonos e garimpeiros. O que nos parece identificar a compreensão do espaço
em que o grupo de teatro estava presente, assim como suas relações com as fi
-
guras de poder da cidade.
Podemos compreender a partir da análise realizada, que o processo de ocu-
pação da Amazônia teve uma presença ativa de empresas privadas juntamente
com o governo militar. Construindo cidades que pudessem servir de processo ci-
vilizatório e controlador sobre, não somente o espaço recém ocupado, mas tam-
bém sobre os corpos daqueles que estavam sendo colocados como parte crucial
da integração nacional, os migrantes. Portanto, procuramos discutir nesses três
recortes temáticos que o processo de colonização e ocupação da região norte de
Mato Grosso, em especial da cidade de Alta Floresta, pudesse ser compreendido
como um processo de controle da terra e dos corpos ali inseridos, apresentando
esta região como um “paraíso na terra”, um lugar no qual a terra fosse fértil a pon-
to de brotar oportunidades em todas as lavouras.
Concomitantemente, entendemos possível problematizar o processo de
ocupação do norte de Mato Grosso. A partir da dramaturgia, percebe-se a sele-
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tividade dos colonos, optando-se por sulistas em contraposição aos migrantes
nordestinos, gerando tensões principalmente na década de 1980. Que as ima-
gens e os expedientes retóricos que compõem um texto teatral gerem outros
trabalhos ocupados com o projeto de colonização implementado no período da
ditadura militar no Brasil, possibilitando refletir, criticamente, sobre agentes e as
práticas mobilizadas no território da Amazônia Mato-grossense.
FONTE
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MACEDO, Agostinho Domingos Bizinoto.
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LIMA, Ronaldo Adriano Freitas.
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Iara Quelho De Castro
DECOLONIALIDADE E TESSITURAS INDÍGENAS: ARTICULAÇÃO POLÍTICA DOS TERENA
DECOLONIALITY AND INDIGENOUS TESSTURES: POLITICAL ARTICULATION OF THE
TERENA
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21249
Iara Quelho De Castro
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
https://orcid.org/0000-0003-1104-364X
iara.quelho@ufms.br
Recebido em 29 de abril 2024
Aprovado em 02 de junho de 2024
RESUMO:
O artigo trata da articulação
política dos Terena, etnia indígena que vive
no Mato Grosso do Sul. Por meio da análise
de documentos que formulam após cada
assembleia, realizada anualmente, desde 2012,
e sob uma perspectiva decolonial, busca-se
apontar as formas de atuação e posicionamento
adotados em face às adversidades que
enfrentam. A análise permite verificar que os
Terena tecem suas práticas políticas externas
de diferentes formas, destacando-se o domínio
do conhecimento da sociedade envolvente.
Palavras-chave:
Política Indígena;
Protagonismo Indígena; Decolonialidade
ABSTRACT:
The article deals with the
politics articulation of the Terena, an indigenous
ethnic group that lives in Mato Grosso do Sul.
Through the analysis of documents that they
formulate after each assembly, held annually
since 2012, and from a decolonialist perspective,
we seek to point out the ways of performance
and positioning adopted in the face of the
adversities they face. The analysis allows us
to verify that the Terena weave their external
political practices in different ways, highlighting
their mastery of knowledge of the surrounding
society.
Key words:
Indigenous Politics; Indigenous
Protagonism; Decoloniality
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Apresentação
Com uma população calculada em 28.845 mil pessoas (IBGE, 2010), os Terena
vivem atualmente em um território descontínuo, fragmentado em pequenas
“ilhas” cercadas por fazendas.
Encontram-se em muitos municípios sul-mato-
grossenses, tais como Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti,
Sidrolândia, Campo Grande, Nioaque e Rochedo. Também há famílias Terena
vivendo em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiwéu), Dourados e no estado de
São Paulo (na Terra Indígena Araribá).
Os Terena mantêm um contato intenso com a população regional e nacional,
interagindo sob as mais diversas formas e em diferentes âmbitos da sociedade
envolvente. A presença indígena, anteriormente, se revelava exclusivamente
nas representações dos homens trabalhadores nas fazendas, das mulheres
como trabalhadoras domésticas e feirantes nas ruas e mercados das cidades,
como Campo Grande, Aquidauana, Miranda, Nioaque; atualmente, a situação
mudou. O movimento indígena brasileiro, visível a partir da década de 1970,
progressivamente possibilitou a ampliação de espaços da atuação indígena.
Nesse contexto, os Terena conquistam cargos públicos nas prefeituras, em
secretarias estaduais e nas universidades da região, como estudantes de cursos
de graduação e pós-graduação, formam-se professores, profissionais nas mais
diversas áreas, especialistas, mestres e doutores. De um modo geral, pode-se
definir os Terena como um povo bilíngue que “tem orgulho de dominar, inclusive
por meio do uso da língua do purutuya, a situação do contato com a sociedade
nacional” (LADEIRA, 2001, p. 130).
Inseridos no movimento indígena brasileiro, os contemporâneos Terena
apresentam práticas políticas no interior da sociedade nacional e uma atuação
que remete a uma perspectiva decolonialista de mundo. Essa percepção tornou-
se possível à medida em que foram examinados os registros que fazem ao final
de cada assembleia que realizam anualmente desde 2012.
Os registros, denominados de documentos finais, apresentam-se como
uma espécie de ata, um resumo escrito dos assuntos debatidos e das decisões
tomadas em cada assembleia realizada e que são veiculados nas redes sociais
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disponíveis e naquelas criadas pelo próprio grupo.
1
Qual seria a finalidade das
publicações e a quem se dirigem? Levantamos a hipótese de que, ao registrarem
suas ações políticas, os Terena buscam documentar seu protagonismo, apontar
sua visão de mundo e construir uma memória que possa legitimar sua presença e
lutas no interior da sociedade nacional, apontando sua ancestralidade na região,
a continuidade cultural, a exemplo da realização de assembleias, que se firmam
como uma das tradições do grupo para o debate e tomada de decisões coletivas.
Para explorar as questões provocadas pelos registros examinados, organizamos
o presente texto em duas partes.
Na primeira parte, retomamos, de forma breve, a perspectiva decolonialista
construída a partir da América Latina, utilizada como uma das referências para
pensar as experiências que os Terena vêm realizando na contemporânea esfera
pública que se constitui articulada às suas dinâmicas internas. A compreensão
do conjunto de percepções e representações negativas contemporâneas sobre
os povos indígenas, seus saberes e histórias passam necessariamente, ao nosso
ver, pela compreensão daquilo que intelectuais latino-americanos chamam de
colonialidade do poder, do ser e do saber. Dessa forma, chamamos para a cena
da presente reflexão, as principais pautas reivindicatórias dos decolonialistas,
para o entendimento de novas propostas que se encaminham no sentido das
possibilidades de construção de um mundo que não se baseia na exclusão de
saberes e seres que povoam de forma múltipla, diversa e enriquecedora o mundo
em que vivemos.
Na segunda parte, sob a perspectiva do protagonismo indígena, enfatizado
por Monteiro (2001), examinamos o posicionamento do grupo vinculado ao
Conselho Terena, a organização indígena que coordena as Grandes Assembleias
do Povo Terena, as
Hanaiti Ho’Únevo Têrenoe
, a partir da leitura dos chamados
documentos finais, que são produzidos após cada assembleia. Esses
documentos encontram-se publicados nas mídias digitais, em sites como o da
APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e do CIMI (Conselho Indigenista
1 Os documentos finais estão divulgados nas redes digitais do Conselho Indigenista Missionário, do
Instituto Socioambiental – PIB (Povos Indígenas), do Racismo Ambiental e da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) e a dos próprios Terena, os quais possuem um site na internet e mantêm
uma página no Facebook para interagir com o público de um modo geral, para além da sua própria
comunidade, para dar conhecimento de suas ações mostrando seu posicionamento em relação a temas
a eles relacionados, publicando e divulgando eventos, apresentando as suas propostas, reivindicações,
e, quando necessário, convocando para a luta, mobilizando o grupo na defesa dos seus direitos.
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Missionário), constituindo um campo de interação, tornando públicas suas
determinações para além de suas aldeias, construindo um ponto de referência
para a conquista de novas parcerias pela causa indígena, como também para se
mobilizarem e enfrentarem os desafios que lhes são impostos.
Sob uma perspectiva decolonial, entendemos os registros realizados como
testemunhos de políticas e estratégias viabilizadas pelos Terena neste século
XXI e que delineiam um projeto que defende a constituição de uma sociedade
outra, onde possam bem viver, opondo-se à hierarquização inferiorizante na qual
foram inscritos.
Neste artigo, estabelecemos um diálogo horizontal entre a teoria da
decolonialidade e a produção dos registros Terena, por meio do qual se pode
rastrear o delineamento de um projeto político e ético decolonial, como luta por
reexistência dos povos indígenas, explorando as possibilidades abertas pelas
contribuições dos teóricos da decolonialidade para novas leituras das histórias
indígenas, ontológica e epistemologicamente falando, de povos subalternizados
pelas hierarquias do parâmetro da modernidade europeia.
Perspectivas decoloniais para se pensar os povos indígenas
A hegemonia da tradição política e filosófica da modernidade europeia pro
-
duziu a subalternidade dos povos indígenas, como seres, saberes e experiências
avaliados como irrelevantes. Nesse espaço colonizado, estabeleceram-se refe-
renciais universais impostos como únicos e legítimos que constituíram a inferio-
ridade dos Outros, situados fora desses parâmetros.
2
O apagamento do “resto” do
mundo ganhou força como um paradigma, para se representar o mundo através
da perspectiva racional e iluminista que prosperou na Europa Ocidental como
projeto epistemológico e ontológico expresso na cisão abissal do mundo. De um
lado, os que se consideram iluminados, que detêm o conhecimento “verdadeiro”
e, do outro, aqueles que são considerados obscuros, ignorantes, insensatos e
supersticiosos. Esse tipo de classificação, como parte constitutiva da moderni
-
2 Para o sociólogo peruano, Aníbal Quijano, esse novo padrão de poder, fundamenta-se na ideia de
raça, que se constituiu na experiência básica da dominação colonial, que passou a permear diferentes
dimensões do poder mundial (QUIJANO, 2010). O semiólogo argentino Walter Mignolo avalia que
o espaço hoje América Latina foi um lugar de recomposição da civilização europeia, católica e latina,
desenhada pela colonialidade do poder (MIGNOLO, 2005)
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dade europeia e da sua matriz epistêmica, invisibilizou os sujeitos que se encon-
tram distantes do padrão denominado por Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p.
72) de “sistema-mundo europeu/ euro norte americano/ capitalista/ patriarcal/
moderno /colonial”.
A noção de colonialidade, como processo que transcende a dimensão jurí-
dico-administrativa da colonização, manifesta-se como uma das inovações teó-
ricas desenvolvidas por intelectuais latino-americanos do grupo Modernidade/
Colonialidade (M/C) e que serve para a compreensão dos povos indígenas.
3
Dessa
forma, as múltiplas violências praticadas contra esses povos, vêm sendo con-
frontadas a partir das últimas décadas, tanto por teorias críticas, contraponto à
teoria cartesiana, quanto pelas práticas movidas por aqueles que foram catego-
rizados como subalternos.
4
Quijano realizou a revisão do argumento pós-colonial, o que ensejou a emer
-
gência da noção de “giro decolonial”, promovendo uma renovação crítica das
ciências sociais no século XXI, nos quadros da permanência do pensamento co-
lonialista em escala global. Aníbal Quijano define colonialidade como:
3 O grupo Modernidad/Colonialidad (M/C) emergiu na década de 1980 como uma rede de inte-
lectuais latino-americanos, dentre os quais podem ser mencionados os sociólogos Anibal Quijano,
Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel; o semiólogo Walter Mignolo, a pedagoga Catherine Walsh,
os antropólogos Arturo Escobar e Fernando Coronil e os filósofos Enrique Dussel, Santiago Castro
-
-Gómez, Maria Lugones e Nelson Maldonado-Torres. Seus integrantes defendem uma perspectiva
decolonial, discutindo as relações de poder que foram estabelecidas a partir de 1492 onde hoje co-
nhecemos como América, com a instalação de um sistema sócio-economico que constituiu a Europa,
como centro geopolítico de poder.
4 O M/C constituiu-se teoricamente sob a influência do movimento pós-colonial e dos estudos su
-
balternos indianos, entretanto, vai radicalizar seu posicionamento teórico, distanciando-se daqueles,
ao promover o
“
giro decolonial
”
, profundamente comprometido com os termos do texto de Aníbal
Quijano, “Colonialidad y Modernidad-Racionalidad” (MIGNOLO, 2007). Autores precursores do
pensamento pós-colonial constam como objeto de estudos e críticas do M/C, como Frantz Fanon,
psicanalista, negro e martinicano, revolucionário do processo de libertação nacional na Argélia; Aimé
Césaire, poeta, negro também nascido na Martinica e Albert Memmi, escritor e professor de origem
judaica, assim como Foucault, Deleuze, Derrida e Lyotard, vinculados ao pós-estruturalismo e ao des
-
construtivismo, também constam das referências do M/C, embora criticados quanto à capacidade de
rompimento radical com a perspectiva eurocêntrica. Essas referências contribuíram com o início da
transformação das bases epistemológicas das ciências sociais ainda em ampla construção (BALLES-
TRIM, 2013). A indiana Gayatri Chakravorty Spivak, oriunda do grupo dos estudos subalternos, da
década de 1970 e, anterior ao M/C, foi considerada como uma autora que utilizou de forma excessiva
os referenciais pós-modernos e, nesse sentido, o Grupo de Estudos Subalternos criado no Sul Asiático
também teria servido para reforçar o pós-colonialismo como movimento epistêmico com desdobra-
mentos em vários outros países influenciando estudos variados (BALLESTRIM, 2013).
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um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial capitalista. Susten
-
ta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como
pedra angular do referido padrão de poder e opera em casa um dos panos, meios e
dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e a escala societal
(QUIJANO, 2010, p. 84).
Esse novo “padrão de poder mundial”, constituído com a incorporação euro-
peia de novos sujeitos presentes em terras continentais anteriormente desco-
nhecidas pela Europa, produziu um novo “espaço-tempo” (WALLERSTEIN, 1997) a
partir de dois eixos associados. De um lado, a ideia de raça como elemento codi-
ficador da diferença entre colonizador e colonizados, com uma suposta inferiori
-
dade desses últimos. Por outro, a articulação das formas de controle europeu do
trabalho, de recursos e de produtos, em torno do capital e do mercado mundial
que, “dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo
capitalista” (QUIJANO, 2005, p. 120).
O conceito de colonialidade do poder formulado por Aníbal Quijano, que fun
-
damenta o projeto decolonial do grupo M/C, não se restringe ao controle da eco-
nomia/trabalho, mas abarca também o controle da autoridade, o Estado e suas
instituições –, da raça, do gênero, da sexualidade, do conhecimento e da nature-
za (BERNARDINO-COSTA, 2018). A lógica universalista, criticada pela decoloniali-
dade, sustenta o projeto hegemônico supondo a linearidade histórica, na qual os
modelos, europeu e, posteriormente, o norte-americano são vistos como o ponto
ideal a ser atingido, considerando as outras formas de organização da vida e do
mundo como atrasadas e equivocadas. Nesse sentido, essa lógica organiza não
somente a produção do conhecimento, como também outras expressões da vida,
como a economia, a política, estética, subjetividade e relação com a natureza.
Walter Mignolo
(2003)
estendeu a noção de colonialidade do poder, apontan-
do para o estabelecimento de uma geopolítica do conhecimento operacionaliza-
da pela ideia da diferença colonial, que emergiu no processo de colonização, de-
senvolvendo a ideia de colonialidade do saber. Nessa direção, Bernardino-Costa
(2018) avalia que
Foi esse domínio colonial que permitiu a alguns definirem a si mesmos como possuido
-
res do conhecimento válido e verdadeiro, e a outros como destituídos de conhecimen-
to. Deste modo, as múltiplas tradições indígenas, africanas, asiáticas, muçulmanas,
hindus, entre outras, sofreram um longo processo de deslegitimação no âmbito da
modernidade/colonial (BERNARDINO-COSTA, 2018, p. 122)
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Frente ao complexo processo de dominação, o projeto decolonial se consti-
tui de uma estratégia epistêmica e política de resistência à colonialidade do po-
der, do saber e do ser, e que aponta para uma dimensão da resistência e reexis-
tência política que vai além dos processos de independências e descolonizações
que ocorreram nas Américas no início do século XIX e na segunda metade do sé-
culo XX na África, Ásia e Caribe. Dessa forma, representa um confronto direto
com as hierarquias raciais, de gênero, de sexualidade, religiosas e estéticas que
estruturam o sistema de dominação e exploração do sistema-mundo moderno/
colonial, denominada colonialidade do poder
5
(BERNARDINO-COSTA, 2018)
Desenvolvimentos posteriores aos conceitos como colonialidade do poder
e colonialidade do saber, utilizados como chave no desenvolvimento do projeto
decolonial, mostram propostas de ampliação do seu campo de aplicação, como
pode ser visto na proposta de “interculturalidade e colonialidade do poder” de
Catherine Walsh:
A interculturalidade crítica [...] é uma construção de e a partir das pessoas que sofre-
ram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma proposta e um
projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas
que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade
ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela criação de condi-
ções de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta maneira, a interculturali-
dade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si.
[...], é um projeto de existência, de vida (WALSH, 2007, p. 8)
Como pensamento crítico, a decolonialidade propõe a análise do mundo
contemporâneo, a política global e as relações sociais a partir de paradigmas e
epistemologias outras. Como projeto, pretende “descolonizar” a lógica da colo-
nialidade, a que traduz diferenças em valores (MIGNOLO, 2011) e acaba por possi-
bilitar a classificação e hierarquização de espaços, culturas e pessoas. Os pensa
-
dores decoloniais consideram a existência de uma estrutura sócio-histórica que
produziu a modernidade e a colonialidade, como um único processo, iniciado no
século XV, com a expansão do capitalismo para os territórios coloniais (MIGNO-
5 O filósofo argentino Enrique Dussel denomina esse projeto, desde a década de 1970, de transmo
-
dernidade, concebida como ruptura com a lógica da modernidade, propondo o estabelecimento de um
diálogo entre os chamados “condenados da terra”, nos termos de Franz Fanon, ao propor a ruptura
com o padrão de poder moderno/colonial e a instauração de um diálogo entre culturas e os povos que
foram desvalorizados e avaliados como sem serventia pela modernidade europeia. Dussel propõe que
esse diálogo seja feito entre os críticos das periferias, um diálogo intercultural Sul-Sul (DUSSEL,
2016, p. 61).
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LO, 2000, 2011).
O educador Elison Antonio Paim avalia que a decolonização dos saberes, po-
deres e seres implica: a) a desconstrução das metanarrativas sobre a moderniza-
ção, racionalização e progresso, buscando ouvir outras vozes, perceber as expe-
riências, as memórias coletivas, as histórias dos subalternos; b) a compreensão
dos processos que promoveram o silenciamento das múltiplas vozes que povoam
o mundo; c) a aceitação de outras formas de produção de conhecimento, dentro
de um sistema não hierárquico, mas equânime. Em suma, responder de forma
crítica a todos os projetos que objetivam a dominação, em todas as suas formas
e aos fundamentalismos que orientam a cultura hegemônica. (PAIM, 2019).
Essa possibilidade de rupturas pode ser efetivada por uma perspectiva de-
colonialista do mundo, pelo rompimento das “linhas abissais” (SANTOS, 2010) que
dividem o mundo, classificam e hierarquizam as culturas e as sociedades. Para
isso é necessário descolonizar os saberes e dialogar com outros sujeitos além
daqueles situados na cultura hegemônica para a construção de uma sociedade
com justiça, empatia, solidariedade e amorosidade.
A tessitura política contemporânea dos Terena
Entre junho de 2012 e novembro de 2023, foram realizadas 16 Grandes As-
sembleias do Povo Terena, as
Hánaiti Ho`únevo Têrenoe
,
em suas aldeias locali-
zadas no Mato Grosso do Sul, ocorridas sucessivamente nas aldeias Imbirussu
(16/a 3/6 2012); Moreira (16/11 a 18/11/2012); Buriti (8/5 a 11/5/2013); Brejão (13/11
a 16/11/2013); Babaçu (7/5 a 10/5/2014); Lalima (19/11 a 23/11/2014); Cachoeirinha
(6/5 a 9/5/2015); Água Branca (TI Nioaque, 21/03 a 23/03/2016)) ; Bananal, Buriti
(31/5 a 2/6/2017); Água Branca (TI Taunay-Ipegue, 29/11 a 2/12/2017); Tereré (23/5
a 26/5/2018); Ipegue (8/5 a 11/5/2019). Mãe Terra (17/11/2021), Brejão (agosto de
2022) e Cabeceira (2023).
6
Todos esses eventos foram coordenados pelo Conselho Terena, uma das
6
Em Mato Grosso do Sul, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/MS), a população indígena soma
80.459 habitantes, presentes em 29 municípios. Representados por oito etnias: Guarani, Kaiowá, Terena,
Kadwéu, Kiniki-
naw, Atikun, O
faié e Guató. Em relação aos Terena, suas aldeias encontram-se assim distribuídas: 1) Aquidauana: Aldeia
Colônia Nova, Aldeia Água Branca, Aldeia Ipegue, Aldeia Bananal, Aldeia Lagoinha, Aldeia Morrinho, Imbirussu, Li
-
mão Verde, Córrego Seco e Buritizinho. 2) Anastácio. Aldeinha. 3) Dois Irmãos do Buriti: Água Azul, Barreirinho, Buriti,
Nova Buriti, Olho D´Água, Oliveira, Recanto. 4) Miranda: Argola, Moreira, Morrinho, Cachoeirinha, Lagoinha, Babaçu,
Passarinho, Lalima, Mãe Terra. 5) Nioaque: Brejão, Taboquinha, Água Branca e Cabeceira. 6) Rochedo: Aldeia Bálsamo,
7) Sidrolândia: Aldeia 10 de maio, Aldeia Córrego do Meio, Aldeia Lagoinha e Aldeia Tereré. Disponível em
https://www.
secid.ms.gov.br/comunidades-indigenas-2/.
Acesso em 11 mar. 2021.
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instituições dessa etnia, criada em 2012, no curso do desenvolvimento do mo-
vimento indígena, como uma organização indígena formal, tendo como objetivo
central a defesa dos interesses indígenas, em um esforço para centralizar a luta
dos Terena. O antropólogo e advogado terena Luiz Henrique Eloy Amado avalia
que o Conselho Terena foi constituído a partir do desenvolvimento das primei-
ras assembleias e reuniões que propiciaram o surgimento do Conselho Tribal
de Mato Grosso do Sul, na década de 1980, como associação conectada a União
Nacional Indígena (UNI), que tinha por objetivo formar redes de contato e coor-
denar a movimentação indígena na luta pelos direitos na constituinte de 1988. O
Conselho Terena seria uma reorganização dessas lutas, a partir do movimento de
Retomada, movimento de recuperação de territórios em face a inação do Estado
brasileiro (AMADO, 2019). Nesse sentido, a criação dessa instituição se deu como
resposta à persistente situação de adversidades quando os Terena, como outros
indígenas, de outras regiões, como o nordeste brasileiro. Frente à incapacida-
de do cumprimento de preceitos legais, do direito indígena aos seus territórios,
mobilizam-se na tentativa de forçar o Estado a responder à reivindicação que
formulam.
Na avaliação de Luiz Henrique Eloy Amado, as Assembleias Terena consti-
tuem um amplo espaço de debate, não apenas sobre a questão fundiária e os
processos de reconhecimento e regularização de territórios, abrangem outros
temas considerados igualmente importantes, como saúde, educação, meio am-
biente, sustentabilidade, representação política, juventude indígena e demanda
das mulheres. Esse espaço de debate é aberto à participação de outras etnias
e de outros movimentos como os campesinos, o Movimento Sem Terra e outros
parceiros não indígenas, formando uma ampla rede de trocas de experiências e
busca de soluções para problemas comuns que os atingem (AMADO, 2017)
O enfrentamento de problemas e suas resoluções por meio de assembleias,
reunindo lideranças e sua comunidade é uma prática considerada tradicional en-
tre os Terena. O terena Paulo Baltazar, mestre e doutor em Geografia, tece as
seguintes considerações:
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As lideranças Terena trouxeram do “Exiva” o processo tradicional de decisão que exi-
gia constantes encontros de conselheiros tribais para manifestarem individualmente a
sua opinião, refletindo os interesses da comunidade. Esse encontro, chamado de “hou
-
xóvoti”, que o purútuye chama de reunião, coordenado pelo “chefe de guerra” —hoje co-
nhecido como “Presidente do Conselho Tribal” —buscava o consenso do grupo. Poste-
riormente, a decisão final era levada ao conhecimento do cacique. Nota-se, portanto,
que as lideranças Terena, ao chegarem ao território brasileiro, já possuíam o modelo
de reunião tradicional típico de sua organização social para decidirem os interesses da
comunidade indígena. O exemplo clássico remete à escolha do cacique da aldeia, que
mesmo sendo feita de forma consensual e hereditária, era submetida à apreciação de
cada um dos conselheiros tribais, que faziam uma argumentação individual das carac-
terísticas pessoais do novo líder. O processo consagrado no “houxóvoti” é prática tradi-
cional e usual de decisão dos Terena até hoje, que buscam o consenso, a participação
e a transparência nos trabalhos realizados (BALTAZAR, 2010, p. 80).
Dessa forma, evidencia-se que o ato de se reunir para discutir, resolver
problemas, propor soluções são algumas das práticas antigas entre os Terena
e comum aos povos indígenas, não sendo uma mera apropriação de um mode-
lo ocidental, uma vez que “acreditar que os espaços de organização indígena se
originaram a partir da presença não indígena é, de certa forma, corroborar o dis-
curso colonialista que nega a autonomia dos povos indígenas” (SERAGUZA, 2015).
A formulação de estratégias de luta e tomada de decisões, no âmbito de as-
sembleia, constitui-se uma prática considerada tradicional, vindo a se tornar uma
instituição formal no contexto da afirmação das relações interétnicas de forma
contínua e permanente. Além disso, o hábito de estabelecer aliança mostra-se
como uma tendência dos Terena que, historicamente, demostraram apreciar o
aprendizado de novos saberes, técnicas e conhecimentos outros.
[...] os Terena buscam compreender a ciência dos não índios para, assim, estabelecer
novas formas de sobrevivência sociocultural. Miranda mostra que estão cada vez mais
integrados na sociedade nacional, seja por meio de seu ingresso nas universidades,
pela participação na política e nas mobilizações pela demarcação dos seus territórios,
porém cada vez mais índios, e conscientes de sua história, apropriada e ampliada para
a garantia de direitos junto ao Estado brasileiro. O seu “Tempo do Despertar”, expressa
o movimento, elaboração e reelaboração de táticas, formuladas por meio dos conheci-
mentos adquiridos e das redes que estabeleceram para apoiar e incentivar suas reivin-
dicações e realizar suas conquistas (CASTRO, VARGAS, 2013, p. 21).
O “processo decisório” dos Terena passa necessariamente pela reunião dos
líderes (houxóvoti), pois convocar reuniões com as lideranças é uma forma de
honrá-los diante de sua comunidade (BALTAZAR, 2010, p. 75). Muito daquilo que
se pode observar nas Grandes Assembleias do Povo Terena corrobora o entendi-
mento do Paulo Baltazar:
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O processo decisório Terena reflete seus valores culturais, transmitidos de geração a
geração, que definem e norteiam a comunidade no seu próprio desenvolvimento. A co
-
munidade é soberana na tomada de decisões que têm implicações sobre o seu próprio
futuro. A posição dos seus líderes é reforçada no “houxóvoti” (reunião), que serve como
espaço dialético nos quais as relações de poder e participação são evidenciadas e os
seus valores culturais são reforçados. Quando os líderes são honrados, toda a comu-
nidade é honrada. O consenso, que implica em igualdade, é o marco fundamental para
todas as decisões do grupo indígena (BALTAZAR, 2010, p. 75).
As escolhas realizadas pelos Terena, como o ingresso nas universidades e a
sua articulação por meio das novas tecnologias de comunicação, como a criação
de perfis em redes sociais como Instagram e Facebook, que ampliam sua ativa
rede de movimentação dentro da sociedade envolvente, encontram-se eviden-
ciadas nos registros das assembleias, nos seus documentos finais.
Dentre as estratégias desenvolvidas pelos Terena, coordenadas pelo Con-
selho Terena, para além do movimento de Retomada, da apropriação dos discur-
sos antropológicos, de conceitos e noções jurídicos e das formas de organização
formal e outros recursos disponibilizados pela sociedade envolvente, podemos
destacar também a revista Vukápanavo, com sua primeira edição em novembro
de 2018 que, de acordo com seus editores,
destina-se à publicação de trabalhos acadêmicos, documentos, traduções, cadernos
de imagens e registros audiovisuais relacionados aos Terena e a temas correlatos, tais
como a história e a mitologia terena, as terapêuticas tradicionais e a saúde indígena,
as expressões artísticas e religiosas, os direitos originários e constitucionais, as rela-
ções estabelecidas com outros povos indígenas, com o estado e a sociedade brasilei
-
ra. Vukápanavo tem o objetivo de reunir e de dar visibilidade às pesquisas realizadas
por pesquisadores indígenas e não-indígenas e que se refiram ao povo Terena. (APIB,
2021)
A Vukápanavo encontra-se em sua terceira edição, com o dossiê
Pandemia
da Covid-19 na vida dos Povos Indígenas
, organizado com o apoio da Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Fundação Oswaldo Cruz que, na sua
apresentação afirma:
Esta publicação se insere entre os atos de resistência política acionada pelos povos
indígenas no contexto de pandemia. Mais do que uma atitude acadêmica, é uma postu-
ra política encabeçada por pesquisadores e pesquisadoras indígenas que, se valem da
produção escrita como instrumento de demarcação de espaço no mundo acadêmico,
realizando uma prática política estreitamente vinculada ao movimento indígena (APIB,
2021)
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Os Terena evidenciam sua determinação para afirmarem o seu protagonis
-
mo e sua legitimidade, a partir de um outro espaço que estão conquistando, o
espaço acadêmico. Essa inserção é muito significativa com a participação de
professores egressos das universidades nas assembleias, inclusive redigindo os
seus documentos, registrando de maneira formal as atividades, discussões e re-
soluções tomadas naqueles eventos.
Dos registros inscritos nos documentos finais das Grandes Assembleia do
Povo Terena destacamos dois aspectos que avaliamos como fundamentais no
processo de afirmação da política Terena contemporânea, no campo interétnico.
Por um lado, a afirmação de uma memória de luta e posicionamento do grupo no
interior da sociedade nacional e, por outro, a tradição da resolução coletiva por
meio de assembleias:
Desde a Guerra do Paraguai os povos indígenas do Pantanal não se reuniam. Após 177
anos, as lideranças Terena se reúnem juntamente com representantes do povo Guara-
ni, Kaiowá e Kinikinau na terra indígena Taunay/Ipegue, na aldeia Imbirussú nos dias 01,
02 e 03 de junho de 2012. (DOCUMENTO FINAL da I Grande Assembleia do Povo Terena,
Aldeia Imbirussú, 1º, 2 e 3 de junho de 2012)
Essa mesma disposição de evocar antigas memórias reaparece na XV as-
sembleia realizada em 2022:
Como há quase 10 anos atrás(sic), nossa anciã mentora do nome da Assembleia, sentou
em meio de nós, proferiu palavras de força e evocou nossa ancestralidade. “Esta não
é apenas uma Assembleia. Esta é a Hanaiti Hó’unevo Têrenoe, a Grande Assembleia
do Povo Terena” repetiu ela. Abençoados por suas palavras, entre nossas Guerreiras e
Guerreiros relembramos emocionados a luta de quase uma década desde o levante de
nossa Grande Assembleia. Foram retomados milhares de hectares de nossas terras,
que antes estavam alimentando gado para o agronegócio e hoje são utilizados pelas
famílias terena para produzir seu alimento, recuperar as nascentes dos rios e reflores
-
tar as matas. Enfrentamos inúmeros fazendeiros, políticos e parlamentares, com toda
sua estrutura e força política, que ameaçavam nossos direitos. Na nossa caminhada
fizemos valer o sangue derramado de nossos líderes. (DOCUMENTO FINAL da XV As
-
sembleia Terena , Aldeia Brejão, Terra Indígena Nioaque, 24 a 27 de agosto de 2022.)
Fanhani (2021) aponta um outro aspecto relevante da política externa Tere-
na, a apropriação de conhecimentos e recursos da sociedade envolvente para a
defesa de direitos, coordenada pelo Conselho Terena. O domínio dos recursos
jurídicos e legais por essa instituição e sua divulgação para o povo Terena podem
ser vistos nos documentos finais, como consta nos registros desde a primeira
assembleia, quando esse Conselho apresenta e discute
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a inaplicabilidade da condicionante n. 17 do STF: Os fazendeiros suscitam contra nós
aplicação da condicionante n. 17 imposta pelo STF quando do julgamento do caso da
T.I. Raposa Serra do Sol que diz que “é vedada ampliação de terra indígena já demar-
cada”. Queremos frisar que tal condicionante não se aplica a nossa terra indígena de
Taunay/Ipegue pois nossa terra não é fruto de demarcação conforme o dec. 1.775/96,
e sim terra que foi reservada pela antiga política do SPI não observando os requisitos
traçados pelo Art. 231 da CF/88. Assim, desqualificamos toda a alegação contra a de
-
marcação de nossa terra tradicional. (DOCUMENTO FINAL da XIV Grande Assembleia
do Povo Terena, Aldeia Mãe Terra, Terra Indígena Cachoeirinha. 17 a 20 de novembro
de 2021)
Observa-se, dessa maneira, que a discussão da Tese do Marco Temporal se
deu entre os Terena desde o primeiro momento de sua aplicação e contra a sua
aplicabilidade a todos os territórios indígenas.
7
Assim, verifica-se que o processo
de organização política dos Terena contemplou e contempla o conhecimento dos
dispositivos legais da sociedade envolvente e sua apropriação para a defesa dos
seus direitos, constatando-se que
O documento final da primeira assembleia terena expressa a conjuntura dos desafios
postos aos direitos indígenas abordando as proposições legislativas em tramitação
contra os povos indígenas tais como: PEC 215, Portaria 303 da AGU, PL 77 1.610 que
trata da mineração em terras indígenas (AMADO, 2017, p. 76)
O conhecimento dos dispositivos legais anti-indígenas, sua divulgação e dis-
cussão, aparecem em todos os documentos finais. Na grande Assembleia Terena
de 2019, os Terena elaboram um documento denominado Carta de Ipegue, na qual
exigem do Congresso Nacional o arquivamento de todas as propostas legislati-
vas anti-indígenas e reivindicam ao Supremo Tribunal Federal que não permitam
legitimar nenhuma proposta restritiva aos direitos indígenas e que se exclua, em
definitivo, qualquer possibilidade de acolhida da tese do Marco Temporal.
Essa preocupação e luta contra os dispositivos jurídicos que tentam reduzir
ou eliminar direitos indígenas encontra-se reiterada em todos os documentos
finais das assembleias, estendendo-se nas três últimas assembleias (2021, 2022
e 2023). Na XIV, em novembro de 2021, foram listadas determinações contra uma
7 A tese do Marco Temporal defende que os povos indígenas apenas possuem direito às terras que já
estavam ocupadas por eles até o dia da promulgação da Constituição Federal, 05 de outubro de 1988.
Dessa forma, só poderiam reivindicar a posse de territórios ocupados até aquela data. Essa tese foi
usada pela primeira vez em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se valeu dela em um
julgamento que determinou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Mas,
o próprio STF reconheceu que a tese aplicada no julgamento dessa terra indígena só tinha validade
para aquele caso específico.
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agenda anti-indígena presente no Congresso Nacional brasileiro que visam a li-
mitar ou retirar direitos constitucionalmente estabelecidos.
8
Foram apresenta-
das as exigências abaixo transcritas.
1.
Retirada definitiva da pauta de votação da CCJC e arquivamento do PL (Projeto de
Lei) 490/2007, que ameaça anular as demarcações de terras indígenas;
2. Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, pois caso seja
aprovado, o projeto vai anistiar grileiros e legalizar o roubo de terras, agravando
ainda mais as violências contra os povos indígenas;
3. Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e
outras Unidades de Conservação com estradas;
4. Arquivamento do PDL 177/2021 que autoriza o Presidente da República a abando-
nar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), único tratado
internacional ratificado pelo Brasil que aborda de forma específica e abrangente
os direitos de povos indígenas;
5. Arquivamento do PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por
grandes projetos de infraestrutura e mineração industrial;
6. Arquivamento do PL 3729/2004 que destrói o licenciamento ambiental e traz gran-
des retrocessos para a proteção do meio ambiente e para a garantia de direitos
das populações atingidas pela degradação ambiental de projetos de infraestrutu-
ra, como hidrelétricas.
7. Fortalecimento da atenção básica de saúde aos povos indígenas, que vem sendo
negligenciada e sucateada pelo Governo Federal. Somos contra as propostas de
municipalização da saúde indígena.
8.
A finalização dos processos de demarcação das terras indígenas Terena, Kinikinau
e Guarani – Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
9. (DOCUMENTO FINAL da XIV Assembleia do Povo Terena, Aldeia Mãe Terra, Terra
Indígena Cachoeirinha, Miranda, 17 1 20 de novembro de 2021)
Nas comemorações dos dez anos de realização das grandes Assembleias do
Povo Terena, na XV assembleia realizada em agosto de 2022, são mais uma vez
retomadas as discussões sobre a situação jurídica dos territórios e a análise da
conjuntura política indigenista no Brasil e seus desafios para a efetivação dos
direitos indígenas. Verifica-se, portanto, a persistência de projetos políticos que
violam direitos dos povos originários, bem como a resistência e luta dos Terena.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, propiciou aos povos indíge-
nas novas oportunidades, uma vez que, no ano seguinte, foi criado o Ministério
dos Povos Indígenas (MPI), entregue a Sonia Guajajara, presença assídua nas As-
sembleias Terena, e a designação de Joênia Wapishana para a presidência da
8 Em outubro de 2017 o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) realizou o mapeamento de parla
-
mentares e proposições legislativas anti-indígenas, constatando 33
propostas
, e mais de 100 projetos,
que ameaçam
direitos indígenas: “
Levantamento aponta que maioria das propostas foi feita por rura-
listas e pretende alterar critérios para demarcação ou liberar exploração de recursos em terras indíge-
nas”
https://cimi.org.br/2017/10/congresso-anti-indigena-33-propostas-reunindo-mais-de-100-proje-
tos-ameacam-direitos-indigenas/
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Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
Nesse novo contexto, muitos Terena passaram a ocupar cargos, a exemplo
de Luiz Henrique Eloy Amado, que se tornou o Secretário Executivo do novo mi-
nistério e de Leosmar Terena, como coordenador-geral de Promoção do Bem Vi-
ver Indígena do MPI. Consideramos que, depois da Constituição Federal de 1988,
a criação do ministério e o alargamento do espaço de ocupação de cargos fede-
rais relacionados aos assuntos indígenas tornou-se um marco significativo das
lutas por eles travadas, desde a década de 1970, a criação da União Nacional Indí-
gena (UNI), que contou com a participação de Terenas, como Marcos Veríssimo e
Modesto Pereira, entre outros. Certamente não foi uma caminhada ininterrupta,
muitos foram os obstáculos, porém, a movimentação foi sempre retomada.
No ambiente político reconfigurado, realizou-se a XVI Assembleia, em 2023,
que contou com a participação de Sonia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas.
Observa-se uma trajetória política permeada por diferentes estratégias e que
mostram uma caminhada lenta, mas progressiva dos povos indígenas. Os Terena
prosseguem no propósito de “aldear a política”, de ocupar espaços nos âmbitos
legislativo, jurídico e executivo, e nos níveis municipal, estadual e federal das ins-
tituições da sociedade envolvente.
Manifestando-se na cerimônia de abertura da XV Grande Assembleia do
Povo Terena, que aconteceu em 16 de novembro de 2023, que também marcou
o início da Caravana “Participa, Parente!”, promovida pelo Ministério dos Povos
Indígenas, o secretário executivo dessa entidade, o Terena Luiz Henrique Eloy
Amado lembrou do processo de organização do povo Terena e da importância
da mobilização. “Há 12 anos, quando começaram as primeiras assembleias, fo-
mos criminalizados, tivemos CPIs para nos derrubar. Mas vencemos e estamos
no ‘tempo de fazer’. Mas as políticas só vão chegar aonde o povo está organizado”.
MINISTÉRIO DOS POVOS INDÍGENAS. Sonia Guajajara abre Caravana “Participa,
Parente!” durante a Grande Assembleia do Povo Terena, no Mato Grosso do Sul.
16 nov. 2023)
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Considerações finais
Os documentos finais das Assembleias do Povo Terena, de 2012 a 2023,
permitem considerar que essa etnia delineia uma política decolonial. Os Terena
mostram que não se sujeitam à situação subalternizante que a cultura ocidental
hegemônica lhe impôs. Mobilizam-se e organizam-se em instituições indígenas,
como a do Conselho Terena, aqui considerada, uma vez que coordena aquelas
assembleias.
Respondendo às questões levantadas inicialmente, pode-se considerar que
os Terena publicizam as decisões e propostas elaboradas coletivamente, a partir
de suas assembleias, para demonstrar suas ações políticas, buscam documen-
tar seu protagonismo, apontar sua visão de mundo e construir uma memória que
possa legitimar sua presença e lutas no interior da sociedade nacional, apontan-
do sua ancestralidade na região e sua perspectiva decolonialista de vida, do ser,
do viver e do poder.
Com uma intensa atuação no interior da sociedade envolvente, os Terena
construíram seu protagonismo, fundado no direito à diferença, confrontando a
colonialidade do poder, do saber e do ser. Insurgem-se contra as representações
impostas pelo sistema hegemônico, forjam novos espaços a partir dos quais de-
fendem seu bem maior, seus territórios, base de sua existência, lugar dos seus
antepassados, do seu saber e da sua cosmovisão.
Dentre as estratégias desenvolvidas pelos Terena, coordenadas pelo
Conselho Terena, constam o movimento de Retomada, a apropriação dos discursos
antropológicos, de conceitos e noções jurídicos, a formação de um conjunto de
pesquisadores em diferentes áreas do conhecimento, a formação política para os
mais jovens e a constituição de rede virtual de comunicação, que aparecem nos
documentos finais das assembleias. Destaca-se a aquisição de conhecimento
dos mecanismos e dispositivos que organizam a sociedade envolvente e que são
usados estrategicamente em suas lutas e reivindicações. Não aceitam mais a
estrutura de dominação ou padrão de poder que permanece enraizado em nossa
sociedade. Rejeitam a forma dominante de controle de recursos, trabalho e
conhecimento, rejeitam a colonialidade e defendem o bem viver indígena, prática
proveniente de uma proposição ancestral de complementariedade, harmonia
e reciprocidade entre os povos, a natureza e todos os seres humanos e não
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DEMOCRACIA RACIAL, ELITE E A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO
RACIAL DEMOCRACY, ELITE AND THE RECEPTION OF BLACK ORPHEUS
DEMOCRACIA RACIAL, ÉLITE Y LA RECEPCIÓN DEL ORFEO NEGRO
https://doi.org/
10.46401/ardh.2024.v16.20969
Juliana Mendes
Universidade Federal do Maranhão
https://orcid.org/0009-0007-2736-0507
j.mendes-@hotmail.com
Arnaldo Vieira Sousa
Universidade Federal do Maranhão
https://orcid.org/0000-0003-3526-5351
vieira.arnaldo@gmail.com
Flávio Luiz de Castro Freitas
Universidade Federal do Maranhão
https://orcid.org/0000-0002-7648-0341
flavio.luiz@ufma.br
Recebido em 23 de abril 2024
Aprovado em 10 de junho de 2024
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INTRODUÇÃO
O artigo em questão se propõe a analisar a representação de Orfeu Negro
lançada por Marcel Camus em 1959 quando relacionado a outras produções fei-
tas durante a década de 1950 cineastas brasileiros. Esse filme é baseado na obra
finalizada em 1954 por Vinícius de Moraes, adaptada como peça teatral, chama
-
da Orfeu da Conceição, um musical inspirado no mito grego de Orfeu, e que foi
RESUMO:
A pesquisa em questão busca
compreender como a obra Orfeu Negro, em
todas as suas variações impactou a sociedade
brasileira em âmbitos positivos e negativos.
A obra na versão teatral e cinematográfica
recebeu críticas positivas e negativas e trouxe
uma representação plural a respeito do que
se tem como ideia de Brasil. Nesse artigo
compreenderemos através dos conceitos de
democracia racial e elite cultural como Orfeu foi
capaz de causar uma ambiguidade nos debates
sociais.
Palavras-chave:
Orfeu Negro;
Democracia Racial; Indústria Cultural; Favela.
ABSTRACT:
The research in question seeks
to understand how the film Black Orpheus, in
all its variations, impacted brazilian society in
positive and negative ways. The work in the
theatrical and cinematographic version received
positive and negative reviews and brought a
plural representation of what we see as the
idea of Brazil. In this article we will understand,
through the concepts of racial democracy and
cultural elite, how Orpheus was able to cause
ambiguity in social debates.
Key words:
Black Orpheus; Racial
Democracy; Cultural Industry; Favela.
RESUMEN:
La investigación en cuestión
busca comprender cómo la obra Orfeu Negro, en
todas sus variantes, impactó de manera positiva
y negativa a la sociedad brasileña. La obra en
versión teatral y cinematográfica recibió críticas
positivas y negativas y trajo una representación
plural de lo que entendemos como la idea de
Brasil. En este artículo entenderemos, através
de los conceptos de democracia racial y élite
cultural, cómo Orfeo fue capaz de provocar
ambigüedad en los debates sociales.
Palabras clave:
Orfeo Negro; Democracia
Racial; Industria Cultural; Barrio Bajo.
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transferido para um morro brasileiro na contemporaneidade da época. A ques-
tão do nome de “Conceição” para “Negro” foi modificada apenas por uma ques
-
tão comercial. O filme por possuir capital estrangeiro foi elaborado para ser visto
no exterior, Conceição não faria tanto sentido ou seria atrativo aos estrangeiros
quanto
Black Orpheus
, título conhecido em inglês. Para a pesquisadora de cinema
Lúcia Nagib “A visão da cultura negra como expressão espontânea da natureza
encontrava ressonância em meio a esquerda mundial, que começava a despertar
para a causa africana e dos afrodescendentes” (NAGIB. 2006, p. 128).
Orfeu tem representações teatrais que remontam a óperas desde o sécu-
lo XVII, como L’Orfeo de 1607 de Claudio Monteverdi, que foi uma das primeiras
montagens ocidentais do mito. Na história grega, Orfeu de Trácia era um mortal,
artista virtuoso, corajoso e que tocava lira. Em uma de suas aventuras ele co-
nhece Eurídice e eles se apaixonam, casam e sofrem maus presságios. Um dia
Eurídice, ao escapar de Aristeu, um apicultor que também era apaixonado por ela
e que a estava a perseguindo, corre pela mata em fuga e é picada por uma cobra
venenosa, e parte ao mundo de Hades, Deus dos Mortos.
Orfeu cai em tristeza e pede a seu avô, Zeus, Deus Supremo, que a salve, mas
Zeus afirma que que não poderia interferir nas decisões de seu irmão Hades, e
ofereceu que Hermes, Deus das Magias e das Viagens, que o acompanhasse até
o mundo dos mortos para que assim Orfeu resgatasse sua amada.
Orfeu implorou a Hades, tocando sua lira, que encantou todos. Assim Hades
diz a Orfeu que ele tem permissão de voltar com Eurídice ao mundo dos vivos,
com a condição de que sempre olhe para a frente enquanto Eurídice deve passar
a viagem atrás, o seguindo. Caso contrário, Orfeu a perderia.
Próximo à saída, ele se vira para ter certeza que Eurídice o seguia e assim ela
foi puxada de volta ao mundo dos mortos. Orfeu jamais foi feliz novamente, vivia
por tocar canções tristes com sua lira, e resistia aos encantos das Mênades, que
são Ninfas seguidoras de Dionísio. Um dia, com raiva pelo desprezo, as Ninfas
matam Orfeu e, após sua morte, seu espírito reencontra com Eurídice no Mundo
dos Mortos.
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São vários os motivos do tema de Orfeu: o diálogo com animais e a natureza onde vi-
vem; a procura pela origem dos homens e a divulgação disso; a busca do Velocino de
ouro; a busca do amor perdido; a culpa pela separação definitiva deste mesmo amor; a
experiência da descida ao Inferno, que gera um conhecimento singular, tudo isso mo-
vido pelo canto, expressão pessoal transformadora, que a tudo toca e cuja ação ritual
abre caminhos para a espiritualidade. O Orfismo, iniciado após a descida de Orfeu ao
Inferno, proclama e promove o encontro eterno entre homens e deuses, inimaginável
pela religião oficial grega (OLIVEIRA. P. 19, 2006).
A história de Orfeu se modificou através dos séculos, foram feitas monta
-
gens em diferentes países como qualquer mito, que se transformam outra obra.
Assim Orfeu perde sua lira e ganha um violão, deixa os bosques e mora na favela,
em um país não mais no Velho Mundo, mas sim em um lugar tropical no século XX.
A ELITE BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1950
Em meados do século XX, no Brasil, já havia algumas referências literárias
e ideias de democracia racial, como mostrado nas obras de Sergio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre. Completamente opostas à eugenia que se propagava
no início do século, que apontava que a nossa miscigenação era responsável pelo
atraso social e econômico do país. Para Sérgio Buarque de Holanda:
Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta acei-
tar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer fa-
lar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da História e são
muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas
escrevem a História (1985, pp. 173 – 174).
Para Buarque de Holanda nós temos uma dificuldade de construção iden
-
titária no que se refere ao que é “ser nação brasileira”. O fator de ter sido colo-
nizado por povos portugueses que eram um povo com histórico de mestiçagem
devido a sua localização geográfica, que tardiamente se integrou à Europa e isso
contribuiu para uma certa plasticidade, mas insuficiente para os europeus olha
-
rem o Brasil com sentimento de desdém. Essa miscigenação nos fez desenvolver
a pluralidade cultural porque somos a inserção de muitos povos em um espaço só
com dimensões continentais.
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Vivemos nos trópicos sem uma cultura adequada própria, tropical. Participamos do
desenvolvimento da cultura de um outro lugar [...] Entre o conhecimento do Brasil e a
realidade brasileira há uma defasagem abissal; pensamos com ideias inadequadas à
nossa realidade social, ideias que, ao invés de facilitarem nossa relação com a realida-
de, a impedem (Reis, 2007, p. 123).
Podemos ter a percepção de que nesse fator de colonizado e colonizador e
as nossa clássicas obras literárias, para Freyre, Casa Grande e Senzala apresen-
tava um espirito nostálgico colonial e que para Buarque de Holanda essa senti-
mento deveria ser transformado para que a identidade brasileira de fato pudesse
surgir, demonstrar o sentimento de brasilidade que não deveria se portar como
uma ideia única e fixa.
Na década de 1950, o país também foi marcado pela industrialização, cres-
cimento econômico, consumo de bens culturais. Para a população negra havia
uma disparidade social e econômica em relação aos brancos, mas uma inserção
mesmo que subalterna em espaços da sociedade em que antes eles eram manti-
dos em completa exclusão.
A população negra começou a ganhar mesmo que de maneira precária e ín-
fima espaço nas escolas, universidades, industrias midiáticas. Algumas dessas
mobilizações foram frutos das próprias ações das populações negras por meio
de associais culturais, esportivas, eventos como a Convenção Nacional dos Ne-
gros Brasileiros, pelos periódicos da imprensa negra, como Alvorada e Senzala.
Além da inserção no meio político.
A população brasileira vivia de maneira dúbia. Existiam as Elites econômi-
cas que pautavam a divisão racial, mas também a Elite Cultural que reforçava o
mito das 3 raças formadoras do Brasil que conviviam de maneira harmoniosa.
Mas essa ideia de cordialidade era refutada pelos grupos negros e entidades an-
tirracismo.
Os jornais da época, assim como o cinema mostravam o Brasil como um país
de amabilidade, mas não era incomum caricaturas, noticias de preconceito con-
tra negros, indígenas e até judeus em periódicos. Situações essas que para a po-
pulação vista como branca eram apenas casos isolados.
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ORFEU DA CONCEIÇÃO: TRAGÉDIA CARIOCA
Vinícius de Moraes, na década de 1940, começa a frequentar favelas, ter-
reiros de candomblé, espaços ocupados por negros e associou as celebrações
à Grécia, devido à música, um sentimento dionisíaco. A partir dessa correlação
com o Rio de Janeiro, ele construiu um paralelo com o mito de Orfeu e iniciou sua
obra prima em 1942, a engavetou por uns anos até posteriormente finaliza-la em
1953.
A ação situa-se no tempo presente, num morro, que poderia ser, não importa o qual da
cidade, e todas as personagens são gente de cor e isto por uma razão muito simples:
procurei dar a trama a mais completa unidade do ponto de vista da dramaturgia. A in-
tromissão de personagens brancas criaria certamente na entrosagem psicológica das
figuras, elementos alheios à tragédia tal qual ela se desenrola - o que não quer dizer
que ela não possa ser representada eventualmente por atores brancos. Mas, me pare-
ce que seria atentar contra o seu espírito por assim dizer helênico, nela colocar atores
racialmente mesclados. O negro possui uma cultura própria e um temperamento “sui
generis”, e embora integrado no complexo racial brasileiro sempre manifestou a ne-
cessidade de seguir a trilha de sua própria cultura (MORAES. p. 1, 1956).
Para Ortiz (2003), o carnaval, sendo a festa mais popular do Brasil, nos permite
que sejamos felizes e esqueçamos a tristeza durante quatro dias de festa, quando
tudo se acaba na quarta-feira. A influência de se construir Orfeu nesse espaço
pode ter um aspecto também relacionado a movimentos políticos da época, que
estavam buscando a essência do que chamamos de “cultura brasileira”.
No ano de 1956, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25
de setembro. Na época causou uma certa polêmica por ser a primeira vez que o
Teatro recebia uma peça representada exclusivamente por atores negros. Para
os críticos especializados a maioria dos comentários foram positivos, havia uma
rejeição por parte da classe média, a burguesia brasileira, isso tudo devido a
estrutura forte de desigualdade racial trazida do período colonial.
Críticos deram suas opiniões publicadas em jornais na época. Gustavo Doria
para o Jornal O Globo, afirmou que em Orfeu da Conceição “pela primeira vez
encontramos o entrosamento do elemento popular nosso com uma linguagem
poética” (DORIA. p. 7, 1956). O jornalista Antonio Maria, apontou no jornal O Globo
que:
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Antes de mais nada, uma imensa e linda oportunidade de afirmação artística do negro
brasileiro. Espetáculo bonito e grandioso, sob todos os pontos de vista. [...] Em Orfeu
da Conceição nota-se, sobretudo, a ausência das conspirações da ignorância e da in-
sensibilidade. O momento mais emocionante da noite da pré-estreia de gala foi quando
a personagem negra, Mira, recebeu no palco uma enorme “corbelle”. Foi a primeira vez,
no Brasil, em que um branco deu flor a preto. Até hoje preto só recebeu de branco flor
que murchou nos jarros e assim mesmo com esta recomendação expressa: “Tome. Vá
botar no lixo”. Parabéns a todos que fizeram Orfeu da Conceição (MARIA. p. 2, 1956).
Ao mesmo tempo Maria também expressou no Jornal O Globo certa irritação
com o fato de que alguns críticos, talvez por não estarem habituados a um elenco
negro com tanto protagonismo se atentarem a falhas simples que ocorrem em
todos os inícios de uma temporada teatral.
As falhas de “Orfeu da Conceição” são ainda as falhas fatais de todas as coisas difíceis,
que se fazem pelas primeiras vezes. E basta que se tome o negro brasileiro como um
estreante de teatro (quando os brancos ainda não são esses talentos) para que se con-
descenda com certas minúcias, a que faltaram realces. Devemos consideram que, no
Brasil, essa história de branco bater palmas para preto, fora do futebol, é uma novidade
de quatro ou cinco anos pra cá. E a plateia aplaudiu de pé (MARIA. p. 2, 1956).
O lançamento da peça, pela importância de tratar de uma temática negra na
metade do século XX se tornou uma data marcante na memória cultural brasilei-
ra. Elsie Lessa no Jornal do Brasil menciona que:
Não sei, em nosso teatro, de coisa mais universal, porque tão brasileira, do que esta
tragédia musicada do morro carioca, com seu despojado cenário de pobreza e o ritmo
envolvente do samba, da capoeira, da batucada, aliada à espantosa riqueza plástica
do negro, [...]. Ninguém como o poeta Vinícius, tão musical ele mesmo, tão perto dos
essenciais da sua gente, para pôr no palco, com lirismo e pureza de que só ele era ca-
paz o poema plástico e comovente que é o seu Orfeu da Conceição (LESSA. p. 1, 1956).
Orfeu, interpretado por Haroldo Costa, é um compositor e sambista, um vir-
tuoso violonista, morador de uma favela carioca. A história se passa durante o
carnaval, quando o protagonista conhece e se apaixona instantaneamente por
Eurídice, que acaba de chegar à cidade do Rio de Janeiro após afirmar que esta
-
va sendo perseguida por um homem que queria lhe matar. Esse amor repentino
desperta a fúria em Mira de Tal, noiva de Orfeu e as consequências da história são
paralelos com a lenda grega.
A peça foi um marco na cultura nacional porque o elenco era composto ex-
clusivamente por negros e fez sucesso de crítica e de público em uma época em
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que negros no Brasil eram até proibidos de entrar em certos ambientes. Moraes
ao realiza-la buscava fazer uma homenagem ao negro brasileiro. Para ele, era a
cultura desse povo que foi responsável por uma construção orgânica e boa do
país (DIAS; CARRASCO, 2011).
No programa original, destaca que o negro possuía uma cultura própria e um compor-
tamento “sui generis” que embora integrado no complexo racial brasileiro, sempre ma-
nifestou a necessidade de seguir a trilha de sua própria cultura, prestando assim uma
contribuição verdadeiramente pessoal à cultura brasileira em geral (DIAS; CARRASCO,
2011).
Ao transferir o mito de Orfeu da Grécia para o Brasil, Vinícius de Moraes ten-
ta transparecer aquilo que ele considera a essência nacionalista. Troca o lirismo
pelo carnaval, pelo samba, movimento autêntico nosso resultante das estruturas
musicais dos três povos, europeus, indígenas e africanos, que mais contribuíram
na formação do que somos hoje.
Como nas produções cinematográficas que surgiram posteriormente, Orfeu
da Conceição mesmo contando com elenco negro, a equipe técnica era compos-
ta por brancos, problemática existente até a contemporaneidade devido a for-
mação desigual do nosso país, uma estrutura que exclui aquele que não é visto
como branco. A música foi composta por Vinícius de Moraes e Tom Jobim, dire-
ção de Leo Jusi, cenários de Oscar Niemayer.
A peça foi um sucesso, houve críticas mistas, era um período conservador
em que alguns queriam expor que o Brasil era um país com união de raças, en-
quanto outra parcela queria esconder a negritude. Apesar disso, a peça não so-
freu com tantos boicotes quanto produções posteriores, a exemplo da versão
brasileira de
Hair
(dirigida por Ademar Guerra), lançada 1969, em um período em
que enfrentávamos uma Ditadura Militar e que possuía um elenco composto por
diferentes raças.
A musicalidade de Tom e Vinícius atraiu interesse que não os isentaram de
críticas, para alguns eles não conseguiram transmitir a melodia da música feita
pelo povo negro. Em uma crítica publicada pelo Correio da Manhã, por Claudio
Murilo em 6 de setembro de 1956:
Pedimos desculpas aos estrangeiros que foram ao Municipal esperando ouvir música
de morro e foram aquinhoados com um pouco de suas próprias músicas ou foram agra-
ciados com a batucada do segundo ato, digna dos músicos da Confeitaria Colombo,
pelo seu sabor insosso, falta de molejo, etc... uma batucada acadêmica, no mau senti-
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do. Finalmente, pedimos desculpas aos próprios sambistas de morro por esta usurpa-
ção da qual eles não terão notícia e continuarão a compor tranquilamente aquilo que
passará para a história do nosso populário como música popular brasileira.
A peça possui algumas diferenças do filme e do mito, mais personagens in
-
seridos, mais destaques a alguns, trocas de nomes, como Orfeu ser filho de Clio
e não Calíope, seu pai é Apolo, ele que ensina o filho a se tornar um virtuoso vio
-
lonista. No filme de 1959 não temos a presença de Aristeu, em 1999 ele aparece
com outro nome, sendo amigo do protagonista e também apaixonado por Eurídi-
ce. A morte é a Dama Negra, não apenas um perseguidor como no filme de 1959.
Na peça, após a morte de Eurídice, Orfeu tem como destino trágico ser assassi-
nado por todas as mulheres que ele decepcionou, lideradas por Mira de Tal, que
atiram facas e navalhas contra ele.
ORFEU CHEGA AS TELAS
Esse sucesso causado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, levou a peça
Orfeu da Conceição a conseguir repercussão mundial. Vinicius, no ano de 1955,
em uma de suas viagens à França, conheceu Sacha Gordine, que decidiu produzir
seu filme. A relação entre cinema e atividade intelectual não ocorre de maneira
abrupta. É pautada a ideia de que elas se fundem através da necessidade de se
conectar a massa com a erudição.
No ano de 1958, o produtor Gordine começa a conceber junto a Vinícius de
Moraes o filme que viria a ser dirigido pelo ainda desconhecido Marcel Camus
no ano seguinte. Orphée Noir, título em francês, é uma produção franco-italiana,
gravada no Brasil e com trilha sonora de Luís Bonfá, Vinícius de Moraes e Tom
Jobim.
Bourdieu (2006) demonstra que, conforme essa discussão se propaga, ob-
servamos uma conversão do capital simbólico em econômico, transferindo isso
para o universo cinematográfico, pensamos quando um diretor tem poder de fa
-
zer um filme e intervir na burocracia que se produzir cinema, foi exatamente o
que a França conseguiu fazer ao gravar um filme no Brasil. Eles como um país de
poder econômico superior conseguiram dominar o processo de produção de Or-
feu Negro, assim como são capazes de fazer em outras coproduções com países
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com economia menor.
O Orfeu de Camus não almejava ser um filme que retrata a realidade por com
-
pleto. Crua como ela é, com desigualdade de um país ex-colonial. Ele foi feito em
um período pós-guerra, a imagem romântica e leve era o que o europeu queria
ver naquele momento.
As imagens coloridas e as músicas chocaram o público, que não estava muito acostu-
mado a assistir a filmes produzidos fora da Europa e da América do Norte. Mesmo sen
-
do uma variação sobre um imaginário brasileiro já construído, o filme trazia emoções
novas e parecia muito mais real do que letras de música ou livros científicos (FLÉCHET.
2009, p. 58).
O filme foi filmado inteiramente no Brasil, partes durante a festa de carnaval.
Em aproximadamente 3 meses o restante das filmagens ocorreu no morro da Ba
-
bilônia, na Avenida Rio Branco e em cenários construídos em galpões.
A produção mostra uma história parecida com o que foi a peça. Orfeu in-
terpretado por Breno Mello, é um homem galanteador, exaltado principalmente
pelas crianças da comunidade pela sua forma de tocar violão e pela sua bela voz.
Assim como na peça, continua sendo um motorista de bonde e sambista, mo-
rador do morro e noivo da exuberante e sensual Mira de Tal, a quem ele não de-
monstra afeto.
Mira é apenas um objeto de conveniência, para passar o tempo, chegando a
ser tratada com desprezo em certos momentos, mas ela tenta se impor e não ser
apenas usada. Orfeu a abandona ao conhecer a ingênua Eurídice, que se apaixo-
na à primeira vista sem demonstrar. Ela está fugindo de alguém que lhe persegue
e se abriga na casa de sua prima Serafina, com o morro é o seu porto seguro, pois
lá a morte não lhe alcança.
Orfeu demonstra explicitamente o interesse em ficar com Eurídice e mesmo
com o noivado dele, ela parece não se importar com o comprometimento dele e
acredita no amor instantâneo que sentem um pelo outro. Na terça-feira de car-
naval ela desce do morro, vestida com as roupas de sua prima Serafina e um véu
cobrindo o rosto, para ficar com ele na festa e nessa ida ao asfalto no centro da
cidade é que o perigo a persegue novamente.
Na segunda de carnaval o homem vestido de morte sobe o morro, observa
Eurídice pela janela e quando Orfeu e desaparece em um barranco, o desenrolar
da história no último dia de carnaval é um cenário com Eurídice vulnerável, en-
quanto seu perseguidor a procura para lhe matar. Ao mesmo tempo Mira de Tal
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se sente usada por Orfeu, nutrindo tristeza e raiva.
No asfalto, durante a festa de carnaval, Orfeu procura de Eurídice após ter a
perdido, pois ele sabe que ela corre risco de vida. Após uma briga Mira de Tal ar-
ranca o véu que escondia o rosto de Eurídice. Esse desencontro na madrugada da
festa, de terça-feira para a quarta de cinzas acarreta em um final trágico. Ao ver
que está vulnerável ela corre e cai nos braços da Morte, escapando novamente e
correndo atrás de seu amado em meio ao desfile de carnaval.
O filme alavancou a carreira de Camus, que ganhou a Palma de Ouro e Oscar
de melhor filme estrangeiro. Prêmios que ficaram com a França e importaram
uma imagem fantasiosa e, por vezes, controversa do Brasil. O filme teve produ
-
ção francesa e uma equipe técnica branca. Fazer cinema era caro e a branquitu-
de que possuía os meios de produzir audiovisual. Gordine não possuía verba o su-
ficiente, então contou com uma pequena parte da Companhia Cinematográfica
Vera Cruz, empresa brasileira, além da montagem da peça que ajudou a financiar
a produção.
A RECEPÇÃO DE ORFEU NEGRO PELA CRÍTICA AO REDOR DO MUNDO
A representação de Camus é a de uma população moradora do morro, que
mesmo vivendo com todas as dificuldades e pobreza, era feliz, passiva, inocente
e alegre. Essa reação é advinda desde que cineastas estrangeiros começaram a
representar o Brasil nos anos 1930, 1940, filmes como Voando para o Rio (dirigido
por Thornton Freeland , 1933) e Uma Noite no Rio (dirigido por Irving Cummings,
1941), além do estrondoso e estereotipado sucesso de Carmen Miranda ajudaram
a consolidar a imagem brasileira um país tropical, cheio de exotismo, sensualida-
de e felicidade. No Jornal O Globo, Lessa, exalta o filme após Orfeu Negro ganhar
a Palma de Ouro que:
(...) assistir a esse filme fora do Brasil é comprar passagem, no dia seguinte, cedinho,
no primeiro navio ou avião que venha a este rumo. Dizem que Rosselini chorava, ao
abraçar Clouzot, emocionadíssimo, depois da sua apresentação no Palácio do Festival.
É bem capaz. Nunca vi, na tela, cidade mais linda que esse Rio de Janeiro do “Orfeu Ne-
gro”: é de dar gritos, de tirar o fôlego, de trazer mesmo lágrimas aos olhos. (...) é capaz
de ser responsável por uma inesperada avalancha do turismo. (...) É um legítimo orgu-
lho patriótico para todos nós, uma boa amostra da festa pagã e dionisíaca, do carnaval
carioca. É a primeira vez que um filme dá ideia do que seja, em verdade, um carnaval
carioca, sua beleza, sua alegria, sua tragédia, seu ritmo de arrastante contágio. (...) O
cineasta Marcel Camus deu extraordinária prova de sensibilidade ao surpreender, tão
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bem, em tão pouco tempo de convivência conosco, certos aspectos da vida humilde
das favelas e o que representa, para elas, o carnaval, como as cenas do penhor, os en-
saios das escolas de samba, certos “takes” da Avenida (LESSA. p. 1, 1959).
Imagens que para os estrangeiros eram como “reencenações ou desloca-
mentos de elementos ligados a suposta formação histórica do país (o Brasil como
paraíso perdido) e à idealização de uma suposta alteridade (as mulheres sensuais,
a democracia racial)”. (FREIRE – MEDEIROS. 2009, p. 58). Era visão de um diretor
de um país de 1º mundo em relação a um que outrora foi colônia e ainda estava se
estruturando economicamente, com as cidades ainda passando pelo processo
de urbanização.
Os diplomatas do Itamaraty, políticos e a burguesia em geral, antes mesmo
do lançamento do filme, devido a existência da peça já temiam que os persona
-
gens negros e as favelas fossem mostrar uma má imagem do Brasil para o mun-
do. Vinícius de Moraes em entrevista de 1967 a equipe do Museu da Imagem e do
Som relatou que:
Os capitalistas achavam que a gente fazia filme sobre os assuntos errados, que não ti
-
nha nada que mostrar favela, que devia fazer um filme bonitinho, [sobre] o Copacabana
Palace e os ambientes bonitos daqui… Inclusive, as coisas precisam ser ditas porque
as pessoas precisam saber delas mais tarde, o então embaixador em Paris, Embaixa-
dor Alves de Sousa, lutou fortemente contra o filme ser mandado para o Festival de
Cannes porque era um filme sobre negros.
1
O filme ao conquistar o mundo levou também a musicalidade própria do Bra
-
sil para todos os cantos. Ele alavancou o Brasil como destino turístico por mostrar
nossas paisagens que para os estrangeiros eram exóticas, e músicas que feitas
através da união de raças que só existem no país, formaram ritmos exclusivos.
O trompetista
Dizzy
relatou em sua biografia episódios presenciados no Bra
-
sil e a forma como nossos ritmos inspiraram o seu Jazz.
Minha primeira exposição ao samba foi na trilha sonora do filme Orfeu Negro, e quan
-
do eles começaram a tocar, pensei: “Eu tenho alguns irmãos aí embaixo?” Chegando
no Brasil, descobri que existiam e que a nossa música tinha um vínculo comum. Eu
realmente senti uma conexão, quando me levaram para uma escola de samba no Rio
de Janeiro. (….) O samba é a bossa nova, e a bossa nova é uma versão negra do samba.
Ouvi samba ao vivo pela primeira vez, quando fizemos uma turnê pela América do Sul.
Você realmente pode aprender muito sobre o ritmo deles, especialmente no Brasil. (…)
fomos os primeiros nos EUA a tocar essa música, o samba, no contexto do jazz. Tive-
mos muito samba, e Stan Getz costumava me cobrar até a morte tentando conseguir
1 Museu da Imagem e do Som – Rio de Janeiro. Arquivo sonoro. Ciclo Depoimentos de Música Po
-
pular: Antônio Carlos Jobim, 25/08/1967.
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reproduzir essa musicalidade (GILLESPIE, 1985, p. 428-431).
2
Essa questão do colonizado e do colonizador fica evidente quando sabemos
que já durante a produção, Camus e Vinícius de Moras começaram a ter conflitos,
direitos autorais das músicas, feitas em parceria com Tom Jobim, devido à falta
de créditos até questões de roteiro.
Foi uma das maiores decepções que eu já tive na minha vida. Eu não tinha visto o co-
pião e estava em Montevideo quando recebi a notícia de que o filme havia recebido a
Palma de Ouro em Cannes. Aí eu pulei e vibrei, torci à beça, achei que eles tinham acer-
tado na mosca. Depois, quando cheguei aqui, o [presidente] Juscelino [Kubitschek]
me convidou para a primeira exibição privada, no palácio, junto com sua família, e dois
ou três sujeitos da produção. Eu tive um choque tão grande durante a projeção que me
esgueirei e fui embora. Senti que não poderia enfrentar aqueles franceses quando as
luzes acendessem. Eu era capaz de partir pra porrada com eles (MORAES, 2003, p. 42).
Foram essas opiniões que corroboraram para o filme se situar em uma posi
-
ção controversa, de que representa ou não a cultura brasileira. E outro ponto de
crítica é que devido às premiações, o reconhecimento da obra parece ter ficado
apenas com a França. A mídia francesa da época sequer citar o nome de Vinícius
de Moraes como criador da obra externou nele um sentimento de fazer uma re-
filmagem devido a uma frustração. Era a cultura brasileira, negra, sendo levada
para fora e sem trazer o retorno. Parte do orgulho da conquista de ter aqueles
prêmios valorizados por varias nações.
O INCÔMODO DOS CINEASTAS E DE UMA PARCELA DE BRASILEIROS
Em Orfeu Negro era como se diante de toda aquela dura realidade não hou-
vesse espaço para ser triste, era carnaval. E o filme queria apenas contar uma
história de amor. Não necessariamente fazendo uma crítica a forma como a po-
breza afetava nossa nação. No entanto, esse retrato de Brasil recebeu críticas de
todos os lados.
No livro de Moraes a formação da identidade é dúbia. Ele busca representar
o negro e o morro que formam a identidade brasileira, mas ao mesmo tempo o
olhar dele e daqueles que detinham o capital cultural e o meio de se fazer cine-
2 Tradução livre da autora.
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ma, teatro e outras obras, eram majoritariamente brancos, pertencentes a clas-
se média.
Em Orfeu Negro, o filme, são escancarados vários estereótipos que reforça
-
ram uma noção de república das bananas que tínhamos no imaginário europeu e
estadunidense. Pessoas constantemente sambando em meio a pobreza genera-
lizada, clichês de um comerciante estrangeiro que galanteia todas as mulatas do
morro.
Essa situação causou incomodo de maneira dúbia, um por apresentar um
país apenas com felicidade mesmo com a pobreza e por outro lado por expor o
racismo que existe na sociedade brasileira que queria se desvincular de ser co-
nhecido como um país de negros.
No decorrer da década de 1960, a falta de veracidade do filme foi denuncia
-
da por vários críticos brasileiros, que usavam o Orfeu Negro como um modelo do
que não deveria ser feito no cinema brasileiro: o exotismo, o retrato animalesco
de Camus era o que se deveria evitar.
O filme Orfeu Negro enveredava por visão exótica e turística da cidade, o que traía o
sentido da peça e passava muito longe das suas fundadoras e fundamentais qualida-
des. Saí do cinema sentindo-me pessoalmente ofendido. Passei então a sonhar com o
filme que veio a se tornar o meu Orfeu, realizado 40 anos depois. Nosso Orfeu não era,
portanto, nem de longe um remake do Orfeu Negro de Camus, mas sim um novo filme
baseado na mesma peça” (DIEGUES, 2003, p. 18).
O conservadorismo não queria que os países ricos olhassem o Brasil como
um país de negros e pobres, enquanto a esquerda intelectual criticava a falta de
profundidade no discurso, o estereótipo docilizado de que o povo brasileiro é fe-
liz o tempo todo e aguenta sofrer. Ele gerou opiniões diversas entre os que cons
A REAÇÃO DOS CINEASTAS BRASILEIROS APÓS O ORFEU DE CAMUS
Enquanto ocorriam discussões sobre o retrato do Brasil em Orfeu Negro,
surge um movimento feito por cineastas jovens, inspirados no que estava se fa-
zendo no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Era um movimento que buscava me-
nos alienação social, buscava criticar duras realidades, e se voltava muitas vezes
para o centro e nordeste brasileiro tendo como figura mais conhecida o cineasta
Glauber Rocha, mas que teve nomes como Paulo Cesar Saraceni, Cacá Diegues
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e Leon Hirszman. Foi denominado de Cinema Novo. Para Bentes, a intenção era:
(...) violentar a percepção, os sentidos e o pensamento do espectador, para destruir
os clichês sobre a miséria: clichês sociológicos, políticos e comportamentais. Glauber
[Rocha] propõe uma Estética da Violência, capaz de criar um intolerável e um insu-
portável diante dessas imagens. Não se trata da violência estetizada ou explícita do
cinema de ação. Mas de uma carga de violência simbólica, que instaura o transe e a
crise em todos os níveis” (2007, p. 243).
Desde o início da produção cinematográfica brasileira, não havia exatamen
-
te uma representação total do que seria Brasil e os brasileiros. Nós tínhamos
muitas comédias e musicais, filmes que retratavam exuberância, os moradores
do asfalto, mas não o Sudeste pobre, outras regiões do país e não havia espaço
para o drama. Para Bernardet, a nova geração da época tinha desejo de levar o
espectador a conhecer a realidade crua, que ocasiona posteriormente em novas
correntes fílmicas.
(...) o público não tem o hábito de ver-se na tela, e as identificações que pode fazer com
personagens e situações nunca são baseadas em elementos de sua realidade, de seu
comportamento, vida, sociedade, etc. É tarefa, e das mais urgentes do cinema brasi-
leiro, conquistar o público. (...) A atividade cinematográfica no Brasil, no plano comer
-
cial e cultural, tem sido no sentido de afastar-se de nós próprios. A realidade brasileira
só limitada e esporadicamente recebeu tratamento cinematográfico (BERNARDET.
1967, p. 16 – 17).
A crítica dos cineastas de esquerda brasileiros à adaptação de Camus é que
devido à sua visão alegre e feliz do morro, enquanto o espectador poderia ver cla-
ramente casas de madeira com um cômodo, incentivava a inercia do povo para
tentar mudar esse cenário. A visão de Camus foi vista por parte dos brasileiros
como primitiva também. Estereótipos que os intelectuais da época estavam ten-
tando romper de que nossa miscigenação é motivo de atraso.
(...) convertem a pobreza urbana numa espécie de alegoria carnavalesca. (...) reprisam
uma leitura mítica da cidade que pressupõe a alegria estrutural de seus pobres e uma
intensa sexualidade que perpassa o conjunto de seus habitantes. (...) Apostam em um
certo poder regenerativo peculiar a paisagem carioca que, não seria exagerado afir
-
mar, é tematizado em praticamente todas as narrativas sobre o Rio desde sua funda-
ção (FREIRE – MEDEIROS. p. 60, 2009).
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Também podemos pensar que nessa tentativa de mostrar o real e bruto,
havia certa controvérsia na intenção de se fazer cinema na época quando parti-
mos da ótica de quem fazia e de quem era retratado. Os filmes da década de 1950
e 1960 mostravam os moradores dos morros sem preconceito ou caricatura, o
modo de falar, vestimentas e gírias, algo que não era feito. No entanto, não isen-
tava a construção de estereótipos, como aponta Salem (1996), pobres eram bons
e batalhadores e ricos eram corruptos. Em ambos os lados tivemos um estereó-
tipo, uma dualidade, como se fosse um lado bom e mau.
CACÁ DIEGUES REALIZA SEU ORFEU
O retrato fantasioso de Brasil feito por Camus incomodou muitos cineas-
tas brasileiros que queriam mostrar uma face mais real e bruta da realidade de
um país que outrora foi colônia e perpetuava reflexos de desigualdade. Em 1987,
Diegues lança Um Trem para as Estrelas, obra que de muitas formas representa
o Orfeu Negro que ele gostaria de fazer. Uma questão estrutural e problemática
do nosso cinema é que essa versão, apesar de querer refletir uma realidade bra
-
sileira, é feita majoritariamente por atores brancos na função de protagonismo.
Nessa versão, a trama relata a história de Vinícius/Vina, um homem órfão,
pobre, que mora com a tia em um apartamento pequeno e busca o sucesso como
músico, que após uma noite, tem sua namorada Eunice/Nicinha desaparecida
nas ruas do Rio de Janeiro. O filme mostra um aspecto de pobreza, violência e
injustiça dos grandes centros urbanos. O inferno de Vina são as vielas dominadas
pelo tráfico. A busca por sua amada se relaciona ao mito de Orfeu, quando ele
desce ao mundo dos mortos atrás de Eurídice e também faz paralelo com a músi-
ca homônima de Cazuza, trilha do filme, ao relacionar trechos da música a cenas.
Apesar dessa referência feita na década de 1980, após o lançamento de Or-
feu Negro de Marcel Camus, Vinicius de Moraes não ficou satisfeito com o re
-
sultado e com a falta de reconhecimento, afinal a obra é brasileira enquanto os
méritos ficaram com os franceses. Houve uma tentativa de Diegues de fazer uma
refilmagem, paralisada devido à morte de Moraes, em 1980 em meio ao processo
de recriação da obra.
Em 1999, com Toni Garrido e Patrícia França, Diegues lança sua versão inti-
tulada apenas de “Orfeu”. Filme totalmente brasileiro, feito após o movimento da
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Retomada, com suporte da Globo Filmes. E o cineasta queria finalmente retratar
a forma de Brasil com a desigualdade e pluralidade étnica que faltou na versão de
1959.
Cacá tinha consciência que iria enfrentar um filme clássico e de grande destaque. Mas
para ele, o sucesso de Orfeu Negro era algo circunstancial. Considerava o caso do filme
ter caído no gosto do público internacional, a três principais fatores: era a primeira vez
que se via o Rio de Janeiro, que ele considera a cidade mais linda do mundo, a cores no
cinema; era a primeira vez que se ouvia este aquele tipo de música e por fim em uma
época de Guerra Fria, com todos achando que mundo iria acabar numa guerra atômica,
o filme surge e apresenta um lugar onde todos são felizes, dançam, cantam e brincam
o tempo inteiro e a única coisa que pode atrapalhar isso é a morte abstrata, não possui
origem social e política (CUNHA. 2014, p. 61).
O filme de Diegues perde a inocência que existia no de Camus, adaptado
para os anos 1990, momento em que o tráfico e a criminalidade dominavam prin
-
cipalmente os morros cariocas. Orfeu continuava galanteador, virtuoso e, assim
como Vina de Um Trem para as Estrelas, buscava sucesso musical sendo um ho-
mem negro, pobre e que veio da favela e Eurídice se torna, nessa versão, uma
mulher pobre, que veio do Acre, após a morte de seu pai, morar na casa da sua
tia. Ao contrário de Orfeu de 1959, em que os moradores da favela são hospitalei-
ros, Eurídice encontra hostilidade ao chegar no local. Mostra que os moradores
de lá estão acostumados a violência, tiroteios, fazem parte do cotidiano e resta
sobreviver.
Para o cineasta não era um remake, era uma nova representação, um fil
-
me fazendo justiça e apontando o contexto real que o Brasil enfrentava, 40 anos
após a primeira versão, em um momento em que a estrutura das favelas já havia
se modificado, havia um aglomerado de barracos, falta de saneamento e outras
políticas públicas.
Toda essa ausência do poder público abre margem para o vilão dessa nova
versão ser o traficante Lucinho, que é uma nova versão de Aristeu, amigo de in
-
fância de Orfeu, líder de facção que queria subir rápido na vida mesmo saben-
do que no crime ela poderia ser curta. Para Diegues, o filme não deveria ser um
universo colorido apesar de acontecer nos 4 dias de festa de carnaval. A respei-
to dessa mudança representativa podemos pensar, como aponta a antropóloga
Janice Caiafa:
A etnografia é ao mesmo tempo um tipo de investigação e um gênero de escritura que
se desenvolveu na tradição antropológica. Mas ela surge de fato com outras tradições
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e experiências, sobretudo os relatos de viagem – de diversos indivíduos, ilustres ou
não, que por diferentes motivos se encontravam em situação de distanciamento geo-
gráfico e cultural (CAIAFA. 2007, p. 135).
O filme foi realizado mostrando pluralidade de cores existentes no Brasil, a
miscigenação, Eurídice é branca, Orfeu é negro. O mito agora nos faz refletir as
-
pectos sociológicos e estéticos, ele traz o cenário das favelas de volta às telas,
porque além de um cinema parado, na década de 1990, o sucesso brasileiro era
nas novelas, que mostravam um brasil caucasiano e morador da zona sul. Assim
como Camus, Diegues foi criticado por ambos os lados, mas por sua vez por re-
presentar um Brasil miserável e violento, que por vezes pode reforçar que no país
existe apenas pobreza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma das mais fortes consequências de Orfeu Negro e a inquietação dos
cineastas brasileiros foi o filme Cinco Vezes Favela de 1962. Buscava extrair do
público reflexão e ação. São 5 curtas em conectados com direção de Marcos
Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon
Hirszman. Para Bernardet (1967), o filme possui erros por já apresentar uma
sociedade esquematizada. Ele mostra as problemáticas, mas não abre margem
para interpretações.
Além disso, o problema tende a ser apresentado junto com sua solução: o favelado de
Escola de Samba Alegria de Viver toma consciência de sua alienação e troca o samba
pelo sindicato. O resultado dessa estrutura dramática simplista não era um convite à
politização, mas sim à passividade. Pois o espectador não tem de fazer o esforço de
extrair um problema da realidade apresentada no filme: o problema está enunciado
de modo tão categórico que não admite discussão; e, se se quisesse discuti-lo, a rea-
lidade do filme não forneceria elementos para tanto. O espectador tampouco tem de
fazer esforço para imaginar uma solução: ela é dada. O espectador absolutamente não
é solicitado a participar da obra; a única coisa que se exige dele é que ele sente em sua
poltrona e olhe para a tela, nada mais. E só lhe resta uma alternativa: negar o filme ou
entusiasmar-se com ele. O espectador encontra-se diante de um circuito fechado: a
realidade só se abre para um único problema, que está apresentado esquematicamen-
te, o problema tem uma única solução positiva, que também está apresentada esque-
maticamente – e a situação piora ainda quando a solução é tão discutível como no caso
de Escola de Samba Alegria de Viver. O filme fecha-se sobre si próprio, e o espectador,
limitando sua participação a aceitar ou recusar, fica de fora (BERNARDET. 1967, p. 25).
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Cacá Diegues foi um dos cineastas que na época se incomodou com a re-
presentação brasileira em Orfeu Negro, e em 1999 teve a oportunidade de lançar
sua versão, corrigir o que ele imaginava que Marcel Camus havia feito errado. Em
1980 houve uma conversa com Vinícius de Moraes, mas a produção foi paralisada
no mesmo ano devido à morte de do autor. Ele queria retomar o que se fazia em
1950 e 1960, instigar a reflexão, o viés sociológico, histórico.
(...) nunca existe uma única visão possível, mas uma visão distinta e uma visão emba-
çada, uma visão nítida e uma visão difusa, uma visão direta e uma visão oblíqua... Des-
crever é sempre descrever a partir de uma perspectiva: ao perto, ao longe, em face, do
lado, de través (LAPLANTINE. 2004, p. 89).
Nessa adaptação nomeada apenas de Orfeu, feita após quase 20 anos, os
morros foram retratados com domínio dos traficantes de drogas, um Brasil menos
colorido e a guerra entre policiais e bandidos. Sua versão se adaptou à época,
trazendo também o funk, o rap, buscando trazer a realidade contemporânea das
favelas cariocas que, àquela altura, fora dominada pelas facções. Também trouxe
a miscigenação, Orfeu era negro, Eurídice mestiça, lida como branca, o líder do
tráfico também era um homem branco.
Em todos os aspectos ele vem para ser o oposto, o Orfeu de Camus tem
muitas cenas externas, o ambiente parece ter muita coletividade, e também a
estrutura das favelas eram diferentes. Em 40 anos o êxodo rural, migração de
pessoas de outros estados, especulação imobiliária, a favela do filme de Diegues
que foi construída em estúdio era um amontoado de casas e poderia representar
qualquer favela do Rio de Janeiro que aquele momento já era um espaço
superlotado. Já era uma conjuntura mais individualista.
Diegues queria demonstrar questões políticas e sociais com sua versão e
o filme foi lançado em um momento de importância no cenário nacional, pois
no final da década de 1990, o Brasil passava por um momento de retomada
cinematográfica após uns anos de descaso estatal e preterimento do cinema
estrangeiro pelo público. Ele sabia das críticas que enfrentaria por retratar um
Orfeu com uma estética tão bruta, mas atrelou isso a fatores da época em que
os filmes foram lançados. Para Diegues, Camus fez uma representação para
estrangeiro ver, um filme colorido em 1959 chamava atenção, era um mundo
vivendo em meio a uma Guerra Fria.
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A questão posterior que se teve com essa necessidade de tentar retratar o
povo e sua realidade, é que o espectador vai ao cinema na função de se distrair,
então esses filmes acabaram por não conseguir o diálogo com a massa que eles
queriam. O morador do morro queria se ver na tela, mas nem sempre extrair uma
grande reflexão do quão sua vida é brutal. Gostaria de apenas rir. Logo, filmes mais
densos, dramáticos, passaram a chamar atenção de festivais, de intelectuais e
acadêmicos. Mas também retomou a produção brasileira de um drama fundido
com a ação, posteriormente tivemos Cidade de Deus (dirigido por Kátia Lund;
Fernando Meirelles, 2002), Tropa de Elite 1 e 2 (dirigido por José Padilha, 2007;
2010).
O filme de Camus ainda hoje é mais lembrado. Talvez não somente pelo capital
estrangeiro e os prêmios, mas porque o cinema as vezes serve como válvula de
escape da dura realidade. Temos reflexo disso ao ver que as maiores bilheterias
nacionais são comédias. A crítica, principalmente internacional na época do
lançamento reagiu negativamente ao filme de Diegues e que já era ciente que
haveria comparações com o filme de Camus. Um filme de um amor trágico, mas
colorido havia se tornado um filme bruto e trágico. Apenas um drama. Talvez pelo
mito de brasileiro feliz ainda ser muito forte no exterior.
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Claudelir Correa Clemente
DO COLONIAL AO CONTEMPORÂNEO: UMA RELEITURA DA OBRA DE ROGER BASTIDE
E FLORESTAN FERNANDES PARA REPENSAR A MEMÓRIA AFRO-PAULISTANA
FROM COLONIAL TO CONTEMPORARY: A REINTERPRETATION OF THE WORK OF
ROGER BASTIDE AND FLORESTAN FERNANDES TO RETHINK AFRO-SÃO PAULO
MEMORY
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20307
Claudelir Correa Clemente
Universidade Federal de Uberlândia
https://orcid.org/0000-0001-5126-6704
claudelirufu@gmail.com
Recebido em 29 de fevereiro de 2024
Aprovado em 18 de maio de 2024
RESUMO:
Na pretensão de compor e
subsidiar o debate contemporâneo dos
movimentos negros e da pesquisa científica
sobre a memória afro-paulistana, este artigo
revisita a obra Brancos e negros em São Paulo, de
Roger Bastide e Florestan Fernandes, na versão
de 1959, e, por meio de suas fontes, busca
evidenciar aspectos relevantes da etnicidade e
dos modos de ser, agir e conviver de africanos
e afro-brasileiros que foram escravizados na
cidade São Paulo entre os séculos XVI e XIX.
Palavras-chave:
Memória, Escravizados,
Etnicidade, Culturas afro
ABSTRACT:
With the aim of composing and
contributing to the contemporary debate on
black movements and scientific research on São
Paulo African memory, this article revisits the
work Whites and Negroes in São Paulo by Roger
Bastide and Florestan Fernandes (1959), and,
through its sources, seeks to highlight relevant
aspects to ethnicity and ways of being, acting,
and coexisting of Africans and African Brazilians
who were enslaved in the city of São Paulo
between the 16th and 19th centuries.
Key words:
Memory, Enslaved, Ethnicity,
African cultures
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INTRODUÇÃO
As reflexões aqui apresentadas estão assentes na análise de fontes, docu
-
mentos e etnografias que foram consultados por Roger Bastide e Florestan Fer
-
nandes para realização da obra
Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológi
-
co sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de
cor na sociedade paulistana
, que teve a primeira edição em 1955; para este artigo,
no entanto, leu-se a segunda edição, que data de 1959. Reconhece-se essa obra
como uma das poucas fontes que tratam da presença negra na cidade de São
Paulo, desde os primeiros anos de colonização.
As motivações para escrever este artigo surgiram em incursões antropoló-
gicas realizadas entre 2018 e 2023 em atividades de coletivos afro-paulistanos,
cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade. Pude acompanhá-las a partir
de ações empreendidas em dois bairros da capital paulista: Penha de França, na
zona leste da cidade, onde fica a Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha
de França; e Bixiga, na zona central, local da recente descoberta do Quilombo
Saracura e onde nasceu a Escola de Samba Vai-Vai.
A grande problemática para estes coletivos é que, neste século XXI, a ques-
tão da presença afro no período colonial paulistano é questionada, na sua exis-
tência e na sua validade, nos círculos de investidores que cobiçam principalmen-
te as áreas nobres da capital. Há em curso uma série de narrativas e ações que
buscam destituir as populações negras do direito de morar e conviver em bairros
paulistanos de classe média e alta. Isso se assevera em espaços que concentram
grupos mais organizados de expressões afro-brasileiras significativas para a he
-
terogeneidade cultural da cidade e em locais onde foram feitas descobertas de
bens materiais e imateriais que denotam a origem negra de São Paulo.
Nos últimos anos, em territórios devassados por grandes projetos metroviá-
rios e imobiliários, um conjunto de vestígios materiais de africanos e afro-brasi-
leiros escravizados no período colonial tem sido desenterrado.
Contrariando as elites empresariais, que apostavam num apagamento irre-
versível das culturas negras ancestrais da memória paulistana, eis que seus res-
quícios se apresentam à luz da contemporaneidade em bairros da capital paulis-
ta. É o caso do supracitado bairro do Bixiga, no qual foram encontrados vestígios
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do Quilombo Saracura
1
em meio às obras de uma nova linha do Metrô, projeto li-
berado pelo grupo transnacional Acciona. Concomitantemente a esse importan-
te achado quilombola, outro símbolo afrocultural foi apagado no bairro: a sede
de uma das mais tradicionais escolas de samba paulistanas, a Vai-Vai, demolida
em 2021 para dar lugar a uma estação da nova linha metroviária. No vizinho bair-
ro da Liberdade, durante as escavações de um empreendimento imobiliário, em
2018, foram encontradas ossadas dos tempos de escravidão, o que comprova a
existência do Cemitério dos Aflitos
2
, até então conhecido apenas por meio de
documentos.
Mesmo diante de evidências que certificam a presença negra na São Paulo
Colonial, o racismo perpetrado pelos setores mais abastados da sociedade pau-
listana manifesta-se em estratégias e narrativas de não reconhecimento desses
bens enquanto patrimônio municipal e estadual. É possível observar, em 2024,
uma morosidade explícita dos órgãos públicos municipais e estaduais, e mesmo
inércia no registro desse patrimônio e em demais ações políticas e educativas
para salvaguardar o espólio negro na capital paulista. Também se observa uma
exacerbada visão eurocêntrica e etnocêntrica de certos quadros profissionais
que atuam no patrimônio cultural lotados ou de prestadores de serviços em ór-
gãos com sede na capital paulista, sejam municipais, sejam estaduais, sejam fe-
derais.
Por parte desses quadros, há sempre ênfase no reduzido contingente popu-
lacional negro no período colonial paulistano, sem, contudo, que se aponte quan-
to era igualmente reduzido o contingente de brancos portugueses ou de outros
países da Europa que viviam então na cidade.
Sabe-se, histórica e cientificamente, que São Paulo é terra indígena (MON
-
TEIRO, 1994; DOS SANTOS, 1998) e que africanas e africanos foram escravizados
nessa capital. Bens culturais dessas populações compõem o patrimônio de São
Paulo.
Ademais, não se questiona tecnicamente o patrimônio deixado pelas cul-
turas europeias, historicamente mais valorizado. Consequentemente, esse con-
1 (SILVA, 2023). Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quilombo-saracura-a-
-busca-pela-preservacao-das-memorias-encontradas-nas-obras-do-metro-em-sao-paulo
. Acesso em:
21 jul. 2020.
2 (REIS, 2018) [on-line]. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/06/
arqueologos-encontram-ossadas-da-epoca-da-escravidao-em-terreno-no-centro-de-sao-paulo.ghtml
.
Acesso em: 27 abr. 2024.
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texto aumenta as dificuldades da população organizada para conseguir o regis
-
tro e o tombamento dos bens culturais indígenas, africanos e o afro-brasileiros.
Na cidade de São Paulo, esse fenômeno se deve a um apagamento constan-
te: das origens africanas; das culturas afro; do processo de escravização pelo
qual passaram negras e negros; e da memória e do patrimônio afro. Na contem-
poraneidade, há, por parte dos movimentos e diversos segmentos da população
negra, uma busca por reconhecimento do seu patrimônio cultural, ao qual é atri-
buído sentido identitário.
Por isso, revisitar a obra de Bastide e Fernandes, depois de quase 70 anos
de sua primeira publicação, e deter-se sobre suas fontes tem como um dos obje-
tivos fomentar um campo reflexivo com informações antropológicas e históricas
para ser usadas pelos movimentos sociais negros que lutam pela memória afro
da cidade de São Paulo.
Buscou-se fazer uma releitura afrocentrada, orientada pela produção in-
telectual africana e afro-brasileira contemporânea. Notadamente, das contri-
buições africanas, as teorias do antropólogo costa-marfinense, de ascendência
Akan, Georges Niangoran-Bouah (1978) e do historiador costa-marfinense Pierre
Kipré (2010) apresentam um conjunto de estudos que buscam captar a visão in-
terna africana, o que, para a escrita deste artigo, foi de suma importância, permi-
tindo destacar a grande relevância dos povos Akan e Gã para a compreensão das
etnias que contribuíram para a formação do Brasil.
Neste artigo, pretende-se ir além do sistema de classificação étnica colo
-
nial, que se baseia nas regiões africanas de procedência dos escravizados – An-
gola, Benguela, Guiné e Mina.
Acerca da intelectualidade afro-brasileira, recorremos aos pensamentos de
Beatriz do Nascimento (2021), Clóvis Moura (2021) e Lelia Gonzalez (1979), por suas
perspectivas afrocentradas e decoloniais e por reforçarem a importância da re-
sistência negra, criadora de quilombos e de formas de aquilombolamento desde
tempos imemoriais, seja no continente africano pré-colonial, seja no Brasil.
Beatriz do Nascimento abriu as miradas deste artigo com sua reflexão ge
-
nuína sobre a invisibilidade negra na historiografia brasileira. Certa vez, ela co
-
mentou em uma entrevista:
“A história do Brasil foi escrita por mãos brancas. Tanto o negro quanto o
índio não têm sua história escrita, ainda. Isso é um problema muito sério, porque
a gente frequenta universidade, frequenta escola, e não temos uma visão correta
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do passado do negro”
3
.
Essa invisibilização do negro e do índio nas pesquisas históricas, como afir
-
ma Nascimento, também incomodou Bastide e Fernandes (1959), como veremos
adiante, pois a historiografia consultada, à época, não apresentava informações
precisas sobre a importação de africanos nos primeiros 50 anos do descobri-
mento.
Um segundo objetivo que orienta as análises deste artigo é provocar o de-
bate científico em torno da presença de africanos na cidade de São Paulo, em es
-
pecial nos períodos quinhentista e seiscentista. Sobre essa época, são escassas
as pesquisas históricas e, sobretudo, antropológicas que aprofundam reflexões
sobre as origens étnicas dos povos africanos escravizados em solo paulistano.
Portanto, revisitar a obra de Bastide e Fernandes (1959), dando atenção às
suas fontes, possibilita o encontro de informações significativas sobre a presen
-
ça de africanos escravizados e seus descendentes no território paulistano dos
séculos XVI ao XIX.
As origens africanas da cidade de São Paulo
Já no início do capítulo I de
Brancos e negros
, Bastide e Fernandes (1959, p.
1) afirmam:
É impossível precisar a época em que se iniciou a importação do braço negro em São
Paulo. Presume-se que os primeiros africanos vieram para o Brasil entre 1516 e 1526.
No entanto, só a partir dos meados do século XVII principiou o afluxo regular e cons
-
tante de africanos para a Colônia.
Mauricio Goulart (1975, p. 95), que é a fonte consultada por esses autores,
salienta:
Quem trouxe os primeiros africanos para o Brasil e quando, com exatidão, isso se deu,
são problemas que a investigação histórica, à mingua de documentos, não elucidou
ainda, e, quiçá, nunca elucide. Mas, talvez não erre muito quem faça coincidir a entrada
dos primeiros negros com a fabricação de açúcares no Brasil.
Foi na condição de escravizadas que as populações africanas conheceram
a perversidade da colonização europeia que as racializou como negras e as lan-
3 (RESÍDUO, 2023). Série documental, episódio 1. Trecho disponível em:
https://www.youtube.
com/watch?v=xxkBDmWi_xM
. Acesso em: 27 abr. 2024.
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çou além-mar, em navios negreiros, sequestrando-as majoritariamente para as
Américas:
[...] em proveito do tráfico atlântico (século XV ao XIX), homens e mulheres originá
-
rios de África foram transformados em homens-objecto, homens-mercadorias e ho-
mens-moeda. Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a ou-
tros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome ou língua própria
(MBEMBE, 2017 p. 12).
É sob esse contexto macabro que algumas fontes consultadas para escrita
do presente artigo indicam que já no século XVI havia africanos em São Paulo.
Eram pessoas importadas da África Ocidental pela família Schetz de Antuérpia
(MONTEIRO, 1994). Tudo aponta para a presença na cidade de um ou outro mem-
bro de povos de culturas milenares, sendo mais provavelmente advindos dos rei-
nos de Akan, Mandingo e Angolares
4
(DAVEAU, 1962; NIANGORAN-BOUAH, 1978;
KIPRÉ, 2010).
No século XV, os dois primeiros reinos estariam localizados na região que
ficou conhecida como Costa da Mina, e os Angolares na ilha de São Tomé e Prín
-
cipe, localizados no Golfo da Guiné. Região explorada por portugueses e demais
europeus, como a já citada família Schetz de Antuérpia, pois como os demais
nobres europeus “[...] estavam imbricados nas redes mercantis que envolviam
Portugal e seus espaços ultramarinos desde fins do século XV”, como aponta Vi
-
lardaga (2022, p. 185).
De acordo com Kipré (2010 p. 362), na costa atlântica africana:
De 1471 a 1480, a região que vai do cabo Palmas à foz do Volta foi explorada pelos
portugueses, que entraram em contato com as populações locais; já em 1481
começaram a construir o forte de São Jorge da Mina (Elmina), que lhes garantiu o
controle efetivo sobre o comércio costeiro.
O comércio de escravizados em direção ao Brasil teria começado nesse lo-
cal. Mas, o tráfico mais significativo ocorreu a partir do século XVII, quando a ci
-
dade de São Paulo se tornou negra. A polvorosa dos paulistas em torno das minas
de ouro supostamente descobertas por Afonso Sardinha, que morava próximo
ao rio Pinheiros (VILARDAGA, 2013), foi um dos fatos que abriram as negociações
4 É a denominação corrente entre os séculos XV e XIX para identificar grupo de africanos e afri
-
canas que se insurgiram contra a escravidão na atual ilha de São Tomé e Príncipe, arquipélago do
Golfo da Guiné. Há, porém, outras versões que podem ser verificadas em Suzanne Daveau (1998).
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que promoveriam a vinda de africanos para a capital. Bastide e Fernandes (1959,
p. 7) confirmam este tornar-se negro paulista: “É pelos fins do século XVII, com a
localização de minas auríferas pelos paulistas, que começa a se formar o primei-
ro fluxo regular e apreciável de escravos negros para estas regiões”
.
Goulart (1975, p. 137), uma das fontes desses autores, ressalta:
Também em S. Paulo a situação era de penúria de africanos, como confessava em
1713 o governador da capitania, D. Braz Baltazar da Silveira, endossando junto ao rei o
pedido dos moradores: “...pretendem que V. M. lhes faça a mercê de permitir que à Vila
de Santos venham em direitura navios de Angola e Cabo Verde com escravos de que
necessitam, assim para o serviço das lavouras como para as minas”.
No século XVII, a Costa da Mina era a região provedora do comércio de es-
cravizados. Esse perfil foi ampliado devido às disputas entre as nações europeias
por esse local, que acabou subdividido em Costa do Ouro, Costa dos Escravos e
demais “costas”, conforme demonstra o mapa.
Mapa - Costa da Guiné no século XVII.
Fonte: Práticas Religiosas da Costa da Mina/Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA.
O tráfico de escravos teve grande impacto sobre os povos e culturas africa
-
nas. Como destacou Mbembe (2017, p. 12), essas pessoas “[...] passaram a per-
tencer a outros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando de ter nome
ou língua”. Ou seja, nos mercados de escravos instalados na proximidade do li-
toral africano elas tiveram suas origens desmerecidas. Foram classificadas de
acordo com a perspectiva ocidental que lhes conferiu origens vinculadas aos lo-
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cais onde foram mantidos em cativeiros – por isso os termos de procedência
de
escravizados Angola, Benguela, Guiné, Mina, que se referem ao porto ou à região
de captura e venda de africanos. Depois de um tempo nesses locais, essas pes-
soas eram transportadas em condições subumanas para o Brasil, sendo então
escravizadas.
Nesse sentido, para além das denominações ocidentais que identificaram
os escravizados, a costa atlântica africana, desde tempos imemoriais, atraiu
uma pluralidade de sociedades de culturas singulares. Entre elas, o cultivo da
mobilidade é algo antigo, configurando-se um dos preceitos que norteiam as
experiências socioculturais africanas.
No contexto pré-colonial muitos povos africanos migravam e se instalavam
por longos períodos nessa região. Entre eles destacam-se aqueles que se
encontravam na costa atlântica no período colonial cujos membros foram
capturados e escravizados na mineração do Sudeste brasileiro, incluindo a
cidade de São Paulo.
Assim, muitos escravizados classificados de forma genérica como “escravo
mina” ou “negro mina”, podem pertencer a povos que estavam nas regiões
litorâneas da África entre os século XVI e XVII, constatamos que neste período
povoavam a região os povos Akan (PERSON, 2010, KIPRÉ, 2010) e Gã, que no Brasil
foram vulgarmente identificados pelos brancos europeus como “escravos mina”.
A sociedade Akan, que atualmente é um grupo étnico significativo em países
como Costa do Marfim e Gana, merece aqui um breve destaque. Conhecidos pelo
culto ao ouro, os akan acumulavam muitos conhecimentos sobre esse metal
precioso, tendo contribuído para o sucesso da mineração brasileira. Desde que os
portugueses se instalaram na Costa Mina, no século XV, os akan negociavam com
eles
5
, mas também foram por eles escravizados. De acordo com o antropólogo
africano Niangoran-Bouah (1978, p. 127), para a sociedade Akan o ouro “[...] é
o metal dos metais, ele é mais nobre, inalterável e eterno (...Encontrar ouro na
natureza é um feliz presságio”
6
(NIANGORAN-BOUAH, 1978, p. 127).
Envoltos na limitante designação “escravo mina”, sua contribuição na
formação das populações sudestinas foi invisibilizada, porquanto apagados os
seus conhecimentos sobre extração do ouro. Sobre esse processo, apontam
5 Sobre esse assunto ver Kipré (2010).
6 Tradução minha.
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Bastide e Fernandes (1959, p. 14):
Desde 1706 os negros importados se destinavam, na proporção de 20 para 3, aos tra-
balhos das minas; eles apenas transitavam por São Paulo, em sua maioria, ou eram
negociados por intermediários nas zonas de mineração. Os trabalhos nas minas eram
muito rudes, exigindo não só trabalhadores robustos, mas ainda contínua renovação
de quadros humanos. Segundo documentos da época, os escravos mais debilitados
eram escolhidos para a lavoura, enquanto os mais fortes eram remetidos para os ser-
viços de mineração.
Na p. 14 de
Brancos e negros
a nota de rodapé 34 complementa a ideia da
citação acima:
Cf: Afonso E. Taunay,
Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil
, pág. 624-
626, este autor cita um exemplo: “em Goiás acontecia morrerem 100 escravos no perío-
do de um ano, coisa nunca acontecida aos agricultores”. Além das próprias condições
de trabalho, terríveis e desumanas no começo, alguns autores mencionam a maligni-
dade do clima (cf, F. J. de Lacerda e Almeida, op. cit., pág. 64).
Salienta-se que do contingente africano empregado nas áreas de minera-
ção que se concentraram fora do perímetro de São Paulo, um número significati
-
vo para época seria escravizado no município, atuando na agricultura de subsis-
tência e em serviços domésticos.
Do contexto colonial paulistano do século XVIII, marcado pelo trabalho rural
e doméstico, há escassas informações quanto à presença africana; algumas es-
tão disponíveis na documentação depositada no Arquivo da Cúria Metropolitana
de São Paulo. É o que apontam as pesquisas de Fabiana Schleumer (2011), que
aprofundam estudos sobre africanos que são mencionados nos processos-cri-
mes de feitiçaria ocorridos na cidade. Por meio de seu artigo foi possível con-
jecturar a existência de algumas formas de sociabilidade afro na capital paulista
daquele período. Até porque aos escravizados era negada a possibilidade de vida
social, de convivências, sendo considerados apenas força de trabalho. Segundo
essa autora, é necessário olhar para a São Paulo colonial como
[...] um espaço não somente de práticas e vivências indígenas, como tem afirmado a
historiografia tradicional, mas também como centro de elaboração e reelaboração de
valores e práticas culturais africanas; áfricas que se criaram e se recriam no bojo da
sociedade paulistana colonial (SCHLEUMER, 2011, p. 9).
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De fato, no decorrer do século XVIII, o negro se tornou o principal instru-
mento da produção econômica. Numa passagem, Bastide e Fernandes (1959 p.17)
ressaltam:
Quanto à vila de São Paulo, que nos interessa particularmente por ser o próprio campo
dos nossos estudos, a documentação revela que se desenvolvera relativamente, be-
neficiando-se particularmente com o comércio das minas de Goiás e Mato Grosso e
com a exploração em escala econômica da produção agrícola e da criação. Em 1766,
contaria 833 fogos e possuiria 3.820 habitantes. Os dados relativos a 1777 revelam que
a população aumentara, abrangendo 4.409 habitantes, dos quais 2.423 livres (brancos,
índios, mestiços e libertos) e 1.986 escravos (africanos e negros crioulos). Em média,
cada proprietário possuía de 1 a 5 escravos; mas, alguns possuíam mais do que isso:
havia os que tinham de 10 a 30 escravos e notam-se dois que contavam com 51 e com
104 escravos.
A tendência ao aumento da população africana iniciada nos fins daquele sé
-
culo ganhou ímpeto, adentrando o século XIX com intenso crescimento, sobretu-
do devido à grande lavoura do café e sua surpreendente vitalidade.
O plantel de escravos domésticos dos moradores da cidade continuou crescendo na
primeira metade do Oitocentos, especialmente para os proprietários com negócios
urbanos e rurais, ou seja, todos os índices indicam que a riqueza dos moradores da
capital crescia ao mesmo tempo que se desenvolviam as novas fronteiras agrícolas
(ARAÚJO, 2003, p. 127).
O
boom
cafeeiro transformou a cidade de São Paulo num território de grande
efervescência, tornando-a, inclusive, centro comercial e bancário que adminis-
trava os lucros da grande lavoura.
Devido à decadência dos proprietários agrícolas das províncias do Norte
um contingente significativo de sua escravaria seria comprado por cafeicultores
paulistas, que também comprariam no mercado ilegal “[...] comboios, que ali-
mentavam com os africanos importados ‘ilegalmente’ pelos traficantes e nego
-
ciados no mercado do Valongo” (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 36).
Em tabela elaborada pela historiadora Regiane Mattos (2006 p.103), sobre a
origem de africanos batizados na capital paulista, no período de 1800 a 1850, foi
identificado um número considerável de pessoas procedentes da Guiné, desig
-
nação geral para quem vinha da costa atlântica da África e da região Centro-Oci-
dental do continente.
Os estudos de (ARAÚJO, 2003; MATTOS, 2006) refletem questões discutidas
por Bastide e Fernandes (1959, p. 27):
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A expansão da “grande lavoura” refletiu-se diretamente na composição da população
escrava, provocando, de modo bem nítido a partir do primeiro decênio do século, uma
elevação progressiva na importação de escravos negros (crioulos e africanos). Os da-
dos aqui expostos, considerando-se também os relativos a 1797 (cf. pág. 449), permi-
tem registrar que a média de aumento anual da população escrava, com referência ao
elemento negro, cresce continuamente, tornando-se esse crescimento verdadeira-
mente apreciável depois de 1815.
O adensamento da população negra no espaço urbano paulistano, obser-
vado na virada do século XVIII para o século XIX, significou a ampliação de for
-
mas de convivência social entre escravizados. Sabe-se que o sistema escravis-
ta apresentava determinadas regras e limites para essas pessoas, mas o que se
constata é que negras e negros paulistanos aprenderam a se mover no interior
dessas regras, de modo a criar alternativas de convivência e contestação.
A cidade quilombola
“
A visão que o mundo ocidental procurou transmitir da África
foi a de um continente isolado e bizarro, cuja história foi
despertada com a chegada dos europeus. (...) numerosas foram
as formas de resistência que o negro conservou ou incorporou
na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e
histórica
.”
(Beatriz Nascimento)
A grande lavoura de café ampliou o contingente de escravizados no Estado
de São Paulo, constituído majoritariamente de africanos e afro-brasileiros ad-
quiridos pelos cafeicultores paulistas de fazendeiros das províncias do Norte. Ao
mesmo tempo, observa-se um crescente da resistência quilombola no território
paulista. De acordo Clovis Moura (2021), em São Paulo, como em outras capita-
nias:
Onde quer que o trabalho escravo se estratificasse surgia o quilombo ou mocambo de
negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, desgastando em diversos níveis as
forças produtivas escravistas, quer pela sua ação militar, quer pelo rapto de escra-
vos das fazendas, fato que constitui, do ponto de vista econômico, subtração com-
pulsória das forças produtivas da classe senhorial. Dessa forma, se o aquilombamento
não tinha um projeto de nova ordenação social, capaz de substituir o escravismo, em
contrapartida, tinha potencial e dinamismo capazes de desgastá-lo e criar elementos
de crise permanente em sua estrutura. (MOURA, 2021, p. 25-6)
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São vários os casos mencionados por Moura de resistência quilombola es-
palhados pela capitania de São Paulo.
No dia 12 de fevereiro de 1809, o capitão-mor de Itu, Vicente da Costa, comunicou ao
governador, capitão-general Franca e Horta, que os escravos daquela cidade e mais
os de Sorocaba, Campinas, Porto Feliz e Itapetininga revoltaram-se, (MOURA, 2021, p.
38) “fustigando os seus senhores e em quilombos e em quadrilhas armados de fleixas e
outras armas, atacavam os viandantes, as fazendas, roubando, matando e praticando
outros insultos dentro da vila, e até mesmo formaram uma sedição na noite de Natal”
(RIBEIRO, 1981 apud MOURA, 2021, p. 38).
É importante considerar que esse tipo de resistência tinha lastro no
continente africano. De acordo com Beatriz do Nascimento (2021), na África
Centro-Ocidental, porém, já existia entre povo Imbangala, de Angola, a institui-
ção
kilombo
. A historiadora acrescenta: “[...] o acampamento de escravos fugiti-
vos, como quando alguns Imbangala estavam em comércio negreiro com os por-
tugueses, também era kilombo” (NASCIMENTO, 2021, p. 157).
Bem perto de Angola, ainda nos primórdios da colonização portuguesa na
costa africana, a Ilha de São Tomé e Príncipe foi palco do mais célebre levante
contra a escravidão. No século XVI, as “guerras do mato” (SCHMIDT, 2007) opo-
riam no arquipélago portugueses e os quilombolas angolares. Nascimento (2021),
por sua vez, aponta que os portugueses, frente às insurgências nos quilombos
– as primeiras em território africano e, depois, mais intensamente no Brasil do
século XVII, com Palmares (AL), e do XVIII, com o Quilombo do Ambrósio
7
(MG)
–, definiram a seu modo, em 1740, o significado de quilombo. A saber: “[...] toda
habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda
que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (NASCIMENTO,
2021, p. 152).
Para a autora, nisso se encontra, uma interpretação estereotipada de como
[se] constituíam os “quilombos”
7 Os estudos de Jeremias Brasileiro (2017) demonstram que, por volta de 1726, em Minas Gerais,
as terras de Cristais foram ocupadas por escravizados revoltosos, sob a liderança do rei Ambrósio.
Àquela época, o município recebia o nome de Meia Laranja. Conta-se que esse quilombo chegou
a ter mais de 15 mil negros, tendo sido o maior e o mais duradouro da história mineira. Durante o
ataque pela milícia, em 1746, a mando da Coroa de Portugal, o rei Ambrósio foi morto. Os negros
sobreviventes fundaram, então, um segundo “Quilombo do Ambrósio”, localizado na divisa de Ibiá e
Campos Altos, também em Minas, dizimado em 1759.
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[...] reforçam-se as noções dos negros como seres primitivos, malfeitores e irrespon-
sáveis, e dos quilombos como bandos destituídos de caráter político (...) identifica qui
-
lombos como refúgios ou valhacoutos de negros, num sentido deveras depreciativo
(NASCIMENTO, 2021, p. 110).
Bastide e Fernandes (1959) não aprofundam a questão quilombola, mas tra-
tam da emergência do “protesto negro”, que, neste artigo, é interpretado a partir
da perspectiva de Nascimento e Moura, o que nos faz considerá-lo como uma
forma de aquilombamento.
O que se sabe por Bastide e Fernandes (1959) é que, na metade do século
XIX, a província de São Paulo assistiu paulatinamente à desagregação do regime
servil.
Se tomássemos os anos de 1850, em que o tráfico africano foi suprimido efetivamente,
e de 1888, em que foi promulgada a abolição do cativeiro no Brasil, como pontos de
referência históricos, seríamos levados a convir que desagregação do regime servil
se consumara em menos de quatro décadas (...) se fez ouvir o “protesto negro”, o “não
quero” dos escravos. A agitação abolicionista havia atingido as camadas populares e
as próprias senzalas, conferindo aos escravos, nos derradeiros anos da existência do
regime, uma ação decisiva no solapamento da ordem vigente (BASTIDE; FERNANDES,
1959, p. 46).
Muitos dos escravizados que haviam sido comprados das províncias do Nor-
te traziam em suas memórias as lutas e revoltas contra a escravidão. Desde a
insurreição malê, em 1835, quando escravos muçulmanos tomaram o centro da
cidade de Salvador, em confronto armado com forças policiais (REIS, 1986), as
autoridades imperiais e os membros da “boa sociedade imperial” temiam que
grandes concentrações de escravos pudessem gerar insurreições de proporções
avassaladoras.
São Paulo, não escapou a isso, como constata Bastide e Fernandes (1959, p.
47), “por meio de fugas em massa, ao mesmo tempo que desorganizavam os tra-
balhos nas fazendas, confundiam e dificultavam a repressão legal.”
Nas fugas muitos deslocavam para o centro urbano paulista, onde lá refu-
giavam-se. Na metade do século XIX, o centro urbano paulistano,
[...] se circunscrevia a algumas ruas da freguesia da Sé, que era, ao mesmo tempo, a
área em que moravam as famílias mais abastadas (em 1872, por exemplo, a metade da
escravaria da comarca estava nas mãos dos seus moradores e nada menos de 1.061 es-
cravos eram ocupados em “serviços domésticos”), e em que vivia o maior contingente
de pessoas livres da comarca (7.344 indivíduos, sobre 20.213, que residiam nas oito
freguesias restantes) (BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 42).
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Os poucos e curtos contatos sociais estabelecidos por mulheres e homens
escravizados eram tecidos em suas convivências nas idas à rua para cumprir
obrigações do trabalho escravo – abastecer as casas de seus escravizadores com
gêneros alimentícios, água etc. Nesses deslocamentos também os encontros e
as amizades entre negras e negros eram comuns.
De acordo com Maria Odila Leite da Silva Dias (1984, p. 114),
[...] alarmavam os moradores da cidade os contatos, que se estabeleciam, entre es-
cravos fugidos e quilombolas, que desde o início da escravidão urbana existiram nos
arredores da cidade, no vale do Anhangabaú, no Bexiga, em Pinheiros, em Santo Amaro
e nos matagais, que se entremeavam às áreas mais urbanizadas, um pouco por toda
parte.
Assim, nas margens, do centro urbano intensificou-se a vida comunitária
entre escravizados o que fez emergir formas de solidariedade entre negras e
negros, permitindo novos arranjos sociais. Aquilombando-se as margens do rio
Saracura, no atual bairro Bixiga, mas também em regiões longínquas do centro
urbano, a exemplo da Freguesia Nossa Senhora da Penha de França, cuja origem
remonta à ação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
da Penha (1755)
Na interpretação da historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998, p.
16), desde os anos que antecederam a abolição, assim como os que a sucederam,
a população negra de São Paulo já sofria preconceito racial.
Um clima acentuadamente discriminatório, uma política de vigilância constante inci-
diu sobre os escravos, para redobrar-se nos alforriados e negros livres. Os projetos de
modernização da cidade previam o afastamento dessas populações do núcleo central,
reservando a elas as primeiras áreas periféricas. (WISSENBACH, 1998, p. 16)
Esse projeto de segregação tem suas primeiras investidas ainda no século
XIX, na configuração de uma imagem nociva do negro: “Os escravos forros e ho
-
mens livres negros, juntamente com os escravos fugidos que se abrigavam na
cidade e entornos, não eram somente tidos como desordeiros e indisciplinados,
mas também potencialmente perigosos” (WISSENBACH, 1998, p. 16).
É nesse contexto de crescimento de processos criminais contra a população
afro apontado por Wissenbach (1998) que encontramos mais informações sobre
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a condição negra na cidade paulistana. O que abre para este artigo mais algumas
fontes que permitem ir além de Bastide e Fernandes (1959) e revelam mais sobre
a vida social de negros e negras de São Paulo.
Pelos depoimentos arrolados nos processos criminais, é possível saber sin-
gularidades das vidas sociais de africanos e afrodescendentes anos antes da
Abolição: os bairros onde moravam, os lugares de que desfrutavam de alguma
convivência.
Nesses documentos vislumbra-se a região dessa vivência que na atualidade
corresponde a área do canteiro de obras da linha 6 do Metrô no bairro do Bixiga,
no distrito da Bela Vista, onde foram encontrados os vestígios arqueológicos do
Quilombo Saracura e local da tradicional sede da escola de samba Vai Vai, demo-
lida para dar passagem ao metrô. A área fica aos fundos do Museu de Arte de São
Paulo – MASP é cortada pela avenida Nove de Julho onde subterraneamente está
canalizado o rio Saracura.
De acordo com Wissenbach este espaço, outrora foi conhecido como bairro
Caaguaçu:
Situado no começo da Estrada do Santo Amaro, o bairro Caaguaçu ou altos do Caa-
guaçu demonstrava, na época, significativa concentração de africanos, alguns forros
e outros emancipados durante os anos de 1860. No local que mais tarde passaria a ser
chamado de espigão da Paulista e se transformaria em zona nobre, por excelência, da
aristocracia cafeeira, em 1872, moravam numa mesma vizinhança: Margarida Azevedo
Marques, de nação mina (...) casada com Sabino José da Graça, liberto do Maranhão;
Antonio Mina (...); Elias Palhares (...) natural da mesma nação africana. (WISSENBACH,
1998, p. 137)
Em pesquisa de Francisco Scarlato (1988, p. 71), a região também é mencio-
nada como de forte concentração de população negra.
Os negros concentravam-se mais na parte baixa da região da Grota: nas casas de cô-
modos da Almirante Marques Leão. Segundo relatos encontrados na obra de Ernani
Silva Bruno, a região da Grota, desde o período escravagista, já era procurada pelos
negros fugitivos, onde chegavam a formar “quilombos”. Essa tradição de lugar de ne-
gros marcou a rua Almirante Marques Leao, chegando a ser discriminada por muitos
moradores italianos arrivistas.
De acordo Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982, p. 15):
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Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente
separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar
natural do grupo branco dominante são as moradias amplas situadas nos mais belos
recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de
policiamento: desde os antigos feitores, capitães mato, capangas etc. (...) Já o lugar
natural de negro é o oposto, evidentemente as favelas, cortiços, porões, invasões, ala-
gados e conjunto habitacional.
Considerações finais
A obra pioneira
Brancos e Negros em São Paulo
de Bastide e Fernandes (1959),
já reflete os processos de apagamento da herança africana na cultura paulistana
e as tentativas de destituir a negritude de uma humanidade devido seu passado
de escravizado.
É possível considerar que o privilégio racial dos brancos é um dos pontos-
-chave para entender o que se passa, neste ano de 2024, no campo do reconhe-
cimento das atuais lutas negras pela memória e patrimônio cultural afro. Neste
sentido, o pensamento de Lélia Gonzalez faz considerações importantes:
“[...] em todos os níveis, o grupo branco foi o beneficiário da exploração dos grupos
raciais. Os aspectos culturais e políticos das relações raciais demonstram como o
branco afirmou sua supremacia às expensas e em presença do negro. Ou seja, além da
exploração econômica, o grupo branco dominante extrai uma mais-valia psicológica,
cultural e ideológica” (GONZALEZ, 1979, s.n. [mimeo]).
As incursões antropológicas realizadas entre 2018 e 2023, em atividades de
coletivos afro-paulistanos cuja luta pela memória afro espraia-se pela cidade,
revelaram a existência de resistência negra na atualidade. Buscam conhecer as
especificidades do povoamento negro da capital paulista desde o século XVI até
o século XIX. Os coletivos aspiram compreender as reais origens étnicas e não
se contentam em ter seus ascendentes identificados com locais que serviram de
cativeiros da escravidão.
O artigo é parte desta busca, destas aspirações. Ao reler Bastide e Fernan-
des, almejou dar os primeiros passos numa pesquisa que exigirá muito folego
e que não se esgota nesta escrita. No entanto, o objetivo foi provocar o debate
científico em torno da presença de africanos na São Paulo Colonial. O debate foi
instigado.
Quiçá, novas pesquisas venham preencher as lacunas desta escrita.
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O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO FEMININA
NO CONTEXTO DO CONFINAMENTO COMPULSÓRIO
THE COLÔNIA DE ITAPUÃ HOSPITAL AND THE PROCESSES OF FEMALE
SUBJECTIVIZATION IN THE CONTEXT OF COMPULSORY CONFINEMENT
https://doi.org/
10.46401/ardh.2024.v16.20370
Rafaela Limberger
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
https://orcid.org/0000-0002-2850-824X
rafaelalimberger@edu.unisinos.br
Camilo Darsie
Universidade de Santa Cruz do Sul
https://orcid.org/0000-0003-4696-000X
camilodarsie@unisc.br
Recebido em 23 de abril 2024
Aprovado em 10 de junho de 2024
RESUMO:
O estudo discute processos de
subjetivação vividos por mulheres que foram
internadas compulsoriamente no Hospital
Colônia de Itapuã, o primeiro a receber pacientes
com hanseníase no Rio Grande do Sul - Brasil.
Diante disso, tensiona os modos pelos quais
foram educadas para serem um determinado
tipo de mulher considerado ideal no contexto
deste ambiente. A investigação foi feita a partir
de um documentário e um website, de 2012,
baseada em uma perspectiva qualitativa, a
partir de depoimentos, orientada por referencial
teórico foucaultiano. Observou-se que as ex-
pacientes constituíram-se enquanto parte do
lugar que viveram/vivem por anos. Além disso,
foram educadas na direção de serem boas
esposas, contudo, jamais mães, visto que eram
proibidas de criarem os filhos. Conclui-se que
essas mulheres foram moldadas pelo ambiente
hospitalar, mas também demonstraram
resistências.
Palavras-chave:
Hospital Colônia de
Itapuã; Relações de Gênero; Relações de
poder; Subjetivação Feminina.
ABSTRACT:
The study discusses processes
of subjectivation experienced by women who
were compulsorily admitted to the Hospital
Colônia de Itapuã, the first to receive patients
with leprosy in Rio Grande do Sul - Brazil.
In view of this, it puts tension in the ways
in which they were educated to be a certain
type of woman considered ideal in the context
of this environment. The investigation was
carried out based on a documentary and a
website, from 2012, based on a qualitative
perspective, based on testimonies, guided by
a Foucauldian theoretical framework. It was
observed that the former patients constituted
themselves as part of the place they lived/live
for years. Furthermore, they were educated to
be good wives, but never mothers, as they were
prohibited from raising children. It is concluded
that these women were shaped by the hospital
environment, but also demonstrated resistance.
Key words:
Colônia de Itapuã Hospital;
Gender Relations; Power Relations; Female
Subjectivization.
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Introdução
O Hospital Colônia de Itapuã (HCI) foi inaugurado na década de 1940, em
Viamão, cidade vizinha à capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Trata-se de
uma estrutura clínica organizada para simular um pequeno município, localizada
a, aproximadamente, 48 km dos centros urbanos mais próximos. Tal formato se
deu em função da necessidade de isolamento de seus antigos pacientes e da in-
tenção de oferecer modos de vida parecidos com os que existiam para além de
seus muros.
De acordo com Fontoura, Barcelos e Borges (2003), esses hospitais surgi-
ram no Brasil no início do século XX, quando grupos beneficentes arrecadavam
recursos para a construção de instalações de cuidado permanente para pessoas
empobrecidas que viviam com hanseníase - ou lepra - em áreas periféricas ou ru-
rais. O poder federal passou a atentar contra a doença durante a Era Vargas, por
meio do decreto nº 1.473, de 1937, que declarava de utilidade pública a Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra.
O documento facilitou acordos e parcerias entre as instituições beneficentes
e o Departamento Nacional de Saúde. “Assim, as associações que buscavam
estabelecer hospitais-colônias através de campanhas de arrecadação de
recursos passaram a contar com verbas estaduais e federais para a realização
dos projetos”. Em 1944, “o decreto nº 15.484 aprovou o Regimento do Serviço
Nacional de Lepra do Departamento Nacional de Saúde” que definiu as atribuições
do serviço em assuntos relativos ao combate à hanseníase, incluindo-se aí os
hospitais-colônias (FONTOURA, BARCELOS, BORGES, 2003, p. 399).
Após o enfrentamento de dificuldades emergentes dos modos como a doença
era compreendida pela sociedade e de tentativas associadas ao estabelecimento
de uma área considerada segura para a construção do Hospital, optou-se por
um terreno em Itapuã - distrito de Viamão - nas margens da Lagoa Negra. Para
o seu funcionamento, “sem uma estrutura anterior que permitisse a colocação
de quadros de pessoal especializado para atuar em novas instituições públicas
[...] o governo estadual recorreu ao auxílio de entidades religiosas” (FONTOURA,
BARCELOS, BORGES, 2003, p. 401).
Assim, inicialmente, o HCI contava com a força de trabalho das Irmãs Fran-
ciscanas de Penitência e Caridade Cristã, as quais residiam no local e ajudavam
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no tratamento de pacientes, na manutenção dos ambientes e na fiscalização das
regras institucionais. As vidas dos pacientes eram constantemente controladas
e todas as suas atividades demandavam autorização dos administradores. Alguns
trabalhavam em serviços associados à manutenção da Instituição, enquanto ou-
tros apenas passavam os dias à mercê das regras e tratamentos estipulados.
Neste contexto, os internos eram separados por gênero (homens e mulheres) e
os grupos podiam se encontrar, quando solteiros ou solteiras, apenas nos perío-
dos e local de refeições, na rua e durante alguns eventos. Contudo, casamentos
e relacionamentos amorosos eram permitidos, desde que aprovados pelo diretor
da instituição, o que oportunizou a constituição de histórias afetivas e formação
de núcleos familiares.
Diante dessa dinâmica, o presente artigo problematiza, por meio de refe-
rencial teórico de inspiração foucaultiana, alguns dos processos de subjetivação
vividos por mulheres que foram internadas no HCI e que ainda vivem, enquanto
moradoras, em suas instalações. O foco da investigação procurou entender como
essas mulheres eram educadas como tais, diante do diagnóstico da doença em
um ambiente marcado pelo confinamento compulsório e relações de gênero de
uma determinada época.
Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, com metodologia de
análise documental baseada em depoimentos registrados em um documentá-
rio digital e em um
website
multimídia. Cellard (2008) aponta que a compreensão
do que são fontes históricas e documentos de análise alterou-se no contexto da
elaboração de pesquisas que envolvem experiências vividas. É nessa perspec-
tiva que “tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é
considerado como documento” (p. 296), inclusive os de natureza cinematográfica
e iconográfica, desde que problematizados pelos pesquisadores. Segundo Luca
(2021) um documento torna-se fonte de pesquisa através de seus pesquisadores
e essa escolha não é mero acaso, visto que possui “vínculos com os desafios do
seu próprio tempo” (p.45). Este é o caso da presente pesquisa, por se tratar de
uma instituição com características específicas e estatal.
Desse modo, foi utilizado o documentário
A Cidade
(2012), dirigido e pro-
duzido pela cineasta gaúcha Liliana Sulzbach. Nele é mostrado o cotidiano dos,
até então, moradores da estrutura que compunha o HCI e que hoje é organiza-
da enquanto uma vila residencial em processo de desativação, já que, no início
de 2024, teve seus últimos moradores removidos. Por meio de depoimentos, um
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grupo de idosos tornam públicas algumas de suas histórias de vida no contexto
da instituição, permitindo observar os modos como eram atravessados por dis-
cursos que envolveram suas existências em situação de confinamento e de pos
-
sível adoecimento. Além disso, articulou-se à análise o material complementar
do
website
1
A Cidade Inventada
, onde se encontra disponível o documentário. Sua
interface de navegação é interativa, permitindo que internautas visitem diferen-
tes ambientes que compõem a estrutura do antigo hospital, bem como tenham
acesso a fontes complementares como fotografias, documentos institucionais e
outros depoimentos.
A escolha por analisar um projeto transmídia pautou-se, por um lado, na di-
ficuldade de acesso ao HCI, que só pode ser feito através de autorização do setor
de pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul e, por ou-
tro, na possibilidade de problematizar histórias que são postas em circulação por
meio das atuais tecnologias de informação e arte. O uso do método qualitativo,
através da análise documental com foco nas falas dos antigos pacientes, tem
como intenção explicar os modos como os acontecimentos ocorreram dentro do
Hospital, por meio das formas de ver dos antigos pacientes, buscando tensionar
as maneiras como as internas foram educadas para serem “mulheres” de acordo
com as normas da instituição.
Desse modo, primeiramente, foi realizada a transcrição dos depoimentos do
cotidiano das mulheres participantes do documentário e
website
, bem como de
alguns homens. Isso tornou possível pensar sobre a relação entre esses sujeitos
e o recorte espacial vivido por eles. Após, as transcrições foram separadas em
eixos temáticos que oportunizaram tensionamentos sobre as relações de gêne-
ro e subjetivação, buscando compreender como ocorriam esses processos. His-
toricamente, os movimentos de “tornar-se” e “ser” mulher são perpassados por
questões sociais e relações de poder que também se encontravam presentes
1 O documentário
A cidade
, e o website foram produzidos no ano de 2012. Possui roteiro, produção e
direção de
Liliana Sulzbach
, fotografia de Francisco Alemão Ribeiro, montagem de Angela K. Pires,
som direto de Cléber Neutzling, direção de produção Josie Demeneghi e Leilanie Silva, música de
Carlos Badia, edição e mixagem de som kiko Ferraz Studios, finalização de imagem de Luis Otávio
Feldens e empresa produtora Tempo Porto Alegre. Além do documentário que foi exibido em diversos
festivais de cinema, o projeto conta com um DVD com material complementar e um website com o
título A
cidade inventada
, no qual é possível fazer uma visita ao local do hospital de forma interativa.
Trata-se de um projeto jornalístico que nasceu pela vontade da diretora em documentar o cotidiano
dos moradores na época e igualmente para questionar “a representação do real” na instituição.
http://
www.acidadeinventada.com.br/#presents
.
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nas práticas hospitalares.
A seguir, portanto, são apresentadas cinco seções: 1) A hanseníase e o
encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã, que contextualiza a doença
e os processos de encaminhamento para o confinamento compulsório; 2) A
docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã que discute os processos de
disciplinamento sob confinamento e tensiona a produção dos sujeitos enquanto
parte do ambientes vivido; 3) Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas
não mães
,
focada na discussão sobre os processos de subjetivação feminina no
HCI; 4) Subjetivação, Resistências e Reexistências que apresenta pequenos, mas
relevantes movimentos de resistência às normas do hospital; 5) Considerações
finais, onde encerra-se o argumento.
A hanseníase e o encaminhamento ao Hospital Colônia de Itapuã
A hanseníase
2
é uma doença infectocontagiosa e suas manifestações ocor-
rem principalmente na pele, por meio da proliferação de lesões e perda da sen-
sibilidade que resultam da predileção do
Mycobacterium leprae
. Ela agride as cé-
lulas cutâneas e nervosas periféricas, além de ter potencial para atingir órgãos
internos do corpo humano e causar deformações permanentes da pele (BRASIL,
2024).
Os primeiros casos no Brasil foram registrados em 1600, no Rio de Janeiro,
e logo se espalharam para outras regiões. No sul do país, onde se localiza o HCI,
foram identificados casos da doença em imigrantes portugueses, espanhóis,
franceses e russos. Contudo, foi a chegada e permanência significativas de imi
-
grantes alemães e italianos que pode ser apontada como um dos motivos para os
primeiros focos da enfermidade no Rio Grande do Sul (EIDT, 2004).
É importante destacar que existem relatos sobre a doença desde a
antiguidade, pois como Eidt (2004) refere, há registros de casos de 4.300 anos
antes de Cristo. Ainda, é possível identificar registros da “lepra” e dos “leprosos”
na bíblia, como ocorre na passagem “Impuro! Impuro! Enquanto tiver a doença
será impuro” (BÍBLIA, lev.13:45-46). Diante disso, foi a partir do discurso religioso
2 A lei n°9010/95 muda a nomenclatura da doença no Brasil para Hanseníase, não sendo mais ade-
quado o termo “lepra”. Atualmente o tratamento é feito no Sistema Único de Saúde, sem necessidade
de internação. Ver mais em:
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/h/hanseniase/
tratamento
.
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da igreja católica que, inicialmente, se estabeleceram regras sociais relaciona-
das à doença, sustentadas por uma lógica de pureza ou impureza moral.
Desse modo, o entendimento sobre a hanseníase foi fortemente construído
dentro de um imaginário fantasioso e religioso. Segundo Sontag (1984) qualquer
doença cujas causas e tratamentos sejam desconhecidos é carregada de signi-
ficação, o que corrobora o estigma a ela imposto. Partindo disso, passaram a ser
criadas instituições que buscavam manter afastados os doentes da sociedade
considerada sadia - ou pura.
Essas instituições representam o que Goffman (2019) denomina como insti-
tuições totais
,
as quais funcionam com o fechamento de determinados sujeitos
sob uma ótica administrativa. Para além do fechamento, o autor refere que tais
doentes eram atravessados pelo estigma associado ao adoecimento, especial-
mente pelas marcas das doenças em seus corpos. Goffman (2008) diz que o con-
ceito de estigma emergiu da cultura grega, sendo utilizado para designar alguém
com marcas corporais, o que permaneceu, posteriormente, na era cristã, espe-
cialmente associado aos casos de hanseníase.
Neste contexto, diante de discussões estabelecidas em nível internacional,
e das manifestações da doença em território brasileiro, definiu-se que o isola
-
mento compulsório seria a melhor maneira de controlar o surgimento de novos
casos. Emergiu, portanto, a necessidade de criação e construção de instituições
baseadas em hospitais europeus que simulavam cidades em menor escala, nas
quais viviam pessoas acometidas pela doença. O Brasil deu início à construção
de aproximadamente 30 instituições de isolamento, a partir da década de 1930
(BORGES; SERRES, 2012).
Borges e Serres (2012) referem que no Rio Grande do Sul, o HCI foi a insti-
tuição que representou tal modelo de estrutura de internação, sendo o último
hospital a ser inaugurado no país, em 11 de maio de 1940, cercado por uma grande
área de mata, distante do convívio social. A instituição contava com moeda pró-
pria, escola, igreja, espaço de lazer e uma espécie de cadeia para os pacientes
que tentavam fugir do local.
Pessoas que viviam com hanseníase eram diagnosticadas pelo Serviço de
Profilaxia da Lepra e, posteriormente, encaminhadas ao HCI. Eram separados
entre homens e mulheres e esses grupos se encontravam apenas nos espaços
destinados às refeições, na rua e durante alguns eventos organizados pelas ir-
mãs franciscanas. Era permitido que se casassem, porém as crianças que nas-
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ciam no Hospital eram encaminhadas para o preventório Amparo Santa Cruz, na
cidade de Porto Alegre, já que era proibida a permanência de crianças saudáveis
no ambiente hospitalar. Construídos em 1940, os chamados preventórios eram
locais especiais para crianças com certa disposição para determinadas doenças
ou para filhos de portadores de hanseníase ou tuberculose, longe dos pais, a fim
de evitar contágios e infecções.
Eidt (2004) explica que a partir de 1960, a doença passou a ser tratada de
forma ambulatorial devido à descoberta da sulfona, medicamento eficaz para a
sua cura, não sendo mais necessária, portanto, a internação compulsória dos
pacientes. Porém, alguns dos pacientes que já haviam criado vínculos de afeti-
vidade com o local e, em muitos casos, perdido o contato com suas famílias ou
enfrentando medos relacionados ao contato com pessoas de fora, resolveram
permanecer em suas instalações. Por isso, foi concedido o direito de ocuparem
as acomodações do HCI permanentemente.
Se em um primeiro momento, abrigou pessoas que viviam com hansenía-
se, posteriormente, a partir da década de 1970, passou a receber pacientes que
necessitavam de tratamentos relacionados a transtornos mentais, conforme as
práticas e diagnósticos correntes à época. Segundo Medeiros e Serres (2020) no
ano de 1972 além dos hansenianos o HCI passou a receber pacientes do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, localizado na cidade de Porto Alegre - RS. O estado, com
o intuito de aproveitar o espaço, transferiu alguns pacientes considerados mais
“calmos” para o HCI. Criou-se um centro de tratamento agrícola no local, mas,
isso durou até meados do início da década de 1980. Mesmo não contando mais
com desenvolvimento estrutural, o HCI continuou ativo, transformando-se, gra-
dativamente, no lar dos antigos pacientes que ainda permaneceram vivos.
Diante dessas questões, observa-se que um dos principais fatores relacio-
nados ao confinamento dos pacientes relaciona-se com dinâmicas de circulação
e de relação com o espaço. Tanto no caso dos hansenianos quanto dos internos
por questões de saúde mental, o confinamento produziu importantes efeitos so
-
bre os sujeitos por meio de suas relações com o espaço.
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A docilização dos corpos no Hospital Colônia de Itapuã
Os leprosários ou hospitais colônia tinham formato de pequenas cidades di-
vididas em três zonas: 1) sadia; 2) intermediária – onde moravam funcionários e
se desempenhavam atividades administrativas; 3) doente – para os pacientes.
A estrutura contava com áreas de lazer, igrejas, prefeitura, cadeia, cemitério,
alojamentos, refeitórios, enfim, todos os ambientes considerados necessários
para dar conta de vidas humanas desde o nascimento até a morte (ANDRES; MI-
CHELETTI, 2020).
No HCI, o refeitório era o local em que eram promovidos encontros cotidia-
nos entre pacientes, em função da obrigatoriedade de as refeições serem feitas
em seu interior. Conforme relata uma de suas antigas pacientes, “aquele refei-
tório lá era cheinho. Aquelas mesas compridas eram de ponta a ponta cheias de
gente. ‘Tudo faziam’ a refeição lá. Porque naquele tempo a gente não fazia nada
no quarto. Não deixavam fazer. Era tudo no refeitório”
3
.
O local foi um dos únicos ambientes do HCI em que homens e mulheres po-
diam desempenhar atividades no mesmo horário. Contudo, entendia-se que era
preciso que se mantivessem afastados, mesmo quando estabeleciam algum vín-
culo afetivo. Ao se colocarem no refeitório, nos horários das refeições, era pre-
ciso que respeitassem a divisão entre a ala masculina e a ala feminina. Segundo
Eva
4
,
Não podia ter gato, nem cachorro. E nem pessoas ‘amigadas’. Pessoas que tinham as-
sim às vezes... vinham pra cá e ficava a mulher lá, né. E aqui se arrumava outro parceiro,
abandonado pela família, né. E vice-versa. Tanto a mulher como o homem, né. Quando
eles vinham no refeitório, era cada um pra um lado.
A praça do Hospital Colônia de Itapuã era outro ambiente em que ocorriam
encontros sociais, entre homens e mulheres. Mais uma vez, os encontros se-
guiam rígidas regras de convivência impostas pela instituição. Os pacientes se
encontravam constantemente monitorados pelos guardas do local e pelas irmãs
franciscanas. Seguindo as mesmas regras do refeitório, mesmo em um ambiente
ao ar livre e público, como a praça, homens e mulheres que viessem a namorar,
3 Através do áudio disponível no
website
não foi possível identificar de qual paciente é este relato.
4 Eva, paciente residente no hospital desde 1959.
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ao se encontrarem na Avenida Getúlio Vargas – onde ficava a praça –, durante
a semana, ficavam separados pelo canteiro, conforme indica o seguinte depoi
-
mento: “Tinha essa avenida aqui, a avenida Getúlio Vargas, o rapaz era do lado de
cá e a namorada do lado de lá do canteiro. Tinha sempre o canteiro no meio. Era
severo mesmo. Muito severo”.
Os casais do hospital podiam se encontrar aos sábados, na praça, sendo
permitido sentarem-se em alguns bancos até o final da tarde. Após, era preciso
que todos voltassem aos seus pavilhões. Conforme conta Eva,
[...] entre o pavilhão 12... 12 e 13. Nós não podia cruzar, porque do lado de cá moravam
os rapazes, né. Então as irmãs não gostavam de a gente passar ali. Os meninos mexiam
com as gurias e ... as freiras eram muito “enjoadas” nessa coisa. Porque pra namorar
aqui tinha que primeiro assim, ó: O rapaz ia lá no diretor pedir se podia namorar fulana
de tal. E a moça, tinha que pedir pra Madre. “Madre tem um rapaz...Posso namorar, ou
não.” Ia ver, se tinha condições, né.
Além dos espaços de socialização, dentro da estrutura do hospital havia um
pavilhão de diversões chamado de “Cassino”. Esse lugar era destinado ao lazer
dos pacientes. Ali eles podiam ver a projeção de filmes, noticiários, peças de
teatro encenadas pelos próprios internos, bailes e festas. Esse pavilhão permitia
aos pacientes alguns momentos de lazer. Contudo, conforme ocorria em outros
momentos, era necessário que tudo fosse feito sob o olhar atento das irmãs fran-
ciscanas. Os pacientes do HCI eram constantemente vigiados para que seguis-
sem as regras de convivência, instituindo-se assim, uma verdadeira instituição
de sequestro.
Conforme apresentado no documentário, o pavilhão permaneceu sendo uti-
lizado para eventos de lazer, como a apresentação de bandas escolares. Nestas
ocasiões, pelo que pode ser compreendido, as vidas se organizam em torno das
atividades que são programadas, mesmo que simples, pois representam a possi-
bilidade de quebra da rotina e convívio entre moradores e visitantes. Isso é des-
tacado por meio da produção documental, pois seus primeiros minutos parecem
demarcar a constância de rotinas diárias monótonas que é quebrada pela pers-
pectiva de algo novo, ou diferente daquilo que se tornou cotidiano.
A preparação para a “apresentação da banda” é marcada por cenas que de-
monstram certos rituais de organização pessoal para o “novo” e ansiedade, ou
seja, expectativa relacionada à participação em uma atividade que parece de-
safiar algumas das normas que outrora moldaram aqueles sujeitos. Mesmo que
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simples, a quebra das normas é marcada pela presença de pessoas externas,
sem medo de serem infectadas ou prejudicadas pelos moradores.
Conforme aponta Foucault (2004), essas ações caracterizam-se por meio de
relações de poder disciplinadoras, desempenhadas a partir de práticas de vigi-
lância e cercamento de ambientes. A vigilância promove o constrangimento dos
sujeitos às boas maneiras: “o condenado à boa conduta, o louco à calma, o ope-
rário ao trabalho, o aluno à aplicação e o doente à observação das ordens, deixa
de ser necessário o uso da violência” (CANDIOTTO, 2012. p. 21-22).
Ao serem confinados em ambientes propícios à observação, os sujeitos têm
seus comportamentos moldados pela visibilidade, deste modo, o poder se torna
múltiplo, automático e anônimo. Trata-se de uma dinâmica que mesmo silencio-
sa, se torna presente em todos os aspectos da vida, pois o poder se encontra nas
múltiplas relações e múltiplos momentos e lugares. “Ele pode, ainda, ser pensado
como um poder do olhar calculado, porquanto a disciplina se faz funcionar por
seus próprios mecanismos. Segue-se que a vigilância hierárquica é eminente-
mente uma estratégia de distribuição do olhar” (CANDIOTTO, 2012, p. 22).
Com isso, são utilizadas ferramentas sutis para moldar os sujeitos quanto
a seus comportamentos, desejos e experiências. “A disciplina fabrica assim cor-
pos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do
corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2004, p. 119). A disciplina, conforme
mencionado, às vezes exige a cerca, ou seja, os pacientes do hospital estavam
conforme aponta o autor, cercados e confinados.
Assim, mesmo considerando que, nos dias atuais não sejam mais controlados
pelas normas hospitalares ou pelas cercas que os confinaram em outro momento,
suas maneiras de portarem-se permanecem marcadas por elas. É possível pensar
que a própria câmera que os filmam ainda representa um mecanismo de controle,
que conduz a determinadas falas e posturas relacionadas ao lugar do qual fazem
e se sentem parte.
O fato de os pacientes terem estado reclusos em um determinado ambien-
te contribuiu para que fossem disciplinados, docilizados, pois com o passar dos
anos, modos de vida foram construídos no contexto do isolamento compulsó-
rio, fazendo com que o passassem a avaliar suas situações a partir daquilo que
conheciam enquanto realidade. A internação compulsória, por meio do discurso
atuante no HCI, era compreendida como positiva e, até mesmo, prazerosa. As-
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sim, dentro de determinado espaço foi mais fácil fazer com que uma determina-
da maneira de vida fosse considerada adequada a todos.
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda
mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multipli-
cá-las e utilizá-las num todo (FOUCAULT, 2004, p. 143).
Neste contexto, é possível pensar que tais sujeitos foram forjados a partir
do espaço. Destaca-se que tornaram-se responsabilidade do poder público, es-
pecialmente por terem sido internados compulsoriamente, mas, principalmente,
por sentirem-se excluídos das relações que acontecem no exterior do ambiente
em que passaram grande parte de suas vidas. Sobre isso, é importante refletir
sobre o fato de que os sujeitos são subjetivados por meio de dinâmicas que en-
volvem, também, as transformações e significações espaciais. Nesse sentido,
não podem ser considerados, apenas, indivíduos que habitaram/habitam suas
instalações. Eles fazem parte dos significados atribuídos à ela por meio das es
-
pacialidades que os conformam em quem são e que balizam suas falas e modos
de entender o mundo.
Nesta perspectiva, refletir sobre essas pessoas implica refletir sobre os
processos que as envolveram em conjunto com o recorte espacial - HCI - que
ocuparam e ocupam até os dias atuais (DARSIE, 2024; WEBER e DARSIE, 2019).
É a partir desses processos – múltiplos – que os sujeitos são produzidos e reproduzidos
por dinâmicas de subjetivação ocasionadas, conforme argumentamos, pelas recon-
figurações espaciais que eles mesmos operacionalizam. Trata-se, no limite, de pro
-
cessos indissociáveis que, ao mesmo tempo em que subjetivam sujeitos, transformam
estruturas espaciais que não se desvinculam das transformações que os envolvem,
individual e coletivamente (SANTOS; DARSIE, 2024, p. 229).
Portanto, se atualmente usufruem do direito à residência em casas que, an-
tigamente, abrigavam dezenas de “pacientes”, essa lógica pauta-se nas dificul
-
dades que foram estabelecidas em relação aos ambientes externos - medos e
evitação de situações vexatórias - e os vínculos que criaram com o lugar e seus
outros moradores. Ainda, orientam-se pelas forma.
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Modos de ser mulher no HCI: invisíveis, esposas, mas não mães.
Scott (1995) aponta que existem construções sociais ao longo da história que
definem as diferenças sociais entre homens e mulheres, construídas em cima de
um corpo sexuado. Assim o conceito de gênero torna-se importante por separar
as questões relacionadas às práticas sexuais das que são implicadas nos proces-
sos de subjetivação das identidades masculinas e femininas, ao longo do tempo.
o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” - a criação
inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres.
Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta definição, uma cate
-
goria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre
sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece
um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos
homens (SCOTT, 1995, p. 75).
Partindo da mesma perspectiva, Perrot (1992) refere que as mulheres fre-
quentemente aparecem como invisíveis, pois estão atreladas às tarefas domés-
ticas e à vida privada, enquanto os homens aparecem como protagonistas no
espaço público. “A distinção entre público e privado implica uma segregação se-
xual crescente no espaço. Uma das suas chaves talvez seja a definição de espaço
público como espaço político reservado aos homens” (PERROT, 1992, p. 218). Fica
estabelecido um discurso sexuado referente aos ofícios de homens e mulheres.
O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. Cada sexo tem
sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predetermina-
dos, até então seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios que faz da
linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis (PERROT, 1992, p. 178).
As mulheres no HCI, a começar pelas irmãs franciscanas, por exemplo, apa-
recem associadas a tarefas relativas ao cuidado. Eram elas que tomavam con-
ta dos pacientes em suas demandas clínicas e de manutenção e organização do
ambiente em que viviam. Ainda, conforme pode ser observado por meio das his-
tórias contadas, tanto no documentário quanto no
website
, as pacientes eram
tidas como ameaças à ordem - por serem mulheres - e, portanto, precisavam ser
contidas e separadas dos homens.
É contado que as mulheres ocupavam cargos de auxiliares de serviços
gerais, em que havia pouco contato com outras pessoas, enquanto os homens
assumiam as tarefas consideradas públicas. As pacientes mulheres, por exemplo,
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ajudavam na limpeza do hospital apenas quando os ambientes estavam vazios.
Isso corrobora com Scott (1995) quando argumenta que através do conceito de
“gênero” ressaltam-se as diferenças sociais existentes entre homens e mulheres,
baseadas no sexo.
Analisar aspectos referente às mulheres é necessariamente analisar aspec-
tos referentes aos homens, pois um está relacionado ao outro, “o mundo das mu-
lheres faz parte do mundo dos homens, ele é criado nesse e por esse mundo mas-
culino” (SCOTT, 1995, p. 75). O uso do termo destaca todo um sistema de relação
que pode incluir o sexo, mas não está abertamente ligado a ele e nem determina
a sexualidade do indivíduo.
Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter
-
-relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição
repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos
e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder (SCOTT,
1995, p. 86).
Através dos apontamentos de Scott (1995), é possível compreender como
ocorriam as relações de poder na instituição e de que modo estavam emaranha-
das às normas que influenciavam os processos de subjetivação das pacientes
mulheres. Nas palavras de Eva, ao contar sobre como conheceu seu esposo Dar-
cy, fica clara a influência que a irmã exercia sobre os pacientes: “Vai lá buscar
aquele rapaz, que aquele lá é o teu”.
Destaca-se a autoridade da religiosa em escolher o marido para a pacien-
te. Entendia-se que era necessário que as mulheres encontrassem maridos HCI,
pois deste modo não estariam soltas e oferecendo perigo à ordem da instituição.
Era naturalizada a ideia de que a figura da mulher devia estar atrelada ao matri
-
mônio. Cabia também às mulheres se aproximarem dos homens, dando-lhes a
atender que se encontravam abertas para um futuro relacionamento. Destaca-
-se, contudo, que mesmo as irmãs e o caráter religioso ter forte influência no
HCI, tudo igualmente passava pela administração da instituição, incluindo a au-
torização para os casamentos.
As irmãs escolhiam pacientes considerados “fisicamente perfeitos” para
trabalharem no refeitório, privilegiando pacientes que não eram atingidos com
a forma mais severa da hanseníase. Assim, surgiam também aproximações ma-
trimoniais entre pessoas consideradas mais saudáveis que trabalhavam na co-
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zinha e no refeitório. Eva, que fisicamente não era tão marcada pelas feridas e
cicatrizes da doença, foi estimulada a casar com outro paciente que também não
as tinha. A partir destes encontros, os casamentos eram oficializados no próprio
hospital.
Uma das pacientes, cuja voz não possibilitou a identificação de seu nome,
descreve o dia do seu casamento:
O dia que eu casei era de manhã cedo. Aprontaram a noiva, né. Primeiro o escrivão
do Itapuã vem aqui. Aqui no consultório onde tem consulta, né. E lá nós ‘casemo’. E
saímos de lá reto pra igreja. E dá igreja ‘saímo’ então caminhando. Até lá na chácara,
os noivos. E a orquestra atrás de nós. Era bonito até.
Conforme a descrição, o escrivão realizava a formalização da união civil den-
tro do mesmo consultório em que os pacientes recebiam atendimento médico.
Após formalizada esta questão, eram encaminhados para a igreja para a oficia
-
lização de caráter religioso e por fim havia uma confraternização para os noivos
e amigos no hospital. Os pacientes usavam trajes típicos da união, mulheres de
vestido branco e homens de roupa social.
As mulheres no HCI constituíram-se por meio das regras de convivência do
hospital, pela autoridade das irmãs franciscanas e pelo ambiente. Eram subjeti-
vadas nos procedimentos de manutenção da vida privada, sendo dóceis, úteis e
contidas. O casamento no hospital aparecia como uma estratégia sutil de contro-
lar seus corpos, pois ao se casarem passavam a ser controladas. Foucault (2015),
na perspectiva de controle sexual, apresenta algumas análises que aproximam o
sexo às relações de poder. Ele diz que o sexo é usado para controlar os sujeitos
através da relação negativa, da instância da regra, do ciclo da interdição, da lógi-
ca da censura e da unidade do dispositivo.
Conforme o autor, na relação negativa o poder diz não ao sexo, pois a rela-
ção que se estabelece reforça a “rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda,
mascaramento e ocultação” (FOUCAULT, 2015, p. 91). As relações de poder não
podem exercer determinado poder referente ao sexo e ao prazer, apenas a nega-
ção e de maneira geral, colocando-se limites. A instância da regra se coloca no
sentido em que o poder é o que dita as regras referentes ao sexo.
[...] que o poder age pronunciando a regra: o domínio do poder sobre o sexo seria efe-
tuado através da linguagem, ou melhor, por um ato de discurso que criaria, pelo próprio
fato de se enunciar, um estado de direito. Ele fala e faz-se a regra. A forma pura do po-
der se encontraria na função do legislador; e seu modo de ação com respeito ao sexo
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seria jurídico-discursivo (FOUCAULT, 2015, p. 91).
Bem como a instância da regra, o ciclo da interdição funciona através da
proibição, o não faça para não deixar de existir. “Tua existência só será mantida à
custa da tua anulação.” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Assim o poder resulta na opres-
são do sexo por meio de uma interdição que confia entre o existir e o não existir.
A lógica da censura supõe “que essa interdição tome três formas: afirmar que não
é permitido, impedir que se diga, negar que exista” (FOUCAULT, 2015, p. 92). Já na
unidade do dispositivo, o poder sobre o sexo acontece do mesmo modo em todas
as instâncias:
Em fase de um poder, que é lei o sujeito que é constituído como sujeito – que é “sujei-
tado” – e aquele que obedece. À homogeneidade formar do poder ao longo de todas
essas instâncias, corresponderia, naquele que o poder coage – quer se trate do súdito
ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da criança ante os pais, do discípulo ante o
mestre – a forma geral da submissão. Poder legislador, de um lado, e sujeito obediente
de outro (FOUCAULT, 2015, p. 93).
Ao analisar as abordagens das relações de poder sobre o sexo, observa-se
como esses aspectos eram presentes no hospital: a negação em relação ao sexo,
para que os pacientes se controlassem; a separação constante entre homens e
mulheres em locais de convívio geral; a censura dos corpos, o não tocar, man-
ter-se afastado e o casamento como forma de controle do sexo e também como
forma de diminuir o desejo de fugir da instituição. O casamento era apenas um
dispositivo de controle, nem mesmo considerado uma instituição de família, pois
os pacientes que tivessem filhos dentro do hospital não poderiam ficar com eles.
As crianças eram encaminhadas aos preventórios. Em função de não haver in-
formações suficientes sobre o contágio da doença na época, era obrigatório a
separação dos filhos “saudáveis” de seus pais logo após o seu nascimento, sendo
desencorajado o contato.
Nair
5
, mais uma antiga paciente que relata sua história, ao falar sobre seu
casamento conta: “vai fazer 46 anos que nós estamos casados, dia 13 de abril do
ano que vem. Daí, eu tive as filhas que foram tiradas, né... não podiam ficar junto.
Eu sofri bastante assim, né. Mas tá, tá tudo bem, né. São coisas que passam com
o tempo”. Sua história confirma que ela viveu 46 anos casada sem ter tido o direi
-
to de ser mãe. Pode-se observar o quanto as irmãs franciscanas influenciaram a
5 Paciente Nair, residente desde 1956.
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vida dos pacientes e, principalmente, das mulheres no que diz respeito aos seus
comportamentos.
O discurso é partido do sujeito detentor do poder dentro da instituição, in-
terferindo assim no processo de subjetivação das pacientes. O discurso se arti-
cula ao poder e ao saber.
Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder,
nem oposta a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso
pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, esco-
ra, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso vei-
cula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo.
Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições,
mas também afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscu-
ras (FOUCAULT, 2015, p. 110).
O discurso vai além da linguagem, já que age como abertura para os pro-
cessos de subjetivação. Também está relacionado ao que os sujeitos pensam
e fazem, se constituindo através da influência dos discursos. A subjetivação
é
admissível dentro de relações de poder/saber, sendo assim, os pacientes do HCI
não se constituíam à margem, pois foram produzidos enquanto parte das relações
de poder na instituição.
Sua principal asserção foi que ser um sujeito, um indivíduo socialmente reconhecível
com intenções, desejos, e ações inteligíveis, só era possível dentro das redes de po-
der/saber de uma sociedade. Na sua visão, todas as identidades eram criadas por meio
de práticas de poder e saber. As relações de poder não existem entre sujeitos com
identidades predeterminadas, mas são constitutivas dos próprios sujeitos, moldam
condutas e instigam formas de autoconsciência. Os sujeitos em relação aos quais a
rede de poder é definida não podem ser concebidos como existindo à margem dela
(OKSALA, 2011, pp. 74-75).
Desta forma, as pacientes mulheres do Hospital Colônia de Itapuã se cons-
tituíram pelas regras em torno do sexo, separação de homens e mulheres e con-
trole quanto a aproximação dos corpos. Também se constituíram influenciadas
pela ideia do casamento, como tarefa imbuída às mulheres que não poderiam ser
mães.
Subjetivação, Resistências e Reexistências
Apesar de todos os movimentos de vigilância e disciplina, observa-se por
meio de suas narrativas movimentos contrários às imposições do local e da épo-
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ca. Mesmo quando as histórias se alinham às normas do lugar, é possível observar
sinais de resistência e de reexistência, ou seja, de modos de tornarem-se mulhe-
res a partir de outros atravessamentos, outras vivências. Na história contada por
Elma
6
, por exemplo, destaca-se um posicionamento diferente daqueles apresen-
tados por outras pacientes, o qual se configura enquanto uma verdadeira resis
-
tência às normas vigentes.
Aqui era campo de concentração. Tudo fechado. Cerca, arame. Era ali. Tinha uma rua
pra ir no refeitório. Quem não era casado, quem era solteiro. Preconceito rolava aqui. A
gente... custou muito... Mas ainda...Sai ali fora tem gente que não olha pra ti. Namoro
dos nossos filhos lá fora, quando sabem que...tem um familiar aqui dentro a coisa com
-
plica. Preconceito acho que não termina.
Juraci
7
, que também reside no hospital, concorda com a fala da amiga: “Pre-
conceito tem em tudo. É com aidético, é com a cor. Com tudo. Mas ninguém pede
para nascer assim, né”. Ao comparar as narrativas anteriores com as de Elma e
Juraci, observa-se que são compostas por enunciados conflitantes, pertencen
-
tes a um mesmo discurso. Apesar dessas mulheres serem moldadas pela insti-
tuição, resistem ao modelo ao qual foram submetidas ao terem posicionamentos
diferentes daqueles impostos pelos tempos de maior atuação do hospital. A ideia
de um HCI “bom de se viver” não as comove, pelo contrário, as produz a partir das
brechas que o envolvem.
Eva ao contar como foi parar no hospital, deixa claro que sentia medo de ir
para um lugar totalmente novo e desconhecido e que acreditava que pudesse ser
morta, porém, após anos dentro do hospital, entendeu que aquele era o melhor
lugar para ela viver:
Eu tava ali em Esteio. Quando foi desconfiado da doença. Eu não me lembro bem se foi
em 1958 ou 59. Por aí, nessa data. Meu avô... nós tinha criação [de cavalo]. Era raça, né,
colono. Meu avô adotivo. E um dia eu ouvi meu avô falando lá pros rapazes. “Bah”, ele
disse, “aquele cavalo que eu comprei tá leproso, tem lepra”. Aí eles mataram o cavalo,
né. Mataram pra não alastrar. Quando eu ouvi o doutor dizer aqui que o que eu tinha era
lepra. “Bah, paguei a doença do cavalo.” Digo. “Tá, tô ralada agora. Vai sobrar pra mim...
porque se eu tenho essa doença eles vão me matar.” E me trouxeram pra cá. E mato,
e mato, não se via uma casa. Lá de vez em quando que se via uma casa. Digo: “vão me
matar bem longe”. Numa caminhoneta preta, ainda. Então tô ralada, já era. Mas não,
cheguei aqui, no paraíso. Meu eu acho que até o “velhinho” lá já me deu lucro. Ele já me
deu lucro. Eu vim pra cá pra durar só 3 meses, imagina. Tô com toda essa idade. Com 66
anos, né. E os que acharam que iam durar mais, já foram. Pra mim Itapuã é meu hotel 5
estrelas. Minha casa. Aqui eu tenho tudo que eu preciso. E tudo que me faz bem.
6 Paciente Elma, residente desde 1949.
7 Paciente Juraci, residente desde 1958.
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É possível pensar que suas lembranças trazem questões íntimas que
servem como verdades individuais e que, talvez, escondam feridas que devem
ser esquecidas. Certamente elas não fogem dos processos de subjetivação
ocasionados por sua vivência no HCI, mas parecem concorrer com outras
verdades que envolvem a situação. Ao considerar determinados relatos, pode-
se dizer que o HCI foi descrito e produzido como um verdadeiro hotel de luxo.
O enquadramento da narrativa das pacientes, com o passar dos anos de vi-
vência no hospital, se reconstruiu. Eva, por exemplo, traz detalhes riquíssimos
sobre o ambiente de vigilância do hospital, das regras e do poder das irmãs, mes-
mo assim constrói sua narrativa apontando o hospital como um bom lugar. Outro
depoimento que chama a atenção é de Valdeci
8
.
Eu cheguei aqui nesse lugar, eu tinha 16 anos. Primeiro me casei com aquele ali da ar-
vorezinha né. Aquele morreu com vinte e oito anos. Depois me casei com este aqui. Vivi
um ano e sete meses junto com ele. Não deu certo porque ele me “pauleava” muito, né.
“Se separemo”. Depois que deixei esse aqui, me casei com aquele outro, né. Aí fiquei
44 anos com aquele. “Moremo” junto. Tive oito filhos dele, e três filhos do primeiro, né.
Desse aqui eu não tive nenhum. No fim, tive um caso, não deu certo. ‘Separemo’. Fiquei
viúva, tô viúva. Não tenho mais substituto. Não quero mais, complicação. Porque é bra-
bo, né. A gente fazer loucura. Mas não era loucura, né. Era a vida [...].
Esta mulher se casou quatro vezes, mas em seu segundo casamento sofreu
agressões físicas por parte do esposo. Pode ser entendido como um ato de re-
sistência e de reexistência a decisão de Valdeci de abandonar o ex-marido em
um tempo e num espaço onde havia relações de violência e o abandono de um
homem por uma mulher não era aceitável e igualmente por se casar quatro vezes.
Contudo, a história de vida da paciente ajuda a pensar outra astúcia ao casar-se
quatro vezes. Pacientes casados tinham o direito de ter uma casinha dentro da
instituição, nos demais casos precisaria morar nos pavilhões com os demais pa-
cientes do mesmo sexo.
Outra questão que pode ser observada como ação de resistência, por parte
das pacientes, são as suas relações com os filhos que eram concebidos dentro
do hospital e separados das mães logo após o seu nascimento. Os “preventórios”,
como eram chamados, abrigaram os filhos dos casais portadores de hanseníase,
mais detidamente, os que nasceram dentro do Hospital Colônia de Itapuã. Após
o nascimento, a criança deveria ser imediatamente encaminhada ao preventório,
8 A paciente Valdeci chegou no hospital com 16 anos, sem mencionar o ano.
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sendo proibido o contato físico entre pais e filhos. Limberger (2022) traz que tais
instituições seriam responsabilizadas pela educação das crianças até a maiori-
dade caso o paciente não contasse com familiares que pudessem ficar responsá
-
veis por seus filhos. Em alguns casos, as crianças eram colocadas para adoção.
Marleci, filha de um casal de pacientes do HCI que, logo após seu nascimento, foi
enviada ao preventório e, conforme conta, não teve contato com seus pais nos
primeiros dias de nascimento, nem mesmo para ser amamentada por sua mãe.
[...] De vez em quando a gente ia fazer visitas. Era um portão enorme, um portão gran-
de. Eles ficavam de um lado, e nós, ficávamos do outro lado. Aí eu me lembro que as ir
-
mãs, muito queridas as irmãs lá do hospital. Elas diziam: “Aquela fulana lá é tua filha”. Aí
nós assim, quando a gente já tinha 7 ou 8 anos, a gente ficava olhando uma pra outra e
dizia: “Mas como é que ela vai saber, lá de onde ela está...” Porque nós estávamos todas
com uma roupinha igual. Vestidinho igual. O cabelinho, o corte de cabelo normalmente
era a mesma coisa, né. Um dia nós até chamamos a irmã. “Tia, mas como é que ele vai
saber que sou filha deles se todas estão com a mesma roupa. E o corte de cabelo é pra
-
ticamente o mesmo.” Aí ela disse assim, “Não, pode deixar que eles sabem.” Daí a gente
levantava a mãozinha, algum sinal a gente fazia. Mas eu me lembro assim, do meu pai,
mesmo de ter visto ele 4 vezes na minha vida. Foram só essas vezes. Porque o meu pai
era bastante doente. Meu pai, a lepra tinha pegado ele assim, bem. Ele ainda não tinha
ainda atingido aquela deformação nas mãos. Mas ele já tinha, assim, dificuldade de
andar. Aparecia muito. E daí quando a pessoa tá muito assim, atacada da doença, eles
não deixavam se aproximar muito. Então eu abanava, ou ele abanava. E a gente só sa-
bia, né. “Aquele lá é teu pai.” E a gente abanava e ficava nessa. E daí chegou uma época
em que houveram dificuldades para manter o orfanato e para que os filhos ficassem lá.
E daí foi que então definido pelo governo estadual, de as crianças serem adotadas por
algum parente ou pra casas de famílias. E eu me lembro assim que a gente...Tinha dias
da semana que a gente parava em fila, um do lado do outro. E daí vinham as pessoas
escolher as crianças. Os meus pais tiveram muita dificuldade de achar alguém com
quem eu ficasse. Aí no fim das contas um irmão dela disse.Aí eu nunca me esqueço. A
minha tinha era costureira. E o meu tio trabalhava também numa empresa. Aí eu lem-
bro assim que...Ele olhou, assim, pra mim,ele me olhou com um olhar tão terno, tanto
ele como ela. E disse, “Onde comem 3, comem 4. Mulher, tu bota um pouquinho mais
de água no feijão. E é com nós que ela vai ficar. Vai ser criada como nossa filha, e é aqui
que ela vai ficar. Daí eu lembro assim, no momento que me deu uma explosão de emo
-
ção. Eu disse: “Puxa vida, finalmente. Que bom.” E daí fiquei com eles. Anos mais tarde,
quando eu tinha saído já do orfanato. Eu lembro que a minha mãe resolveu... mais pra
frente assim... Ela resolveu me tirar da casa dos meus tios. E eu não aceitava de forma
alguma. E daí eu sei que no fim das contas ela acabou me levando. E me levou lá pro
hospital. Mas me levou as escondidas. As autoridades não chegaram a ver. Eu lembro
que a gente entrou escondida. Ela me puxava, me agarrando firme pela mão. E tinha
uma guia, inclusive, até muitos doentes que a gente sabe que saiam lá do hospital, eles
não saiam pelo portão da frente. Eles saiam muitas vezes escondidos. Eles não pode-
riam fazer isso, mas saiam escondidos pelo mato. Eles já tinham uma trilha de acesso
ao hospital, né. Eu era a única lá dentro. No meio daquele pessoal “tudo”. E eu lembro,
assim, que a minha mãe sempre tinha o cuidado... Eu não podia sair muito do pavilhão.
E era sempre assim: cuidando, porque eu estava irregular lá dentro. E aí eu me lembro
que todos os anos eles tinham um baile. E todos os anos eles tinham também o time
de futebol. A rainha. E existe essa foto. Está documentada, né. Onde eu fui (a rainha).
Então nunca me esqueço da data. De quando foi e o canto. Eu tinha que cantar. Assim
como o Internacional que é o meu time de coração, tem o hino deles. O Grêmio. Aí eu
também tive que cantar o hino lá pra eles. E aí eu fui eleita a rainha do clube.
“Hoje é dia
24 de julho, hoje é dia da
inauguração. Nós todos só desejamos a amizade e cooperação.
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São estes
os votos sinceros do Esporte Clube Itapuã. São estes os votos sinceros do
Es-
porte Clube Itapuã.” L
embro tão bem desse cantinho. Eu fiquei dias e dias cantando e
decorando no quarto pra cantar. E daí foi bacana. Isso foi um momento que me marcou
também. A minha estadia lá, no caso, né.
Alguns anos após, Marleci foi morar com os tios e sua mãe resolveu levá-la ao
hospital. Conforme relata, ela morou escondida, na instituição, junto de sua mãe,
por dois anos. Após a descoberta foi encaminhada a outro orfanato, mas um tem-
po depois pode voltar a conviver com os tios. De modo que, neste depoimento o
que chama a atenção é o fato da paciente levar às escondidas a filha para morar
com ela dentro do hospital, revelando de certo modo uma resistência às normas
e de igual modo uma necessidade de vínculo com a filha. Conforme Souza (2015),
na perspectiva foucaultiana, as relações de poder nos atravessam enquanto su-
jeitos, nos constituindo ora submissos, mas, também, ora resistentes:
De um modo ou de outro, o estudo do poder ou dos micropoderes, na perspectiva Fou-
caultianas, indica que o poder nos atravessa e nos constitui enquanto sujeitos, ora
submissos, ora resistentes, mas sujeitos que se reconhecem neste ou naquele lugar,
pois somos governados pelos outros e por nós mesmos e estamos totalmente inseri-
dos em uma complexa rede de poderes da qual e pela qual não podemos escapar (SOU-
ZA, 2015, pp. 177-178).
Assim, em toda relação de poder há “forçosamente” resistência. Caso não
houvesse possibilidade de certa liberdade, não seria uma trama de poder. Enten-
de-se desse modo que os processos de subjetivação das mulheres no Hospital
Colônia de Itapuã foram por vezes associado à submissão e à resistência. Mesmo
se tratando de uma instituição com características de fechamento, as pacientes
mulheres podiam exercer certa liberdade em questões específicas e até mesmo
burlar as regras.
Entendendo que as pacientes foram internadas compulsoriamente e que se
constituíram dentro da instituição sendo constantemente perpassadas pela vi-
gilância e por práticas disciplinares, ainda que sutilmente se tenham mostrado
resistente a elas. Seja quando um depoimento revela os aspectos negativos da
instituição, quando se casa mais de uma vez, ou quando escapa às regras e es-
conde a filha por dois anos na instituição.
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Considerações finais
Partindo do estudo apresentado, entendendo que as análises se deram cen-
tralmente através um material cinematográfico, que foi produzido e editado den
-
tro de um jogo de intenções e interesses, destaca-se sua potência para a escrita
da história do Hospital Colônia de Itapuã. Igualmente sua contribuição para en-
tender o modo de ser e estar dos seus pacientes no cotidiano da instituição, com
destaque aqui para as pacientes mulheres.
Desse modo, evidencia-se que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã
eram subjetivadas por meio de relações de poder que pautavam-se em verdades
associadas ao confinamento e às relações de gênero. Ao serem internadas com
-
pulsoriamente tiveram seus modos de ser moldados. A inferioridade era imputa-
da às pacientes mulheres que deviam ser reservadas ao privado e destinadas às
tarefas relacionadas à limpeza e cozinha, de modo a aparecer o menos possível,
enquanto aos homens não havia o mesmo tratamento. Além disso, eram direcio-
nadas ao casamento, para que desta forma pudessem ser controladas quanto
aos seus desejos de fugir da instituição e comportamentos sexuais. Também,
por conta disso, pode-se refletir sobre como estes corpos eram censurados e
como o sexo e o matrimônio tornou-se um dispositivo de controle dentro do hos-
pital. Entretanto, estas mulheres estavam sujeitas a atos de violência física e
emocional e de repressão.
Dentro das relações de casamento, o interesse da madre de que pacien-
tes considerados menos atingidos pela doença se casassem entre si, trata-se de
uma política eugenista. Funcionando assim, como uma espécie de seleção, pes-
soas doentes relacionam-se com outras pessoas doentes, e dentro dessa lógica
ainda se aplicavam o estímulo ao casamento entre pacientes em que a hansenía-
se fosse menos branda, e por fim, pessoas sem a doença deveriam se relacionar
com pessoas sem a doença.
Aponta-se juntamente com os conceitos foucaultianos, o conceito de gêne-
ro de Joan Scott, que deixa claro que as questões de gênero eram impostas den-
tro do hospital, havendo desigualdades entre homens e mulheres. Procurava-se
evitar o contato físico entre os pacientes, as mulheres em virtude de sua sub-
missão construída historicamente, deveriam ser sujeitos dóceis dentro do HCI.
O ideal ao sexo feminino dentro do hospital seria o casamento, que conforme as
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análises feitas, tinham o aval para “seduzir” os pacientes homens. Apesar de to-
das as regras de convivência dentro da instituição e das regras impostas a todos
os pacientes, bem como os discursos que os atingem, observa-se que, mesmo
assim, temos narrativas diferentes dentro do hospital. Mesmo quando o depoi-
mento é percebido como construído socialmente pelo lugar de convívio destes
pacientes, é possível observar sinais de resistência.
Destaca-se, desta forma, que as pacientes do Hospital Colônia de Itapuã se
constituíram dentro de processos de subjetivação do hospital, enquanto sujeitos
dóceis, e que seus discursos são produzidos de uma maneira geral de uma forma
positiva sobre o Hospital. Estas mulheres foram subjetivadas a não questionar
as regras de convivência, nem as regras de reclusão e confinamento do espaço.
Porém, como toda dinâmica de poder produz resistência, tais mulheres também
encontraram em seus movimentos de resistência modos de reexistirem.
Por fim, levando em conta que historicamente as mulheres são tidas como
sujeitos esquecidos da história, as narrativas destas pacientes salientam o quão
importante é contar essas histórias, para que se entenda determinados espaços
e suas relações de gênero, além dos sentimentos e relatos desses sujeitos.
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Karla Simone Willemann Schütz
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WALKING THE “PATHS OF THE NIGHT”: EXPLORING WOMEN’S ARCHIVES IN
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https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20095
Karla Simone Willemann Schütz
Universidade Federal de Santa Catarina
https://orcid.org/0000-0003-0177-078X
karlawschutz@gmail.com
Recebido em 23 de janeiro 2024
Aprovado em 04 de abril de 2024
RESUMO:
O presente artigo analisa a
presença de arquivos pessoais de mulheres
em duas instituições de memórias do estado
de Santa Catarina. O estudo direciona seu
olhar metodológico para as práticas adjacentes
aos procedimentos de arquivamento dessas
instituições e as dinâmicas de construção da
memória, observando ao mesmo tempo os
contextos sócio-históricos e os conteúdos
desses conjuntos documentais. Por meio dessa
abordagem, observou-se o silenciamento
da presença de documentos e arquivos de
mulheres nos instrumentos de pesquisa de
ambos arquivos, bem como, a ausência de
ferramentas que auxiliassem a localização dessa
documentação.
Palavras-chave:
Arquivos pessoais;
Arquivos de Mulheres; Instituições de
Memória; História das Mulheres.
ABSTRACT:
This article analyzes the
presence of women’s personal archives in
two memory institutions in the state of Santa
Catarina. The study directs its methodological
focus to the practices adjacent to the archiving
procedures of these institutions and the
dynamics of memory construction, while
observing the socio-historical contexts and the
contents of these documentary sets. Through
this approach, we observed the erasure of the
presence of women’s documents and files in the
research instruments of both archives, as well
as the absence of tools that would help locate
this documentation.
Key words:
Personal files; Women’s
Archives; Memory Institutions; Women’s
History.
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Karla Simone Willemann Schütz
Introdução
Em seu artigo
Tacit narratives: the meaning of Archives,
o arquivista holan-
dês Eric Ketelaar (2001) afirma haver, no interior das coleções que dão forma aos
arquivos, inúmeras narrativas que não são visíveis e que não estão concentradas
apenas nas informações que um documento carrega. Segundo ele, diversas ou-
tras histórias estão escondidas por trás dos procedimentos de tratamento que
visam tornar acessíveis os conjuntos documentais espalhados pelos mais diver-
sos locais do mundo, tais como os processos de classificação e descrição docu
-
mental. Assim sendo, pelo que nos sugere Ketelaar, pode-se depreender que o
arquivista também é um criador de narrativas.
Esse mesmo autor defende que os arquivos e os registros que guardam são
objetos passíveis de “ativações” em todas as etapas de sua vida: desde o arquivo
corrente, passando pelo arquivo intermediário e, por fim, no arquivo permanen
-
te. Mas o que seriam essas ativações? De acordo com Ketelaar, ao longo do seu
ciclo vital, o documento é ativado (ou seja, criado, processado, revisitado, inter-
rogado) por seu criador, por seus guardiões, por seus usuários em potencial, e
claro, pelo arquivista que, por meio de seus pressupostos e ferramentas, torna o
documento passível de ser acessado. “Cada interação, intervenção, interrogação
e interpretação por parte de um criador, usuário e arquivista é uma ativação do
registro. O arquivo é uma ativação infinita do re
gistro” (KETELAAR, 2001, p.137,
tradução nossa).
Ao se fazer um cruzamento entre essa perspectiva apresentada por Ketelaar,
que traz à cena o entendimento da existência de narrativas tácitas, narrativas
subjacentes aos documentos e o diagnóstico de sub-representação da mulher
nos acervos de diferentes instituições de memória, propõe-se aqui uma reflexão
sobre as “ativações” operadas por uma pesquisa que tem como objetivo identifi
-
car arquivos de mulheres espalhados por instituições catarinenses.
Inserida em um panorama atual de discussões (SIMIONI; ELEUTÉRIO, 2018)
que buscam observar as relações de gênero subjacentes também aos processos
de arquivamento de diferentes instituições de salvaguarda, a pesquisa denomi-
nada
Jogos de sombra e de luz: a presença de arquivos de mulheres em instituições
de memória em Santa Catarina
, desenvolvida em nível de pós-doutorado junto ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal
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de Santa Catarina, tem como objetivo mapear, catalogar e divulgar a existência
de arquivos em instituições de memória do estado de Santa Catarina que tenham
mulheres como titulares.
Ao fim do projeto, com a publicação de um instrumento de pesquisa (um
guia) pretende-se visibilizar a atuação de diferentes mulheres da sociedade ca-
tarinense, em especial aquelas que tiveram papeis ativos em suas comunidades.
Em consonância com o que prevê Lei nº 18.226, de 13 de outubro de 2021 - a qual
inclui como conteúdo transversal, no currículo da educação básica de escolas
públicas e privadas do estado, a História das Mulheres do Campo e da Cidade -
objetiva-se contribuir com o reconhecimento das trajetórias e com a produção
de conhecimento sobre a história das mulheres no estado, o que pode fomentar
ainda um incentivo à participação e envolvimento de mulheres mais jovens em
suas próprias comunidades.
As ativações sobre as quais pretende-se refletir são um recorte da pesquisa
acima mencionada e se desenvolveram por meio de uma abordagem etnográfica
dos arquivos, aqui entendida como um movimento metodológico que desloca a
atenção especificamente dos documentos para os processos que os salvaguar
-
dam e os tornam acessíveis (HEYMANN, 2013). Ou seja, os arquivos que aqui são
objeto de análise foram observados a partir das histórias que os constituíram,
das políticas que definiram o que abrigam, dos instrumentos de pesquisa que
tornam acessíveis seus acervos e, por fim, dos documentos que os integram.
Essa abordagem deseja entender suas lógicas de constituição, seus con-
textos, buscando ao longo desse processo as vozes não ouvidas nesses acervos,
especialmente, as narrativas tácitas de mulheres que eles possivelmente abri-
gariam. Na maioria das vezes soterradas pelas presenças masculinas, essas vo-
zes demandam um olhar cuidadoso, quase como se procurássemos uma agulha
no palheiro. Um cenário tributário não só da falta de documentos sobre essas
mulheres, como ainda na década de 1980 afirmou a historiadora Michelle Perrot
(1989), mas também da ausência de instrumentos de pesquisa que pudessem
ajudá-las a “levantar suas vozes”, como se verá a seguir.
Como apontado anteriormente, a pesquisa investiga instituições de memó-
ria espalhadas por diferentes municípios catarinenses, porém, para refletir com
maior atenção sobre essas narrativas, foram escolhidas duas instituições onde
a busca já foi em um primeiro momento finalizada. São elas: o Arquivo Público
de Santa Catarina (APESC) e o Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina,
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onde foram realizadas visitas semanais ao longo dos meses de junho e setembro
de 2023.
Antes de caminharmos pelos arquivos, vale enfatizar o porquê de entender
esse trajeto como um percurso no “breu”. Aqui, a “andança pelos caminhos da
noite” é uma expressão metafórica que descreve uma exploração em meio à in-
certeza, sendo empregada para ilustrar a busca por algo que não é facilmente
visível ou compreensível. No contexto aqui observado, sugere a investigação
profunda e atenta nos arquivos, procurando desvendar e dar visibilidade a nar-
rativas e experiências de mulheres que historicamente foram negligenciadas ou
sub-representadas nos registros documentais. A ideia que quer se trazer é que
essa exploração que ocorreu em meio a desafios e dificuldades, simbolizados
pela escuridão, buscou ao mesmo tempo trazer à luz histórias que ao longo do
tempo podem ter sido ignoradas ou obscurecidas.
Os espaços de observação
A iniciativa de criação do APESC remete a diferentes momentos da histó-
ria catarinense e as informações sobre sua emergência, em certos momentos,
parecem desencontradas. Algo que não é incomum quando tentamos buscar
a origem histórica de instituições, personagens ou eventos históricos, por sua
precisão e necessidade de encontrar fontes que a comprovem, esses dados são
diversas vezes difíceis de encontrar. Segundo o
website
do próprio APESC, a
idealização de sua construção já era um desejo manifestado pelo ex-governador
do estado de Santa Catarina engenheiro civil Hercílio Pedro da Luz em fins do
século XX (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO, 2023). Já de acordo
com (SOUZA; LEITE, 2014), o APESC teria um de seus primeiros atos de fundação
documentado no dia 26 de setembro de 1918, durante o mandato do governador
Felipe Schmidt, por meio da Lei n.º 1.196. Porém, naquele momento, nenhum di-
retor teria sido designado para administrá-lo, uma ocorrência que culminaria na
sua imediata dissolução. Duas novas tentativas teriam buscado recriá-lo, porém
ambas, mais uma vez, não obtiveram sucesso: a primeira em 28 de dezembro de
1931, por meio do Decreto n.º 186, no Governo do Interventor Federal Ptolomeu de
Assis Brasil, e a segunda em 1933, no Governo do Interventor Federal Aristiliano
Ramos, por meio do Decreto n.º 349, de 10 de maio (DEBATIN, s/d).
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A efetiva criação do APESC se concretizaria somente em 1960, por meio da
Lei n.º 2.378 de 28 de junho. Naquele momento, sob a guarda da Secretaria de
Estado dos Negócios do Interior e Justiça (SECRETARIA DE ESTADO DA ADMI-
NISTRAÇÃO, 2006). Atualmente, por meio da Lei nº 381 de 07 de maio de 2007 o
Arquivo mantém-se vinculado à Secretaria de Estado da Administração, em es-
pecífico da Diretoria de Gestão Documental, sendo um órgão normativo do Siste
-
ma de Gestão Documental estadual.
A sede do APESC passou por diversos locais da cidade de Florianópolis. En-
tre os anos de 1960 e 1971 foi abrigado no Palácio do Governo, atual Museu Cruz e
Sousa; entre os anos de 1971 e 1972 compartilhava o prédio localizado na esquina
entre as ruas Tenente Silveira e Jerônimo Coelho com a Imprensa Oficial do Es
-
tado – IOESC; entre os anos de 1973 e 1976 foi instalado no Edifício das Direto-
rias localizado na rua Tenente Silveira; em 1976 foi brevemente transferido para
Rua Almirante Alvim e no mesmo ano para a Rua Felipe Schimidt, onde ficaria até
1992; entre 1992 e 2006 foi alojado na avenida Mauro Ramos; sua penúltima mu-
dança ocorreu em 2006, quando foi transferido para edifício no bairro Saco dos
Limões. Em 2022, por conta de problemas estruturais do prédio que o abrigava,
a documentação do Arquivo foi transferida temporariamente para edifício na ci-
dade de São José, no bairro Kobrasol.
Por se tratar de um arquivo vinculado à administração pública, o acervo do
APESC é composto por documentação em diversos suportes, tipos e gêneros
documentais relativos à processos administrativos governamentais, totalizando
aproximadamente 2.500 metros lineares. São documentos datados entre o início
do século XVI até o fim do século XX tais quais: manuscritos, impressos, datilo
-
grafados, cartográficos, iconográficos (principalmente fotos e cartazes doados
ao APESC por pessoas físicas e jurídicas). Há também coleções de leis, decretos-
-leis, decretos e portarias estaduais desde 1830 até os dias atuais (originais com
assinaturas e impressas em publicações), leis federais brasileiras datadas de 1811
até a década de 1980, além de leis portuguesas do período de 1791 a 1820 (SOUZA;
SILVA, 2014).
O segundo local de realização da pesquisa não teve o mesmo percurso do
APESC que, como se viu acima, foi “vítima” de um itinerário repleto de mudanças,
as quais geram sempre uma preocupação em relação à integridade da informa-
ção que o arquivo tem o compromisso de preservar.
O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina foi criado por decreto
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datado de 25 de novembro de 1949 e assinado por Dom Joaquim Domingues de
Oliveira, naquele momento Arcebispo à frente da Arquidiocese de Florianópolis,
função que exerceria até sua morte em 1967. O Arquivo Eclesiástico é de res-
ponsabilidade da Mitra Metropolitana de Florianópolis, portanto, é o Arcebispo
Metropolitano o responsável por delegar profissionais responsáveis pela gestão
documental do acervo.
No momento de sua criação, o arquivo ficava abrigado junto à Catedral Me
-
tropolitana de Florianópolis, onde permaneceu até 1966 quando foi transferido
temporariamente para a avenida Rio Branco, em Florianópolis. Desde 1968 fun-
ciona em prédio anexo à Cúria Metropolitana, na Rua Esteves Júnior, também na
cidade de Florianópolis.
O Arquivo Histórico Eclesiástico reúne e preserva inúmeros documentos de
valor único, pois no período anterior à Proclamação da República todos os re-
gistros de nascimentos, casamentos e óbitos no Brasil eram feitos pela Igreja
Católica por meio das paróquias espalhadas por todo país. Sendo assim, a Arqui-
diocese de Florianópolis é responsável pela guarda de documentação referente
a nascimentos, matrimônios e falecimentos ocorridos na região entre os anos
de 1751 e 1889. Entre esses registros, é possível encontrar um livro de casamen-
tos que um dia pertenceu à Paróquia de Nossa Senhora do Desterro datado em
1714. Para além dessa documentação, associada ao cotidiano da população ca-
tarinense entre os séculos XVI e XIX, o acervo da instituição também é formado
por grande volume de documentação sobre a história da Igreja Católica em Santa
Catarina (DIBRARQ, 2023).
Esse breve histórico das instituições investigadas foi necessário para pos-
teriormente apresentar de que forma a busca foi nelas efetuada e os vestígios
documentais que elas preservam. Cada uma, a partir das atribuições e da docu-
mentação que abrigam, precisou de um roteiro de investigação individualizado.
Desenhando o “mapa da mina”
Os primeiros encontros com os arquivos sempre são reveladores de surpre-
sas boas, mas também de surpresas não tão positivas. Em relação aos arquivos
apresentados acima, foi uma grata surpresa encontrar alguns instrumentos de
pesquisa que permitiram fazer um “recorte” na documentação que seria inves-
tigada. A disponibilidade dos funcionários de ambas as instituições também foi
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fundamental para elaborar um plano para as idas ao “campo”. Pode parecer estra-
nho ressaltar a presença ativa desses servidores, porém o cenário nas institui-
ções arquivísticas não é sempre assim receptivo, não raro, o acesso à documen-
tação é negado aos pesquisadores por meio de justificativas como a ausência de
organização dos documentos.
Em relação ao APESC, as pesquisas puderam ser iniciadas em meio digi-
tal, já que alguns dos instrumentos de pesquisa da instituição, bem como parte
do acervo, estão disponíveis à consulta por meio da plataforma AtoM
1
. Tendo es-
ses instrumentos em mãos, foi percebida a existência de fundos privados entre
a documentação lá abrigada. Como o interesse da pesquisa é tratar de mulhe-
res como titulares de arquivos, não seria relevante buscar por outros fundos do
acervo da instituição, já que se referem a outras proveniências (seu “acumulador”
não foi uma pessoa física), sobretudo, da administração pública.
No total, segundo apontam os instrumentos de pesquisa, o APESC possui
sob sua guarda nove fundos privados: o Fundo Privado Monumento Vidal Ramos,
o Fundo Privado Álvaro Alves, Fundo Privado do José Vieira da Rosa (Gen.), Fundo
Privado Ferdinand Knoll, Fundo Privado Rogério Duarte de Queiroz, Fundo Priva-
do Candido Caldas (Marechal), Fundo Privado Aroldo Damiani Pessi e Alba Grisard
Pessi, Fundo Privado Haroldo Paranhos Pederneiras e o Fundo Privado Jorge La-
cerda. (APESC, 2018, p. 3-4)
Apesar de um inventário analítico da documentação presente nesses fundos
estar organizado em Catálogo disponibilizado à consulta, alguns detalhes dessa
documentação, como a procedência ou destinatário, não eram passíveis de ave-
riguação. Assim, após essa análise inicial, foi necessária a investigação em cada
item documental, em especial no Fundo relativo ao ex-governador do estado de
Santa Catarina, Jorge Lacerda, pesquisa que revelou algumas surpresas, como
se verá à frente.
A necessidade de fazer a observação documento a documento, remete, mais
uma vez, à perspectiva da etnografia nos arquivos, em especial, a partir da pers
-
pectiva do “estar lá”. Nesse sentido, entende-se que a ida ao local de pesquisa foi
essencial não só para investigar a fundo os conjuntos documentais, mas também
para realinhar as expectativas de pesquisa, bem como, as próprias práticas da-
queles que trabalham dentro desses arquivos.
1 Disponível em:
https://acervo.arquivopublico.sc.gov.br/
Acesso em: 25 out. 2023
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Em relação ao Arquivo Histórico Eclesiástico, não havia instrumentos de
pesquisa tão detalhados como aqueles encontrados no APESC. Os contatos
iniciais foram feitos via
e-mail
com a funcionária responsável pelo acesso de
pesquisadores ao acervo. A partir da explicação do tema da pesquisa, essa mesma
funcionária apontou conjuntos documentais que poderiam servir ao objetivo
da investigação. Foram selecionadas dentro dessa coleção vinte e três pastas
plásticas onde estavam acondicionadas correspondências e documentação
trocada entre religiosas, congregações religiosas femininas, irmandades
religiosas e associações de mulheres católicas e a Cúria Metropolitana de
Florianópolis.
Como não havia nenhum inventário do conteúdo das pastas, o próximo passo
da pesquisa, assim como no caso do APESC, foi verificar um a um o seu conteú
-
do. Elas foram, portanto, analisadas por item documental, documento por docu-
mento, o que exigiu, novamente, um longo processo de idas e vindas ao arquivo.
Andando pelos “caminhos da noite”, mas com companhia
Ler nas entrelinhas é saber operar com escalas, a noção de “jogo de esca-
las” foi proposta por Jacques Revel (1998) na obra
Jogos de Escala: a experiên
-
cia da microanálise
. Tal metodologia de análise busca romper com dicotomias
que opõem o individual ao coletivo, dando maior importância a uma dimensão ou
outra. A perspectiva do “jogo de escalas” demonstra que as abordagens que ora
observam as estruturas, ora observam o particular, não são antagônicas, mas
complementares, pois na “redução da escala de observação, em uma análise mi-
croscópica e em um estudo intensivo do material documental” (LEVI, 1992, p.136),
podemos observar como os indivíduos circulam entre as brechas, as rachaduras,
que existem nas grandes estruturas de poder ou dominação. A observação dos
arquivos aqui abordados se deu a partir de sucessivas aproximações e afasta-
mentos que vão do plano micro ao plano macro e vice-versa, ou seja, do enten-
dimento do contexto da instituição ao item documental, procurando as brechas
onde estariam as mulheres nesses conjuntos.
Uma abordagem antropológica, como mencionada anteriormente, vai ao en-
contro desse “jogo” que opera a partir de diferentes lentes, pois além de práticas
pontuais ou individuais, nela “devem ser considerados os contextos nos quais os
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conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-históricos mais amplos, de
uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados e dis-
ponibilizados, de outra (HEYMANN, 2013).
Para analisar mais de perto os acervos privados presentes no APESC, é
preciso antes de tudo refletir sobre o que representam os arquivos institucionais
públicos e a histórica cisão existente entre esse tipo de arquivo (público) e os
arquivos de pessoas, divisão que poderia ser pensada também por meio de
categorias como o “oficial” e “individual”. Segundo Cook (1998), existe em muitos
países uma divisão incômoda entre tais tipos de arquivos e, por vezes, até mesmo
uma tensão que emerge do caráter dos documentos que abrigam e os objetivos
para os quais os documentos neles abrigados são criados e preservados.
Ainda de acordo com Cook (1998), via de regra, em diversas partes do
mundo, os arquivos nacionais não recolhem papéis de indivíduos particulares,
um padrão que também ocorre em arquivos estaduais, provinciais, regionais e
locais ou municipais. Em geral, os arquivos pessoais ou manuscritos privados,
acabam sendo adquiridos pelas bibliotecas nacionais, regionais, ou ainda
por universidades, museus e institutos de pesquisa ou de documentação
especializados. Um cenário que vem se modificando no cenário nacional brasileiro
nos últimos anos, à exemplo do Arquivo Nacional
2
, que institui em 2018 política de
aquisição relativa ao tema. Porém, mesmo nesse panorama de abertura, a guarda
desse tipo de documentação por arquivos públicos é aberta excepcionalmente
aos documentos de indivíduos que tiveram algum tipo de projeção pública,
normalmente, associada à prática política ou aos casos em que há a ameaça de
destruição de algum conjunto documental, sendo assim, o arquivo é como um
guardião passivo, que se propõe a guardar tal documentação, pois nenhum outro
espaço tem disponibilidade para fazê-lo.
Os fundos privados encontrados no APESC parecem se encaixar no último
caso relatado acima. Os conjuntos analisados são em grande medida registros
que foram reunidos com objetivos diversos, mas que não tem nenhuma relação
com políticas de aquisição de acervos formalmente implantados pela instituição.
Sendo assim, esses acervos privados estarem guardados no APESC parece uma
2 Importante destacar que, no caso do Brasil, o Arquivo Nacional instituiu formalmente em 13 de
março de 2018 - 20 anos após a publicação do texto de Cook aqui usado como referência - a sua Polí-
tica de Aquisição de Acervos Privados. O trabalho foi iniciado ainda em 2017 por meio de um Grupo
de Trabalho criado pela portaria 477, de 11 de outubro 2017.
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“obra do acaso”: alguém, em algum momento, não é possível detalhar, intermediou
as suas aquisições.
O Fundo Privado Jorge Lacerda se enquadra nesse cenário, de acordo com
o
Catálogo dos Fundos Privados
disponibilizado pela instituição, o acervo foi
incorporado ao Arquivo Público com a autorização da família do titular, através
do projeto
Registro da Memória Pública de Santa Catarina
, em meados de 1986
3
.
Jorge Lacerda, registrado Jorge Cominos Lacerda e descendente de imigrantes
gregos, foi uma figura política influente no estado de Santa Catarina sendo eleito
governador do estado nas eleições de 1955 e assumindo o mandato em 1956, após
duas legislaturas anteriores como deputado federal da bancada catarinense.
Lacerda foi vítima de um acidente aéreo em 1958 que matou também outros dois
políticos catarinenses ativos à época, Nereu Ramos e Leoberto Leal (MEMÓRIA
POLÍTICA DE SANTA CATARINA, 2023).
O fundo referente a Lacerda contém aproximadamente 20.000 documentos
entre cartas, ofícios, telegramas, cartões, certidões, discursos, projetos, ensaios,
fotografias, entrevistas, folhetos, artigos literários, plantas, desenhos, recibos,
recortes de jornais, diplomas, certificados, bilhetes etc. Os documentos estão
separados por tipo documental e ordenados pela ordem cronológica, dentro das
séries, subséries e dossiês.
Durante a pesquisa, as pastas e caixas foram observadas a partir da sequência
numérica definida pelo próprio arquivo, porém em sentido decrescente, ou seja,
começou-se pela pasta número “91” até chegar a pasta número “1” (além das pastas
nomeadas como “Publicações variadas”). Vale ressaltar que em nenhum momento
aparecem descritos nos conteúdos das mesmas a presença de documentos
relacionados a esposa ou às filhas de Lacerda: Kyrana Atherino Lacerda, Irene,
Cristina e Zoê, respectivamente. Porém, já na primeira pasta aberta essas vozes
femininas marcaram sua presença, por meio de um caderno escolar (referente
a disciplina de Língua Inglesa) pertencente a filha Zoê e a diversos cartõezinhos
com felicitações e convites para eventos endereçados a Kyrana.
Prestando atenção a este acervo e voltando às definições e normativas
3 Segundo Schütz (2020), que tratou da trajetória intelectual do historiador catarinense Carlos Hum
-
berto Pederneiras Corrêa, coordenador do projeto supracitado, a iniciativa teve como resultado dois
livretos nos quais são elencados aspectos envolvendo as atuações políticas de governantes, bem como
a publicação de entrevista realizada com o personagem temas das publicações. Os livretos foram
lançados em 1986 e tiveram como figuras centrais os ex-governadores Celso Ramos e Ivo Silveira.
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construídas a partir da Arquivística, emergiram algumas questões para reflexão.
De acordo com a Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados no Brasil, são considerados “arquivos
privados os conjuntos de documentos produzidos ou recebidos por pessoas
físicas ou jurídicas, em decorrência de suas atividades” (Brasil, 1991). Segundo
Heloísa Bellotto, uma das principais referências na área, essa
definição dada
pela norma toca justamente em uma das características dos documentos
arquivísticos, a sua relação com o conjunto ao qual faz parte: sua organicidade.
Como tributária desse atributo advém a noção de fundo de arquivo, ou seja, o
“aglomerado lógico, estruturado e indivisível, de documentos produzidos por
um órgão ou por entidade no decurso de atividades que justificam sua própria
razão de ser” (BELLOTTO, 2006, p. 253). Importante destacar, nesse sentido, que
o Dicionário de Terminologia Arquivística (1996) considera as noções de “arquivo”
– como um conjunto de documentos e não como instituição de guarda - e “fundo”
como equivalentes.
Sendo assim, à definição proposta por Bellotto podemos acrescentar a
questão dos arquivos pessoais, ampliando a noção de arquivo privado, ou o
fundo privado acima apresentada, afirmando que ela corresponde ao “conjunto
de documentos produzidos e acumulados por uma entidade, pública ou privada,
pessoa ou família,
no desempenho de suas atividades
, independentemente da
natureza do suporte” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996, p. 27, grifo nosso).
Tomando essas definições como um parâmetro para observar o Fundo
Jorge Lacerda, percebe-se duas inconsistências em relação a forma como é
apresentado o conjunto documental abrigado pelo APESC e entendido como
um “fundo”. Primeiramente, é possível notar que os documentos lá abrigados
representam somente uma parcela dos “documentos produzidos e acumulados”
por Lacerda “no desempenho de suas atividades”, pois como já dito, esse conjunto
chegou até o Arquivo por intermédio de um projeto de pesquisa, portanto, por um
recorte temático já definido anteriormente. Ainda, no que tange a expressão “no
desempenho de suas atividades”, há um outro elemento a interrogar: a existência
de documentos posteriores ao falecimento de Lacerda, portanto, datados
posteriormente a 1958. Esses documentos, por sua vez, diversos telegramas e
documentos pessoais têm como titular a viúva de Lacerda.
Assim, nesse breve mirada, percebe-se que além da ausência das mulheres
da família nos instrumentos de busca relacionados ao fundo, pode-se questionar
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também a nomenclatura do fundo, que, se fosse levada à cabo a definição
acima descrita, não poderia ser denominado um “fundo”, mas sim uma coleção,
a qual deveria ter também como titular viúva de Lacerda, Kyrana. Conforme o
já mencionado Dicionário de Terminologia Arquivística, uma coleção pode
ser definida como um “conjunto de documentos com características comuns,
reunidos intencionalmente” (1996, p. 52), assim sendo, o fundo Lacerda, nada
mais seria que uma coleção de documentos reunidos intencionalmente com
objetivos de pesquisa, “papéis que se pretend[ia] analisar para elaborar trabalhos
historiográficos” (BELLOTTO, 2006, p. 253)”, o projeto
Registro da Memória
Pública
. Nesse caminho, portanto, se perderam tanto a organicidade dada por
seu titular, bem como, a presença das mulheres, em especial de Kyrana, que por
meio de seus papéis nesse conjunto foi percebida.
Ao longo dessas longas tardes de “mergulho” nos documentos salvaguardados
no APESC, a partir de uma abordagem etnográfica, foi possível tirar dos bastidores
do acervo de um homem público e colocar no palco da memória os vestígios
de mulheres que orbitavam esse personagem, mas que por conta de injunções
sociais tiveram sua atuação subsumida no meio dessa documentação. Como
apontam Cerchiaro e Alves (2022), a reflexão sobre os silenciamentos que se
operam dentro dos acervos não pode estar desvinculada de processos sociais e
políticos mais amplos que definem os espaços de atuação de mulheres e homens.
“Assim como a história tradicional privilegiou em suas narrativas grupos e pessoas
específicos, os acervos também o fazem em relação à salvaguarda documental”
(CERCHIARO; ALVES, 2022, p. 13).
Ainda vale destacar, tangenciando os debates que giram em torno daquilo
que é guardado e que é “dado a ver”, especialmente ao considerar as políticas
de conservação e divulgação de acervos, é possível questionar quais vestígios
e agentes culturais recebem prioridade nesses processos. A partir dessa
perspectiva, se levanta uma pergunta crucial sugerida por Ana Maria Camargo
(2009, p.29): como evitar decisões de salvaguarda fundamentadas em cânones
estabelecidos, que tendem a privilegiar aqueles com reconhecimento acadêmico
e social? Ao estabelecermos outras prioridades de seleção, levando em conta a
transitoriedade dos valores a elas associados, quais seriam as consequências
futuras dessa escolha para os campos de preservação e pesquisa que diversas
instituições buscam atender? Nesse sentido, quais as repercussões das escolhas
tomadas pelo APESC? Dos nove fundos por ele abrigados vemos como titulares
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apenas uma mulher, Alda Pessi, ainda assim, em segundo plano e compartilhando
essa titularidade com seu marido. Doravante esse diagnóstico, pode-se pensar
que a lógica seguida pelo arquivo é aquela do reconhecimento público, um
movimento que de certa forma, continua a reproduzir no arquivamento a mesma
racionalidade do espaço público a ele exterior, o qual historicamente negou
às mulheres locais de protagonismo. Porém, essa dinâmica não é exclusiva do
APESC e outros exemplos ainda podem ser citados: dos 305 arquivos pessoais
mantidos pelo Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, apenas 26 pertencem a
mulheres. Na Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde há 88 arquivos pessoais sob
a responsabilidade do Departamento de Arquivo e Documentação, somente seis
são de indivíduos do sexo feminino (HEYMANN, 2020).
Diferentemente do APESC, os arquivos eclesiásticos são considerados ar-
quivos privados e, dentro dessa definição, são entendidos como arquivos so
-
ciais, os quais “abrangem um grande número de arquivos importantes, sobres-
saindo-se os religiosos, os notariais e os de movimentos e entidades políticas”
(BELLOTTO, 2006, p. 255).
No caso brasileiro, como apontado anteriormente, os arquivos religiosos,
em certa medida, adquirem um caráter público, dado o valor jurídico dos docu-
mentos por eles lavrados no período anterior à Proclamação da República, quan-
do não havia no país o registro civil. Dessa forma, esses arquivos também me-
receram a atenção da Lei n°8.159, de 8 de janeiro de 1991, que determina em seu
Artigo 16 que “Os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos
anteriormente à vigência do Código Civil ficam identificados como de interesse
público e social”. Portanto, o Arquivo Histórico Eclesiástico tem tanto um caráter
público que obriga a Igreja Católica manter esse acervo protegido, mas também
tem um caráter privado que permite o controle sobre o acesso à documentação
que abriga.
É importante ainda não perder de vista, quando se trata de arquivos de insti-
tuições religiosas, o controle cuidadoso dessas organizações acerca de informa-
ções que remetam a elas, assim é possível perceber que esses arquivos têm uma
clara orientação institucional em relação àquilo que é preservado, que é excluído
ou que pode ser acessado (EPP, 1990). Além disso, como as instituições religiosas
têm seus cargos diretivos formados quase que integralmente por homens, como
consequência, há uma maior dificuldade de encontrar vestígios documentais de
mulheres junto a essas instituições. Nesse caso, «é preciso então aprender a ler
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nas entrelinhas” (EPP, 1990, p.167). Algo parecido ocorre com arquivos adminis-
trativos do poder público, como é o caso do APESC brevemente analisado acima,
como são poucas as mulheres que ascendem a quadros de relevância dentro da
estrutura hierárquica da administração pública, é sintomático que menos docu-
mentação referente a elas será possível encontrar nos acervos desses arquivos.
O Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina apresenta essas caracte-
rísticas acima descritas: o grande controle sobre informação que pode ser aces-
sada, a orientação institucional e a obrigação em dar acesso aos documentos
referentes a registros de nascimento, casamento, óbito, por exemplo, que foram
produzidos em momento anterior à criação do Código Civil. No caso específico
desse arquivo, como já apontado, os documentos mais antigos são um livro de
registros de casamentos referente a Paróquia Nossa Senhora do Desterro, que
iniciou em 1714
,
e um livro de registro de batismo dessa mesma paróquia
,
iniciado
em 1751.
Os documentos analisados durante as visitas a esse acervo não eram anti-
gos como os acima citados e envolveram objetos documentais, datados entre o
início e o final do século XX, referentes a congregações religiosas femininas, ir
-
mandades religiosas e associações de mulheres católicas. O gênero e a tipologia
dos documentos é bastante variada, são cartas, ofícios, livros de contabilidade,
livretos, fotografias, convites para eventos, santinhos, lembranças da ordenação
de religiosas enviadas ao Bispo Arquidiocesano que estivesse à frente da Cúria no
momento, por exemplo. Por se tratar de documentação relativa a organizações
basilarmente femininas, é natural que se encontre nesse acervo documentos re-
lativos a mulheres, nesse sentido, é relevante destacar que não existe nenhum
fundo pessoal que tenha alguma mulher específica como titular. No entanto, par
-
tindo desse primeiro diagnóstico, foi possível perceber a presença recorrente e
o interesse específico acerca da vida de algumas personagens, algo que só foi
possível detectar por que se buscou “olhar nas entrelinhas”.
Entre as vozes femininas que se destacaram nessa documentação, está a de
Madre Benvenuta, religiosa vinda da Alemanha que teve uma atuação marcante
na administração e organização da Congregação das Irmãs da Divina Providência
em Florianópolis, o que legou a ela, inclusive, o nome de uma das principais ave-
nidas da Ilha de Santa Catarina, localizada no bairro Santa Mônica. À vista disso,
é interessante pensar que não foi possível localizar nenhum trabalho acadêmico
que tangencie a vida dessa religiosa e que pouca coisa sobre sua vida é divul-
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gada. Como exceções dentro desse cenário
,
podem ser citadas três reportagens
publicadas pelos periódicos virtuais
ND Online
4
e
NSC Total
5
, nas quais a curiosi-
dade pela vida dessa personagem está justamente relacionada à existência de
uma rua com o seu nome. De acordo com essas reportagens, o grande terreno
que era posse da Congregação e que seria loteado - hoje correspondendo
grosso
modo
ao Bairro Santo Mônica - teria sido um processo que teve como principal
intermediadora a própria Madre Benvenuta. Porém, o que mais chama atenção
nesses relatos é a presença recorrente de uma religiosa que parece se colocar
como “voz autorizada” a falar sobre a vida de Madre Benvenuta: Irmã Enedina Sa-
cheti, cenário que remete, mais uma vez, ao controle da informação preconizado
nas políticas de instituições religiosas.
Nos documentos encontrados no Arquivo Histórico Eclesiástico, a imagem
de Madre Benvenuta diverge da representação laudatória trazida por Irmã Ene-
dina Sacheti. Entre essas duas narrativas – a oficial e a do arquivo – aquela que
se repete é a da sua atuação constante e da formação de uma sólida teia de re-
lacionamentos que permitiu entrever sua presença até mesmo em documentos
em que ela não estava diretamente envolvida, mas era mencionada. Esses ele-
mentos apontam para uma presença marcante de Madre Benvenuta dentro da
burocracia e administração da Congregação, mesmo que limitada àquilo que era
permitido a uma mulher exercer dentro da hierarquia da Igreja Católica. Nesse
cenário, é fundamental coomprender, como afirma Nunes
(1985), que no catoli-
cismo os homens não são apenas detentores do poder sagrado que faz a media-
ção entre o mundo terreno e o divino, mas são ]também as vozes autorizadas que
elaboram e reelaboram a narrativa oficial em que se naturalizam padrões sobre o
que seria inerente ao mundo feminino e o que pertenceria ao mundo masculino.
Outros documentos desse acervo também vão pouco a pouco revelando a
presença de diferentes mulheres. Alguns têm caráter biográfico ou trazem dados
biográficos de religiosas, que são tomadas pelas próprias congregações como
mulheres de destaque e modelos a serem seguidas. Conjuntamente à documen-
4 STROISCH, Bruna. Além das placas: Conheça a história de três mulheres que dão nome a ruas de Florianópolis.
ND+
,
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rianópolis.
NSC Total
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dre-benvenuta-e-antonieta-de-barros-quem-sao-as-mulheres-dos-locais-de Acesso em: 16 nov. 2023.
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tação referente a Congregação das Irmãs da Divina Providência, da qual Madre
Benvenuta era parte, há certo volume de objetos documentais pertencentes a
outras religiosas como Irmã Heriburga, Irmã Emanuelle, Irmã Alina e Irmã Júlia.
Há também alguns dossiês com documentos pessoais de duas religiosas: Irmã
Bernadette Ingelbeck e Irmã Demétria.
Nesses conjuntos referentes às mulheres que seguiram pela vocação reli-
giosa é possível visualizar diversos elementos e ações dessas personagens, como
por exemplo, aspectos relacionados às necessidades financeiras ou estruturais
das congregações, certos conflitos internos e até mesmo uma documentação
mais pessoal como cartas e fotografias.
Já em relação ao documentos de irmandades religiosas leigas, quando são
irmandades mistas, nas quais homens e mulheres são integrantes, as mulheres
emergem apenas em funções como zeladoras ou responsáveis pela organização
de espaços e eventos. Tais damas têm um maior protagonismo quando se tratam
de Ligas ou Legiões de Mulheres Católicas, agremiações que têm somente mu-
lheres participantes, como a Associação de Damas de Caridade ou a Legião Irmã
Bernwarda, ambas de Florianópolis e formadas por mulheres de classes mais
abastadas da cidade. Esses documentos foram importantes para demonstrar o
espaço de atuação e quem eram as vozes que agiam nessas coletividades.
Conclusão
Como se tentou demonstrar ao longo do exposto, a perspectiva abraçada ao
longo da análise, com o objetivo de tentar encontrar os vestígios de mulheres sal-
vaguardados nos arquivos aqui investigados, apontou para algumas das manei-
ras pelas quais as dinâmicas de gênero perpassam os processos de construção
da memória. Essas dinâmicas se deram de diferentes modos: seja por meio um
silenciamento, caso do Fundo Jorge Lacerda abrigado no APESC, que nos seus
instrumentos de pesquisa obliterou a presença das mulheres da família nessa
documentação, seja por meio das diferentes mulheres que estavam submetidas
a um ambiente onde as relações de poder apontam para um domínio eminente-
mente masculino, como é o caso do Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Ca-
tarina, espaço no qual não há nem mesmo instrumentos de pesquisa que possam
localizá-las.
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Espera-se que, ao longo dessas “andanças pelos caminhos noite”, tenha se
demonstrado a importância de olhar para os arquivos desde suas particularida-
des e, principalmente, nas suas entrelinhas, refletindo sobre seus contextos es
-
pecíficos e analisando as diferentes esferas que operam nas suas construções,
conservações e também difusões e que, muitas vezes, deixam silenciadas as vo-
zes das mulheres nesses espaços “guardadas”.
Aqui foram vistas diversas ativações do arquivo, como sugere Keteelar, ati-
vações que trouxeram à superfície os vestígios de algumas dessas mulheres pre-
sentes nesses acervos. Porém, não se pode perder de vista que essas ativações
são infinitas e que novas visitas a esses arquivos, lançando novos olhares para a
documentação que abrigam, poderão trazer à tona outras vozes ainda silencia-
das.
Como apontado diversas vezes, as instituições arquivísticas refletem dinâ
-
micas de poder, assim sendo, o silêncio e a invisibilidade de determinados temas
ou pessoas são produtos de operações que não são neutras e inferem diretamen-
te na construção de acervos. Por meio da interrogação dessas dinâmicas, é pos-
sível abordar questões como a negociação entre memória e esquecimento, a luta
por reconhecimento e prevalência de certos interesses coletivos em detrimento
de outros. Em um contexto em que as vozes femininas são frequentemente si-
lenciadas, muitas vezes de maneira coercitiva e violenta, destaca-se a importân-
cia dos processos de arquivamento de suas experiências como personagens his-
tóricas, assim como o papel desempenhado pelas instituições de memória, que
nas suas políticas determinam, por exemplo, quais os arquivos estão dispostas a
receber, salvaguardar e tornar disponíveis.
Por fim, reitera-se que as linhas aqui descritas e o projeto de pesquisa do
qual elas são recorte, pretendem se articular às preocupações recentes que de-
terminadas instituições arquivísticas no país têm no sentido de valorizar acervos
femininos, tanto por meio do processamento e aquisição de arquivos de mulhe-
res, quanto através de projetos de difusão de fundos dessas titulares. O debate
ainda está em curso e, claro, não se esgota na presente análise. Existem ainda
muitas narrativas tácitas a serem tiradas da escuridão.
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OS IDEAIS NORTE-AMERICANOS E O PERIGO VERMELHO NAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS DO HOMEM DE FERRO (MARVEL) E DO LANTERNA VERDE (DC
COMICS)
THE NORTH-AMERICAN IDEALS AND THE RED MENACE IN THE COMIC BOOKS OF
IRON MAN (MARVEL) AND GREEN LANTERN (DC COMICS)
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.20106
Luís Eduardo dos Santos
Universidade Regional de Blumenau (FURB)
https://orcid.org/0009-0007-9463-7377
luis.dudu.santos@gmail.com
Leonardo Brandão
Universidade Regional de Blumenau (FURB)
https://orcid.org/0000-0001-8306-1092
leobrandao@furb.br
Recebido em 24 de janeiro de 2024
Aprovado em 23 de março de 2024
RESUMO:
Este artigo, escrito no campo da
História Cultural, utiliza-se das Histórias em
Quadrinhos de super-heróis para se pensar
a Guerra Fria, conflito ideológico que marcou
a segunda metade do século XX. O objetivo
é comparar dois gibis que, cada qual a sua
maneira, dialogaram com este fato histórico,
com um publicado pela Marvel e outro pela DC
Comics. Concluiu-se que ambas as revistas se
inseriam e fomentavam um imaginário social
ligado ao anticomunismo e ao poder bélico,
ambos valores dominantes nos Estados Unidos
do período.
Palavras-chave:
Guerra Fria; Imaginário;
Histórias em Quadrinhos
ABSTRACT:
This article, written in the area
of Cultural History, employs superhero comic
books to reflect on the Cold War, an ideological
conflict that characterized the second half of the
20th century. The aim is to compare two comic
books, each in its own way, engaging with this
historical event, one published by Marvel and
the other by DC Comics. It was concluded that
both publications inserted themselves into
and fostered a social imaginary linked to anti-
communism and military power, both dominant
values in the United States during that period.
Key words:
Cold War; Imaginary; Comic
Books
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Introdução
Ao pensar o século XX, um marcante e extenso fator surge de forma predo-
minante nos anos que o compõe: a Guerra Fria, conflito ideológico entre a União
Soviética e os Estados Unidos. Ela tem seu início pouco tempo após a derrota
da Alemanha, quando Josef Stalin buscava “reivindicar territórios antes alemães
para a União Soviética, assim como garantir a constituição do império “externo”
na Europa central e oriental” (PONS, 2008, p. 100), enquanto o novo presidente
norte-americano Harry Truman colocava à prova a soberania norte-americana no
mundo em relação ao armamento nuclear e as possíveis áreas de influência na
Europa, já que no momento e “pela primeira vez na história, o tamanho do poder
militar de um país não era mais condicionado pelo tamanho de seus exércitos”
(TOTA, 2009, p. 176).
Esse conflito de interesses por territórios de comando culminou em uma
conferência realizada em Potsdam, na Alemanha, dos dias 17 de julho a 02 de
agosto de 1945, onde foi definido que a Alemanha ficaria dividida em quatro par
-
tes: uma norte-americana, uma soviética, uma francesa e uma inglesa, sendo
que “a partir dessa nova confrontação de forças, as potências capitalistas pas-
saram ao enfrentamento com a URSS” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 15), visto que
tanto a França quanto a Inglaterra foram beneficiadas com as políticas de apoio
dos Estados Unidos para a reconstrução da Europa.
É nesse período em que o medo instaurado de uma possível infiltração
soviética em território norte-americano era um fator constante. A criação de um
espaço governamental, conhecido desde o final da Segunda Guerra Mundial por
Comitê de Atividades Antiamericanas, mostrava a preocupação de governantes
estadunidenses com um suposto avanço silencioso por parte dos soviéticos,
sendo, a partir de 1950, instaurado uma “caça às bruxas”, com um comitê assumido
pelo senador Joseph McCarthy, inaugurando assim o chamado macarthismo.
Para esse senador, as “bruxas” eram consideradas os supostos comunistas
norte-americanos ou apoiadores do regime soviético, levando muitos cidadãos
norte-americanos a serem exilados do país, mesmo que por falsas acusações.
Anos depois, após a crise dos mísseis cubanos e o fracasso da manuten-
ção pacífica entre as superpotências, a chegada ao poder de um novo presiden
-
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te norte-americano com uma rigorosa política externa anticomunista, inaugura
o período conhecido por “Nova Guerra Fria”. Ronald Reagan, antes de tornar-se
presidente e “na condição de ator de cinema, colaborou (assim como outros) com
o FBI e o Comitê de Atividades Antiamericanas, delatando vários colegas e parti-
cipando de “campanhas patrióticas”” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 33). Utilizando-se
da “oratória pública” (GADDIS, 2007, p. 214) como um grande aporte da sua polí-
tica, o presidente voltou seus esforços para a revitalização de uma “autoridade
social” (PURDY, 2007, p. 55), comandando a superpotência norte-americana até
1989, quando encerrou o seu segundo mandato. Em paralelo, após a ascensão
de Mikhail Gorbachev como dirigente da URSS em 1985, foi elaborado um proje-
to que baseava-se em longas reformas, acabando em resultar em ideias como a
“
Perestroika
(reestruturação) que seria implantado juntamente com uma propos-
ta de abertura política (
Glasnot
)” (MIRANDA; FARIA, 2021, p. 71). Essa reformulação
do sistema da URSS acabaria por levar ao seu fim em 1991, pouco tempo após a
queda do muro de Berlim (maior símbolo da Guerra Fria), marcando os Estados
Unidos como “vencedores” do conflito.
Durante todos os períodos da Guerra Fria, um recorrente fator foi a tentativa
de criar um imaginário social que pudesse servir aos valores de cada nação. Para
o filósofo Bronislaw Bazcko (
1985, p. 297), “as ciências humanas punham em des-
taque o facto de qualquer poder, designadamente o poder político, se rodea de
representações colectivas. Para tal poder, o domínio do imaginário e do simbóli-
co é um importante lugar estratégico”. Dessa forma, é possível interpretar que os
agentes responsáveis (nas posições governamentais e detentoras de meios de
produção) agiam com o financiamento de produtos a serem consumidos pelas
massas, buscando a formação do imaginário via suas práticas discursivas.
No caso norte-americano, a importância da continuidade de um sistema
anticomunista ultrapassou a esfera política, adentrando os meios culturais por
diversas vias. No cinema hollywoodiano, o filme
War Hunt
de 1962
(
dirigido por
Denis Sanders, roteirizado por Stanford Whitmore)
já trazia elementos exaltando
a ação militar norte-americana na Guerra da Coréia, idealizando e justificando o
papel dos Estados Unidos na intervenção e no combate aos núcleos de caráter
socialista. Décadas depois, filmes como “Rambo: programado para matar (
First
Blood
, 1982), Rambo II: a missão (
First Blood – Part II
, 1985) e Rambo III (Rambo III,
1988) representaram um conjunto de idéias que encontraram eco na sociedade
estadunidense na década de 1980” (SILVA, 2009, p. 3), em relação ao papel do país
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na contenção comunista do Vietnã.
Não muito distante desse universo cinematográfico, as Histórias em Quadri
-
nhos (HQs), também fizeram parte da formação de um imaginário social. Tanto na
criação de personagens como o Homem de Ferro, um personagem originalmente
anticomunista que “estava sempre disposto a sair em defesa do bloco capitalis-
ta, comandado pelos EUA” (SANCHES, 2021, p. 74), quanto na reformulação de
outros personagens mais antigos, como o Lanterna Verde, agora um policial es-
pacial “que era alinhado com os com ideais patrióticos - que prende criminosos e
ajuda a polícia” (KRAKHECKE, 2009, p. 66), serviram-se de enredos que tentavam
utilizar de um imaginário social que visava fortificar os valores norte-americanos
em relação a suposta ameaça comunista
1
.
Por tratar-se de uma fonte documental que compõe um amplo merca-
do e altos níveis de circulação, torna-se necessário estabelecer um recor-
te editorial no ramo das Histórias em Quadrinhos de super-heróis norte-a-
mericanos, delimitam-se as duas principais editoras da área: a Marvel e a DC
Comics, abrindo assim, uma possibilidade de comparação entre as formas
com as quais essas empresas representavam os valores da nação nesse pro-
cesso de formação de um imaginário em parte de suas publicações que fa-
zem referência direta a Guerra Fria, voltadas para as temáticas da corrida
armamentista e da construção da imagem do soviético, selecionando enre-
dos dos personagens que surgiram durante a Guerra Fria, o Homem de Ferro
(Marvel) e Lanterna Verde (DC Comics), por como visto, compartilharem alguma
similaridade prévia relacionada a este conflito.
Breve síntese dos quadrinhos-fonte
Antes de realizar as análises pretendidas, torna-se necessário proceder
com uma síntese das Histórias em Quadrinhos que serão utilizadas como fonte
para esta pesquisa. Constituem as histórias selecionadas, para fins de compa
-
ração entre as editoras, a
The Green Lantern Corps
(números 209 e 210 de 1987,
produzidas por Steve Englehart e Joe Staton)
para representar a DC Comics
,
e a
1 Não ignoramos aqui a ideia um “contra-imaginário”, constituído, como por exemplo a HQ
Watchmen de Alan Moore, que criticava as ações norte-americanas em relação a Guerra Fria. (BA
-
CZKO, 1985, p. 301).
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Iron Man
Volume 1
(números 315, 316 e 317 de 1995, produzidas por Len Kaminski
e Tom Morgan) representando a Marvel
.
Importante ressaltar que, em ambas as
histórias, ocorre a participação de personagens da vida real da época, dando
destaque para líderes políticos,
como Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev.
A premissa do enredo do Lanterna Verde tem como base dois grupos de per-
sonagens da tropa, um nos EUA dialogando com Reagan e outro na URSS, dialo-
gando com Gorbachev. O primeiro discute a possibilidade de uma intervenção em
solo soviético caso os Lanternas lá se voltem contra os EUA, enquanto o segun-
do, debate as diferenças dos sistemas capitalista e socialista, esse que recen-
temente, havia ganhado uma nova frota de soldados com auxílio de tecnologia
alienígena, equiparando-se ao poder dos Lanternas. O conflito esquenta e uma
terceira guerra mundial, dessa vez nuclear, quase ocorre por conta de ações da
URSS, mas é evitada graças aos Lanternas que estavam nos EUA.
Para o Homem de Ferro e seu alter ego Tony Stark, o enredo desenvolve-se
em uma Rússia que havia deixado de ser soviética há apenas alguns anos. O herói
vai até o país abrir uma filial de sua empresa e encontra-se com Gorbachev e com
o presidente Boris Iéltsin. No evento, um ataque do Homem de Titânio (inimigo
soviético que havia enfrentado o herói durante vários períodos da Guerra Fria)
ocorre, visando vingar o sistema derrotado. É então que dois heróis russos (antes
inimigos), a Viúva Negra e o Dínamo Escarlate aparecem para auxiliar Stark no
confronto contra seu inimigo.
O aspecto armamentista das superpotências da Guerra Fria nas HQs
Fator recorrente durante os anos iniciais da Guerra Fria, o medo de uma
Guerra Nuclear como terceira Grande Guerra é um dos frutos do final da Segunda
Guerra Mundial e início da década de 1950, quando tais armamentos avançaram
de forma significativa, de modo que “
gerações inteiras se criaram à sombra de
batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a
qualquer momento, e devastar a humanidade” (HOBSBAWM, 1995, p. 174). Orival-
do Biagi (2004, p. 89), ao estudar o imaginário social que constituí a Guerra Fria,
aponta o medo de uma terceira Guerra Mundial como parte da construção desse
imaginário, pois tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética procuravam
“ter os arsenais nucleares mais numerosos e de tecnologia mais avançada”.
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Para início das comparações sobre a questão do armamento, observemos
algumas das capas das edições analisadas. Respeitando uma ordem cronológica
de lançamento, inicia-se pela Tropa dos Lanternas Verdes:
Figura 01 -
Capa de
The Green Lantern Corps
209
Fonte: DC Comics. 1987
A capa da publicação referente a tropa dos Lanternas Verdes, que apresen-
ta em seu canto superior direito o selo regulamentador da
Comics Code Authority
(conhecido por CCA, trata-se de um Conjunto de regulamentações autoimpostas
pelas editoras após a publicação da obra
Seduction of the Innocent,
de Fredric
Wertham em 1954), também demonstra alguns interessantes elementos sobre
uma ideologia armamentista que vigorava no período. A predominância da cor
vermelha, além de ser a cor símbolo da URSS, também pode ser visto como uma
alusão ao
red scare
das décadas anteriores, isto é, um medo de uma invasão co-
munista na liberdade norte-americana, uma vez que os norte-americanos “en-
xergavam no comunismo soviético uma nefasta negação da liberdade e da indivi-
dualidade” (TOTA, 2009, 177). A expressão
Red Dawn
2
- exposta para leitura no lado
direto desta capa - também viabiliza um suporte para tal afirmação, sendo uma
2 Em tradução livre: Alvorecer Vermelho.
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projeção sobre o medo de um amanhecer com as cores inimigas atacando.
Por sua vez, a capa da edição referente a história da Marvel Comics:
Figura 02 – Capa de Iron Man Volume 1 315.
Fonte: Marvel Comics, 1995
Para a Marvel, os meados da década de 1990 foram comprometedores, pois
em questão de departamento de vendas, “há meros cinco anos respondia por 90%
das vendas, agora representava apenas um terço dos negócios” (HOWE, 2013, p.
372). Como uma estratégia para tentar levantar os números de vendas, a editora
inicia um processo de reutilizar personagens antigos. Temos então o retorno de
personagens como Homem de Titânio em uma série que perdurava desde 1968.
Na capa, no mesmo canto superior direito, é possível novamente verificar a pre
-
sença do selo regulamentador da CCA, mesmo 40 anos após sua criação. Talvez
por ser publicada em um período pós-Guerra Fria, há uma menor presença das
cores vermelhas inimigas, estratégia também para ressaltar a importância do
herói presente na capa. Entretanto, vemos os olhos vermelhos do inimigo sovié-
tico, uma possível alusão ao
red scare
. O balão de texto demonstra uma intenção
ameaçadora e vingativa do personagem que não aceitou o final da URSS
3
.
3 Em tradução livre: “A pátria Russa caiu, Homem de Ferro, mas o Homem de Titânio vive para
destruir você!”
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Ambas as capas das publicações, mesmo com o distanciamento temporal
de lançamento de oito anos, demonstram certas similaridades. A posição de
grandeza e superioridade de um inimigo soviético trajando uma armadura tecno-
lógica, alusão ao poder bélico da União Soviética, perdurou mesmo após o final
da Guerra Fria, com uma continuidade até os dias atuais, pois o elemento é exa-
tamente o mesmo presente tanto na história do Lanterna Verde de 1987, quanto
na do Homem de Ferro de 1995, assim como uma primeira impressão de inferio-
ridade norte-americana, ao ter ambos os heróis subjugados. As duas capas con-
tam também com frases de cunho ameaçador pelo lado soviético, retomando um
espírito macarthista dos primeiros anos, com um “fenômeno da sociedade nor-
te-americana onde o Medo da Expansão Comunista foi utilizado intensamente”
(BIAGI, 2004, p. 80) agindo no imaginário social.
No decorrer do enredo do Lanterna Verde, temos a situação em que o herói
simpatizante do sistema soviético descobre a traição de Gorbachev e o seques-
tro de seus colegas:
Figura 03 - Kilowog confronta Gorbachev em
The Green Lantern Corps
210.
Fonte: DC Comics. 1987
Na situação, a menção ao armamento se dá pela fala de um personagem, de-
monstrando a sua prevalência até quando não é o foco do quadro. Ele também se
relaciona mais intimamente com a questão da imagem do soviético em si, demo-
nizada como alguém pronto para agressividade. Nas representações soviéticas,
não é difícil notar como um ferrenho anticomunista os percebia, como indivíduos
preparados para utilizar o elemento nuclear não como uma autodefesa, mas um
ataque direto, reforçando assim, as tensões que gerariam o nome de Guerra Fria.
Também no outro quadrinho, quando esse apresenta o confronto entre
Tony Stark (com a armadura do Dínamo Escarlate) e o Homem de Titânio, temos
uma situação similar.
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Figura 04 –Dínamo Escarlate e Homem de Titânio em Iron Man Volume 1 317.
Fonte: Marvel Comics. 1995
Conversando em russo, o Homem de Titânio assume a posição de não se
preocupar com os inocentes, mesmo o povo russo, denominando a si mesmo de
Boris the Merciless
4
. Essa afirmação liga da mesma forma o aspecto armamen
-
tista à figura íntima do soviético, com o personagem afirmando ser impiedoso
mesmo antes de receber sua armadura soviética, sendo assim, como muitos an-
tes dele, “representado como uma pessoa maquiavélica, disposta a difundir o co-
munismo pelo mundo e a derrotar os Estados Unidos” (SANCHES, 2021, p. 74) ao
atacar uma inauguração das indústrias Stark.
O belicismo da Guerra Fria, aqui expresso tanto na questão de uma armadu-
ra tecnológica quanto na vívida experiência nuclear, constituem uma parte im-
portante do imaginário, mesmo que hoje saibamos que “o confronto real entre as
duas ditas superpotências era praticamente impossível” (KRAKHECKE, 2009, p.
13). A realidade contemporânea da época era de que algo assim poderia aconte-
cer, e ter isso representado tanto durante, quanto após a Guerra Fria, certamen-
te possa ter gerado uma atividade na imaginação populacional.
Por fim, no final de ambos os enredos, temos uma efetiva ação armamentis
-
ta acontecendo em grande escala:
4
Traduzido pela editora Abril como Boris, o impiedoso.
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Figura 05 – Mísseis soviéticos em The Green Lantern Corps 210.
Fonte: DC Comics. 1987
Gorbachev realmente lança seus característicos mísseis com estrelas ver-
melhas, com o destino sendo os Estados Unidos. É perceptível a escala da amea-
ça ao observar o tamanho dos mísseis, pois comparados com os super-policiais
espaciais presentes, os Lanternas Verdes, podemos ver a razão de todos os nor-
te-americanos estarem preocupados. Além disso, se observamos as falas dos
Lanternas, até mesmo dos alienígenas, é possível observar que nem mesmo eles
acreditam que o ataque direto foi de fato realizado, indo contra a principal regra
da Guerra Fria.
Já no confronto entre Dínamo Escarlate e o Homem de Titânio, temos a
seguinte situação:
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Figura 06 –Dínamo Escarlate atacando em
Iron Man Volume
1 317.
Fonte: Marvel Comics. 1995
Por mais que seja Tony Stark na armadura, quem controla o ataque da base
central é Shatalov, o próprio Dínamo Escarlate. A armadura atual do Dínamo é
uma armadura russa, e não soviética, pois recebe ordens dos militares pós-so-
cialismo. É perceptível que, com o final da Guerra Fria e a adoção do capitalismo
pelos russos, a armadura passou a se assemelhar mais com a tecnologia norte-
-americana (basta olharmos para o próprio Homem de Titânio para comparar),
assim como o armamento principal usado por ela: esse o raio de propulsor em
seu centro, característica do Homem de Ferro.
Com tais comparações sobre o armamento tendo sido feitas, é possível rea-
lizarmos uma análise voltada para os elementos referentes aos valores culturais
impressos nas páginas das Histórias em Quadrinhos em questão, pois Bazcko
(1985, p. 307) relaciona a produção de tais aspectos com o imaginário, sendo que
a “vida social é produtora de valores e normas e, ao mesmo tempo, de sistemas
de representações que as fixam e traduzem”.
Iniciando pelos personagens, temos que ambos os heróis representariam
um modelo para o cidadão norte-americano, que se identificaria mediante a lei
-
tura da HQ, principalmente relacionado ao aspecto bélico posto nas histórias,
na medida em que ocorre o enfretamento do inimigo soviético a qualquer custo,
onde há também uma certa similaridade, sendo o inimigo um cidadão soviético
que utiliza-se de uma armadura de alta tecnologia para o combate.
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A construção da imagem do soviético nas HQs do Homem de Ferro e do Lanterna Verde
Na análise das Histórias em Quadrinhos em questão, outro fator a ser notado
é a representação da imagem ligada ao soviético nos enredos. Se levado em con-
sideração o maniqueísmo que se desenvolvia durante toda a Guerra Fria, era bus-
cado criar uma representação não só da União Soviética, mas também de seus
habitantes. Dessa forma, o historiador Alexandre Valim (2010, p. 44) descreve
uma comparação entre a representação soviética norte-americana e a compa-
ração do império romano em relação aos “bárbaros”, indicando que a mídia nor-
te-americana, ao tratar dos soviéticos, “frequentemente descrevia estes como
bárbaros que estariam à espreita preparados para qualquer chance de infiltração
pelas frestas das defesas do Império”. Biagi (2004, p. 65), ao comentar sobre a
construção do imaginário da Guerra Fria, estabelece que “a “criação” do inimigo
soviético foi essencial para poder convencer o Congresso norte-americano da
necessidade de uma política externa agressiva e participativa, pois os riscos da
expansão comunistas eram muito grandes - mesmo não existindo, de fato, tais
riscos”. Filmes, séries, jogos, quadrinhos, dentre outros elementos do cotidiano
norte-americano passaram a fazer parte dessa representação dos inimigos so-
viéticos e vigorar na imaginação social.
Perto do início dos enredos, um dos primeiros soviéticos a ter destaque em
sua representação é Vladimir Ilyich Ulianov, conhecido pelo apelido Lenin, antigo
revolucionário comunista e ex-chefe soviético, considerado um dos mais impor-
tantes revolucionários russos. No enredo do Lanterna Verde, temos uma partici-
pação pictórica de Lenin, representado na forma de um quadro, no gabinete de
Gorbachev:
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Figura 07 – Vladimir Lenin em
The Green Lantern Corps
209.
Fonte: DC Comics. 1987
A cena é desenhada em um plano geral (enquadramento de desenho que
realça o cenário, optando por um desfoque dos personagens para determinar o
local e o período), tática comum na produção de quadrinhos. O destaque a Lenin é
dado dentro de um aspecto superior, evocando uma autoridade e uma espécie de
culto para sua figura e personalidade. Interessante é que pondo em perspectiva
o neoliberalismo norte-americano durante a Era Reagan, percebemos uma
demonização de seus opositores de esquerda, que “junto com a tradição marxista,
é considerada velha e ultrapassada pelas ideologias dominantes” (CASTELO,
2020, p. 2). Tal quadro pode induzir a uma interpretação do imaginário dos leitores
o quanto as políticas soviéticas estavam ultrapassadas, cultuando tais imagens
em seu sistema. O quadrinho também mostra uma URSS necessitando de ajuda
externa para aprimorar sua tecnologia, com Gorbachev agradecendo Kilowog
pelo auxílio com seus soldados, ressaltando mais um aspecto ultrapassado da
URSS.
No enredo do Homem de Ferro, temos uma outra situação envolvendo não
só a imagem, como os restos mortais de Lenin, em uma página completa sendo
dedicada para isso:
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Figura 08 – Vladimir Lenin em
Iron Man Volume
1 315.
Fonte: Marvel Comics. 1995
Nos quadros, o Homem de Titânio, triste pelo final da URSS e do sistema
socialista soviético, visita o Mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, em Moscou.
Na cena, acompanhamos o personagem enquanto relembra eventos importantes
para a URSS, como a Revolução Bolchevique e a vitória na Segunda Guerra
Mundial, e lamenta os desfechos desses acontecimentos, como a grande
quantidade de mortos na Grande Guerra Patriótica (nomeação soviética para a
Segunda Guerra Mundial), muito utilizada pelos russos para ressentimento de
recordações do passado, pois “à medida que a guerra se afasta em direção ao
passado, a memória sobre esse evento torna-se mais intensa e sobretudo mais
emocional” (RODRIGUES, 2022, p. 340) , além da contaminação das pessoas
pelos hábitos capitalistas na nova Rússia pós-socialismo. O personagem tece
comentários sobre assassinatos, prostituição, desalojamento e sobre a figura
de Vladimir Volfovich Zhirinovsky (político e advogado russo que concorrera nas
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eleições presidenciais do país em 2012, tendo sido fundador e líder do Partido
Liberal Democrata da Rússia), com seus ideais considerados fascistas acerca
do futuro da nação. Nessa ocasião, a figura de Lenin é colocada como uma
forma de consolo para as mágoas do personagem, com o soviético falecido se
desvinculando da imagem demonizada que seus sucessores carregaram nas
representações norte-americanas.
As duas editoras, ambas capitalistas norte-americanas, tecem suas repre-
sentações de um dos mais famosos líderes comunistas com dedicações muito
distintas, seja no espaço dedicado (um quadro ou uma página completa) ou na
sua posição colocada (alguém extremamente cultuável ou um consolo para res-
sentimentos). Os dois enredos se passam na mesma cidade, mas apenas um se
dispõe a mostrar o monumento dedicado para Lenin (sendo justamente o que se
passa após o final da URSS).
A população soviética também marca presença nas HQs. Temos no Lanterna
Verde, a seguinte situação:
Figura 09 – População soviética em
The Green Lantern Corps
209.
Fonte: DC Comics. 1987.
Durante o sequestro dos Lanternas Verdes que questionaram Gorbachev,
podemos ver a posição em que o cidadão comum soviético é colocado, assim
como as ações dos soldados soviéticos em armaduras. Essa representação de
opressão estatal, vista nas feições e cores usadas para definir o papel da popu
-
lação soviética que havia presenciado o ataque aos Lanternas, acompanhados
pela fala do soldado que diz, mesmo ao ar livre, de que ninguém havia visto nada,
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denota mais uma vez uma ideologia que supostamente seria “baseada na demo-
cracia, na liberdade de direitos individuais e na independência” (VALIM, 2010, p.
53) tão defendida pelos norte-americanos e por consequência impraticável no
socialismo.
No enredo que envolve o Homem de Titânio, é exposta uma situação mais
específica:
Figura 10 – Conversa em russo em Iron Man Volume 1 316
Fonte: Marvel Comics. 1995
No quadro, temos a situação que mais se aproxima de uma representa-
ção da população russa/soviética em todo o enredo. O vilão soviético menciona
que o povo russo já teve o bastante de uma experiência ditada por estrangeiros
(se referindo ao capitalismo e as intervenções norte-americanas durante toda a
Guerra Fria). O personagem também justifica suas ações em um âmbito de pre
-
servar a nação mãe caída, que havia sofrido muito na Segunda Guerra Mundial,
levando em consideração que “a criação do inimigo soviético foi essencial para
poder convencer o congresso da necessidade de uma política externa agressiva
e participativa, pois os riscos da expansão comunistas eram muito grandes” (BIA-
GI, 2004, p. 65), mesmo que infundados.
Nessas ocasiões analisadas, vemos uma distinção nas representações
do soldado russo como parte da população soviética. Enquanto o Homem de
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Titânio clama ser parte do “nós”, sendo esses o povo derrotado e forçado ao
capitalismo, os Sovietes Supremos do Lanterna Verde abordam uma visão
de superioridade para sua população, voando sobre elas com os capturados.
Interessante é reparar como os dois personagens não diferem tanto em seus
papéis, ambos são soldados russos que se utilizam de armaduras tecnológicas
para sustentar uma manutenção/retorno do sistema socialista. De certa forma,
as duas representações levam a um mesmo fator do imaginário social, o de que
os soviéticos teriam certo “conformismo social” (VALIM, 2010, p. 44), com uma
situação sendo perante a tirania estatal, e a outra um retrocesso para os tempos
que eram socialistas.
Para última comparação, cabe trazer parte do desfecho das duas histórias,
por também partilharem de elementos pertinentes na construção do soviético,
vez que em ambas, o inimigo de armadura é morto:
Figura 11 – Kilowog lamenta a morte de seu amigo em The Green Lantern Corps 210.
Fonte:
DC Comics. 1987
Na HQ do Lanterna Verde, Gardner aparece dizendo que salvou seus cole-
gas dos cientistas soviéticos e que Kilowog compreendia a verdadeira face so-
viética, enquanto Jordan esclarece que impediram a Terceira Guerra Mundial de
acontecer. Nesse momento, o Lanterna Guy Gardner diz que não existiu nenhuma
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glória ao se usar mísseis, sendo rebatido por seu companheiro dizendo que era
um clichê da guerra, e citando outro muito importante para o contexto, proferin-
do que
War is hell
5
, se referindo a necessidade de Kilowog em matar o seu amigo,
em nome de uma ideologia soviética, representada de uma forma maligna e trai-
çoeira.
O Homem de Titânio encontra um destino semelhante nas páginas do Ho-
mem de Ferro:
Figura 12 - A morte do Homem de Titânio em
Iron Man Volume
1 316.
Fonte: Marvel Comics. 1995
Ao combater Tony Stark usando a armadura do Dínamo Escarlate, que bus-
cava revigorar o orgulho russo, o vilão é morto em um ataque proferido pelo seu
ex-companheiro, sem que Stark tivesse o controle da armadura. O Homem de
Titânio tem como suas últimas palavras (por alguma razão, em inglês)
Papa? I’m
Cold
6
,
possível paralelo entre seu fim de vida e o clima russo com o qual passou
5 Traduzido pela editora Abril como “Nenhuma guerra vale a pena”.
6 Traduzido pela editora Abril como “Papa? Estou com frio”.
PRINCÍPIOS
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toda sua existência, enquanto a luz de seus olhos literalmente vai se apagando
quadro a quadro. É possível também ver Stark arrependido do desfecho que o
conflito teve, chegando a indagar o Dínamo original posteriormente, pois teria
sido responsável por eliminar um ex-companheiro de equipe.
Considerações Finais
Ambos os enredos representam um supersoldado soviético de armadura
morto por alguém que consideravam um companheiro, que já havia acreditado na
mesma ideologia política que eles. Os arrependimentos, tanto de Gardner quanto
de Stark, relembram a imagem de um norte-americano “bom samaritano” (TOTA,
2009, p. 182), construído durante toda a Guerra Fria para justificar suas ações no
mundo, levando isso para outros países com o
American Way of Life
, um campo
de “disputa entre diversas culturas políticas que, por sua vez, são compostas
por um conjunto de subculturas ligadas, por exemplo, à religião, à economia e
ao anticomunismo” (VALIM, 2010, p. 40), propagado para os países que possuíam
zonas de influência norte-americana por meio de veículos midiáticos e culturais,
como o próprio quadrinho, fazendo assim parte de um imaginário social em
grande escala, pois configura “uma linguagem narrativa com características
próprias e cuja penetração e influência na sociedade contemporânea é inegável”
(BERNARDO, 2006, p. 2). É representado que, mesmo após a Guerra Fria, os que
se intitulam de soviéticos continuam a falecer em nome de uma ideologia que
idealizavam, carregada por uma representação imaginária de antagonismo e
tirania, essa apontada por Biagi (2004, p. 63) como supostamente construída para
ser “abertamente dedicada à destruição da sociedade “burguesa” tradicional”.
A imagem de Lênin, presente em ambas as histórias, assume, como visto,
diferentes papéis em termos representativos. Na HQ do Lanterna Verde, sua
função se exerce em um nível mais discreto, colocado como um quadro no
gabinete do chefe de Estado. Já na HQ do Homem de Ferro, ela exerce uma
função consoladora para o patriotismo do Homem de Titânio, o qual compadece
de angústias e medo da abertura da Rússia para o capitalismo ocidental.
Outra divergência feita é a representação da população socialista, onde no
enredo referente ao Homem de Ferro é auto incluso o supersoldado Homem de
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Titânio (contradizendo-se mais tarde ao se referir a si mesmo como impiedoso
com inocentes), enquanto nos tempos de Guerra Fria do Lanterna Verde, existe
uma clara diferença entre os supersoldados e o povo soviético. Esse fator pode
se dar devido a visão tirânica que os EUA buscavam representar do governo
soviético, demonstrado como autoritário e manipulador da liberdade das pessoas.
Uma aproximação feita é no desfecho dos enredos, pois em ambos não é um
norte-americano quem mata o supersoldado soviético. No Lanterna Verde, quem
finaliza a HQ é o alienígena Kilowog, enquanto no Homem de Ferro, quem aciona
a arma é o russo Valentin Shatalov. Esses acontecimentos podem ser ligados ao
imaginário representado pelo
American Way of Life
, de uma forma que na reta
final da Guerra Fria e após ela, não seria mais concebível ver um norte-americano
assassinar outra pessoa, mesmo que um soldado socialista, indo contra o estilo
de vida americano pretendido pelo governo na criação da imagem de seus heróis,
levando assim a valores dominantes, que visam “poder, riqueza material, status,
dinheiro, liderança, hierarquia” (VIANA, 2007, p. 12).
Por fim, as camadas teóricas e práticas que cercam o campo da Guerra
Fria possibilitam um grande leque de pesquisas documentais. A inserção dos
quadrinhos enquanto uma fonte de pesquisa histórica passível de análise é
responsável por permitir uma visão além da clássica dicotomia do período de
conflito indireto, principalmente ao levar em consideração as temáticas do
armamento bélico e da construção da imagem do soviético, de forma direta ou
indireta. Como visto, ao pensar uma análise dos valores de uma nação em relação
a constituição de um imaginário social, essa ocorre ligada a uma polarização
imaginária no campo cultural. Em relação a comparação entre as duas editoras,
verificou-se um modo de operação não muito distinto, com as duas utilizando-se
de heróis criados e reformulados durante a Guerra Fria para trazer suas histórias,
seja um conflito aberto na cidade de Moscou ou a morte de um soldado soviético
de armadura.
PRINCÍPIOS
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e-issn: 2526-7280
Luís Eduardo dos Santos, / Leonardo Brandão
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Anna Paula Teixeira Daher
EUCLIDES DA CUNHA - UMA VIDA NAS “JANELAS” DA REPÚBLICA
EUCLIDES DA CUNHA - A LIFE IN THE “WINDOWS” OF THE REPUBLIC
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21662
Anna Paula Teixeira Daher*
1
Rede Pública Municipal de Goiânia
https://orcid.org/0000-0001-5333-7705
aptd78@gmail.com
Recebido em 07 de abril 2024
Aprovado em 23 de maio de 2024
Euclydes da Cunha era uma celebração de rara força,
servida por um coração vibrátil e fragílimo
.
(Jornal do Commércio (RJ) de 16 de agosto de 1909).
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, Santa
Rita do Rio Negro, distrito de Cantagalo-RJ
2
, no dia 20 de janeiro de 1866. Filho
de Eudóxia Moreira da Cunha e do guarda-livros
3
Manuel Rodrigues Pimenta da
Cunha, órfão
4
de mãe aos três anos de idade, passou os primeiros anos de vida
1
*
Doutora em História pela UFG. Membro do Grupo de Estudos de História e Imagem da UFG e da
Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professora da Rede Pública Municipal de Goiânia. E-mail:
aptd78@gmail.com.
2 Desde 1943 o distrito leva o nome de Euclidelândia, em homenagem ao ilustre filho (DOLZAN,
2016).
3 Nas fazendas de café que então tomavam o Vale do Paraíba (ABREU, 1998).
4 O pesquisador Antenor da Silva Ferreira destaca que, dos aspectos na trajetória pessoal de Euclides,
a orfandade é fator preponderante para o resultado de seu engajamento social e político. Segundo ele,
tamanha perda foi de grande influência para a “personalidade quixotesca” de Cunha, com sua propen
-
são a tomar a defesa dos oprimidos. (FERREIRA, 2019, p. 17).
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sob os cuidados de parentes
5
e voltou ao Rio para estudar, em 1879
6
, e se tornar
nome maiúsculo da cultura brasileira e do elenco de escritores do cânone
7
nacio-
nal.
Viveu brevemente e morreu assassinado aos 46 anos de idade, em 1909,
quando confrontou Dilermando de Assis, o jovem amante da sua esposa, Ana, em
um episódio que ficou conhecido como a
Tragédia da Piedade
, comoveu o país e,
até hoje, o torna tão famoso quanto a sua maior obra,
Os Sertões
. A publicação
desse livro, em 1902, o erigiu a um lugar especial na história intelectual do Bra-
sil, tendo em vista que, naquele momento, os pensadores, escritores, e demais
atores da República encontravam-se prontos para a crítica da sua formação e
atuação – em Canudos
8
e de modo geral (GALVÃO, 2009a).
Walnice Nogueira Galvão, em texto que trata da
chef d´oeuvre
de Euclides,
mas não foge da sua vida, anota um desvio: as décadas de reflexões sobre a obra
arrebanharam grupos apaixonados e odiosos, e esses sentimentos facilmente se
transmite ao próprio autor, e esses críticos cheios de sentimento muitas vezes
se espantam com as ocorrências da vida dele. Mas, a pesquisadora também já
se adianta, “não é que o que ocorreu com Euclides da Cunha tenha sido tão ex-
traordinário. Nos quadros habituais da família patriarcal brasileira, os feitos são
perfeitamente compreensíveis”, mas ela reconhece, e externa, “talvez se tornem
chocantes quando se constata como, num autor de postura tão científica, a vida
seja ao contrário tão pouco científica, sua ação pessoal seja tão irracional” (GAL
-
VÃO, 1981).
Quando Euclides, arma em punho, chegou à casa de Dilermando em busca
de Ana – e dele, o fez em seu lugar de homem bom que reagia à má conduta da es-
5 A partir de 1869 em Petrópolis (RJ), com os tios maternos Rosinda e Urbano Gouveia e, com a
morte de Rosinda em 1871, sob os cuidados dos tios maternos Laura e Cândido José de Magalhães
Garcez em São Fidelis - RJ. Além disso, em 1877 passou um breve período com a avó paterna em
Salvador - BA (VENTURA, 2003)
6 Nessa ocasião Euclides foi acolhido pelo tio paterno, Antônio Pimenta da Cunha.
7 O cânone literário é o conjunto de obras (e seus autores) que a sociedade e as instituições conside-
ram perenes, geniais, seminais por comunicarem valores humanos essenciais, devendo ser estudadas
e transmitidas de geração em geração.
8 A Guerra de Canudos, em resumo, foi um confronto entre o Exército e os participantes de um
movimento popular de fundo religioso liderado por Antônio Conselheiro, ocorrido na comunidade
que o exército brasileiro chamou de Canudos (mas que era conhecida como Arraial Belo Monte), no
interior da Bahia, em 1897. Conselheiro chegou ao sertão baiano no final da década de 1870, mas não
despertou maior preocupação no Império, que entendia ser aquele um problema local. Mas a nascente
República via a atuação messiânica do Conselheiro de modo diferente, como uma ameaça à ordem.
(JUNQUEIRA, s/d, s/p).
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posa, e para isso não deveria haver punição. Mas o escritor pagou com sua vida.
Dilermando infringira todo tipo de expectativa ao se relacionar com uma mulher
casada, e Euclides tinha o direito moral (segundo se entendia na ocasião) de co-
brar a honra enxovalhada, Dilermando tinha o direito de se defender. Ao final, Eu
-
clides falhou e não sobreviveu.
Nos dias e anos que se sucederam à Tragédia da Piedade, inúmeras vozes
se levantaram a favor de Euclides, construindo uma narrativa elogiosa, sempre
ressaltando as qualidades do falecido, construindo a trajetória do herói e contri-
buindo para sua mitificação.
Essas circunstâncias pessoais muitas vezes tomarem frente a outros as-
pectos da vida de Euclides, e é também Walnice Galvão (1981) quem é cuidadosa
em destacar que esse lado mais explícito da vida do escritor não deve fazer som-
bra ao seu papel de homem público. De fato, aos seus papeis de homem público,
que foram muitos: como militar, como escritor/intelectual (e a partir daí como
jornalista e atuante defensor da implantação da República) e também como en-
genheiro, profissão instrumental no desenvolvimento do Brasil de então.
De fato, é na caserna, como aluno da Escola Militar da Praia Vermelha
9
, que
Euclides aprende a pensar o mundo, e, enquanto autor, constrói sua carreira de
escritor sempre analisando e argumentando acerca da República, pedra de to-
que em sua obra, seja nos livros que escreve (aspectos da República são analisa-
dos não só em
Os Sertões
, mas também em
Contrastes e confrontos
, inicialmente
publicado em 1907, e em À margem da história, que é de 1909, por exemplo), seja
na sua atuação como repórter.
Mas Euclides era engenheiro porque um dia foi militar. Ser militar abarcava
ser engenheiro, cartógrafo, ser uma frente ativa no papel de civilizar o vasto in-
terior, trazendo a moralidade e a organização social, além de garantir, ao mesmo
tempo, a paz necessária para o bom crescimento da nação. E isso tudo obser-
vando os princípios da honra e do pundonor
10
. A família de Ana era de militares,
9 A Escola Militar e de Aplicações da Praia Vermelha foi criada no Rio de Janeiro imperial de 1875, uma
adição a até então única instituição de ensino superior do Exército, a Escola Central, que formava engenhei-
ros civis e militares. “A geração da Escola Militar a que pertenceu Euclides é aquela que vai viver em cheio
a renovação de todas as ideias. Religião católica, instituições monárquicas, escravidão, prestígio da grande
propriedade rural, ecletismo filosófico e espiritualismo, romantismo artístico-literário, tudo isso será levado de
roldão por “um bando de ideias novas”. (GALVÃO, 2010, p. 14)
10 Oliveira Viana é outro intelectual que reconhece a presença do espirito de classe e de honra entre
os militares. Segundo ele, entre pares que demonstram “sensível espírito de corpo e um vivo pundo-
nor profissional” (VIANA, 2010, p. 116).
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seus amigos foram feitos principalmente nas fileiras da Escola Militar e todos
eles estiveram envolvidos com o Exército ao longo daqueles primeiros anos da
República. Dilermando de Assis também era militar.
José Murilo de Carvalho (2017) lembra que o exército fez frente a dois mo-
mentos fundamentais da vida de Cunha: o episódio da espada
11
na Escola Militar
e a sua própria morte (pelas mãos de um oficial do Exército). Também é Carvalho
(2017) a lembrar outra função muito importante da estrutura militar na vida de
Euclides: incutir-lhe um senso de brasilidade – o que, ao final, foi fundamental
para que ele escrevesse
Os Sertões
e passasse a ocupar os lugares que ocupou.
A instituição da República no Brasil tem um grande peso na vida de Eucli-
des, em sua formação, em sua vida pessoal, em seu trabalho. Expulso da Praia
Vermelha, Euclides parte então para São Paulo e é aí que começa a sua vida de
jornalista e escritor junto ao jornal
A Província de São Paulo
a convite de Júlio de
Mesquita
12
, onde estreia escrevendo artigos defendendo a República e criticando
a Monarquia e a Família Real brasileira. Retorna ao Rio de Janeiro no ano de 1889
e, sem deixar de atuar na imprensa, com a chegada da República, é reintegrado
ao Exército – e à Praia Vermelha.
Desde os seus anos de Escola Militar, que moldariam a maneira como ele via
o mundo, até as novas lentes com as quais ele passa a ver a República e o país a
partir da forma como o Brasil foi governado nos primeiros anos do novo regime –
o que fez com que ele mudasse sua opinião
13
sobre o que acontecia em Canudos e
11 é favorita entre seus biógrafos e estudiosos a passagem de sua expulsão da Escola Militar da Praia Verme-
lha, no ano de 1886, onde o então cadete Euclides joga sua espada aos pés do ministro da guerra do Imperador
D. Pedro II. Sobre o ocorrido, Bernucci (2009) afirma haver duas versões sobre o ocorrido. Na primeira delas,
alega que o comportamento de Euclides se deu em razão de uma manifestação acerca da falta de promoção
para alferes-alunos, conforme prescrevia a lei. A segunda versão atribui o protesto de Euclides a mudança do
dia da visita do Ministro da Guerra do Império, Thomaz Coelho, impedindo que os alunos assistissem ao de
-
sembarque do republicano Lopes Trovão, que voltava da Europa. Esta segunda versão é a comumente aceita
e analisada por pesquisadores como Ventura e Galvão, e relatada em biografias como a de Pontes (1938), e é
peça importante para a construção da figura pública de Euclides.
12 Filho de portugueses, passa parte da infância no país europeu, onde inicia seus estudos. Contudo, bacha-
rela-se em Direito no Brasil. Pouco milita na área, dedica-se ao jornalismo e à política ao longo de sua vida
adulta, crescendo com o regime republicano brasileiro, o qual apoia. Trabalha no jornal
Província de São Pau
-
lo
alguns anos até tornar-se sócio da empresa e, então, proprietário do jornal que viria a se chamar
O Estado
de São Paulo
. O convite para Cunha cobrir a Guerra de Canudos é benéfico ao jornal de Mesquita, que vê a
tiragem do periódico saltar para 18 mil exemplares diários, em razão do interesse do público pelo conflito. (De
acordo com informações constantes de
http://cpdoc.fgv.br
. Acesso em 24 mar 2020).
13 Euclides chamou
Os Sertões
de livro vingador justamente porque apontou os erros do governo. Em carta
a Francisco Escobar, discorreu, “alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá. Nem outra coisa quero.
Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos as
-
sassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária” (GALVÃO E GALOTTI, 1997, p. 133).
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colocasse isso em texto, primeiro como repórter do jornal
O Estado de São Paulo
,
e depois em
Os Sertões
.
Cunha deixou logo a vida militar, mas o fato é que o exército esteve sempre,
de alguma forma, envolvido nos grandes momentos e nas grandes decisões da
vida de Euclides, esse homem “fora do lugar” (CARVALHO, 2009), militar sem
disciplina e sem interesse na guerra, um engenheiro preso a um mundo que não
lhe despertava maior ânimo e tampouco auxiliava sua criatividade, um homem
da cidade
14
que sonhava com a natureza em seus extremos - o sertão e a floresta
(DAHER, 2022). No entanto, dedicou-se a engenharia, trabalhou como funcionário
público, nunca pôde se dedicar somente à escrita, apesar do seu sucesso nesta
seara, notadamente em
Os Sertões
15
.
Florestan Fernandes (1997, p. 35) a nominou como obra que “possui valor de
verdadeiro marco” por dividir o “desenvolvimento teórico-social da sociologia
no Brasil”. Antônio Cândido (2000, p. 122) também cimentou o lugar de Euclides
no Olimpo da
intelligentsia
16
nacional ao apontar que “
Os Sertões
assinalam um
fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica
aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”. Cumpre aqui
destacar o que esses intelectuais professam competências específicas e, por
terem uma socialização comum estabelecem mais facilmente laços de afinidade
entre si, entre os membros desta
intelligentsia
, o que os une, normalmente
superando divergências e rivalidades existentes. Segundo Martins (1987), “esses
laços comuns, esse sentimento de pertencer a um certo nós (
wefeeling
), se
traduzem em símbolos próprios, numa linguagem e em hábitos mais ou menos
14 Euclides, por exemplo, era um crítico ácido dos melhoramentos aos quais a cidade do Rio de
Janeiro foi submetida ao longo dos primeiros anos do séc. XX. Brito Broca fala desse incômodo: “o
remodelamento do Rio, a mentalidade arrivista que daí surgia, tudo era de molde a irritá-lo. Não podia
suportar aqueles arremedas de civilização européia. Em carta de 12 de fevereiro de 1908 a Francisco
Escobar, convidando-o para uma visita ao Rio dizia: ‘Admirarás os célebres melhoramentos. Fulmi
-
naremos, juntos, o pioramento dos homens. Daremos pasto à nossa velha ironia ansiosa por enterrar-
-se nos cachaços gordos de alguns felizes malandros que andam por aí fimfonando desabaladamente,
de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós outros, pobres altivos diabos que teimamos em andar
nesta vida, dignamente, pelo nosso pé’”. (BRITO BROCA, 2005, p. 134).
15 A primeira edição se esgotou em cerca de dois meses. Walnice Galvão (2009b) argumenta que o
livro, se lançado nos dias atuais, teria sido considerado um
best seller
.
16 O termo, de origem latina, foi famosamente empregado para determinar um grupo distinto de pes-
soas na Rússia da segunda metade do séc. XIX e que não se encaixavam nas distinções sociais então
existentes. Desde então, por extensão, é geralmente utilizado para determinar um grupo de intelec
-
tuais de um país (KIMBALL, s/d), um grupo bem-educado da sociedade, que defende os interesses
da pátria e do povo a partir da razão e do conhecimento (VIEIRA, 2008).
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compartilhados, por intermédio dos quais os membros da intelligentsia se
reconhecem e são reconhecidos enquanto tais”.
Ao longo do tempo a crítica se repete: Euclides era brilhante na forma e no
estilo, rico na linguagem, e abordava tema histórico de relevância considerando
as consequências dos atos do governo brasileiro nos habitantes dos sertões
– que este mesmo governo parecia sempre ignorar (LIMA, 1997, p. 21). Mas a
permanência de Euclides nesse Olimpo não se deu sem julgamento ao longo dos
anos, é bom ressaltar.
O próprio Antônio Cândido (2000) nominou o texto de Cunha como de um
barroquismo exagerado e de mau gosto. Mário de Andrade discordava da visão
da obra que Cunha ganhou pelo público e grande parte da crítica ao atestar que
“Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques
o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é
miséria pura” (LIMA, 1997, p. 22). Sevcenko, por sua vez, via a questão por um
ângulo diferente do de Mário de Andrade, ele refletiu sobre a posição de Euclides
diante de diferentes correntes de pensamento que faziam parte de sua vida e
formação: o idealismo romântico e o realismo científico: “sem ligar-se em
particular a nenhuma dessas correntes (romantismo, realismo, parnasianismo),
Euclides entreteceu-as todas, imprimindo-lhes a unidade de uma trama tensa a
serviço de suas convicções filosóficas e científicas.” (SEVCENKO, 1983, p. 159).
Essa recepção da obra por nomes de peso para a compreensão (e construção)
do lugar do intelectual no Brasil é arrematada pela afirmação de Regina Abreu
(1998) quando refletiu que a obra de Euclides se tornou um símbolo nacional, por
si só um lugar de memória, o mesmo efeito de um bem tombado pelo patrimônio
histórico – um monumento.
Mas, também como a obra de Euclides vai além de
Os Sertões
, a sua
contribuição para o pensamento brasileiro ultrapassa este marco
17
: Cunha em
muito favoreceu a inserção da Amazônia na questão da formação nacional, e, mais
17 Note-se que Berthold Zilly, trabalhando
Os Sertões
, entende que a grande força e maior importân-
cia da obra está no fato de que Cunha constrói sua narrativa para interligar história natural e história
social: “Euclides da Cunha narra uma espécie de gênesis, a origem do
hinterland
e da sua população,
mais ainda, as origens da terra e nação brasileiras. Estuda os traços distintivos, as deficiências e po
-
tenciais de desenvolvimento do sertão e de todo o Brasil, bem como a posição do país num mundo
cada vez mais homogeneizado por aquilo que mais tarde se chamaria de globalização, e ao mesmo
tempo profundamente cindido pelo darwinismo social, defendido e ao mesmo tempo criticado pelo
próprio autor” (ZILLY, s/d).
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que isso, inaugurou um novo modo de perceber a história da região, ao observar
a vivência da população amazonense à margem a história (PINTO, 2012). Neste
ponto, seja no Alto Purus, seja em Canudos, o que é importante destacar é como
Euclides enxergava o fato de que a discussão da identidade e da nacionalidade
no Brasil deveria passar pelas figuras tanto do sertanejo quanto do caboclo
18
(FERREIRA, 2019).
O período da vida adulta de Euclides é um período de intensa atividade
intelectual/cultural no país, e os nomes envolvidos nessa dinâmica são também os
envolvidos na organização política brasileira. No período entre o final do Império e
a primeira metade do séc. XX, o que se vê são gerações de pensadores dedicados
a diagnosticar o país e apresentar projetos aptos a alçar o Brasil ao seu lugar de
país civilizado. Desde a chamada “geração de 1870”, que teve uma forte atuação
nas discussões sobre a escravidão, a abolição, a República e a introdução de
um “bando de novas ideias”, conforme se referia Silvio Romero, os intelectuais
brasileiros acreditavam que a modernização, o progresso e a construção de
uma nação civilizada não seriam possíveis sem a condução dos intelectuais e a
intervenção direta da ciência e da técnica nesse processo. (SOUZA, 2018, p. 07).
Euclides e seus pares não se reconheciam apenas nas agremiações de
intelectuais (o escritor foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –
IHGB
19
e da Academia Brasileira de Letras – ABL
20
, por exemplo), eles se agrupavam
no mundo da política e do trabalho, eles atuavam juntos, como engenheiros,
médicos, professores, membros das forças armadas, advogados, jornalistas,
funcionários públicos, muitas vezes perpetuando nas profissões escolhidas
tradições de família
21
. Essas pessoas, geralmente educadas formalmente nos
18 Acerca das diferenças entre os termos “sertanejo” e “caboclo”, Silva é cristalino ao trazê-la, en
-
quanto pondera sobre a definição de outro termo de múltiplas explicações, o “caipira”: “Estudos no
campo acadêmico, como o
19 Euclides foi indicado como sócio correspondente do IHGB em 6 de março de 1903 - e alçado a sócio
efetivo 3 anos depois, por proposta de Rocha Pombo, entre outros membros, que o consideravam “um
observador erudito, um cientista aplicado e um historiador independente” (EUCLIDES DA CUNHA
E O IHGB, s/d).
20 Euclides foi empossado em dezembro de 1906, na cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves, suce
-
dendo ao crítico literário Valentim Magalhães (1859-1903).
21 Seguir a profissão do pai era uma tradição das elites do início do século XX e mais uma forma de
perpetuar seu poder (MICELI, 2001).
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mesmos lugares, se agregavam para servir ao Estado– no caso, a República
22
.
Fazer parte de um grupo de homens pensantes a serviço de uma mesma
causa foi um importante degrau na escada que Euclides galgou até alçar a
condição de mito. Seus pares o reconheceram e o defenderam porque entre eles
já estava determinado o valor das tradições culturais que eles protegiam em um
contexto que eles também ajudavam a construir, em uma narrativa sobre a qual
eles detinham o controle (informações, linguagem, vocabulário) e a partir das
mesmas sensibilidades, das mesmas visões de mundo – ou pelo menos bastante
aproximadas. (GOMES e HANSEN, 2016).
Euclides da Cunha não é o único autor brasileiro alçado ao Olimpo literário e
com memória festejada. Há atuação similar dos admiradores de Guimarães Rosa.
Machado de Assis e Monteiro Lobato, por exemplo. Walnice Nogueira Galvão
23
,
grande estudiosa das obras de Cunha e Rosa, afirma, quanto à Rosa, que a
canonização de sua obra “elevou o escritor a um patamar onde goza da companhia
de poucos outros nomes” (GALVÃO, 2000, p. 70). Mas, como bem aponta Ventura
(1993), Cunha é o único escritor a ter se tornado objeto de culto pessoal – cabe
lembrar o lema do movimento euclidiano
24
, “por protesto e adoração”.
Hoje, é praticamente impossível separar o lugar ocupado por Euclides da
Cunha do próprio movimento euclidiano. Como assevera Regina Abreu (1998)
o papel desses euclidianistas após a morte do autor é fundamental para a
manutenção da atualidade não só de
Os Sertões,
mas de todo o pensamento de
Cunha.
22 Embora Euclides, ao longo dos anos, tenha ficado a cada dia mais desapontado com os rumos do
Brasil República, “estou nessa reserva desde os vinte anos, quadra que me assaltou o pessimismo in-
curável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis.
” (CUNHA, 1909
apud
GALOTTI e GALVÃO, 1997, p. 423).
23 Galvão (1998) corrobora essa impressão ao ser indagada se as pessoas mitificam Euclides: sem
dúvida. Isso aparece na atribuição de demasiadas virtudes a ele: patriota, honesto, decente, corajo-
so... todas as virtudes cívicas possíveis. No fim, vira um santo. Mas essa hagiologia reflete um ideal
extremamente pequeno-burguês, eu acho. Sou grande admiradora de Rimbaud, que era uma praga,
não tinha virtude alguma. Mas admiro tanto a vida quanto a obra. No caso de Euclides, sobressai a
imagem de um cidadão extremamente correto.
24
É em torno da memória desse homem (tido merecedor das honras dos amigos e dos lugares
os quais ocupou nos espaços da intelectualidade) que se formam as bases do que hoje se chama
de
euclidianismo: pelo respeito e pela admiração, mas também pela construção da narrativa que trou-
xesse ao público essa visão de Cunha, a visão de homem inteligente, do gênio da literatura que era
bom amigo, bom pai, e que foi um marido traído que morreu defendendo a família e a honra: uma
figura elevada (DAHER, 2022).
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A passagem de Euclides pela ABL (e pela cena literária brasileira de seu
tempo) foi breve, dada a sua morte repentina, e na ocasião, sucedeu-lhe na cadeira
7 o médico e escritor Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) que, além de seu amigo,
coincidentemente foi o legista responsável pela sua necropsia. Ao falar, como
manda a tradição329, de seu antecessor, Peixoto não economizou adjetivos. “
[...]depois d’ Os Sertões, exerceu Euclides da Cunha engenharia e fez arte. Teve
a celebridade. Se não se pejaram do crime que ele denunciou, regozijaram-se ao
menos com a pompa esplendorosa do seu estilo. E glorificaram-no.” (PEIXOTO,
1911).
Ainda que o seu tempo de produção literária tenha sido curto, ele deixou
uma produção que refletiu sua formação científica, “um homem de ciência, um
geógrafo, um geólogo, um etnólogo, de um homem de pensamento, um filósofo,
um sociólogo, um historiador e de um homem de sentimento, um poeta, um
romancista” (SOUZA, 2010, p. 38), e a sua produção desperta interesse até hoje,
existe uma significativa produção envolvendo a obra euclidiana, especialmente
Os Sertões
, um tributo ao lugar que o autor ocupa na memória historiográfica
brasileira; além da grande quantidade de artigos e entrevistas, por exemplo.
Como lembra José Carlos Barreto Santana no prefácio da (inacabada)
biografia de Euclides escrita por Roberto Ventura, Cunha é objeto de “uma fortuna
crítica que não encontra paralelo na cultura brasileira, ultrapassando a dezena de
milhar de livros, artigos, folhetos, teses” (VENTURA, 2003, p. 17).
Essa intelectualidade brasileira, que nos anos finais do séc. XIX e o início do
séc. XX então se organizava, o fazia com a ideia de uma missão civilizatória, no
papel de defensora dos interesses da sociedade, indo de encontro aos conceitos
de intelectual desenvolvidos por Mannheim (o intelectual como mediador de
conflitos sociais) e por Gramsci (o intelectual como organizador da cultura), como
lembra Miceli (2001).
O percurso intelectual de Euclides da Cunha dialoga com essas premissas,
se considerarmos que ele é alçado ao cânone por discutir Canudos (no papel de
intelectual mediador de conflitos) e por jogar uma nova luz na forma como se
discutia a identidade do país, olhando para os homens do sertão, ampliando a
forma de ver a nação (no papel de organizador da cultura); ainda que pesquisadores
como Martins (1987), que chama a literatura de Euclides de “vigorosa”, ressalvem
que os protestos apresentados por ele e por outros escritores do quilate de Lima
Barreto não se tornam projetos de transformação social, permanecendo no
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campo da condenação moral. Ainda assim, eles ressoam, e o eco alcança longe
porque as situações que eles discutiram no final do séc. XIX e nos primeiros anos
do séc. XX perduram
25
e, enquanto perdurarem, Euclides da Cunha fará muito
sentido.
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25
Os Sertões tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o
genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto
acontecerem tragédias como as de Mariana e Brumadinho (NOGUEIRA
apud
OLIVEIRA, 2019).
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O PROTAGONISMO DE RITA LEE NA SUBVERSÃO DO AMOR ROMÂNTICO
RITA LEE’S LEADING ROLE IN THE SUBVERSION OF ROMANTIC LOVE
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21008
Silvio Antonio Luiz Anaz
1
York University
https://orcid.org/0000-0002-4851-4903
silvioanaz@hotmail.com
Recebido em 27 de abril 2024
Aprovado em 12 de maio de 2024
1 Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pós-doutorado pela ECA-USP. Foi pes-
quisador-visitante na York University.
RESUMO:
As canções de Rita Lee contribuíram
para alimentar o imaginário do rock nacional
em temas como a celebração da liberdade, da
rebeldia e do que é profano. Além de trazer
esses temas, seu trabalho contribuiu para
adicionar um elemento original: a erotização
do amor romântico. Aborda-se aqui, a partir da
análise de alguns de seus principais sucessos,
o protagonismo da artista na subversão das
canções de amor que predominavam no pop-
rock brasileiro.
Palavras-chave:
Rita Lee, rock brasileiro,
amor romântico, erotização, imaginário
ABSTRACT:
Rita Lee’s songs contributed
to feed the national rock imaginary in themes
such as the celebration of freedom, rebellion
and the profane. In addition to bringing these
themes, his work contributed to adding an
original element: the eroticization of romantic
love. From the analysis of some of her main
hits, we approach the role of the artist in the
subversion of the love songs that predominated
in Brazilian pop-rock.
Key words:
Rita Lee, Brazilian rock,
romantic love, eroticization, imaginary
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A mais importante fase criativa de Rita Lee, ou aquela em que a artista lan-
çou a maior parte de seus principais sucessos, se inicia quando a Jovem Guarda
e o Tropicalismo estão acontecendo, na segunda metade da década de 1960, e
perde força quando há a ascensão do chamado BRock nos anos 1980
2
.
A obra de Rita Lee insere-se num rock que espelha, na maior parte do tem-
po, a trajetória dos subgêneros e movimentos do rock internacional, predomi-
nantemente do anglo-americano. De toda forma, elementos sociais, culturais e
históricos brasileiros estão quase sempre presentes de alguma forma na sono-
ridade e nos temas das composições dos artistas nacionais desse megagênero.
Em alguns momentos, os elementos do contexto brasileiro fundem-se às carac-
terísticas do rock internacional a ponto de se sobreporem e caracterizarem um
gênero ou movimento original com significativas marcas locais. Parte das can
-
ções do movimento Tropicalista (segunda metade dos anos 1960) é um exemplo
desses momentos de originalidade. Nos demais, o rock brasileiro se caracteriza
por transpor as tendências e movimentos do rock britânico e norte-americano. A
Jovem Guarda (segunda metade da década de 1960), em que muitas das canções
reproduzem a sonoridade do
beat
britânico, do
surf-rock
e da
black music
norte-
-americanos dos anos 1960, e o chamado Rock Brasil ou BRock (anos 1980), cujos
principais sucessos seguem a sonoridade e as estéticas do punk e do pós-punk
britânico e norte-americano, são exemplos desses momentos de predomínio das
estéticas internacionais no rock brasileiro.
É nesse contexto, mais especificamente entre as décadas de 1960 e de 1980,
que as canções de Rita Lee contribuem para alimentar o imaginário do rock na-
cional em temas que são definidores da natureza desse megagênero como a ce
-
lebração da liberdade, da rebeldia e do que é profano. Além de trazer esses temas,
o trabalho de Rita Lee contribuiu para adicionar um elemento original no âmbito
do rock nacional: a erotização do amor romântico predominante nas canções.
O amor romântico é um dos principais temas das canções que mais fazem
sucesso. Na segunda metade do século 20, sete em cada dez das canções que
ocuparam o primeiro lugar na parada anual de sucessos norte-americana, apu-
rada pela
Billboard
, tinham o amor romântico como tema central (WHITBURN,
2001). No Brasil, ele também é um dos temas mais frequentes nas canções po-
2 Dados do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição mostram que dentre as vinte canções
mais executadas de Rita Lee, entre 2013 e 2022, quatorze delas (70%) foram lançadas entre a segunda
metade dos anos 1960 e a primeira dos anos 1980 (ECAD, 2022).
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pulares bem-sucedidas. Considerado uma crença emocional inventada histori-
camente pelo ser humano em que “nenhum de seus constituintes afetivos, cog-
nitivos ou conativos é fixo por natureza” (COSTA, 1988, p. 12), o amor romântico é
um fenômeno universal relativo a um tipo de envolvimento afetivo e sexual entre
seres humanos, manifestado em elementos como união, paixão, provas de amor,
ciúme, culpa, infidelidade, carinho, erotismo, sexo, angústia, nostalgia, sedução,
separação e solidão, entre outros.
Na obra de Rita Lee, o amor romântico ocupa um lugar central. Dentre as
dez mais bem-sucedidas canções compostas e lançadas por ela entre a segunda
metade dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1980 (ECAD, 2022)
3
, sete
têm o amor romântico como motivo principal. Além disso, os termos mais utili-
zados por Rita Lee nessas canções (Figura 1), como querer, prazer, sentir e rolar,
entre outros, já indicam uma considerável presença de significações que dão um
caráter erotizado ao amor romântico abordado nelas.
Figura 1: Termos mais frequentes nos dez maiores sucessos de Rta Lee
Fonte: Autor
O erotismo é um componente essencial do rock desde seus primórdios. O
3 São elas:
Mania de você
(Rita Lee / Roberto de Carvalho);
Agora só falta você
(Rita Lee / Carlini);
Caso sério
(Rita Lee / Roberto de Carvalho);
Desculpe o auê
(Rita Lee / Roberto de Carvalho);
Ove
-
lha negra
(Rita Lee);
Lança perfume
(Rita Lee / Roberto de Carvalho);
Ando meio desligado
(Sergio
Dias / Arnaldo Baptista / Rita Lee);
Baila comigo
(Rita Lee);
Doce vampiro
(Rita Lee) e
Saúde
(Rita
Lee / Roberto de Carvalho).
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termo
rock and roll
, que tem seus primeiros registros nos anos 1920, surge como
uma gíria com conotações sexuais usada principalmente pelos negros no sul dos
Estados Unidos. Seus significados incluíam pôr pra quebrar, agitar, rolar e tran
-
sar. Os sentidos sensuais do termo foram apropriados por gêneros como o
jazz
,
o
blues
, o
jump blues
e o
boogie-woogie
, sendo que as canções que usavam essas
expressões ficaram sonoramente cada vez mais rápidas e mais insinuantes nas
letras (ANAZ, 2011, pp. 9-10). Quando o
rock and roll
se consolida como um novo
gênero musical na década de 1950, elementos que remetem ao erotismo estão
presentes principalmente nas letras dos artistas negros, em canções como
I Just
Want to Make Love to You
(1954), de Willie Dixon, e
Tutti-Frutti
(1955), de Little Ri-
chards, e também na estética visual do gênero, principalmente em função do jei-
to de dançar de Elvis Presley
4
.
Já, no Brasil, nos primórdios do rock nacional, um erotismo mais evidente
está praticamente ausente das canções que fizeram sucesso. Na década de 1960,
enquanto há uma ampliação da erotização das canções no rock internacional,
graças ao sucesso de canções que abordam temas sexuais de forma direta ou
metafórica, como
Little Red Rooster
(1965) e
Let’s Spend the Night Together
(1967),
do The Rolling Stones, e também por conta das transformações socioculturais
impulsionadas principalmente pela contracultura
5
norte-americana e britânica
dos anos 1960, no Brasil, a Jovem Guarda
6
, mais importante movimento asso-
ciado ao rock, traz um repertório em que o amor romântico é abordado ainda de
uma forma ingênua. Rita Lee observava que nos microgrupos sociais dos quais
participava na adolescência havia uma sexualidade muito mais atrevida do que a
cantada nas canções da Jovem Guarda (BARTSCH, 2006, p. 38).
Nessa época, Rita Lee ingressa no grupo Os Mutantes, que se tornaria um
dos mais importantes representantes do movimento tropicalista, junto com Tom
Zé, Rogério Duprat, Caetano Veloso e Gilberto Gil. É com Os Mutantes que ela ini-
4 Era tão marcante a sensualidade no jeito de dançar de Elvis Presley, em parte inspirado nas formas
de dançar dos negros norte-americanos, que lhe rendeu o apelido Elvis “The Pelvis” Presley.
5 A contracultura da década de 1960 surge nos Estados Unidos e no Reino Unido e torna-se rapida-
mente um fenômeno internacional, caracterizado por estilos de vida comunais e não-conformistas,
em que se valorizava a postura anti classe média, a liberdade sexual e o uso de drogas. O movimento
hippie foi uma das principais vertentes da contracultura dos anos 1960 (SHUKER, 1999, pp. 79-80).
6 A Jovem Guarda surge como um movimento jovem construído em torno do programa televisivo
homônimo, apresentado nas tardes de domingo entre 1965 e 1968. Apesar de introduzir mudanças
estéticas e comportamentais em sintonia com o rock e o pop internacionais, o programa adequava-se
aos limites morais da época no Brasil, que estava sob o governo de uma ditadura militar (1964-1985).
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cia seu protagonismo na subversão do amor romântico cantado no rock brasilei-
ro.
O primeiro momento desse protagonismo acontece no final dos anos 1960,
ainda de forma bastante sutil, com a canção
Ando Meio Desligado
(1970), que ela
compõe em parceria com Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Muito distante da estética
sonora e das letras ingênuas da Jovem Guarda, trata-se de uma canção com
influências da estética do rock psicodélico, cuja proposta era explorar nas letras
e na musicalidade as experiências relacionadas às drogas psicoativas (SHUKER,
1999, p. 244). A letra de
Ando Meio Desligado
aborda os efeitos corporais e mentais
provocados pela sensação angustiante causada pelo desejo ou necessidade em
se declarar à pessoa amada. O amor é causa de entorpecimento e de alienação e
o contraste entre a batida acelerada e a cadência da voz, que remete a um canto
de sedução e erotizado, enfatiza esse efeito de entorpecimento causado pelo
amor
O segundo momento da erotização do amor romântico no rock brasileiro
protagonizado por Rita Lee vem da fase seguinte a Os Mutantes, em sua trajetó-
ria acompanhada do grupo Tutti-Frutti. Uma canção que exemplifica essa fase
é
Menino Bonito
(1974), que tem a sedução como tema central. A canção trata
do percurso que alguém que está apaixonado faz, indo do encantamento que a
beleza física da pessoa amada causa ao desencanto pela superficialidade dessa
beleza ou pela não retribuição amorosa esperada. Há na construção da letra um
jogo entre a atração pelo erotismo e o desejo frustrado pelo romance
.
Ser sedu-
zido pela beleza física da pessoa amada é interpretado como algo perigoso, que
leva a um nomadismo amoroso.
O terceiro momento acontece na virada para os anos 1980, quando a artista
explora uma sonoridade mais próxima ao pop. Nesta fase, a erotização em suas
composições alcança um novo patamar, mais explícito. Dois de seus sucessos
mais representativos disso são
Doce Vampiro
(1979) e
Mania de Você
(1979).
Em
Doce Vampiro
(1979), a sensualidade é o tema central. A canção recorre
à metáfora do vampiro romântico para comparar o tipo de relacionamento que
os protagonistas mantêm. A carga de erotismo e sedução é construída ao longo
da canção com várias metáforas:
Vou abrir a porta / Pra você entrar; Que me bebe
quente / Como um licor / Brindando a morte e fazendo amor
. O doce vampiro por
quem a protagonista está incondicionalmente seduzida e apaixonada é huma-
nizado a partir da descrição de seus defeitos banais:
Me acostumei com você /
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Sempre reclamando, da vida / Me ferindo, me curando... a ferida / Mas nada disso
importa.
A imagem da morte, com duplo sentido, é associada à do sexo como
ponto alto do erotismo:
Vou abrir a porta / Pra você entrar / Beijar minha boca /
Até me matar
.
Mania de Você
(1979) também tem a sedução como tema central, acrescida
de um erotismo mais explícito. A canção enfatiza a questão da fantasia sexual
no relacionamento com a pessoa amada. O relacionamento sexual é visto como
uma mania, uma obsessão, e assume uma dimensão preponderante na relação
amorosa, sendo que elementos do mundo natural, como o mar e a lua, ajudam
também a enfatizar a sua importância. A atmosfera de erotismo é construída não
só pelos versos que o explicitam, mas também pelo tom da voz, pelas simulações
de gritos e gemidos e pela ênfase dada no cantar a certos elementos simbólicos
como a loucura e o ato sexual (rolar, fazer amor).
Nos momentos aqui representados por essas canções – final dos anos 1960
e meados e final da década de 1970 –, as composições de Rita Lee foram protago
-
nistas no pop-rock nacional de uma crescente erotização do amor romântico. O
trabalho da artista foi inovador nesse aspecto em relação ao restante do pop-ro-
ck brasileiro e estava sintonizado com o que acontecia contemporaneamente no
pop-rock internacional, no qual o tema da sexualidade tornava-se cada vez mais
presente nas canções midiáticas, muitas vezes protagonizadas também por ar-
tistas do sexo feminino. Exemplo disso é o sucesso da canção
Physical
, que, na
interpretação de Olivia Newton-John, chega ao primeiro lugar da Billboard em
1981. Nela enfatiza-se o sentimento de desejo bruto, que transforma a pessoa
amada em um objeto sexual. A partir daí, a narrativa da sexualidade e do poder de
sedução feminino alcançará outro patamar no pop-rock internacional nos anos
seguintes com o sucesso de canções como
Like a Virgin
, de Madonna.
Ainda que as canções de Rita Lee, em que predominam a erotização do
amor romântico, se inserissem no recorrente processo de aceitação e assimi-
lação das ousadias comportamentais e rompimentos de barreiras morais que
caracteriza a lógica da indústria fonográfica e do mercado, elas foram pioneiras
ao colocar em evidência no pop-rock nacional a perspectiva da mulher sobre a
questão da sexualidade. Assim, uma dentre as importantes contribuições de Rita
Lee ao longo de sua trajetória artística foi a de subverter a expressão do amor
romântico para torná-la menos ingênua e também mais representativa de uma
visão feminina e erótica.
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31 Dez. 2022. Disponível em:
https://www4.ecad.org.br/noticias/rita-lee-festeja-75-anos-com-mania-
-de-voce-como-sua-musica-mais-tocada-no-brasil/
Acesso em: 6 Fev. 2024.
SHUKER, Roy.
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. São Paulo: Hedra, 1999.
WHITBURN, Joel.
Billboard Top 1000 Singles 1955-2000
. Milwakee: Hal Leonard, 2001.
RESENHAS
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Albuquerque: revista de história, vol. 16, n. 31, jan. - jun. de 2024
I
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Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva
UMA HISTÓRIA DE AMIZADE & AMOR: QUESTÕES DE LUTO E GÊNERO EM “AS
INSEPARÁVEIS” DE SIMONE DE BEAUVOIR
A STORY OF FRIENDSHIP, LOVE, AND GENDER ISSUES IN “THE INSEPARABLES” BY
SIMONE DE BEAUVOIR
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21235
Jessica Ferreira Alves
Universidade Federal de Mato Grosso
https://orcid.org/0000-0002-4073-6608
alves.jessica12@hotmail.com
Róbson Pereira da Silva
Universidade Federal de São Carlos (DCSo/UFSCar)
https://orcid.org/0000-0001-6517-0842
rpsilva@ufscar.br
Recebido em 10 de fevereiro de 2024
Aceito em 20 de abril de 2024
BEAUVOIR, Simone de.
As inseparáveis
. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
(Poema de Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski -
Tornado canção por Caetano Veloso / Ney Costa
Santos Filho)
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Jessica Ferreira Alves / Róbson Pereira da Silva
“Tem pessoas que a gente
Não esquece nem se esquecer.”
(Rita Lee)
a amizade é o espaço em que a maioria de nós tem
seu primeiro vislumbre de amor redentor e comuni-
dade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos
fortalece de formas que nos permitem levar esse
amor para outras interações com a família ou com
laços românticos.
(
bell hooks)
As inseparáveis
é um romance póstumo autobiográfico que foi escrito em
1954, no qual Simone de Beauvoir remonta memórias de sua juventude e amizade
com Élisabeth Lacoin (Zaza). Publicado em 2021, pela editora Record, o livro conta
com 127 páginas, sendo que dentre elas está também uma seleção de fotografias
da própria Beauvoir que contam
sobre algumas das personagens que fizeram
parte desta história.
A obra incluí um prefácio breve, mas também rico e esclarecedor, que foi es-
crito por Sylvie Le Bom de Beauvoir, filha de Simone de Beauvoir. Logo de início
Sylvie Le Bom narra a forma como as duas amigas se conheceram, que foi ainda
durante a infância quando Simone tinha apenas nove anos e uma garotinha se
sentou ao seu lado na escola católica Adeline Desir. Apenas alguns dias mais ve-
lha que Beauvoir, Zaza contrastava com aquele ambiente e pessoas, pois era uma
garota ousada, espontânea, divertida.
Não demorou muito para que as meninas se aproximassem bastante, logo
as duas começaram a disputar o primeiro lugar na classe e algumas professoras
estavam as definindo como as inseparáveis. Embora não fosse triste com sua
família, Simone passa a nutrir um forte sentimento por Zaza e, então, passa a
venerá-la, a querer sempre agradá-la. As suas conversas com a amiga eram de
grande importância para:
[...] O que é esse sentimento inominado que, sob o rótulo convencional da amiza-
de, abrasa seu coração jovem no deslumbramento e nos transes, senão o amor?
Bem depressa ela entende que Zaza não sente um apego análogo, nem desconfia da
intensidade do seu, mas que importa, diante do êxtase de amar? (BEAUVOIR, 2021, p.
06)
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No dia 25 de novembro de 1929, um dos maiores medos de Beauvoir se tor-
nou realidade, Zaza faleceu, repentinamente, um mês antes de completar 22
anos de idade. Foi totalmente imprevisível, essa tragédia viria a assombrar Si-
mone por muitos anos, e a forma que ela encontrou para não deixar com que a
amiga caísse no esquecimento foi utilizando a literatura. Deste modo, Beauvoir
tentou “ressuscitar” Zaza por meio de quatro de suas obras, em romances de sua
juventude, na sua coletânea
Quando o espiritual domina
, bem como em um trecho
suprimido de
Os mandarins
. No ano de 1954, a filósofa tentou “reviver” a amiga
em uma novela que ficou sem título e que, posteriormente, viria a ser publicada
como
As inseparáveis
, em 1958. Zaza também apareceu no texto autobiográfico
de Simone chamado
Memórias de uma moça bem-comportada
, no qual acrescen-
tou a história da falecida amiga.
Sylvie Le Bom de Beauvoir relata no referido prefácio que o fato de Simone
ter sobrevivido fez com que ela desenvolvesse uma espécie de culpa. Um
quadro desencadeado e sustentado pela culpa de quem sobreviveu a uma perda
inestimável. Além disso, a visão que ela tinha em relação ao falecimento de Zaza é
de que a garota foi assassinada pela vida social, pois em meio a pressão de forçá-
la a se encaixar naquele padrão exigido para a época, isso foi a desgastando até
matá-la: “[...] Zaza morreu porque tentou ser ela mesma e foi convencida de que
essa pretensão era um mal.” (BEAUVOIR, 2021, p. 08)
Quanto a escolha de Beauvoir pela ficção para narrar a história desta
amizade, foi necessário que várias modificações e transposições fossem feitas.
Sendo que uma delas é a mudança de nomes dos personagens, pois Simone de
Beauvoir passará a ser Sylvie Lepage, Élisabeth Lacoin dá lugar a Andrée Gallard,
demais nomes e lugares também sofrem modificações, e não menos importante,
Maurice Merleau-Ponty recebe uma nova identidade na narrativa, passando a se
chamar Pascal Blondel.
Antes do início do primeiro capítulo, Beauvoir escreveu uma dedicatória para
Zaza, onde fica evidente o sentimento de tristeza com o qual ela estava lidando
desde a partida da amiga, e não se limitando a isso. Em poucas palavras, fica bem
óbvio a forma como ela se culpa por estar viva, e que somente a literatura tornou
possível para que lhe falasse, embora Élisabeth não pudesse ler. E por fim, reforça
que não se trata da história de Zaza, é apenas uma história inspirada nelas, pois
no fim, Sylvie e Andrée não são de fato seus nomes.
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Simone de Beauvoir inicia o primeiro capítulo narrando a história de uma
Sylvie de apenas 9 anos de idade, que segundo ela, se tratava de uma garotinha
muito comportada. Mas que isso nem sempre foi assim, pois na primeira infân-
cia tinha um gênio que muitas vezes era considerado como difícil, chegando ao
ponto de uma vez até mesmo uma de suas tias declarar seriamente que “Sylvie
estava possuída pelo demônio”. (BEAUVOIR, 2021, p. 17).
Como foi exposto no prefácio, a história de
As inseparáveis
e
Memórias de
uma moça bem comportada
se conectam em vários pontos, deste modo, Beauvoir
relata em sua autobiografia como se deu essa passagem da primeira infância
para uma garota bem comportada: “Eu me metamorfoseara definitivamente
em menina bem-comportada. No início, criara artificialmente a personagem:
valera-me tantos elogios, de que tirei tão grandes satisfações, que acabei me
identificando com ela: tornou-se minha única verdade” (BEAUVOIR, 2018, p. 33) .
Grande parte da razão desta mudança acontecer foi por causa da religião,
guerra e a relação familiar de Sylvie/Simone com os seus pais. Assim, quando
Andrée aparece no Colégio Desir, ela imediatamente chama atenção por seu jeito
espontâneo e personagem que até mesmo parecia impertinência.
Sylvie a descreve como uma garotinha de cabelo curto, liso e preto, com
olhos brilhantes e escuros que a olhava com intensidade, seu rosto era magro e
ela parecia ser mais nova, fato este que logo em seguida foi esclarecido por An-
drée, ao relatar que ela tinha crescido pouco e também parecia mais nova do que
realmente era, graças a um acidente que aconteceu ainda na infância, do qual
resultou uma queimadura profunda em sua coxa direita a ponto de chegar até o
osso.
Ao explicar para Sylvie que foi preciso interromper seus estudos por cerca
de um ano, Andrée pede o caderno da garota emprestado sob o argumento de
que haviam lhe informado de que ela era a aluna número um da sala. Foi a partir
disso que surgiu a amizade das duas, ainda que logo de início foi possível notar
grandes diferenças em relação a elas. Enquanto Sylvie tinha uma família menor,
estudava no colégio já a algum tempo e que a mãe tinha cuidado de buscá-la to-
dos os dias após a aula, Andrée vinha de uma família maior e graças a isso sua
educação até então tinha sido toda dentro de casa, com uma grande quantidade
de irmãos, isso fazia com que a sra. Gallard permitisse que a garotinha fosse em-
bora sozinha, pois não poderia ficar se dedicando a ir busca-la na escola. Com
receio de uma menina tão nova estar andando sozinha, Sylvie e sua mãe passam
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a acompanhar Andrée por grande parte do caminho.
A amizade das meninas foi se fortalecendo, a ponto de elas também mante-
rem o contato mesmo durante as férias, onde trocaram correspondências.
O carinho que Sylvie sentia por Andrée aumentava cada vez mais, em diver-
sas situações perguntava-se se era correspondida por ela igualmente, ou se a
amiga também tinha medo de algum dia perdê-la também. Devido a admiração
e o afeto que tinha pela outra, a jovem sentia cada vez mais necessidade de a
agradar, presentear. E foi em meio a uma dessas situações, que ao dar uma bolsa
a Andrée pelo seu aniversário em que ela mesmo fizera e sua mãe a ajudou, Syl
-
vie pôde notar pela reação da sra. Gallard diante do presente que agora ela tinha
deixado de gostar dela.
No entanto, Sylvie demonstra admiração pela perspicácia da sra. Gallard,
pois naquele momento a mulher já tinha notado que ela estava mudando. Com
uma personalidade mais atrevida, passou a ter dificuldades em simplesmente
aceitar tudo que lhe era dito e imposto na igreja, se até algum tempo atrás ela via
a imagem do padre como o representante direto de Deus, agora já conseguia ver
também a hipocrisia que vinha dele. Então se reconfortou ao perceber que não
só seu próprio pai, mas também vários autores que admiravam não acreditavam
em Deus, então não estava de fato errada. Porém, com isso vinha outro temor, de
que Andrée em algum momento descobrisse seu segredo. Seu único conforto em
relação a isso é que elas não costumavam conversar a respeito de sexualidade ou
religião, portanto, pelo menos por enquanto seu segredo estava seguro, embora
o medo de ser descoberta ainda lhe aterrorizava.
A medida que foram envelhecendo, as garotas tinham perspectivas diferen-
tes sobre a vida, enquanto Andrée tinha se acostumado com a ideia de se casar,
embora ela afirmasse que não o faria antes dos 22 anos, Sylvie ainda preferia se
manter focada nos estudos, nos livros, sem ter que se preocupar com quem iria
casar e se teria que casar.
No capítulo dois podemos notar que após muita insistência a sra. Gallard
permitiu que Andrée estudasse três anos na Sorbonne, então a garota escolheu o
curso de letras e Sylvie o de filosofia. Ainda que estudassem juntas na biblioteca
por várias horas, nas aulas, Sylvie permanecia sozinha, e foi aí que ela descobriu
ter afinidades com um rapaz chamado Pascal Blondel (Maurice Merleau-Ponty),
que após várias horas de conversa, por fim decidiram formar uma equipe.
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Essa proximidade de Sylvie e Pascal foi o que tornou possível a aproxima-
ção dele e de Andrée, que acabaram se apaixonando. No entanto, dada a idade
dela e o fato de pertencer a uma família tão grande, os deveres que ela tinha que
cumprir estavam a deixando desgastada e exausta, dores de cabeça se tornaram
comuns e até mesmo a sua amizade com Sylvie passou a ser vista como um pro-
blema, pois agora elas nem mesmo poderiam compartilhar um quarto sozinhas
durante a temporada de férias.
Isso foi deixando Andrée tão desesperada que na tentativa de obter um pou-
co de paz, a garota cortou o próprio pé com um machado, mas que de acordo
com Sylvie, após um pouco de repouso, a amiga parecia realmente melhor e até
mais corada, era como se tivesse se recuperando parcialmente de toda aquela
exaustão.
Essa mudança que aconteceu na vida de Andrée se deve a passagem da in-
fância para a adolescência. Sobre essa fase, Beauvoir aborda essa questão em
O
segundo sexo
em um capítulo intitulado “A jovem”:
Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se
como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus es-
tudos e jogos, descobria-se então como uma transcendência: nada fazia senão so-
nhar com sua futura passividade. Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima,
instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. [...] Já desligada de seu
passado de criança, o presente só lhe aparece como uma transição; ela não descobre
nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos
velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. (BEAUVOIR, 2019,
p. 75)
Ainda que Sylvie tivesse vindo de uma família com status parecido com o da
família de Andrée, o fato de seu pai ter perdido parte da fortuna e não ter condi-
ções de oferecer bons dotes para casar as filhas fez com que ela não vivenciasse
essa situação da mesma forma que a amiga, que já temia desde cedo acabar em
uma situação semelhante com a da irmã mais velha que aos 28 anos ainda era
uma “solteirona”, e naquele período isso era considerado como fracasso, portan-
to, seria necessário um bom casamento para livrá-la desse “terrível destino”.
A infelicidade de Andrée não parou por aí. Depois de muita luta para que
seus pais aceitassem Pascal como um pretendente, uma vez que ele pertencia
a uma posição social um pouco inferior se comparada com a da família Gallard,
ainda assim o rapaz não quis noivar com ela naquele momento mesmo dizendo a
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amar muito. A tristeza, decepção aliadas aos exaustivos deveres de casa foram
minando toda a felicidade da jovem, que nem mesmo podia se dar ao luxo de ficar
mais do que cinco minutos conversando com a amiga de infância.
Andrée adoeceu e sua piora aconteceu durante a visita a casa de Pascal em
busca da aprovação do pai dele. Diante do seu estado, o médico prescreveu cal-
mantes, falou de meningite, encefalite, mas não se
definiu o diagnóstico
preci-
samente. Após uma noite de delírios, a sra. Gallard informou que a filha precisou
ser isolada por ordem médica. Após três dias internada e acompanhada por uma
enfermeira, em meio as divagações ela pedia sempre por: Pascal, Sylvie, o violino
dela e champanhe. (BEAUVOIR, 2021, p. 126)
Pouco antes de falecer, a jovem apertou a mão da mãe, que era uma das
pessoas que ela mais admirava e lhe disse a seguinte frase: “Não fique triste. Em
todas as famílias alguém não presta: quem não presta sou eu.” (BEAUVOIR, 2021,
p. 126)
Andrée que era uma moça tão viva, espontânea, faleceu em uma clínica, em
meio as paredes brancas e sufocada por elas.
Esse sentimento da perda é constantemente abordado também em
Me-
mórias de uma moça bem-comportada
, onde Beauvoir não só descreve todos os
acontecimentos, mas também detalha como a morte de Zaza lhe afetou e as re-
flexões resultantes disso:
Os médicos falaram de meningite, de encefalite, nada se soube ao certo. Tratava-se de
uma doença contagiosa, de um acidente? Ou Zaza sucumbira a um excesso de fadiga e
angústia? Muitas vezes à noite ela me apareceu, toda amarela sob o chapeuzinho cor-
-de-rosa, e me olhava com reprovação. Juntas havíamos lutado contra o destino abjeto
que nos espreitava, e pensei durante muito tempo que pagara minha liberdade com a
sua morte. (BEAUVOIR, 2018, p. 313)
Para Simone de Beauvoir não foi possível superar a morte tão repentina da
amiga, e como dito anteriormente, foi através da literatura que a filósofa mante
-
ve a memória de Zaza viva, a ressuscitando em várias obras, mas sendo
As inse-
paráveis
totalmente dedicada a história delas. Isso foi possível pois ela utilizou a
literatura para corporificar parte da sua dor. Neste sentido, André Salomão das
Neves em sua monografia intitulada
A escrita autoficcional como estetização do
luto e da dor
, ao analisar duas obras, que são intituladas
Fora do Tempo
(2011) de
David Grossman e
O pai da menina morta
(2018) do autor Tiago Ferro, com as quais
os pais lidam com a dor de perder os filhos, afirma que:
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Em outras palavras, percebe-se que os autores fizeram uso do que é factual para se
simularem ficcionalmente. Além do denominador comum que trata do processo de
ficcionalização da realidade, que é uma das engrenagens do mecanismo auto ficcio
-
nal, em relação às duas obras aqui debatidas, desprende-se um outro denominador: o
luto. A pessoa enlutada passa por várias fases até que o trauma de perder um filho, por
exemplo, seja reelaborado, portanto, passe a ter um novo sentido. (NEVES, 2021, p. 17)
Esse processo de misturar fato e ficção é o que se denomina escrita autofic
-
cional, e é através dela que Simone de Beauvoir conseguiu expressar seu luto em
relação a Zaza, utilizando da literatura para demonstrar todo o seu sofrimento,
angústia e culpa. Seja em
Memórias de uma moça bem comportada
onde o texto
tem estruturas de um diário e se trata de uma autobiografia, ou até mesmo em
As inseparáveis
, que tem o formato de ficção e que inclusive os sujeitos assu
-
mem outros nomes como se tratassem de outras personagens, Beauvoir invoca
Zaza em cada uma dessas obras tentando demonstrar o quão doloroso tem sido
ter que lidar com o luto da perda de sua melhor amiga, e não somente isso, mas
que isso também vem acompanhado do sentimento de sobreviver, e também por
possivelmente conseguir ter sua liberdade enquanto Élisabeth Lacoin teve sua
individualidade tão sufocada a ponto de ir morrendo aos poucos ao ser submeti-
da as obrigações e costumes exigidos na época.
Embora o luto tenha sido um dos principais motivos que levou Simone de
Beauvoir a ressuscitar Zaza em tantas obras, de acordo com Larissa Carolina de
Andrade em
As inseparáveis, de Simone de Beauvoir: (Não) ser como efeito do di
-
zer
, ao analisar o romance autobiográfico pela ótica da filosofia, ela afirmou que
Beauvoir não tinha como único objetivo retratar a morte da melhor amiga, mas
também buscava refletir a respeito de si mesma através dessa escrita do eu:
Nota-se, portanto, que essa narrativa não é nem nunca foi somente um memorial
dedicado a Zaza, pois, por meio desse discurso também sobre si mesma, Simone de
Beauvoir volta a refutar suas crenças passadas, condena um modo de existir apenas
aparente, submete-se a uma revisão, não atestando, para tanto, nenhuma máxima
conclusiva a respeito de um (im)possível encontro com sua identidade como manifes-
tação de um ser essencial; Sylvie é à medida que faz de si o que é, circunscrita pela
situação econômica de sua família, que fora definidora, em certa medida, de sua forma
de existir. Sylvie é no presente, enquanto manifestação da consciência discursiva de
Simone de Beauvoir, a qual, ao fim de seu projeto autobiográfico, afirma-se inacabada.
(ANDRADE, 2022, p. 10)
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Essa escrita do eu de Beauvoir se dá por meio de um sujeito constituído na
alteridade, na internalização dos amores perdidos e na própria exibição da expe-
riência da perda. Pela literatura, a filósofa faz do enfrentamento da experiência
do luto para fora da vida privada de uma amizade, mas torna o amor um instru-
mento de criação de laços sociais e comunitários de luta contra a precarização
da construção mortífera de gênero, sobretudo, quando narra os motivos que
mataram a amiga além da doença, ou seja, quando expõe a violência social e de
gênero vivida por uma mulher. Segundo Carla Rodrigues (2021), ao dialogar com
Judith Butler, o luto produz uma zona de indeterminação do sujeito a partir da
condição de despossuído;
Eis o argumento de que a função do luto na filosofia de Butler é a de constituir um
laço social a partir da experiência de perda. Há uma zona de indeterminação no sujeito
constituído pela alteridade, mas é como se essa indeterminação se tornasse mais ex-
plícita na experiência da perda. Aqui é importante observar a dimensão de um segredo:
não somos capazes de saber o que perdemos no objeto perdido, e a sua incorporação
não se dá completamente. Quando perdemos alguém, nem sempre sabemos o que se
perdeu daquela pessoa, mas fazemos a experiência de nos tornar despossuídos. E a
despossessão é uma maneira de politizar a perda e o luto, como ela argumentará em
2013, ao publicar Dispossession: The Performative in the Political.
Assim, o luto se faz como uma política de memória, na qual nos damos conta
de nossa construção social e subjetiva que se apresenta por meio da alteridade,
segundo Carla Rodrigues (2021):
Eu como aquele que se constitui na relação com o outro. Minha vida começa antes e
continua depois de mim, de tal modo que a própria noção de indivíduo autônomo fica
abalada. Somos feitos e desfeitos uns pelos outros, numa rede de relações que nos
antecedem, das quais dependemos mesmo sem saber, e continuamos a existir em um
trabalho de luto como política de memória.
A obra,
As inseparáveis
,
trata então de tornar o luto de duas amigas em
uma espécie de totem da complexidade de tornar-se mulher na companhia de
outra mulher, mesmo com a perda de uma delas. Assim, quando se manifesta
a experiência de perda de uma amiga, a morte se torna um absoluto na
configuração de um laço social que, anteriormente, enquanto se construía, o
amor era o sustentáculo desse respectivo laço. Assim, escrever sobre esse
amor que sobrevive a morte é ingressar numa política de memória. Outrossim, é
através dessas reflexões que Beauvoir faz, ao longo de
As inseparáveis
e também
em
Memórias de uma moça bem comportada,
que podemos observar o quanto
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ela não só sofreu com o luto pela morte de Zaza, mas que também se culpa por
projetar que possivelmente foi graças a tudo que aconteceu que ela pôde ter
um destino diferente e, com isso, ter sua liberdade, objeto de suas reflexões
estéticas e filosóficas, se tornando posteriormente uma mulher independente
1
através dos estudos e o trabalho, o que não pôde ter acontecido com o destino
trágico de Zaza. Aqui deixamos um convite para a leitura de uma obra que retrata
a relação complexa de duas mulheres e um futuro interrompido pela morte de
uma delas, mas que sobreviveu e ressuscitou constantemente nas obras de
Simone de Beauvoir, contra a possibilidade do silenciamento de uma vida em
seus segredos indecifráveis, na busca constante “do que está perdido no objeto
perdido” (RODRIGUES, 2021, p. 128).
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do dizer.
Revista
Água Viva
,
[S. l.], v. 7, n. 3, 2023.
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A Força das coisas.
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BEAUVOIR, Simone de.
Memórias de uma moça bem comportada.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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BEAUVOIR, Simone de.
O Segundo Sexo –
A Experiência Vivida
.
5. ed.Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 2019.
BEAUVOIR, Simone de.
O Segundo Sexo –
Fatos e Mitos
.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
NEVES, André Salomão das.
A escrita autoficcional como estetização do luto e da dor
(Monografia
em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021.
RODRIGUES, Carla.
O luto entre clínica e política
: Judith Butler para além do gênero. Autêntica
Editora, 2021.[e-book]
1 Simone de Beauvoir na segunda parte de
O Segundo Sexo
define que a mulher não consegue sua
independência somente com o direito de votar ou pelas liberdades cívicas, pois não são elas que vão
trazer autonomia a mulher. Assim, a mulher só conseguiu cobrir a maior parte da distância que a se
-
parava do homem através do trabalho, então é somente o trabalho que possibilita a uma mulher a real
possibilidade de se tornar independente. (BEAUVOIR, 2019, p. 503)
RESENHAS
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I
e-issn: 2526-7280
Rafael Alves Pinto Junior
GOIÂNIA, 90 ANOS
GOIÂNIA, 90 YEARS OLD
https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21228
Rafael Alves Pinto Junior
Instituto Federal de Goiás (IFG- Jataí)
https://orcid.org/0000-0002-8439-9586
rafael.junior@ifg.edu.br
Recebido em 15 de maio de 2024
Aceito em 18 de junho de 2024
OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de; MENDONÇA, Jales Guedes Coelho; CHAUL, Nars Fayad; JAIME,
Nilson.
Goiânia, 90 anos
. Goiânia: Edições Goiás + 300, 2024, 336 p.
Se na atualidade, é uma verdade científica que a arte traduz as
tendências da civilização, como a música e a pintura, o estilo de nosso
edifício, simples, rígido, harmonioso, mas sem artifícios de abóbadas
e enfeites inúteis de doceis e capiteis, mais exata, mais positiva, que
preside a orientação da cultura histórica em nossos dias.
Na nova Capital que é, ao mesmo tempo, a síntese de todas as
conquistas e glórias do
Passado
1
, a consciência do momento histórico
da civilização do
Presente
e a previsão arrojada, sábia, científica, do
Futuro
– não era possível que se deixasse de erguer uma guarida para
a cultura da história, para o estudo da geografia. ( SILVA, 1940, p. 14).
Essas palavras foram proferidas pelo
presidente do Instituto Histórico e Geográfico de
Goiás (IHGG), Colemar Natal e Silva, em 25 de junho
de 1938 no lançamento da pedra fundamental da
sede própria da instituição. O Instituto havia sido concretizado ainda na antiga
capital em 1932, resultado dos esforços de José Honorato da Silva e Souza que
participava do governo do Interventor Pedro Ludovico Teixeira no cargo de
Secretário do Interior e Justiça. José Honorato, além de regulamentar o ensino
1 Destaque em negrito no original.
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normal, lutou para a criação do Arquivo Histórico e Geográfico de Goiás. Goiás
era naquela época, à sua avaliação, o único estado da Federação que não tinha
sua história escrita. Os documentos jaziam inertes nos arquivos aguardando
alguma iniciativa. Mas o momento, proporcionado pela “soberba arrancada liberal
que teve seu epílogo no memorável 24 de outubro”, era de exacerbado otimismo
(SOUSA, 1931, p. 39). Ao interventor Pedro Ludovico e na presença de 15 dos
23 sócios fundadores, o advogado e professor Colemar resumiu as imodestas
pretensões do IHGG na nova capital. Um empreendimento que se colocava, ao
mesmo tempo, sendo síntese de todas as conquistas do passado, consciência
do momento histórico do processo civilizatório e previsão de um futuro de bem-
aventuranças. Enquanto projeto, Goiânia era então a cidade das realizações
ousadas dado que já havia nascido “grande’ e projetada para “irradiar o progresso”.
Para que este futuro glorioso se concretizasse, a nova capital não poderia seguir
esquecendo a antiga. Eram cidades que se completavam e deviam entender que
deviam “viver unidas” daí em diante. Uma representava a tradição, tradução de
um passado “repleto de recordações gratas e afetivas, de glorias legítimas, de
louros imperecíveis”. A outra representava o futuro, a materialização do espírito
da “época e um prenúncio da vertigem do porvir” (SILVA, 1940, p. 15).
Para Colemar Natal e Silva, o Estado Novo em Goiás, apresentado como
inevitabilidade histórica e desfecho racional do conturbado panorama político do
país, não devia apagar o passado colonial que a antiga capital representava. Aos
ideais de afirmação política de Pedro Ludovico, a ideia de progresso e mudança
servia como uma luva para anular os entraves da elite encravada na velha cidade.
Diante deste cenário de mudança inevitável da capital, a intelectualidade reunida
no IHGG se preocupava em não apagar o passado. A modernidade oferecia a
oportunidade de um lastro que, para eles, deveria ser mantido. A ação política
do IHGG, ao se afirmar com autoridade intelectual, se propunha a modelar
o novo quadro social que se desenhava. Inserindo-se enquanto fonte de um
estado colocado frente a ação imperativa de ressignificar localmente a própria
nacionalidade. Reflexo de um movimento que havia sido desencadeado pelo
pensamento de Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda.
A mudança da capital de Goiás, notadamente para os membros do IHGG,
não foi recebida com temeridade. Ao contrário. Tratava-se de uma oportunidade
imperdível de afirmação. Estava na própria gênese da instituição que
representava, em Goiás, a conciliação de uma contradição aparente: o espaço
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moderno, internacionalista, não determinava a exclusão das especificidades
regionais que constituíam sua própria identidade cuja valorização integrava-se
ao contexto regionalista.
Oitenta e cinco anos depois das palavras do professor Colemar Natal e Silva,
o IHGG realizou, entre 18 e 20 de outubro de 2023, o simpósio
90 anos de Goiânia
,
reunindo uma plêiade de intelectuais dedicados à análise da cidade nonagenária.
A publicação
Goiânia, 90 anos
é o produto dos estudos do referido simpósio,
preludiando o vindouro centenário a ser celebrado em 2033. A disposição em
se posicionar frente à relação entre as dimensões coletivas da história e a ação
intelectual individual, para a instituição, aparece de maneira similar àquela de
seu momento inaugural. Frente às questões e questionamentos impostos pela
contemporaneidade urge, aos interessados em uma mínima compreensão,
reflexionar. Diante de novos caminhos, importa ressignificar.
Organizado por Eliézer Cardoso de Oliveira, professor da Universidade
Estadual de Goiás; Jales Guedes Coelho Mendonça, promotor de justiça e atual
presidente do IHGG; Nars Fayad Chaul, professor aposentado da Universidade
Federal de Goiás e Nilson Jaime, engenheiro agrônomo e atual presidente do
Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado, a
publicação está dividida em três partes. Não cabe aqui uma análise dos artigos
individualmente para impor uma frustração aos interessados. A perspectiva de
uma obra coletiva é, por definição caleidoscópica.
A primeira parte, nomeada
História e Injunções Políticas
, contem seis artigos
dedicados a aspectos da história local sob a ótica dos interesses e pressões
políticas que resultaram na criação da cidade.
Higienismo, Intervenção médica
e Mudança da Capital
, de Francisco Itami Campos, analisa o discurso higienista
enquanto justificativa ideológica para a mudança da capital.
Os 10 anos do livro “A
Invenção de Goiânia: o outro lado da mudança” e os rastros de genocídio cultural
,
de Jales Guedes Coelho Mendonça está dedicado a revisitar as hipóteses
pesquisadas em sua obra em torno da questão da transferência de instituições
e funcionários públicos da cidade de Goiás para Goiânia.
Campinas, a Igreja
e Goiânia
, de Antônio César Caldas Pinheiro, destaca o apoio dos religiosos
católicos Redentoristas sediados em Campinas em oposição ao então bispo Dom
Emanuel Gomes de Oliveira.
Goiânia: os impactos de sua criação em Campinas
,
de Itaney Campos salienta a relação entre a capital e o processo de fagocitose
da cidade de Campinas.
Goiânia, entre o racionalismo da técnica e o pragmatismo
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da política
, de Eliézer Cardoso de Oliveira recorta as escolhas aparentemente
técnicas – o nome “Goiânia” e a escolha do dia 24 de outubro para o lançamento
da pedra fundamental – que estavam na superfície do discurso. Sob este estavam
os interesses políticos que produziriam o domínio do interventor Pedro Ludovico.
O último artigo desta parte,
O irresistível progresso de Goiânia
na primeira
metade dos anos 1950, de Iúri Rincon Godinho mostra a década de 1950 como
período decisivo para a consolidação sociológica da cidade. Ainda relativamente
provinciana e desarticulada, Goiânia passaria a outro patamar com o novo
panorama desencadeado com a implantação de Brasília na década de 1950.
A segunda parte, nomeada
Arquitetura e Urbanismo
, contém quatro artigos.
A
Arquitetura e o Urbanismo goianiense na poética produzida em Goiás
, de Elizabeth
Abreu Caldeira Brito trata-se de uma abordagem poética da representação do
próprio fazer arquitetônico que a autora identifica e relaciona com Goiânia.
Goiânia pré-moderna e aspectos do planejamento: planos diretores de 1960, 1970 e
1980
, de Jacira Rosa Pires é produto de um testemunho autobiográfico enquanto
profissional do urbanismo. Uma personalidade diretamente envolvida na
elaboração de diversos planos diretores que ambicionaram impor algum controle
no crescimento e no uso do espaço urbano continuamente crescente. O mesmo
caráter de depoimento biográfico pode ser identificado em
Goiânia, cidade bem-
nascida: convivência com a capital desde a infância
, de Narcisa Abreu Cordeiro.
O último texto desta parte,
Marcos da Arquitetura em Goiânia (1930-1980),
os
arquitetos e urbanistas e Eurípedes Afonso da Silva Neto e Lenora de Castro
Barbo brilhantemente destacaram uma produção arquitetônica que vai além
da já estudada
Art Déco
, que não foi a única expressão arquitetônica na capital.
Marcada pela renovação e modernidade a arquitetura construída em Goiânia no
período selecionado aparece resultante da produção de diversos profissionais e
obras em vários estilos. Nomes locais, de outros estados e até personalidades
reconhecidas internacionalmente contribuíram para formar um outro conjunto
patrimonial.
A terceira e última parte, nomeada
Elementos Culturais e Estéticos
, com
seis artigos encerram a coletânea.
Goiânia, 90 anos,
de Nars Fayad Chaul
recapitula suas já conhecidas reflexões referentes à identidade goianiense:
cidade inserida na dualidade progresso e sertão para equacionar o pensamento
utópico dos entusiasmados apoiadores da Revolução de 30.
As culturas em
Goiânia: enraizamento, tensões e travessias
, de Eguimar Felício Chaveiro reflete
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sobre outros olhares à cultura local que vai além dos monumentos. Inclui, ao
reconhecer o dinamismo característico do processo cultural, outros saberes e
práticas oriundas do cotidiano da relação dos habitantes com o próprio território.
Os textos
A cena musical goianiense e a banda Nilo Peçanha
, do Instituto Federal
de Goiás, de Marshal Gaioso Pinto,
A gênese dos festivais musicais em Goiânia
,
de Hamilton Carneiro e
A cultura erudita em Goiânia: o Teatro de Miguel Jorge
, de
Ademir Luiz Silva formam um conjunto. Constroem um panorama de expressões
culturais que permitem ver contribuições além do tradicional universo sertanejo
divulgado pela mídia local e nacional. Orquestras, bandas, rock, música popular
brasileira, festivais musicais, produções literárias e teatrais demonstram a
existência de diálogos criativos construídos localmente. Finalizando a terceira
parte e, consequentemente, a coletânea, o texto
O cronista e historiador Bernardo
Élis: arquétipo de um cidadão geral que adotou a erma Goiânia
, de Nilson Jaime
analisa a obra e a ação política de Bernardo Élis. Para isto, destacou-se a crônica
“Receita goiana para mudar uma capital” publicada em “Goiás em sol maior”
datado de 1985. O célebre escritor, imortalizado na ABL, praticamente resumiu a
angustiosa dualidade do processo de mudança da capital: da ancestral Cidade de
Goiás que se abandonava à sonhada Goiânia que se ambicionava construir. Um
processo não indolor marcado pelo autoritarismo tutelado por Pedro Ludovico,
por personagens anônimos da antiga capital que apoiavam a mudança e pelas
dificuldades, agitações e arbitrariedades no cotidiano dos primeiros anos da
nova cidade.
Os organizadores, junto a cada capítulo, tiveram a sensibilidade de incluir
ilustrações em bico de pena executadas pelo artista plástico Divino Ferreira de
Magalhães. Natural de Goiás e formado em Artes Plásticas pela Universidade
Federal de Goiás, o artista retratou diversos pontos de vista, edifícios marcantes
da produção
Art Déco
e ângulos que seu olhar atento destacou como identitários
do espaço urbano.
A coletânea marca uma data e fecha um ciclo de debates. A partir daí outro
deve ser aberto. Um que inclua a responsabilidade social que envolve um projeto
urbanístico, tratado como construção atenta às múltiplas subjetividades que
compõe o espaço urbano. Ao mesmo tempo em que intelectuais se reúnem para
refletir sobre os 90 anos da capital de Goiás, na prática, a crise urbana torna-se
mais aguda: segregação socioespacial, incapacidade de retomada econômica,
degradação ambiental incontrolável, insegurança crescente, violências e
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dificuldades de mobilidade parecem obstáculos intransponíveis. Tudo isto
inscrito em uma perspectiva de alterações climáticas drásticas e imprevisíveis
a cobrar ações urgentes.
Aos pensadores, questões da história, fundiárias, o acesso ao solo urbano, a
democratização da gestão e a participação social no processo de planejamento
são aspectos contemporâneos que tornar-se-ão imprescindíveis quando, daqui
a dez anos, novos questionamentos se colocaram diante da cidade centenária.
Resta-nos aguardar.
Referências
SILVA, Colemar Natal e. Lançamento da pedra fundamental do edifício do Instituto Histórico e
Geográfico de Goiaz.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiaz
. Goiânia, n. 1, mai,
1940, p. 14. Disponível em: https://hemeroteca.ihgg.org/publicacao.asp?PUB_IDEN=36&E-
DI_IDEN=47. Acesso em 22 mai 2024.
SOUSA, José Honorato Silva e. Regulamento do Ensino Normal em Goiás.
A Informação
Goyana
. Rio de Janeiro, n. 6 e 7, v. XV, jan e fev, 1931, p. 39. Disponível em: http://memoria.
bn.gov.br/DocReader/176648/2605. Acesso em 22 mai 2024.
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REVIEWERS FOR THIS EDITION
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https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21698
Colaboraram com este periódico nos pareceres dos manuscritos submetidos pelo sistema de
avaliação revisão por pares duplo-cego (Double-Blind Peer Review):
Collaborated with this journal in the manuscripts reviews by Double-Blind Peer Review:
Ana Carolina Cerqueira Medrado
- Universidade de Brasília (UnB), Brasil
André Luis Bertelli Duarte
– Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Antonio Ricardo Calori de Lion
- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp), Brasil
Bruno Nantes
– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Carla Lisboa Porto
– Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP),
Brasil
Edvaldo Correa Sotana
– Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Fábio Eduardo Cressoni
- Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (UNILAB), Brasil
Felipe Biguinatti Carias
- Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
- Campus Alta Floresta (IFMT), Brasil
Flávio Vilas-Bôas Trovão
– Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Brasil
Grace Campos
– Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Hélton Santos Gomes
- Escola Municipal Professora Cecy Cardoso Porfírio (E.M.P.C.C.P), Bra-
sil.
João Alberto da Costa Pinto
–Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
Kennedy Cabral Nobre
- Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasilei-
ra (UNILAB), Brasil
Lays da Cruz Capelozi
(ad hoc) – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Lucas Rodrigues do Carmo
– Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
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Marcos Antônio de Menezes
– Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Miguel Rodrigues de Sousa Neto
– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Mírian Garrido
– Universidade de Taubaté, Brasil
Noemia Moura
– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Odemar Leotti
– Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Brasil
Osvanilton de Jesus Conceição -
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Brasil
Robson Pereira da Silva
– Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
Rodrigo Matos de Souza
- Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Ruth Pavan -
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Brasil