albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

SUMÁRIO

albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024

Sumário

Expediente ........................................................................................................ 5

Editorial
A política do cinema e a hermenêutica do silêncio ......................................................... 8
Aguinaldo Rodrigues Gomes (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil), Miguel
Rodrigues de Sousa Neto (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)

Dossiê
Apresentação — Dossiê Cinema e Cidades .................................................................... 16
Marcos Antonio de Menezes (Universidade Federal de Jataí, Brasil/ Universidade Federal de
Goiás, Brasil), Alcides Freire Ramos (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil)

Cidade-Cinema: análise de uma interação a partir de uma experimentação conceitual .. 21
José Costa D’Assunção Barros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil)

Olhares cinematográficos sobre a Revolução dos Cravos ............................................ 49
Róbson Pereira da Silva (Universidade Federal de São Carlos, Brasil), Grace Campos Costa
(Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura, Brasil), Lays da Cruz Capelozi
(Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura, Brasil)

A Política entre-as-mulheres e a construção do espaço público em Garotas do ABC (2003),
de Carlos Reichenbach ..................................................................................................... 82
Felipe Biguinatti Carias (Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Linguagens e Cultura,
Brasil)

As cidades no neorrealismo italiano: ressignificações do espaço urbano .................. 103
Mauricio Caleiro

Os Heróis Anônimos na construção da capital federal: uma análise de Brasília Segundo
Feldman
(Vladimir Carvalho, 1979) .................................................................................. 127

Aline Carrijo (Universidade de São Paulo, Brasil), Carolinne Mendes da Silva (Secretaria Municipal
da Educação de São Paulo, Brasil)

Meia-Noite em Paris, um filme para a história ................................................................ 148
Roberto Abdala Junior Abdala Junior (Universidade Federal de Goiás, Brasil)

Um estudo sobre o naturalismo em Thérèse Raquin, de Émile Zola, e a sua transposição

SUMÁRIO

albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

midiática contemporânea para a adaptação Em Segredo ................................................ 178
Kassandra Naely Rodrigues dos Santos (Universidade Federal de Pelotas, Brasil), Milena
Hoffmann Kunrath (Universidade Federal de Pelotas, Brasil)

Jean-Luc Godard e o controle do presente: Alphaville, une étrange aventure de Lemmy
Caution (1965) ................................................................................................................... 198
Rafael Alves Pinto Junior (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Brasil)

Utopias e distopias urbanas nas telas do cinema: Metropolis e Blade Runner ................ 214
Marcos Antônio de Menezes (Universidade Federal de Jataí, Brasil/ Universidade Federal de
Goiás, Brasil)

Artigos
As mãos que devem comunicar o movimento: problemas que cercam a força de trabalho
manufatureira no setor de aprendizagem de artes e ofícios em Havana. 1839-1849 ........ 226
Jesús Javier Mejias Díaz (Instituto de Historia de Cuba, Cuba)

Quilombos no Brasil imperial: uma análise historiográfica sobre resistência e lutas
sociais .............................................................................................................................. 249
César Henrique de Queiroz Porto (Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil), Luiz Gustavo
Soares Silva (Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil), Anna Flávia Rodrigues Dias
(Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil)

Estudantes indígenas no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Aquidauana: um
estudo de caso .................................................................................................................. 264
Janete Andrade de Lima (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
do Sul, Brasil), Vera Lucia Ferreira Vargas (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)

Qualidade para quem? Neoliberalismo e a construção da retórica sobre a qualidade da
educação básica ................................................................................................................. 280
Carmem Lúcia Sussel Mariano (Universidade Federal de Rondonópolis, Brasil), Aguinaldo
Rodrigues Gomes (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)

Caderno Especial
Quem tem medo de Madonna? ............................................................................................. 305
Antonio Ricardo Calori de Lion (Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, Brasil)

albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

SUMÁRIO

Tradução
A emergência e desenvolvimento da justiça transicional como campo de pesquisa e de
aplicação prática ............................................................................................................... 320
Thomas Fischer (Universidade Católica de Eichstätt, Alemanha) tradução de Rafael Morato
Zanatto (Universidade Federal da Paraíba, Brasil)

Resenhas
Corpo e ancestralidade no tempo que transmuta, recria e se iguala em diferença:
ensinamentos a partir de performances do tempo espiralar de Leda Maria Martins ..... 355
Maria Eduarda Durães Martins (Universidade de Brasília, Brasil)

A construção histórica da abjeção racista no Brasil ........................................................ 366
Cassio Rodrigues da Silveira (Colégio Olimpo, Brasil)

Pareceristas desta edição ..................................................................................... 373

EXPEDIENTE

5 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

EXPEDIENTE
vol. 16, n. 32, ago. - dez. 2024

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.23005

Editores-chefes
Aguinaldo Rodrigues Gomes (Doutor em Educação), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), Brasil
Miguel Rodrigues de Sousa Neto (Doutor em História), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS), Brasil

Editores de seção
Róbson Pereira da Silva (Doutor em História), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
Antonio Ricardo Calori de Lion (Doutor em História), Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
(SEDUC-SP), Brasil

Diagramação
Roger Luiz Pereira da Silva (Mestre em Tecnologia e Sociedade), Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), Brasil

Coordenador do Programa de Pos-graduação em Estudos Culturais (PPGCult)
Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil

Membros pesquisadores/as do Laboratório de Estudos em Diferenças & Linguagens - LEDLin -
UFMS
Aguinaldo Rodrigues Gomes, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Ana Letícia Bonfanti, Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança, Adolescente e Idoso (DE-
DDICA/MT), Brasil
Antonio Ricardo Calori de Lion, Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEDUC-SP), Brasil
Edvaldo Correa Sotana, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Helen Paola Vieira Bueno, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Isabel Camilo de Camargo, Fundação de Apoio e Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso do Sul, (FUNDECT/MS), Brasil
Marcos Antonio de Menezes, Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Miguel Rodrigues de Sousa Neto, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil

EXPEDIENTE

6 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Róbson Pereira da Silva, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
Thaís Leão Vieira, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil

Conselho Consultivo (biênio 2022 – 2024)
Alexandre Busko Valim - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Alexandre de Sá Avelar - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Ana Paula Squinelo - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Camila Soares López - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Junior - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil
Eduardo José Reinato – Pontifícia Universidade de Goiás (PUC Goiás), Brasil
Edvaldo Correa Sotana - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Fábio Henrique Lopes - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Brasil
Flávio Vilas Boas Trovão - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Helen Paola Vieira Bueno - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Iara Quelho de Castro - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Jiani Fernando Langaro - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
João José Caluzi - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
João Pedro Rosa Ferreira - Universidade Nova de Lisboa (NOVA), Portugal
José Marin - Université de Genève, Suíça
Leonardo Lemos de Souza – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
Lúcia Helena Oliveira Silva- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
Lúcia Regina Vieira Romano - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil
Luisa Consuelo Soler Lizarazo – Universidad Autónoma de Chile (UA), Chile
Márcio Pizarro Noronha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Maria Betanha Cardoso Barbosa - Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Brasil
Marcos Antonio de Menezes – Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Murilo Borges Silva - Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil
Nadia Molek - Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina
Patrícia Zaczuk Bassinello - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Raquel Gonçalves Salgado - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Regiane Corrêa de Oliveira Ramos – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Brasil
Renan Honório Quinalha - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil

EXPEDIENTE

7 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Robson Corrêa de Camargo - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
Rosangela Patriota Ramos - Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil
Sebastián Valverde – Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina
Tadeu Pereira dos Santos - Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Brasil
Tanya Saunders - University of Florida (UF), Estados Unidos da América
Thaís Leão Vieira – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Tiago Duque - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil
Zélia Lopes da Silva - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil

Capa

Cena do filme Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin).
Direção de Wim Wenders, Alemanha Ocidental-França, 1987.

Design: Róbson Pereira da Silva.

Capa do Caderno Especial
Fotografia gentilmente cedida por Alexandre C. Woloch. Copacabana, 04 de maio de 2024.
Design: Róbson Pereira da Silva.

Projeto Gráfico e Diagramação
Roger Luiz Pereira da Silva

Contato
albuquerque: revista de história
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)– Câmpus de Aquidauana, Unidade I
Praça Nossa Senhora Imaculada Conceição, 163 - Centro, Aquidauana/Mato Grosso
do Sul, Brasil.
CEP: 79200-000
Telefone +55 67 3241-0309
E-mail: revista.albuquerque@ufms.br

EDITORIAL

8 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Editorial: a política do cinema e a hermenêutica do silêncio

Editorial: the politics of cinema and the hermeneutics of silence

Aguinaldo Rodrigues Gomes1

https://orcid.org/0000-0002-2398-8088
http://lattes.cnpq.br/3408519048864585

Miguel Rodrigues de Sousa Neto2

https://orcid.org/0000-0001-9672-3315
http://lattes.cnpq.br/1581653418017053

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.23001

 
O cinema, desde sua origem, tem sido um meio eficaz de expressão e

reflexão sobre a realidade social e política. É certo que ele tem servido para
divulgação de discursos hegemônicos e, com isso, garantido representações
positivas sobre opressões que deveriam ter, há muito, sido superadas. Apesar
disso, e muito além de ser apenas uma forma de entretenimento, ele possui um
caráter profundamente transformador, capaz de dar visibilidade às questões que
frequentemente ficam à margem da sociedade. Assim, a sétima arte se estabelece
também como um espaço de resistência onde a memória coletiva é preservada
e, muitas vezes, reescrita, oferecendo ao espectador uma oportunidade única de
questionar e refletir sobre as dinâmicas sociais, políticas e culturais que moldam
1  Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul (UFMS). Docente do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Culturais (PPGcult)/UFMS) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal de Rondonópolis (PPGEdu/UFMT). E-mail: aguinaldorod@gmail.com
2  É Bacharel (2002) e Licenciado em História (2004) pela Universidade Federal de Uberlândia, mes-
ma instituição por meio da qual obteve os títulos de Mestre (2005) e Doutor (2011) em História. É
docente do Curso de Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais,
ambos do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail:
miguelrodriguessnetto@gmail.com

EDITORIAL

9 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

o mundo contemporâneo.
Em um contexto de crescente polarização política e social, o cinema tem

um papel crucial na construção de narrativas que não apenas documentam a
realidade, mas que também têm o poder de questioná-las. A função política do
cinema não se limita ao simples ato de representar o mundo, mas também ao
de nele intervir, oferecendo novas formas de enxergar a história, as relações de
poder e a construção das identidades. Por meio de sua linguagem visual e sonora,
o cinema consegue expressar a complexidade das questões humanas, ecoando
vozes dos que muitas vezes foram silenciados pelos setores hegemônicos da
sociedade.

O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, exemplifica essa
capacidade do cinema de funcionar como uma ferramenta política de subversão
e denúncia. A obra de 2024, que aborda temas como os desaparecidos pela
Ditadura Militar brasileira, a dor e a resistência, pode ser vista como uma reflexão
sobre a construção da identidade e a resistência contra a marginalização. O que
torna o filme particularmente relevante neste contexto é sua exploração da
“hermenêutica do silêncio”, um conceito que vai além do simples ato de não falar.
Refere-se ao que é silenciado pela história, o que é esquecido ou ocultado, e que,
por meio do cinema, ganha uma nova forma de expressão e visibilidade.

A hermenêutica do silêncio se configura como uma tentativa de resgatar o
que ficou perdido ou oculto na narrativa oficial. Nesse sentido, o filme não apenas
mostra a dor daqueles que foram silenciados, mas também oferece uma forma de
resistência ao que foi silenciado pela história oficial. O cinema, portanto, se torna
um instrumento de cura e de denúncia, revelando não apenas o que foi perdido,
mas também o que ainda está presente, à espera de ser resgatado e ouvido.

A reflexão sobre o silêncio, suas múltiplas camadas e os diferentes motivos
que levam alguém a se silenciar, pode ser diretamente relacionada ao filme
Ainda Estou Aqui, de Salles, por explorar o tema dos desaparecidos políticos, da
memória e da resistência no contexto da ditadura militar brasileira. No filme, o
silêncio não é apenas um ato de omissão, mas sim uma escolha estratégica e um
peso psicológico profundo que recai sobre os personagens que, por diferentes
razões, se veem impossibilitados ou relutantes em falar sobre suas experiências.

Assim como na reflexão apresentada, onde o silêncio pode ser interpretado
como uma maneira de evitar o confronto com um passado doloroso ou de
proteger a verdade de uma realidade que ainda não pode ser enfrentada, no filme

EDITORIAL

10 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Ainda Estou Aqui o silêncio emerge como uma defesa emocional e uma tentativa
de preservar a integridade de quem viveu o trauma dos desaparecidos políticos
e da repressão, tendo que preservar os filhos da dor de perder o pai, como no
caso de Eunice Paiva. Os personagens que foram vítimas do regime ditatorial,
e que carregam as marcas desse passado, muitas vezes preferem se silenciar,
não por falta de vontade de falar, mas por já terem enfrentado, de alguma forma,
suas memórias mais dolorosas. Para eles, a remoção de uma camada de silêncio
parece trazer de volta um sofrimento que eles já haviam tentado enterrar.

Por outro lado, o filme também mostra que o silêncio não é uma posição
unânime ou confortável. Para alguns, ele pode ser visto como uma forma de
resistência e preservação, uma maneira de evitar a revitimização e a exposição
de suas histórias. Para outros, especialmente para aqueles que ficaram em
silêncio por muito tempo, a revelação da verdade se torna uma necessidade, pois
as perguntas não respondidas sobre o passado acabam se tornando um peso
impossível de carregar. Eunice Paiva, rompe aos poucos com o silenciamento
sobre as agruras da ditadura, ao exigir respostas sobre a morte de seu marido
Rubens Paiva, obrigando o Estado a admitir sua responsabilidade nos crimes
praticados contra a família.

Em Ainda Estou Aqui, esse conflito entre o silêncio e a revelação, entre o medo
do revanchismo e a necessidade de fechar feridas históricas, se torna uma linha
tênue que os personagens tentam equilibrar. A hermenêutica do silêncio aparece
nesse filme de forma clara, pois o silêncio de cada uma das personagens não é
uniforme; ele carrega com elas uma série de significados, tanto pessoais quanto
coletivos. E, como na reflexão, o que muitos não percebem é que, ao silenciar-
se, muitas perguntas ficam sem resposta, tornando-se uma necessidade latente
na busca por justiça, memória e reconciliação. O filme ilustra como o silêncio
pode ser uma estratégia complexa e multifacetada, envolvendo tanto a proteção
quanto o medo, a dor e a necessidade de encontrar um espaço para a cura. Ao
mesmo tempo, ele evidencia que o silêncio também carrega um custo – o custo
de deixar as perguntas sem resposta e de manter um ciclo de não-resolução
que, inevitavelmente, terá que ser enfrentado em algum momento. O filme fala
de hoje e dos usos do passado na contemporaneidade, da luta pela imersão da
verdade ou do negacionismo que ao controlar o passado, regula, também, os
regimes de verdade do presente. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
na cerimônia de 2 de março de 2025, recebeu indicação nas categorias Melhor

EDITORIAL

11 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Filme e Melhor Atriz, este, para Fernanda Torres.
A arte cinematográfica permeia essa edição, uma vez que o dossiê “Cinema

e Cidades”, que abre este número de albuquerque: revista de história, propõe
uma análise aprofundada das relações entre cinema e espaço urbano. Ele
destaca a maneira como o cinema se imbrica com as cidades, refletindo sobre a
construção do espaço público e as dinâmicas sociais e políticas que marcam os
centros urbanos. O cinema, ao representar as cidades, não apenas documenta o
que elas são, mas também as reinventa, refletindo as transformações sociais e
as tensões políticas que atravessam os espaços urbanos.

O artigo “Cidade-Cinema: análise de uma interação a partir de uma
experimentação conceitual”, de José Costa D’Assunção Barros, propõe uma
reflexão teórica sobre como o cinema interage com a cidade. O autor sugere que
o cinema oferece uma forma de experimentar a cidade de maneira conceitual,
transformando a cidade não apenas em um cenário, mas em um sujeito ativo na
construção das narrativas cinematográficas. A cidade, nesse contexto, deixa de
ser apenas o pano de fundo das histórias e passa a ser um personagem com vida
própria, que interage com os filmes de maneira complexa e multifacetada.

Em “Olhares cinematográficos sobre a Revolução dos Cravos”, Róbson
Pereira da Silva, Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, examinam como
o cinema tem sido uma ferramenta importante para preservar e reinterpretar a
memória histórica da Revolução dos Cravos, um dos marcos mais significativos
da história de Portugal. Através da análise de filmes sobre o evento, os autores
discutem o cinema servindo como um meio de construção histórica, ajudando a
entender as dinâmicas políticas e sociais que moldaram o futuro do país europeu.

Em “Política entre-as-mulheres e a construção do espaço público em
Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach”, Felipe Biguinatti Carias analisa
a representação das mulheres e seu papel na construção do espaço público,
explorando como o filme reflete a luta por visibilidade e representação no
contexto de uma sociedade desigual. O autor utiliza o filme para discutir questões
de gênero e a política de inclusão, apontando como o cinema se torna um espaço
onde as questões femininas podem ser discutidas e visibilizadas.

Em “As cidades no neorrealismo italiano: ressignificações do espaço
urbano”, Mauricio Caleiro investiga como o neorrealismo italiano, um movimento
cinematográfico pós-Segunda Guerra Mundial, utilizou a cidade como um
personagem ativo nas narrativas cinematográficas. O autor observa que,

EDITORIAL

12 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

através das lentes do neorrealismo, o cinema retrata as dificuldades sociais e
econômicas do período, utilizando o espaço urbano não apenas como um fundo
para a ação, mas como um reflexo das tensões e das contradições da sociedade
italiana. Nesse contexto, a cidade, com suas ruínas e dificuldades, é uma metáfora
para os desafios da reconstrução social e política que o país enfrentava. O
cinema neorrealista, assim, se torna uma ferramenta de reflexão crítica sobre
as condições de vida das classes populares, oferecendo uma representação
honesta e, muitas vezes, dolorosa da realidade urbana.

O dossiê também traz o artigo “Os Heróis Anônimos na construção da capital
federal: uma análise de Brasília segundo Feldman (Vladimir Carvalho, 1979)”, de
Aline Carrijo e Carolinne Mendes da Silva, que analisam a construção da cidade de
Brasília através do olhar do cineasta Vladimir Carvalho, revelando as complexas
dinâmicas de poder e resistência que permearam a criação da capital do Brasil.

No artigo “Meia-Noite em Paris, um filme para a história”, Roberto Abdala
Junior, faz uma análise reflexiva sobre o filme dirigido por Woody Allen. O autor
destaca como o filme combina elementos de nostalgia, magia e cultura literária
para criar uma obra que transita entre o passado e o presente, utilizando Paris
como uma espécie de portal temporal.

Em uma abordagem mais voltada para a adaptação literária, o artigo “Um
estudo sobre o naturalismo em Thérèse Raquin, de Émile Zola, e a sua transposição
midiática contemporânea para a adaptação Em Segredo”, de Kassandra Naely
Rodrigues dos Santos e Milena Hoffmann Kunrath, analisa como o naturalismo
presente na obra de Zola é reinterpretado no cinema contemporâneo. As
autoras destacam como a relação entre o indivíduo e o espaço social, central
no naturalismo, é adaptada para as telas, refletindo a tensão entre as condições
sociais e as escolhas pessoais. O filme Em Segredo torna-se, assim, uma
transposição do drama original para um contexto moderno, mantendo as questões
de classe, destino e violência, enquanto propõe uma nova leitura da obra à luz das
relações urbanas contemporâneas.

O artigo “Jean-Luc Godard e o controle do presente: Alphaville, une étrange
aventure de Lemmy Caution
(1965)”, de Rafael Alves Pinto Junior, oferece uma
análise crítica sobre como Godard manipula o espaço urbano futurista para
discutir questões de controle social, tecnologia e alienação. Através da cidade de
Alphaville, um lugar distópico e mecanizado, Godard questiona as possibilidades
de transformação social através da arte e do cinema, usando a cidade como

EDITORIAL

13 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

uma metáfora para as tensões políticas e culturais do momento. O autor observa
que, em Godard, o espaço urbano não é apenas uma representação de um futuro
tecnológico, mas uma reflexão crítica sobre a natureza do controle social e da
liberdade individual, algo que ressoa com as questões da modernidade e da
globalização contemporânea.

A comparação entre visões utópicas e distópicas da cidade é o foco do
artigo “Utopias e distopias urbanas nas telas do cinema: Metropolis e Blade
Runner”, de Marcos Antônio de Menezes. Ao analisar esses dois filmes, o autor
propõe uma reflexão sobre como o cinema constrói diferentes versões do futuro
urbano, seja através da opressão e da desumanização em Metropolis ou da
distopia tecnológica e ambiental em Blade Runner. Ambos os filmes oferecem
críticas sociais profundas, questionando o impacto da industrialização e da
tecnologia sobre as relações humanas e o espaço urbano. Através dessa análise
comparativa, o texto enfatiza como o cinema pode ser uma ferramenta poderosa
para explorar as tensões entre o progresso e seus custos, ao projetar visões de
futuro que servem como advertências para as sociedades contemporâneas.

Essa edição da albuquerque: revista de história traz, ainda, uma série
de artigos, uma análise crítica e uma resenha que abordam questões sociais,
históricas e culturais relevantes.

O artigo de Jesús Javier Mejias Díaz, “As mãos que devem comunicar o
movimento: problemas que cercam a força de trabalho manufatureira no setor
de aprendizagem de artes e ofícios em Havana, 1839-1849”, oferece uma reflexão
sobre as condições de trabalho e as dinâmicas de aprendizagem no contexto
histórico de Havana, destacando as desigualdades e desafios enfrentados pelos
trabalhadores artesanais da época.

Em “Quilombos no Brasil imperial: uma análise historiográfica sobre resistência
e lutas sociais”, César Henrique de Queiroz Porto, Luiz Gustavo Soares Silva e Anna
Flávia Rodrigues Dias discutem a resistência quilombola como uma estratégia de
luta pela liberdade no Brasil imperial, reforçando a importância desses espaços
de resistência na construção da identidade e da história do país.

O artigo de Janete Andrade de Lima e Vera Lúcia Ferreira Vargas Cesco,
Estudantes indígenas no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, campus
Aquidauana: um estudo de caso” aborda as dificuldades e desafios enfrentados
pelos estudantes indígenas no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Campus
Aquidauana, destacando a importância da adaptação institucional para garantir a

EDITORIAL

14 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

inclusão e a valorização das culturas indígenas. A pesquisa ressalta a necessidade
de políticas educacionais que respeitem as especificidades desses estudantes,
promovendo um ambiente mais inclusivo e acolhedor.

Carmem Lúcia Sussel Mariano e Aguinaldo Rodrigues Gomes problematizam
como o neoliberalismo, ao priorizar a competitividade e a eficiência, redefine
a “qualidade” na educação básica, muitas vezes ignorando as desigualdades
estruturais que marginalizam certos grupos sociais. A análise crítica destaca que,
ao adotar uma visão de educação centrada no mercado, as políticas neoliberais
aprofundam a exclusão e comprometem a efetividade do sistema educacional
para as populações mais vulneráveis.

No Caderno Especial, “Quem tem medo de Madonna?”, Antonio Ricardo Calori
de Lion analisa a figura de Madonna como um ícone cultural, destacando a relação
entre sua imagem pública e o impacto de seu ativismo social, cultural e político.

A tradução de Rafael Morato Zanatto do texto “A emergência e
desenvolvimento da justiça transicional como campo de pesquisa e de aplicação
prática”, de Thomas Fischer, explora a evolução da justiça transicional, um campo
que visa tratar as violações de direitos humanos em contextos de transição
política, como em períodos pós-conflito ou após regimes autoritários. Nele
há o destaque sobre como a justiça transicional tem se consolidado, tanto na
teoria quanto na prática, como uma ferramenta fundamental para promover a
reparação das vítimas, a reconciliação social e a consolidação da democracia. A
pesquisa enfatiza a complexidade desse processo e os desafios enfrentados na
implementação de políticas efetivas que busquem justiça, verdade e reparação
de maneira equitativa e sustentável.

Na seção Resenhas, a primeira delas traz o livro de Maria Leda Martins, que
reflete sobre as “temporalidades, negritude e a noção de corpo”, resenhado por
Maria Eduarda Durães Martins. Como a autora aponta no próprio título de seu
trabalho, o tema central é o “corpo e ancestralidade no tempo que transmuta, recria
e se iguala em diferença” apontando os “ensinamentos a partir de performances
do tempo espiralar”.

Finalmente, na resenha do livro “A construção histórica da abjeção racista
no Brasil”, Cassio Rodrigues da Silveira apresenta a reflexão crítica de Berenice
Bento sobre as raízes do racismo no Brasil e como ele se manifesta nas estruturas
sociais e culturais, incluindo suas repercussões no cinema e na sociedade em
geral, proporcionando uma análise profunda das dinâmicas de abjeção racial.

EDITORIAL

15 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

No contexto de albuquerque: revista de história, estes textos permitem
uma reflexão profunda sobre a relação entre história, cinema e cidade, sobre as
mediações culturais, as tensões sociais e as opressões ainda presentes em nossas
sociedades, destacando a formação das identidades urbanas e a construção das
narrativas históricas e políticas que moldam o nosso entendimento do mundo
contemporâneo.

DOSSIÊ

16 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

APRESENTAÇÃO: DOSSIÊ “CINEMA E CIDADES”

INTRODUCTION: “CINEMA AND CITIES”

Marcos Antonio de Menezes1
https://orcid.org/0000-0001-8472-8186

http://lattes.cnpq.br/5906542748941462

Alcides Freire Ramos2
https://orcid.org/0000-0002-6701-9123

http://lattes.cnpq.br/4887520444879981

Recebido em: 28 de dezembro de 2024.
Aprovado: 31 de dezembro de 2024.

http://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22903

O dossiê “Cinema e Cidades”, organizado pelo Prof. Dr. Marcos Antônio de
Menezes (UFJ; UFG), em conjunto com o Prof. Dr. Alcides Freire Ramos (UFU;
UFMS), constitui-se como uma contribuição fundamental para os estudos que
exploram a multifacetada relação entre o cinema e o espaço urbano. Desde sua
invenção no final do século XIX, em Paris, o cinema tem mantido uma conexão
profunda com as cidades, não apenas como cenário, mas como elemento ativo
na construção de narrativas, significados e representações. O primeiro filme

1  Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU (1996), mestrado em
História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Franca (1999) e dou-
torado em História pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2004). Estágio Pós-doutoral pela
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2016). É professor titular da Universidade Federal
de Jataí (UFJ), atuando no Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado e Doutorado) da Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, desde 2005. E-mail: pitymenezes.ufg@gmail.com
2  Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1986) e doutorado em História
pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente, faz parte do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Culturais da UFMS (Campus de Aquidauana) como Professor Voluntário. Professor Titular
(aposentado) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista Produtividade do CNPq - Nível
1D. E-mail: alcides.f.ramos@gmail.com

DOSSIÊ

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publicamente divulgado, A Chegada do Trem à Estação, dos irmãos Lumière (cuja
exibição ocorreu no dia 6 de janeiro de 1896), já anunciava essa relação simbiótica,
ao capturar o movimento frenético da vida urbana e transportá-lo para a tela,
deslumbrando espectadores e inaugurando uma nova forma de ver e pensar as
cidades.

A partir desse marco inicial, as cidades tornaram-se um dos temas mais
recorrentes e fascinantes do cinema. Elas não são meros pano de fundo, mas
personagens dinâmicas que refletem as transformações sociais, políticas e
culturais de cada época. Filmes como  Metrópolis  (1927), de Fritz Lang, e  Blade
Runner
  (1982), de Ridley Scott, exemplificam como o cinema pode transformar
a cidade em uma entidade viva, carregada de simbolismos e projeções utópicas
ou distópicas. Essas obras não apenas retratam o espaço urbano, mas também
o reinventam, criando imagens que dialogam com as aspirações, medos e
contradições das sociedades que as produzem.

O objetivo deste dossiê é justamente explorar essas relações múltiplas e
desafiadoras entre cinema e cidade, reunindo textos que não apenas discutem
a representação do espaço urbano nas telas, mas também propõem reflexões
sobre a contemporaneidade, marcada pela vida em metrópoles saturadas de
imagens e significados. Em um mundo onde o urbano se torna cada vez mais
fragmentado e multifacetado, o cinema emerge como uma ferramenta poderosa
para decifrar e interpretar as dinâmicas das cidades modernas. Os artigos que
compõem o dossiê abordam essa temática a partir de perspectivas diversas,
oferecendo um panorama rico e abrangente sobre o tema.

Nesse sentido, o artigo “Cidade-Cinema: Análise de uma Interação a partir
de uma Experimentação Conceitual”, de José Costa D’Assunção Barros propõe
uma reflexão teórica, complexa e bem urdida, sobre as cidades-cinema, definidas
como aquelas idealizadas pelo cinema a partir de produções específicas. O autor
argumenta que, mesmo quando as cidades retratadas são fictícias, elas carregam
consigo os medos, angústias, esperanças e demandas da sociedade que as
concebeu. Barros desdobra o conceito de cidade-cinema em quatro categorias:
cidade-local, cidade-lugar, cidade-território e cidade-personagem.

A  cidade-local  refere-se ao espaço físico onde a narrativa se desenrola,
enquanto a  cidade-lugar  enfatiza a dimensão simbólica e afetiva do espaço
urbano. Já a  cidade-território  explora as relações de poder e controle que se
estabelecem no espaço urbano, e a cidade-personagem atribui à cidade um papel

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ativo na narrativa, transformando-a em uma entidade com vida própria. Essa
categorização permite uma análise mais profunda das representações urbanas
no cinema, destacando como as cidades são construídas e reconstruídas nas
telas.

Por outro lado, em “Olhares Cinematográficos sobre a Revolução dos Cravos”,
Róbson Pereira da Silva, Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, de forma
cuidadosa e competente, analisam como esse marco histórico em Portugal
foi retratado no cinema. O artigo examina três obras: os documentários  Torre
Bela
 (Thomas Harlan, 1977) As Armas do Povo (Glauber Rocha, 1975), ambos realizados
durante a revolução, e o filme de ficção Non, ou a Vã Glória de Mandar (Manoel de
Oliveira, 1990). Os autores refletem sobre a construção da identidade nacional
portuguesa, dialogando com teóricos como Hannah Arendt, Xavier, Junqueira e
Ramos. O artigo destaca como o cinema pode ser um instrumento poderoso para
a reconstrução e reinterpretação da história, capturando não apenas os eventos,
mas também os sentimentos e as contradições que os permeiam. Ao retratar
a Revolução dos Cravos, esses filmes oferecem uma visão multifacetada do
processo político e social que transformou Portugal, revelando as tensões entre
o ideal revolucionário e a realidade concreta.

Já no caso do artigo de Felipe Biguinatti Carias “Política entre as Mulheres e a
Construção do Espaço Público em Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach»,
o leitor encontrará uma notável e instigante análise fílmica que procura demonstrar
como a obra retrata o ressentimento da classe média brasileira após a eleição
de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. O autor examina o filme à luz do conceito
de esfera pública de Hannah Arendt e Roberto DaMatta, bem como da teoria do
ressentimento de Maria Rita Kehl. O artigo destaca como o cinema pode ser um
espaço de reflexão sobre as dinâmicas políticas e sociais, revelando as tensões e
contradições que permeiam a vida pública. Ao retratar a classe média brasileira
em um momento de transição política, Garotas do ABC oferece uma visão crítica
sobre as transformações que marcaram o país no início do século XXI.

Outra contribuição digna de ser lida é aquela oferecida por Maurício Caleiro,
em “As Cidades no Neorrealismo Italiano: Ressignificações do Espaço Urbano”.
Nesse artigo, o autor investiga, com esmero, a representação das cidades em
três filmes clássicos do neorrealismo italiano. Combinando análise fílmica, teoria
histórica do cinema e o conceito bakhtiniano de cronotopia, o autor examina
o papel e os significados atribuídos ao espaço urbano. O autor destaca ainda

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como o neorrealismo italiano transformou a cidade em um espaço de resistência
e luta, refletindo as dificuldades e esperanças do povo italiano no pós-guerra.
Ao retratar as cidades como espaços vivos e dinâmicos, esses filmes oferecem
uma visão profundamente humana do urbano, destacando suas contradições e
potencialidades.

À semelhança dos demais, o artigo de Aline Carrijo e Carolinne Mendes da
Silva intitulado “Os Heróis Anônimos na Construção da Capital Federal: Uma
Análise de Brasília Segundo Feldman (Vladimir Carvalho, 1979)», faz uma análise
cuidadosa de obra cinematográfica relevante, discutindo a representação dos
trabalhadores que construíram Brasília. O filme contrapõe a narrativa oficial da
cidade às experiências dos operários, destacando suas contribuições e desafios.
O artigo também destaca como o cinema pode ser um instrumento de denúncia
e resistência, revelando as histórias silenciadas e marginalizadas. Ao retratar
os trabalhadores que construíram Brasília, a obra de Vladimir Carvalho oferece
uma visão crítica sobre o processo de modernização do país, destacando as
contradições e desigualdades que o permeiam.

Em meio a essas reflexões, faz jus a uma leitura atenta o artigo de Roberto
Abdala Junior “Meia-Noite em Paris, um Filme para a História”. Nele, o autor, de
maneira criativa, analisa o filme de Woody Allen sob a perspectiva da didática
da história, discutindo como essa obra cinematográfica suscita reflexões sobre
as representações do passado, tanto em sala de aula quanto em pesquisas
acadêmicas. O artigo destaca como o cinema pode ser um instrumento poderoso
para o ensino e a pesquisa histórica, podendo oferecer uma visão crítica do
passado. Ao retratar a “Cidade Luz” em diferentes épocas,  Meia-Noite em
Paris convida o espectador a refletir sobre as relações entre história, memória e
identidade.

Com igual cuidado e atenção, Kassandra Naely Rodrigues dos Santos e
Milena Hoffmann Kunrath, em “Um Estudo sobre o Naturalismo em Thérèse
Raquin, de Émile Zola, e sua Transposição Midiática Contemporânea para a
Adaptação  Em Segredo”, analisam, em detalhes, as semelhanças e diferenças
entre o romance naturalista de Zola e sua adaptação cinematográfica, com base
em teorias de intermidialidade e adaptação. O artigo destaca como o cinema
pode reinterpretar e reinventar obras literárias, adicionando novas camadas de
significado e transcriando o texto original. Ao adaptar Thérèse Raquin para as
telas, Em Segredo oferece uma visão contemporânea do naturalismo, destacando

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suas permanências e transformações.
Explorando obra cinematográfica complexa, Rafael Alves Pinto Junior, em

“Jean-Luc Godard e o Controle do Presente:  Alphaville, une étrange aventure
de Lemmy Caution
  (1965)», propõe uma percuciente leitura do filme de Godard,
focando na representação do espaço urbano e na arquitetura como elementos
estruturantes da narrativa, utilizando referências da cultura visual e do
imaginário. O artigo destaca como o cinema pode ser um espaço de reflexão
sobre as dinâmicas de poder e controle que permeiam a vida urbana. Ao retratar
Alphaville como uma cidade distópica, Godard oferece uma visão crítica sobre as
transformações tecnológicas e sociais do século XX.

Por fim, também merecedoras de um olhar atento são as considerações
de Marcos Antônio de Menezes. Em “Utopias e Distopias Urbanas nas Telas do
Cinema: Metrópolis e Blade Runner”, o autor reflete sobre como o cinema projeta
visões do futuro humano por meio de representações utópicas e distópicas das
metrópoles contemporâneas, contribuindo para a compreensão das propostas
de habitar e viver nas cidades do porvir. O artigo destaca como o cinema pode
ser um espaço de projeção e reflexão sobre o futuro, revelando as aspirações
e medos das sociedades que o produzem. Ao retratar cidades utópicas e
distópicas,  Metrópolis  e  Blade Runner  oferecem uma visão crítica sobre as
dinâmicas urbanas e suas implicações para a vida humana.

Como se vê, o dossiê “Cinema e Cidades” coloca em evidencia a riqueza e
a complexidade das relações entre o cinema e o espaço urbano, demonstrando
como as imagens fílmicas não apenas refletem, mas também moldam nossa
compreensão das cidades. Ao explorar diferentes contextos históricos,
estéticos e políticos, os artigos aqui reunidos mostram que as cidades são mais
do que simples cenários; elas são espaços simbólicos, territórios de memória
e protagonistas de narrativas visuais, que revelam as complexas dinâmicas da
vida contemporânea. Assim, o cinema se consolida como um poderoso meio
de análise e reflexão sobre o urbano, suas utopias, distopias e a permanente
reinvenção do espaço público.

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CIDADE-CINEMA: ANÁLISE DE UMA INTERAÇÃO A PARTIR DE
UMA EXPERIMENTAÇÃO CONCEITUAL

CITY-CINEMA: ANALYSIS OF AN INTERACTION FROM
A CONCEPTUAL EXPERIMENTATION

José Costa D’Assunção Barros1

https://orcid.org/0000-0002-3974-0263
http://lattes.cnpq.br/7367148951589975

Recebido em: 12 de junho de 2024.
Aprovado em: 04 fevereiro de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22786

1  Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), nos cursos de Graduação e
Pós-Graduação em História, e Professor-Permanente do Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: joseassun57@gmail.com

RESUMO: Definem-se como “Cidades-
Cinema”, para efeito de desenvolvimento
conceitual, as cidades idealizadas pelo Cinema
a partir de produções fílmicas específicas. A
ênfase recai sobre as cidades imaginárias e
realistas produzidas pelo Cinema de diversas
épocas, buscando perceber a sua articulação
com o roteiro do filme. A hipótese de
trabalho apresentada é a de que mesmo as
cidades imaginárias sempre expressam, de
alguma forma, os medos, angústias, anseios,
esperanças ou demandas da sociedade que as
produziu. Neste sentido, operacionaliza-se aqui
a postura metodológica que considera o real e
o imaginário não como dimensões separáveis,
mas complementares e constituintes de uma
unidade complexa. O conceito de cidade-
cinema é proposto em quatro desdobramentos,
gerando novos conceitos: cidade-local, cidade-
lugar, cidade-território, cidade-personagem.

Palavras-chave: cinema, cidade,
imaginário.

ABSTRACT: In his essay, we are going
to define as “City-Cinema”, in order to get a
conceptual development useful for the studies
of Cinema. The emphasis is directed to the
realistic and Imaginary Cities produced by the
Cinema of different times, searching to perceive
its articulation with the film plan. The hypothesis
is that even the imaginary cities always show the
fears, angusties, desires, hopes and demands of
the society which have produced the film. In this
way, we apply here the methodological posture
that considers Real and the Imaginary not as
separated dimensions, but complementary and
inserted in a complex unity. The concept.

Key words: cinema, city, imaginary.

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Introdução

Cidade e Cinema compartilham uma relação complexa, e é sobre a os vários
tipos de interações cidade-cinema que refletiremos neste artigo. Quero observar,
inicialmente – mesmo que esta relação não vá ser examinada mais diretamente
neste artigo – que o próprio cinema é de alguma maneira uma arte urbana. Embora
através dos seus filmes a arte cinematográfica aborde temáticas as mais diversas
e discorra sobre tudo nos mais variados ambientes (e não apenas cidades), a futura
indústria do cinema havia surgido primordialmente nos ambientes urbanos, e
lá estabeleceria suas salas de exibição de filmes durante todo o século XX. No
século XXI, embora seja menor o número de salas de exibição – particularmente
em decorrência da proliferação de novas práticas através de tecnologias que
praticamente levam o cinema para a intimidade do lar – estas salas de cinema
continuam a ter como seu locus predominante o ambiente urbano. A primeira
relação cidade-cinema, portanto, é o enquadramento do cinema em uma rede de
cidades contemporâneas, a partir da qual a indústria cinematográfica se irradia.
Hoje em dia os filmes podem ser assistidos no campo, nos desertos, florestas,
lares isolados e vilarejos que ainda não são propriamente cidades – mas as suas
origens, e o âmago de suas práticas, são essencialmente urbanos.

Não obstante esta importante relação da cidade como lugar privilegiado do
cinema – a qual pode ser pensada como a primeira interação cidade-cinema –
dedicar-nos-emos a examinar outras formas de interação: aquelas que envolvem
os filmes e as representações da cidade. Assim, se a cidade foi historicamente
o lugar do cinema como indústria e tradicional campo de sociabilidades, já os
filmes produzidos pelo cinema são eles mesmos importantes lugares para a
representação de cidades.

Neste artigo, proporei a sistematização de um conceito com vista ao estudo
do cinema nas áreas de história, sociologia, comunicação e outras perspectivas
científicas. A experimentação conceitual é inédita, e presentemente já a estamos
aplicando a objetos de estudo específicos dentro da temática do cinema e das
produções fílmicas. O conceito central proposto é o de ‘cidade-cinema’, mas ele
se desdobra a partir de uma tipologia consoante a qual podemos entender as
cidades fílmicas alternadamente como cidades-local, cidades-lugar, cidades-
território e cidades-personagens. Em primeira instância, mas atentando para
algumas especificidades que serão delineadas mais adiante, o conceito de

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cidade-cinema – ao lado de seus quatro desdobramentos tipológicos – objetiva
uma sistematização do vocabulário a ser utilizado com vistas aos estudos
dedicados às cidades idealizadas pelo cinema a partir de produções fílmicas
específicas.

Conforme os desdobramentos acima mencionados, sustentarei a ideia de que
a cidade pode desempenhar em um filme diferentes funções e combinações de
funções. Pode ser um local indefinido onde se desenvolve a ação (a cidade-local),
um cenário identitário característico ou lugar mais específico (a cidade-lugar),
um território constituído por relações de poder (a cidade-território), ou configurar
uma espécie de grande personagem do filme, tornando-se tão importante
na trama quanto os variados personagens humanos que integram o enredo. A
tipologia proposta indica três situações: espaciais – a cidade-local, a cidade-
lugar, a cidade-território – e uma situação dramática: a cidade-personagem. Para
começar, observemos que as três diferentes relações espaciais mencionadas
evocam importantes conceitos da geografia que será oportuno discutir. É o que
faremos na próxima seção.

Espaço, paisagem, local, lugar e território

Espaço é o conceito primordial da geografia. De uma ideia inicial de que
o espaço é o local onde acontecem as coisas – os fenômenos geológicos e
transformações do meio, as inflexões climáticas, a dinâmica biológica que institui
todos os tipos de vida, os complexos processos humanos, e a própria passagem
do tempo – a geografia contemporânea tende a compreender o próprio espaço
como parte dos acontecimentos. Há mais de um século, a partir da física da
relatividade, também se compreende que espaço e tempo estão unidos em uma
única textura tetradimensional. E a própria geografia já há muito avançou para a
percepção de que o espaço contém tempo – o que é particularmente perceptível
nas análises geográficas (e históricas) de paisagens.

Um certo espaço sujeito à observação humana mostra-se ao pesquisador que
o analisa como formado por objetos demarcados por diferentes temporalidades:
de certo patamar e local de observação, posso perceber um trecho de rua que
tenha como pontos de destaque uma Igreja do século XVIII, um pequeno prédio
construído no século XX e um prédio de muitos andares construído no século XXI.

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O chão pode alternar trechos de paralelepípedos do século XIX e asfalto da última
década. As árvores que interrompem um e outro calçamento podem ser muito
antigas, e não é impossível que uma delas tenha sido plantada no século XVII. O
exemplo, livremente concebido, mostra a apreensão de um espaço complexo na
sua relação com o meio (outro importante conceito geográfico). Se, no seu dia a
dia, os passantes de uma cidade estão acostumados a lidar despretensiosamente
com o espaço – como se ele pouco mais fosse do que o local no qual nos
movimentamos – assim que nos colocamos na posição de observadores mais
atentos de paisagens, começamos a perceber toda a complexidade de uma
trama espacial dinâmica que envolve vida, humanidade, movimento, diversidade
material, ressignificações culturais e diferentes inserções temporais2.

A propósito, o próprio conceito de paisagem – também basilar para a geografia
contemporânea – beneficiou-se de uma importante ressignificação enriquecida
pela complexidade à medida em que os geógrafos nela incluíram a percepção do
tempo e do movimento, e aqui surge uma interessante analogia com o cinema.
Metaforicamente falando, a passagem da discussão geográfica clássica sobre
paisagens para as problematizações contemporâneas envolve a transição de
uma perspectiva mais ‘fotográfica’ para uma perspectiva mais ‘cinematográfica’
de paisagem. No caso das paisagens urbanas, é bem evidente este jogo entre
mutações e permanências. Podemos acompanhar as observações de Milton
Santos, para quem “a paisagem é como um palimpsesto, isto é, resultado de uma
acumulação na qual algumas construções permanecem, intactas ou modificadas,
enquanto outras desaparecem para ceder lugar a novas edificações” (2013, p.62)3.
O conceito cinematográfico de paisagem coaduna-se mais adequadamente com
esta ideia de que o espaço tem sua forma e seus contornos permanentemente
redefinidos pela confluência entre os processos naturais, sociais e tecnológicos.

Compreendida a complexidade pertinente à dimensão do espaço nas suas
relações com o meio, o ecossistema, o tempo e o mundo humano, podemos aplicar

2  Diz-nos Milton Santos: “O espaço é o resultado dessa associação que se desfaz e se renova
continuamente, entre uma sociedade em movimento permanente e uma paisagem em evolução
permanente” (SANTOS, 1979, p.42).
3  Milton Santos prossegue, elaborando uma interessante comparação entre o processo de constante
formação e reformação de paisagens com os processos de atualização de uma língua: “Através
desse processo, o que está diante de nós é sempre uma paisagem e um espaço, da mesma maneira
que as transformações de um idioma se fazem por um processo de supressão ou exclusão, no qual
as substituições correspondem às inovações” (SANTOS, 2013, p.62). “Técnicas, Tempo, espaço”
[original: 1999].

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agora três diferentes ênfases ao tratamento da espacialidade. Elas também
configuram três conceitos essenciais à geografia contemporânea: localidade,
lugar e território. Estes três conceitos serão centrais para a tipologia das cidades-
cinema que desenvolveremos mais adiante. Vamos entender inicialmente, por
contraste ou comparação, os dois primeiros conceitos aqui envolvidos: local e
lugar.

Em tempos idos da história da geografia, a noção de lugar tendia a se
confundir com a de localidade. Nos dias de hoje delineia-se uma forte tendência,
nos meios geográficos, à elaboração de uma distinção mais bem definida entre o
“local” (conceito mais técnico e relacionado a uma posição no espaço) e o “lugar”
propriamente dito. De fato, a partir dos anos 1960, começam a surgir os primeiros
interesses dos geógrafos em definir com maior clareza o que é o “lugar” – um
conceito que frequentemente vinha sendo empregado de maneira acrítica, mais
ou menos como se já fosse por si uma noção imediatamente compreensível para
todos e para qualquer um. Com vários geógrafos que escrevem neste período
e depois, como Fred Lukermann (1921-2009), o conceito de lugar parece já ter
se libertado da conotação exclusivamente locacional. O vínculo do lugar com
uma localidade – isto é, com certa posição no espaço – é ainda inquestionável
(embora, mais tarde, mesmo isso vá começar a se alterar com o surpreendente
desenvolvimento das realidades virtuais e do ciberespaço). Todavia, o acorde
conceitual de “lugar”, a partir dos anos 1960, já passava a exibir outras notas
características importantes, para além da mera ideia de localidade. Enquanto o
local implica uma posição no espaço real ou no mapa, o conceito de lugar agrega
necessariamente a ideia de identidade. Da mesma maneira, todo lugar implica
perceber o seu lado de dentro e o seu lado de fora (o seu entorno).

A relação deste lado de dentro (ou deste sítio) com o entorno ou com
realidades mais distantes, a experiência humana que no interior desta relação se
estabelece, os modos de ver o mundo que afloram quando se está em um lugar
e não em outro, os mecanismos de identidade que se impõem de dentro de um
lugar ou contra este mesmo lugar – tudo isso começa a compor um sentido mais
complexo para esta pequena palavra com a qual estamos tão acostumados na
vida cotidiana.

O lugar não é mais apenas um mero local, mas sim um mundo que coloca
em jogo as suas próprias regras. Pode-se mesmo dizer que todos os lugares são
pequenos mundos. Se o lugar pressupõe uma localização (mesmo o lugar virtual

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tem um endereço eletrônico), este traço está longe de ser o único relevante quando
pensamos nos lugares. Ademais, podemos ter uma localidade – cartografável ou
indicável no mapa – mas sem termos ainda um lugar. O local pode ser um mero
ponto no mapa definido pelo encontro de um paralelo e um meridiano. Mas
um lugar precisa ser nomeado, pressentido por alguém como dotado de uma
singularidade. O lugar é o local que adquiriu visibilidade para alguém, porque
investido de certos significados.

O lugar, assim, é o espaço ao qual foram agregados novos níveis ou camadas
de sentidos. Conforme nossa própria terminologia, o lugar é o espaço objetivo
sobre o qual se ergueu um acorde de subjetividades. Por isso o geógrafo sino-
americano Yi-Fu Tuan (n.1930), em Espaço e Lugar: uma perspectiva humanista
(1979), ressalta que o lugar é “uma entidade única, um conjunto especial que
tem história e significado, [...] uma realidade a ser esclarecida e compreendida
sob a perspectiva das pessoas que lhe dão significado” (Tian 1979, p.12). O lugar,
sobretudo, implica relações intersubjetivas que se integram a uma determinada
objetividade. Em duas palavras, envolve identidade e estabilidade. Ambas as
instâncias – a saber, de um lado a identificação, e de outro lado a dupla sensação
de estabilidade que é simultaneamente assegurada por um forte sentimento de
pertença e pela permanência objetiva do lugar no espaço e através do tempo
– parecem produzir nas pessoas sensações diversas de apego ao ambiente
construído ou natural (TUAN, 1974).

A sensação de pertença ao lugar, através deste duplo entremeado de
subjetividades que envolve simultaneamente a identificação com o lugar e a
impressão de sua continuidade no espaço-tempo – pode atingir distintos níveis
de amplitude, que vão da vizinhança ou do bairro à pequena localidade ou lugarejo,
daí à cidade ou à área rural e assim sucessivamente, até atingir lugares maiores
como o estado, o país, o continente, o planeta! Todos estes são certamente
lugares, os quais são investidos de diferentes tipos e níveis de afetividade, de
intimidade, de sentir-se dentro.

Do que foi dito, podemos dizer que o lugar é o espaço ressignificado por
elementos de identidade, por afetividades (positivas ou negativas) que se
agregam ao mero local, por subjetividades e intersubjetividades que configuram
ou reconfiguram local – mero espaço onde as coisas acontecem ou no qual as
posições se estabelecem. Enquanto isso, se o lugar é um espaço no qual se
estabelece uma dinâmica de identidades e intersubjetividades, o território

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– o último conceito que discutiremos – é o espaço no qual se estabelece uma
dinâmica de poderes.

Podemos evocar aqui outro geógrafo bem importante para a discussão do
espaço. É Claude Raffestin (n.1936), que faz uma distinção bastante interessante
entre o “espaço” e o “território”. Segundo Raffestin (1993, p.143), “o território
se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator
sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de
um espaço, concreta ou abstratamente (seja através da ocupação, seja através
da representação), o ator ‘territorializa’ o espaço”4.

Pode-se observar que a definição de “espaço” proposta por Raffestin,
a princípio necessariamente ligada à materialidade física, deixa de fora as
possibilidades de se falar em outras modalidades de espaço – o espaço social, o
espaço imaginário, o espaço virtual – as quais se constituem no próprio momento
da ação humana. De qualquer modo, o sistema conceitual proposto por Raffestin é
importante porque chama atenção para o fato de que a territorialização do espaço
ocorre não apenas com as práticas que se estabelecem na realidade vivida, como
também com as ações que são empreendidas pelo sujeito de conhecimento:

“‘Local’ de possibilidades, [o espaço] é a realidade material preexistente a qualquer
conhecimento e qualquer prática dos quais será o objeto a partir do momento em que
um ator manifeste a intenção de dele se apoderar. Evidentemente, o território se apoia
no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção,
por causa de todas as relações que envolve, inscreve-se num campo de poder. Pro-
duzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle
portanto, mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento” (RAFFESTIN,
1993, p.144).

É oportuno lembrar que a consciência de uma territorialidade que é
transferida ao espaço pode transcender o mundo humano. Também os animais
de várias espécies, que não apenas o homem, costumam territorializar o espaço
com as suas ações e com gestos que passam a delinear uma nova representação
do espaço. O lobo que “marca o seu território” cria para si (e pretende impor a outros
de sua espécie) uma representação do espaço que o redefine como extensão de
4  É interessante comparar as definições de “território” e “espaço” em Raffestin (1993) e Milton
Santos (1978), pois são francamente contrastantes. Enquanto que em Raffestin o espaço precede o
território, sendo que este último acrescenta ao primeiro o efeito de uma ação e do exercício de um
poder, já em Milton Santos vemos uma relação inversa em uma passagem de Por Geografia Nova, na
qual o geógrafo brasileiro afirma que “a utilização do território pelo povo cria o espaço”. O território,
aqui, antecede ao espaço. Além disso, em outras obras Milton Santos define o espaço como “a soma
indissociável entre sistemas de objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 2013, p.94).

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terra sob o seu controle. Demarcar o território é demarcar um espaço de poder.
No âmbito da macropolítica, é isto o que fazem os estados-nações ao constituir
e estabelecer um rigoroso controle sobre suas fronteiras.5.

Entrementes, a noção de território pode ser levada adiante. O geógrafo francês
Yves Lacoste (1976), em uma abordagem que foi denominada “espacialidade
diferencial”, propõe a possibilidade de se pensar não em enquadramentos
espaciais, mas sim em “espacialidades superpostas” (espaços que se superpõem
sem que seus contornos coincidam, gerando situações geográficas de grande
complexidade). A combinação desta perspectiva com os conceitos de espaço
e território propostos por Claude Raffestin também permitiria falar mais
propriamente de ‘territorialidades superpostas’.

Em sua realidade vivida, os seres humanos estão constantemente se
apropriando do espaço sobre o qual vivem e no qual estabelecem suas variadas
atividades e relações sociais. Um mesmo homem, no seu agir cotidiano e na sua
correlação com outros homens, vai produzindo territórios que apresentam maior
ou menor durabilidade. Ao se apropriar de determinado espaço e transformá-
lo em sua propriedade – seja através de um gesto de posse ou de um ato de
compra em um sistema onde as propriedades já estão constituídas – um sujeito
humano define ou redefine um território. Ao se estabelecer um certo sistema de
plantio sobre uma superfície natural, ocorre aí nova territorialização do espaço,
caracterizada por uma nova paisagem produzida culturalmente e por uma
produção que implicará em controle e conferirá poder.

O território que se produz e se converte em propriedade fundiária – ou em
unidade política estável para considerar um nível mais amplo – pode existir em
uma duração bastante longa antes de ser tragado por um novo processo de
reterritorialização. Contudo, se um homem exerce a profissão de professor, ou de
político, no momento de exercício destas funções poderá estar territorializando
uma sala de aula ou um palanque por ocasião de um comício, constituindo-se
estes em territórios de curta duração. A vida é devir de territórios de longa e
curta duração, que se superpõem e se entretecem ao sabor das relações sociais,
das práticas e representações.

5  “Por território entende-se a extensão apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade
como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence ... esse sentido de exclusividade e limite
ultrapassa a raça humana” (SANTOS e SILVEIRA, 2003, p.19).

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Com relação à associação entre território e espaço, deve-se notar que,
embora habitualmente pensemos no território como um poder ancorado em uma
porção de espaço, nada impede que a territorialização afete simultaneamente
porções não contíguas do espaço. Milton Santos já observava que “o território,
hoje, pode ser formado por lugares contíguos ou por lugares em rede” (Santos,
2014, p.139). Mesmo na Idade Média existiam territórios estabelecidos em um
conjunto de porções não-contíguas do espaço, como atestam os feudos formados
por glebas separadas umas das outras, sem continuidade, e que podiam constituir
com outros feudos um curioso retalho formado por diferentes senhorios.

O conceito especializado de território, por tudo o que vimos, está diretamente
ligado ao conceito de poder, e não necessariamente ao poder no sentido político
mais tradicional. Assim, “o ato de produzir é igualmente o ato de produzir
territórios” (Santos, 2014, p.139). Cultivar a terra é dominar a terra, é impor-lhe
novos sentidos, é apartá-la do espaço indeterminado inclusive frente a outros
homens, é exercer um poder e obrigar-se a um controle. Fabricar mercadorias
(ou controlar a produção de mercadorias) é invadir um espaço, é adentrar esse
complexo campo de forças formado pela produção, circulação e consumo,
e tudo isto passa também por exercer um controle sobre o espaço vital dos
trabalhadores, sobre seu tempo. Os poderes que estabelecem ou controlam um
território, dito de outra maneira, são poderes de participar do controle de um ou
mais dos fluxos que o perpassam. Mais uma vez, podemos falar na superposição
de territórios6.

Feita esta digressão sobre os conceitos de local, lugar e território – cruciais
para a compreensão da tipologia que será proposta para o estudo das cidades-
cinema – voltemos agora ao ambiente da arte cinematográfica.

Uma tipologia para o estudo das cidades-cinema

Conforme comentamos na Introdução deste artigo, nas representações
produzidas por diversos tipos de filmes sobre as cidades, podemos propor

6  “É a partir de tais constrangimentos que se pode, de um lado, distinguir um mercado efetivo para
cada firma – e a palavra mercado tem de ser entendida em termos espaciais – e que, de outro lado, se
podem reconhecer sobre o território de um país verdadeiros terminais de distribuição, diferentes para
cada produto, segundo o poder da firma que o produz” (SANTOS, 2008, p.83-84).

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uma sistematização consoante a qual estas podem desempenhar dois campos
importantes de funções: as espaciais, de um lado, e, de outro, uma função
actancial na qual a cidade deixa de ser apenas um espaço – local, lugar ou
território – e passa a ser mais propriamente um quase-personagem na trama,
um sujeito que participa da ação. O esquema abaixo propõe uma tipologia das
cidades-cinema a partir das quatro categorias propostas. Logo veremos que os
conceitos geográficos anteriormente discutidos são pertinentes aos três tipos
que se referem mais diretamente à espacialidade.

Figura 01 - Tipologia das cidades-cinema

A ‘Cidade-Local’

As ‘Cidades Locais’ são talvez as mais comuns no cinema, em termos de
quantidade de filmes nas quais aparecem. O espaço urbano se mostra aqui
como localidade. O conceito de local – ou de localidade – como já vimos, pode
ser contrastado ao conceito de lugar. O local indica uma posição, uma região do
espaço preenchida pelo meio, um espaço indeterminado no qual se passam as
coisas; no nosso caso, trata-se de um padrão urbano de materialidade que só é
importante para indicar que a trama fílmica se passa em uma cidade – e não em
um campo, floresta ou deserto – mas que não vai muito além disso. Nos filmes
baseados em cidades-locais (cidades moduladas pelo conceito de ‘local’) a trama
fílmica necessita de que o espaço onde se passa a ação seja uma cidade, mas
não mais que isso. Não é preciso que seja uma cidade específica (modulada pelo

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conceito de lugar): basta que seja um ambiente urbano.
Podem ser dados inúmeros exemplos – como os inúmeros filmes centrados

em protagonistas jovens que vivem em cidades médias estadunidenses,
frequentando a High Scholl ou a Graduação, em gêneros que vão do terror ou
suspense à comédia ou drama. Podem ser os variados filmes aterrorizados por
tubarões que se passam em pequenas cidades costeiras, os filmes de faroeste
que se passam nos Estados Unidos das quatro últimas décadas do século XIX,
ou filmes de suspense onde assassinatos são cometidos em cidades populosas,
médias ou mesmo pequenas. As cidades inventadas podem ter nomes nestes
filmes, ou podem também ser cidades conhecidas, mas isto não importa muito
porque a sua identidade não é trabalhada sequer como um cenário importante,
conforme veremos ser o caso das ‘cidades-lugar’. O que importa no tipo ‘cidade-
local’ é apenas que se trate de uma cidade, pois a trama precisa de situações
urbanas.

Muitos exemplos poderiam ser dados, mas vou evocar a série estadunidense
de filmes de terror intitulada Final Destination (no Brasil traduzida por
“Premonição”. São ambientes urbanos os que vemos em cada um dos filmes
desta série, sendo que, se de algum modo eles são independentes entre si,
compartilham todos uma estrutura de roteiro que terminou por fazer muito
sucesso de público (trata-se da quarta mais lucrativa franquia de filmes de terror
produzida nos Estados Unidos). Um detalhe crucial nos cinco filmes da franquia é
que, entre personagens humanos que vão se diversificando em cada filme, surge
a própria Morte como o principal antagonista.

Para a discussão que nos interessa, o importante é que os filmes começam
e se desenvolvem em torno de grandes acidentes que ocasionam mortes – na
primeira cena um acidente coletivo de grandes proporções que produz muitas
mortes; nas demais, acidentes com vítimas individuais que são perseguidas
pela Morte, já que estes personagens dela haviam escapado através de uma
premonição de um dos personagens. Para estes filmes, o que importa é que os
locais onde se passa a ação sejam grandes ou médias cidades, pois o acidente
coletivo que desencadeia a trama sintoniza-se com situações tipicamente
urbanas. No primeiro filme um avião irá explodir ao decolar de um aeroporto; no
segundo filme o acidente ocorre em uma rodovia congestionada; no terceiro a
morte espreita inicialmente uma montanha russa em um parque de diversões,
mas reserva para o final um acidente no metrô; no quarto filme temos um

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autódromo como palco da mortalidade coletiva, e no final a explosão de um
shopping; no quinto, é uma ponte congestionada que cai. Em cada um dos filmes,
a trama precisa de grandes artefatos tipicamente urbanos – aeroporto, rodovia,
autódromo, metrô, shopping, parque de diversões, ponte – mas poderia se passar
em qualquer média ou grande cidade. Podemos dizer, evocando a conceituação
geográfica atrás discutida, que estes filmes precisam da cidade como local – e
não como lugar ou território.

O gênero fílmico dos faroestes nos oferece um exemplo mais específico.
A trama precisa de um tipo especial de cidade – os pequenos lugarejos
estadunidenses para além da linha do Mississippi no período que vai de 1860 até
o trânsito para o século XX, envolvidos por todo o conhecido contexto histórico
de ocupação de terras, formação de grandes propriedades pecuárias, luta contra
indígenas, corrida do ouro, fragilidade da lei, favorecimento do pioneirismo e
proliferação do banditismo, contraposição fronteiriça ao México, e assim por
diante. A figura típica é o chamado cowboy. As cidades nas quais se passam as
tramas de faroeste podem receber nomes diversos, mas no fundo são sempre
a mesma cidade: têm uma única avenida com chão de terra, e esta é já de saída
demarcada pela cadeia, residência do xerife, e pelo saloon – lugar da bebida, do
jogo e eventualmente da interação com a prostituição, quando esta não recebe
uma localidade própria na rua principal. Os filmes de faroeste nos colocam diante
da cidade-local com um padrão específico de materialidade e sociabilidade.

Cidade-Lugar e Cidade-Território

As cidades-lugar aparecem quando a trama fílmica evoca uma cidade
específica, dotada de forte identidade e singularidade, ou então constrói uma
cidade imaginária também demarcada por um padrão identitário específico.
A comédia dramática Contos de Nova York (1989) – reunindo três episódios
respectivamente dirigidos por Martin Scorsese, Francis Coppola e Woody Allen
– mostra-nos a cidade de Nova York como referência identitária essencial a
este filme. É esta mesma cidade que estrutura as complicadas e singulares
personagens femininas da série Sexy and Cit, e pode-se dizer que estas só
poderiam existir, tal como são, na Nova York contemporânea reconstruída pela

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série de maneira tão singular7.
As cidades-lugar também podem ser históricas. A Roma dos césares já é

uma típica cidade-lugar nos filmes que retratam o Antigo Império Romano. De
fato, a Roma que devora implacavelmente os seres-humanos na arena do Coliseu
constitui aquilo que estrutura as próprias ações possíveis de Gladiador.8 Por outro
lado, vou argumentar mais adiante que a Paris setecentista do filme O Perfume
(2007) – baseado no best-seller homônimo escrito por Patrick Suskind – chega
a ser mais do que uma cidade-lugar, tornando-se uma cidade-personagem que
funciona como um ator oculto nesta trama que envolve a trajetória de um serial-
killer com o olfato extraordinariamente desenvolvido. A capital francesa é aqui a
cidade na qual convivem os odores mais fétidos e os mais sofisticados perfumes,
estes consumidos pelas elites aristocráticas e burguesas, aqueles estruturando
a vida dos miseráveis da periferia. Jean-Baptiste Grenouille – órfão nascido
nos subúrbios miseráveis e que logo se tornará um serial-killer a perseguir
obstinadamente a criação de um perfume perfeito elaborado a partir de um
acorde de cheiros extraídos de mulheres assassinadas – não poderia ter nascido
em outro lugar. A trama desta película de suspense necessita dos ambíguos
aromas e fedores de Paris, tanto como de suas contradições sociais e de um
contexto que respira os estertores de um Antigo Regime que não tardará muito
a ser sacudido pelas ondas revolucionárias. Voltarei mais adiante ao conceito
de cidade-personagem, mas por ora ressalto que é novamente uma cidade-
lugar a encantadora e artística Paris que, na comédia romântica Meia Noite em

7  A série Sexy and City – estrelada por Sarah Jessica Parker (Carrie Bradshaw), Kim Cattrall
(Samantha Jones), Kristin Davis (Charlotte York) e Cynthia Nixon (Miranda Hobbes) – foi exibida
entre 1998 e 2004, e transformada em filme em 2008. O roteiro é de Michael Patrick King, baseado
em personagens do livro homônimo de Candace Bushnell (n.1958). [ref: Sex and City. Rio de Janeiro:
Record, 2003].
8  Gladiador (2000) foi dirigido por Ridley Scott (n.1937) e teve roteiro escrito por David H. Franzoni,
John Logan e William Nicholson. O filme foi produzido e distribuído pela Universal Pictures e
DreamWorks, e foi estrelado por Russell Crowe (Maximus), Joaquin Phoenix (Commodus), Richard
Harris (Marcus Aurelius), Djmon Houson (Juba) e Connie Nielsen (Lucilla). O ambiente histórico é o
Império Romano do final do governo de Marco Aurélio (121-180 d.C) e início do governo de Commodus
(161-192 d.C). Um detalhe particularmente interessante do filme é que, para recriar o ambiente do
Coliseu, Ridley Scott fez com que fosse erguida uma réplica do anfiteatro romano em tamanho natural
no Marrocos, onde ocorreu boa parte das filmagens. O empenho em recriar rigorosamente o ambiente
da Roma antiga, por outro lado, contrapõe-se a certas adaptações no que se refere aos personagens
históricos reais: na película, por exemplo, Commodus assassina seu pai Marco Aurélio para assumir
a posição de Imperador; mas na realidade histórica sucedeu-o após Marco Aurélio falecer em virtude
de ter contraído a peste em uma campanha no Danúbio, contra os marcomanos.

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Paris (2011), torna simultâneos e sucessivos vários de seus momentos históricos
através de uma estranha magia que deixa pasmado o seu protagonista. Aqui,
Paris não é certamente um mero local, mas sim um lugar.

Outro desdobramento análogo aos exemplos de cidades fílmicas que se
ajustam ao conceito de cidade-lugar é o das cidades-territórios. Como foi
esclarecido, se o conceito de lugar difere radicalmente do conceito de local
por mesclar ao espaço elementos de identidade, afetividade, emocionalidade
e outros aspectos intersubjetivos, o conceito de território relaciona-se à ideia
de poderes que são aplicados ao espaço. No cinema, as cidades-territórios são
aquelas que se estruturam claramente, na sua exposição ao telespectador, em
termos de poder. A cidade-território configura-se em uma arena de disputas,
em um espaço dinâmico de enfrentamento de poderes. Podemos pensar no
filme Cidade de Deus (2002). O Rio de Janeiro trazido por esta película brasileira
de ação e de crítica social é principalmente um espaço de enfrentamentos,
particularmente na comunidade que ficou conhecida como Cidade de Deus.

De fato – desenvolvendo-se sob a perspectiva de territórios disputados
no âmbito do banditismo do tráfico, e de seu confronto com poderes policiais,
inclusive os seus setores corruptos – o filme busca retratar o crescimento
tortuoso e progressivo do crime organizado nesta favela carioca que começou
a ser construída nos anos 1960, ela mesma, já de si, produto de outra grande
disputa territorial: o desalojamento de todo um setor pobre da população carioca
em vista de especulação imobiliária. Tudo neste filme pode ser avaliado à luz
da ideia de uma cidade-território que traz à baila os mais diversos poderes. Os
grupos marginais lutam entre si; ambos, entrementes, devem enfrentar a polícia,
que também não oferece um conjunto homogêneo, já que há confrontos internos
ao lado dos ajustamentos tensos entre policiais corruptos e o crime organizado.
A população de trabalhadores e moradores da comunidade, por outro lado, sofre
a opressão tanto da polícia quanto do banditismo, e para sobreviver precisa
reconhecer as territorialidades que atravessam com violência os seus espaços
privados e de sociabilidade, ao mesmo tempo em que os poderes em confronto
se espraiam no seu espaço-tempo cotidiano. O filme oportuniza um exemplo de
cidade-cinema que pode ser pensado como cidade-território, de maneira análoga
a outros como Tropa de Elite (2007), filme policial dirigido por José Padilha.

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As cidades-cinema que constituem grandes personagens na trama fílmica

Uma cidade-personagem, para avançar no último desdobramento da
conceituação proposta, converte-se em um grande personagem que paira sobre
todos os outros na trama. Não importa, no caso, se é uma cidade totalmente
imaginada pelo autor-cineasta, ou se é uma cidade criada com base em uma
referência que exista na realidade atual ou que já tenha existido, em algum
momento, na realidade histórica. A cidade-personagem é na prática um grande
personagem que parece agir na própria trama. Como se disse, este grande
personagem pode ser uma cidade imaginária, inventada pelos criadores do filme,
ou ser uma cidade já conhecida, como Paris, Rio de Janeiro ou Nova York.

Assim, por exemplo, a imaginária Gotham City, de Batman (1989), é uma típica
cidade-personagem que ilustra a situação das cidades inventadas, entre outras
cidades-cinema puramente fictícias localizadas pela filmografia no futuro, no
presente, no passado, ou em “lugar-nenhum” – cidades estas que obviamente
passam a ser identificadas por um nome novo e que não apresentam referências
a cidades já existentes9. Mas também há as cidades igualmente fictícias que são
radicais reconstruções de cidades conhecidas, tal como ocorre com os filmes
que tematizam épocas futuras e que se propõem a apresentar a Los Angeles de
meados do século XXI ou a Nova York do século XXIII. Há, portanto, um quadro
amplo de possibilidades voltadas para a criação de cidades-cinema, de modo geral
– e cidades-personagem, de modo mais particular – e nele podemos vislumbrar
três posturas fundamentais do autor fílmico com relação às realidades urbanas
que estão sendo apresentadas nesta ou naquela película: a ‘Representação’, a
‘Invenção’ e a ‘Re-invenção’.

Por ora, vamos nos concentrar no campo das cidades-personagens. Essas
devem ser vistas como elementos sempre fundamentais na própria trama fílmica,
e não apenas como meros cenários ou lugares nos quais as ações se desenvolvem.
Deste modo, estes tipos de cidades-cinema são quase, por assim dizer, grandes
9  Batman, célebre personagem da HQ criado em 1939, chega às telas em 1989, em um filme de Tim
Burton (n.1958) com roteiro de Sam Hamm e Warren Skaaren, livremente baseado nos personagens e
enredos criados por Bob Kane (1915-1998) e Bill Finger (1914-1974) e posteriormente desenvolvidos
por outros autores como Frank Miller (n.1957). O filme foi produzido e distribuído pela Warner
Bros e estrelado por Michael Keaton no personagem principal, além das atuações de Jack Nicholson
(Coringa) e Kim Basinger (Vicki Vale). Três outros filmes foram produzidos posteriormente por Tim
Burton (Batman, o Retorno – 1992) e Joel Schumacher (Batman Forever – 1995; e Batman e Robin
– 1997).

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personagens no filme: se as retirássemos subitamente da trama com suas
características e singularidades, ou se as substituíssemos por outras cidades
ou ambientes urbanos, o filme ou parte do enredo perderia praticamente o seu
sentido. Assim, Gotham City – a cidade sombria e gótica na qual se desenvolve
uma peculiar batalha contra o crime – é de alguma maneira a face mesma de
Batman, o homem-morcego. Metrópolis, a cidade futurista de Fritz Lang (1926),
não é mais do que a concretização arquitetônica de uma sociedade radicalmente
bi-dividida, cindida em dois, e que se estende simultaneamente em direção às
alturas privilegiadas e aos subterrâneos miseráveis que se enraízam na terra. Do
mesmo modo, a Los Angeles futurista de Blade Runner (1982) poderá nos revelar
ser o mais adequado sistema para aquela singular caçada de replicantes rebeldes
que recoloca em cena, de forma velada, problemas de identidade tão típicos da
pós-modernidade. As cidades-personagens, enfim, compõem uma totalidade
conjuntamente com as tramas que nelas se desenvolvem, com os problemas que
as materializam, com os personagens que nelas se movimentam.

A estes exemplos de cidades-personagens tão intensamente singulares,
poderíamos contrapor as inúmeras cidadezinhas do interior americano que
se oferecem como palco para enredos hollywoodianos menores povoados
por adolescentes nerds, jogadores de futebol-americano e líderes de torcida
feminina. Substituir umas pelas outras não afetaria as tramas de cada um destes
filmes, e de fato não nos lembramos mais do nome destas cidades carentes de
maior singularidade quando se encerra o filme, porque elas não eram importantes
senão como espaço (ou localidade) no qual se movimentavam os personagens.
Estas, conforme já discutimos, não são nem personagens e nem mesmo lugares,
mas apenas cidades-locais.

Aqui se firma um contraste. Enquanto as insossas cidades-locais de parte
dos filmes e séries televisivas não se apresentam senão como espaço urbano
que enquadra as ações nestas tramas cinematográficas mais previsíveis,
já as autênticas cidades-personagens se afirmam como matéria e espírito
(metaforicamente falando) dos próprios filmes que as fizeram aparecer como
acontecimentos. A Metrópolis de Fritz Lang invade a tela como a própria carne
de uma sociedade bidivida, e é a típica cidade-personagem. Gotham City, para
parodiar uma célebre obra de Ernst Kantorowicz (1895-1963) sobre o Poder Régio
na Idade Média (2000), apresenta-se como o segundo corpo sombrio de Batman,
cujo símbolo paira sobre os seus céus noturnos por força de sinistros holofotes

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surgidos de nenhum-lugar. A cidade-personagem é simultaneamente a carne de
uma trama, e um gigantesco personagem da mesma.

Realidade e imaginário nas cidades-cinema: representação, invenção e reinvenção

Discutiremos agora a dialética entre imaginário e realidade na construção
de cidades-cinema. Convém deixar por estabelecido que – independente de
ser uma ‘representação’, uma ‘invenção’ ou uma ‘reinvenção’ – qualquer cidade-
cinema é sempre real e imaginária simultaneamente. De fato, qualquer tentativa
de figurar uma cidade singularizada no cinema ou na literatura (e, porque não
dizer, também na historiografia) é atravessada de ponta a ponta por imaginação
e realidade. Uma cidade-cinema – mesmo aquelas que foram desenhadas pelo
diretor e roteiristas com a pretensão de utilizar tintas rigorosamente realistas
ou com base em um projeto de trazer às telas uma realidade urbana fielmente
copiada do mundo vivido – está indelevelmente vinculada ao jogo de imaginação
e realidade ao qual não se pode furtar nenhum artista criador. Dito de outra
forma, toda cidade-cinema é suficientemente estranha, recortada ou deslocada
em relação à realidade vivida, colocando aqui um problema para o seu analista,
e, em contrapartida, é suficientemente familiar às demandas do nosso tempo
(do tempo do cineasta ou do escritor) para que, a princípio, esteja assegurada
a possibilidade de que lhe sejam decifradas as fortes ligações com a realidade
social (extra-fílmica) que a estrutura. Assim, independente do fato de que haja um
projeto de representar fielmente a realidade vivida, ou, ao contrário, de imaginar
com liberdade total uma supra-realidade, todo autor deve pagar simultaneamente
o seu quinhão ao imaginário e à realidade, mesmo que disto não se aperceba. E é
exatamente este encontro entre imaginário e realidade, atualizado pela criação
fílmica ou literária, que coloca para o analista um problema interessante, útil para
a história e para a vida.

Ademais – e essa é outra questão de máxima importância para os estudos
historiográficos sobre o cinema – toda análise, ela mesma, é também atravessada
pela imaginação e realidade relacionadas ao próprio analista. No caso das
cidades-cinema, há que considerar que as questões que podem ser colocadas
pela sua análise são também questões que adquirem sentido, de alguma
maneira, através da nossa própria realidade urbana e dos problemas que nos

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afligem. Simultaneamente aprisionado e livre no interior dos limites impostos
pela sua sociedade e pela sua época, o historiador que olha analiticamente para
uma produção fílmica de modo a compreender uma determinada cidade-cinema
traz consigo o viés de sua própria época, da sociedade e das circunstâncias que
estruturam o seu olhar, dos diálogos que estabelece com seus pares historiadores
naquele momento, e nesta complexa operação termina por enxergar não apenas
o outro, mas também a si mesmo, para além de deixar com o seu texto de análise
um documento igualmente interessante para o futuro, passível de novos olhares
por outros que ainda virão. Mas, por ora, retornemos ao nosso foco de discussão,
no sentido de dar a entender do que se trata quando falamos das modalidades
da ‘representação’, da ‘invenção’ e da ‘reinvenção’ para as cidades-cinemas
colocadas em cena pela filmografia de todas as épocas.

Quadro 02 - Modalidades de construção de cidades-cinema

Um cineasta está trabalhando com a ‘representação’ quando pretende passar
ao seu espectador a ideia ou a sensação de que aquela cidade, que está sendo
apresentada na tela, efetivamente existe ou um dia existiu. Deste modo, neste tipo
de cidade-cinema o espectador já não se pergunta se aquela cidade corresponde
ou não à realidade – ele simplesmente a aceita e se concentra no filme ao qual

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está assistindo. A Paris setecentista apresentada no filme O Perfume (2006) 10,
baseado literalmente na obra literária de autoria do escritor alemão Patrick
Süskind (n.1949), é desenhada para o espectador com vivas cores de realidade.
Particularmente neste filme os espectadores, bem como os leitores de Patrick
Süskind (que além de literato era historiador), podem quase que sentir os odores da
Paris que vai sendo descrita a cada cena e bloco narrativo. É inteiramente fictícia
a história que ali se desenrolará: a de um assassino que tinha o dom incomum de
sentir todos os cheiros à sua volta, mesmo à distância e com absoluta precisão,
como se estes fossem acordes musicais dos quais podia perceber cada nota
em sua intensidade e timbre específico11. A Paris dentro da qual se desenvolve
a trama, contudo, é apresentada ao leitor sob o signo da representação de uma
Paris real – uma Paris histórica, tal como esta teria sido no século XVIII – e não
sob o signo da Ficção12. Note-se adicionalmente que somente Paris – esta Paris
dos fedores e dos perfumes que é redesenhada por Patrick Süskind – poderia
abrigar um enredo como o proposto para a trajetória do assassino Jean-Baptiste
Grenouille.

10  O Perfume – história de um assassino, produção franco-hispânica-germânica dirigida por Tom
Tykwer (n.1965), tem seu roteiro assinado por Andrew Birkin, Tom Tykwer e Bernd Eichinger a partir
de uma adaptação bastante rigorosa do livro homônimo de Patrick Süskind (1985). Eventualmente,
trechos da própria obra literária são trazidos à cena por um narrador em off, ao mesmo tempo em
que as imagens se apresentam e as ações se desenvolvem. A cena inicial acompanha literalmente o
princípio do próprio texto do romance de Patrick Süskind (O Perfume – história de um assassino. São
Paulo: Record, 2002).
11  O personagem Jean-Baptiste Grenouille apresenta outra singular característica, além da
extraordinária capacidade de sentir, identificar, decifrar, e mesmo reproduzir todos os cheiros através
da arte da perfumaria: ele mesmo não possui odor algum. Esta estranha característica contrasta com
sua capacidade de criar os mais esplêndidos perfumes, inclusive um perfume perfeito – capaz de
desencadear paixões irrefreáveis por aquele que o estiver usando. O detalhe é que este perfume perfeito
foi criado por Grenouille a partir de aromas extraídos de 26 belas mulheres por ele assassinadas. O
‘não-odor’ de Jean-Baptiste Grenouille por oposição a sua capacidade de decifrar cheiros, bem como
a contraposição entre a Arte da Perfumaria e os odores fétidos do submundo de Paris, estão entre os
contrastes explorados no romance.
12  A capacidade de Süskind como historiador, obviamente, permite-lhe uma extraordinária
reconstituição histórica, não apenas da Paris do século XVIII como também do ambiente profissional
dos perfumistas, que eram artesãos extremamente especializados. Mas não é necessariamente de
realismo que estamos tratando com a categoria de Representação aplicada às cidades-cinema ou às
cidades construídas literariamente. A questão colocada é que, nesta modalidade ou postura, o cineasta
ou o escritor tenta transmitir ao seu espectador/leitor um sentimento de que aquela cidade existe ou
existiu da maneira como é apresentada, não se tratando de criação ou recriação do autor da obra.

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Consideremos agora a ‘cidade-lugar’ Nova York apresentada pela famosa
série televisiva Sexy and City (1998). Certamente tem-se aqui uma Nova York
que tenta transmitir ao espectador da série uma viva impressão de realidade,
dando-lhe a impressão que aquela Nova York pode ser encontrada efetivamente
em nossos dias com seus peculiares personagens e sua dinâmica social bem
específica. Mas é também uma Nova York que apresenta lugares inventados
(bares, clubes, ambientes, vizinhanças), entremeados com os fluxos e fixos
que podem ser encontrados na Nova York real. Ao mesmo tempo, ao lado de
situações que retratam um cotidiano bem próximo daquilo que um habitante ou
viajante podem encontrar nesta cidade, há também situações novas, inusitadas,
que fazem desta Nova York uma outra cidade que não a Nova York que pode
ser efetivamente visitada na vida real. Trata-se, portanto, de uma Nova York
imaginária, apesar de fortemente ancorada em um estatuto de realidade que lhe
é conferido pelos autores.

Ainda sob o signo da representação, mesmo as cidades-cinema colocadas
em cena pelo gênero fílmico dos documentários implicam um recorte singular
atravessado por imaginação e realidade13. A cidade de Salvador trazida às
telas por Cidade das Mulheres (2005), documentário de Lázaro Faria que busca
recuperar o cotidiano e as questões sócio-culturais que se desenvolvem em
torno do candomblé e da função da mulher como organizadora desta realidade
sócio-cultural, é na verdade um recorte perspectivado por certo ponto de vista,
concomitantemente remodelado pelas entrevistadas que prestam depoimentos,
e que não deixa em nenhum momento de ser, em algum nível que seja, uma
construção imaginária atravessada pela realidade, ou, visto ao inverso, uma
construção com pretensões realistas atravessada pela imaginação ordenadora,
modeladora, perspectivada pelo autor, interferida pelas posições sociais e
políticas assumidas conscientemente ou incorporadas inconscientemente. O
exemplo é também particularmente oportuno para ilustrar a intertextualidade
fílmica, já que Lázaro Faria retoma o fio condutor de um livro homônimo escrito

13  O gênero fílmico categorizado como “documentário” surge de maneira mais consolidada na
Inglaterra dos anos 1930 com o trabalho de John Grierson (1898-1972) – sendo o seu filme Drifters
(1929) a obra que marca o “movimento documentarista britânico”. Uma curiosidade é que no seu
texto “First principles of documentary”, Grierson definiu o documentário como “tratamento criativo
da realidade” (GRIERSON, John. Primeiros Princípios do Documentário. Revista Cinemais, n.8,
p.65-66, nov./dez. de 1997, Campinas). Sobre isto, ver HARDLY, Forsyth, Grierson on documentary,
Los Angeles: University of Califórnia Press, 1966, p.145-156.

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tempos atrás por Ruth Landes (1908-1991), no qual a antropóloga americana
apresenta os resultados de uma pesquisa que fez na Bahia em 1930 (LANDES,
2002). Qualquer outro exemplo poderia ser citado. A dimensão imaginária que
acompanha a todo e qualquer documentário não lhe reduz o valor científico;
antes, enriquece-o.

As posturas da ‘invenção’ e da ‘reinvenção’ aproximam-se uma da outra
através do mesmo viés que as opõe frontalmente à modalidade da ‘representação’.
Aqui, o cineasta não se preocupa mais em favorecer no espectador a emergência
de uma sensação de que aquela cidade-cinema (histórica ou contemporânea)
corresponde a uma realidade concreta. Nas cidades-cinemas ‘reinventadas’,
embora haja a referência a cidades reais (Paris, Rio de Janeiro, Nova York, Los
Angeles) fica clara a sua dimensão fictícia. A situação mais comum é a das cidades
que se localizam em um futuro imaginário: A Los Angeles de 2019, em Blade Runner
(Ridley Scott, 1982), ou a Nova York do século XXIII, em O Quinto Elemento (Luc
Besson, 1997), são obviamente construções imaginárias, projetando a imaginação
para como seriam aquelas cidades no futuro. Situar uma cidade contemporânea
no futuro já a introduz, necessariamente, no plano da ‘reinvenção’.

O cinema futurista também oferece frequentemente cidades-cinema
produzidas sob a perspectiva da ‘invenção’ – tal como é o caso da Metrópolis,
de Fritz Lang (1926) – mas nada impede que sejam inventadas cidades-cinema
correspondentes ao presente, ao passado, ou sem referência a temporalidades
definidas. “Gotham City”14 – a cidade ao mesmo tempo gótica e moderna que nos
é trazida pelo filme Batman (1989) – é uma destas cidades de referência temporal
ambígua, embora se suponha que estejamos no presente. Dark City (1998)15,

14  Gotham City, uma cidade sinistra e sombria, é a típica cidade-cinema que vai sendo reinventada
por cada novo autor que interfere criativamente nas estórias de Batman. Bob Kane (1915-1998)
dera-lhe o seu tom gótico e expressionista – ideal para servir de palco às ações de um personagem
que trazia alguma inspiração das histórias de vampiros. Frank Miller (1957-), por seu turno, depois
acrescentaria à zona baixa da cidade um bairro no qual as notas marcantes são a prostituição, a
criminalidade e a circulação de drogas, o que a aproxima das grandes metrópoles contemporâneas
e a adapta a uma realidade que ainda não era tão intensa nos anos 1930. O filme de Tim Burton iria
acrescentar um toque de Arte Deco e Art Noveau à arquitetura de Gotham City, e Joel Schumacher
(Batman Forever) dá-lhe uma fisionomia mais multi-colorida e contemporânea. Escritores diversos
também ajudaram a reescrever a história imaginária de Gotham City, como Allan Moore (“Monstro
do Pântano”) e Bill Willingham (“Pacto das Sombras”).
15  Dark City (Cidade das Sombras) foi dirigido por Alex Proyas, com roteiro de Alex Proyas, Lem
Dobbs e David Goyer. Produzido pela New Line Cinema, foi estrelado por Rufus Sewell (John
Murdoch). A película será discutida oportunamente.

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estranha e inquietante cidade na qual a noite se perpetua interminavelmente,
e que é na verdade reconstruída diuturnamente por alienígenas sem que
seus habitantes disto se apercebam, também não se encontra em nenhuma
temporalidade explicitada. Temos ainda a ‘invenção’ estabelecida sobre uma
temporalidade indefinida – embora também aqui se suponha que estejamos
no presente, ou ao menos em um passado recente – com as criativas cidades
inventadas por Dias Gomes (1922-1999) para a televisão brasileira, tal como a
“Saramandaia” (1976).

A “Sucupira” de O Bem Amado (1973) e a “Asa Branca” de Roque Santeiro
(1985)16. De todo modo, a imersão destas cidades inventadas por Dias Gomes em
um caldo cultural brasileiro bem característico, e mais propriamente baiano, e
a sua referência simbólica, irônica e por vezes quase direta aos tipos políticos e
sociais do país, fazem destas ‘cidades inventadas’ experiências que ombreiam
em veridicidade com as ‘cidades representadas’ que se referem a realidades
urbanas já existentes. Aqui teremos, por assim dizer, ‘cidades inventadas’ que
estão mergulhadas por inteiro em um contexto (contemporâneo ou histórico) que
se mostra bastante real no que se refere às questões sociais que as estruturam,
e que terminam por inscrever as cidades de Dias Gomes no mapa do Brasil real,
apesar de nunca terem existido.

Situação bem distinta ocorre com as ‘cidades inventadas’ que remetem
não a um contexto real conhecido, mas sim a um contexto que é ele mesmo
igualmente inventado, como é o caso das cidades que estão situadas em um

16  Saramandaia foi uma telenovela escrita e dirigida por Dias Gomes para a rede Globo de televisão,
e que esteve no ar de 3 de maio a 31 de dezembro de 1976. A cidade de Saramandaia, ambientada no
contexto das pequenas cidades baianas dominadas pelo Coronelismo e mandonismo local, é palco
de um cotidiano absurdo no qual um dos personagens tem asas (João Gibão, interpretado por Juca
de Oliveira), outro coloca formigas pelo nariz (Zico Rosado, interpretado por Castro Gonzaga), uma
mulher explode de tanto comer (Dona Redonda, interpretada por Wilza Carla), um professor vira
Lobisomem (Aristóbulo, interpretado por Ary Fontoura), e um personagem chamado Seu Cazuza
(Rafael de Carvalho) está sempre a ponto de colocar o coração para fora pela boca, nos momentos em
que se emociona. / Sucupira é a cidade baiana imaginária que se oferece como palco para a novela O
Bem Amado
, de Dias Gomes, exibida pela Rede Globo de Televisão entre 24 de janeiro e 29 de outubro
de 1973. Aqui se apresentam tipos bem característicos, como o prefeito corrupto (Odorico Paraguaçu,
interpretado por Paulo Gracindo), o cangaceiro devoto de Padre Cícero (Zeca Diabo, interpretado por
Lima Duarte), ou as fofoqueiras solteironas e defensoras da moralidade, representadas pelas Irmãs
Cazajeiras. / Roque Santeiro foi ao ar entre 24 de junho de 1985 e 21 de fevereiro de 1986, e também
apresenta como cenário uma cidade imaginária no interior da Bahia, chamada Asa Branca. / Em cada
uma destas cidades, temos ao mesmo tempo uma construção imaginária (uma cidade inventada) e
referências diretas a questões sociais reais como a corrupção política, o mandonismo local, o falso
moralismo, a credulidade popular.

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passado imaginário criado pelo cineasta ou pelo autor literário, tal como ocorre
por exemplo nas cidades-cinema que, em Conan o Bárbaro (1982)17, inventam
civilizações pré-glaciais e pós-diluvianas de uma época que antecede a própria
História18. Nos filmes protagonizados por Conan, as cidades mais civilizadas
mostram-se corruptas e decadentes, mergulhadas na libertinagem e amarradas
pela burocracia, e contrastam com a postura mais ética e heróica dos guerreiros
que atravessam o mundo em busca de aventuras. É interessante notar que estas
aventuras idealizadas em 1932 respiram o mesmo clima de decepção com a vida
moderna que irão inspirar, na Alemanha da mesma época, o surgimento do cinema
expressionista. Mas enquanto os expressionistas radicalizam a experiência do
desespero, da angústia e da solidão através de personagens sombrios como o
Nosferatu de Murnau (1922)19 ou como os vilões capitalistas da Metrópolis de Fritz
Lang (1926), já os personagens heróicos que acompanham Conan se oferecem
de alguma maneira como refúgio para o heroísmo e para a ética guerreira, e com
destacada coragem procuram enfrentar alternadamente seres sobrenaturais
e seres-humanos corrompidos por uma civilização decadente que naquele
passado imaginário já está em ruínas. Registremos, portanto, que tanto nestes
romances de aventuras míticas e bárbaras, como na filmografia expressionista,

17  Conan, o Bárbaro, foi um personagem criado em 1932 pelo escritor americano Robert E. Howard
(1906-1936) para protagonizar 20 contos e um romance de maior fôlego. Após a morte de Howard em
1936, outros autores – como Lin Carte, Dale Rippke e Lyon Sprague de Camp (1907-2000) – deram
continuidade às sagas do personagem, que termina por chegar às telas do Cinema em 1982 em um
filme de John Milius com roteiro de Milius e Oliver Stone a partir das estórias de Robert Howard. O
filme, produzido e distribuído pela Universal Pictures, foi estrelado por Arnold Schwarzenegger, e o
sucesso permitiu que em 1984 fosse produzido um segundo filme: Conan, o Destruidor. Mas antes
de ter chegado às telas, a Marvel Comics já havia levado o personagem ao mundo dos quadrinhos na
década de 1970, o que o popularizou junto ao grande público. Para um site completo com informações
e referências, ver http://www.yawiki.org/proc/Conan_the_Barbarian
18  Chegando a construir um imaginário dentro do imaginário, os autores de Conan o Bárbaro criaram
um passado imaginário para este próprio passado imaginário em que se movimenta o guerreiro Conan
em suas aventuras: uma Atlântida que fora destruída junto a outras civilizações ainda mais antigas.
A Ciméria, terra pátria de Conan, era um reino mítico que se localizaria na região correspondente à
Grã-Bretanha, e os cimérios seriam descendentes dos atlantes decaídos. / O primeiro conto de Conan
(A fênix na espada) pode ser encontrado em HOWARD, R in Conan, o Cimério, vol. 1. São Paulo:
Conrad, 2006.
19  Nosferatu (“Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens”), filme de F. W. Murnau (1888-1931) com
roteiro de Henrik Galeen baseado no livro Drácula de Bram Stoker (1847-1912), foi lançado em
1922 pela Prana-Film, sendo estrelado por Max Schreck (Conde Orlok / Nosferatu) e Greta Schröder
(Ellen Hutter). O Conde Orlok, em torno do qual se constrói o filme, é na verdade um vampiro
milenar (à maneira de Drácula, e na verdade baseado nesta obra) que havia se mudado para Bremen,
na Alemanha.

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existem demandas de fundo que estão rigorosamente presentes na realidade
contemporânea daqueles que os escreveram. No Conan imaginado por Robert
Howard (1906-1936), particularmente, o contraste entre o herói bárbaro e a
civilização decadente lança uma luz particular sobre as decepções de parte
da intelectualidade ocidental diante dos rumos que iam sendo tomados pela
modernidade no período das Guerras Mundiais e do entre-guerras.

Experiências ainda mais óbvias de cidades-cinema produzidas como
‘invenção’ podem ser evocadas por cidades fantásticas e surreais que sequer
remetem a este mundo, tal como aquelas apresentadas pela trilogia O Senhor
dos Anéis (2001-2003), filmografia baseada na obra de mesmo nome escrita
entre 1937 e 1949 por Tolkien (1892-1973), e que correspondem a um tempo e a
um espaço inteiramente imaginários20. Destarte, frisaremos a cada instante,
veremos que mesmo a mais fantasiosa e surrealista das cidades-cinema acaba
necessariamente por se referir, ainda assim, a questões de fundo bastante reais.

Para registrar uma curiosidade, pode também ocorrer a convivência ou o
encaixe de cidades-cinema ‘representadas’, ‘inventadas’ ou ‘reinventadas’ no
mesmo filme. Exemplo eloquente, a ser examinado em oportunidade futura, é
o dos filmes que tematizam as realidades virtuais. Assim, uma ‘cidade-cinema
representada’ – a New York dos anos 1990 ou a Chicago dos Anos 30 – pode estar
encaixada sob a forma de realidade virtual em uma Los Angeles Futurista (Décimo
Terceiro Andar
, 1999) ou nos sonhos produzidos por seres-humanos adormecidos
em uma Não-Cidade dominada por máquinas (Matrix, 1999).

Considerações finais

O conceito de cidade-cinema, conforme sustentamos neste artigo, mostra-
se operacional para o estudo de produções fílmicas nas quais a cidade encontra
a sua representação, invenção ou reinvenção. Quando desempenha um papel de

20  A saga O Senhor dos Anéis foi trazida ao Cinema entre 2001 e 2003 pela direção de Peter Jackson
(n.1961) e pelo roteiro de Frances Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson, com base no livro de
Tolkien. O ambiente evoca uma Idade Média fantástica e a mitologia nórdica, e, ao lado de ambientes
que incluem o mundo rural e as florestas, surgem cidades fantásticas como Minas Tirith, Ost-in-Edhil
(a cidade élfica) e Khazad-dûm (Cidade dos Anões). A trilogia de Tolkien, escrita entre 1937 e 1949,
só foi publicada entre 1954 e 1955. Referência: TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.

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primeiro plano, como parte importante da trama (e não apenas se oferece como
cenário secundário), deixamos para trás as meras cidades-locais e nos colocamos
diante de cidades-lugar, cidades-território e cidades-personagens – esta última
se constituindo em um quase-personagem tão importante para a ação como os
demais personagens elencados pela trama fílmica. Compreender se a cidade
funciona como lugar, território ou personagem, ou se é uma mera cidade que se
apresenta como localidade, é particularmente importante para a análise fílmica.

Ao mesmo tempo, a dialética entre imaginação e realidade precisa ser
decifrada, em cada caso, pelo analista de cinema e de cidades-cinema. Passíveis
de representação, invenção ou reinvenção, as cidades-cinema propostas pelos
cineastas apresentam-se como objetos de estudo ricos e complexos para os
historiadores.

REFERÊNCIAS

FONTES FÍLMICAS

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Bros. Distribuidora: Warner Bros / Polygram. Direção: Tim Burton. Roteiro: Sam Hamm e Warren
Skaaren, baseado nos personagens criados por Bob Kane. Produção: Peter Guber e John Peters.
Fotografia: Roger Pratt. Música: Danny Elfman; Elenco: Michael Keaton (Bruce Wayne / Batman); Kim
Basinger (Vicki Vale); Jack Nicholson (Jack Napier / Coringa), Pat Hingle (Comissário Gordon) e grande
elenco.

Blade Runner (EUA: 1982). Filme a cores, falado, 118 minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora
e Distribuidora: Columbia Tristar / Warner Bros. Direção: Ridley Scott. Roteiro: Hampton Francher e
David Webb Peoples, baseado em livro de Philip K. Dirk. Produção: Michael Deeley. Música: Vangelis;
Elenco: Harrison Ford (Deckard); Rutger Hauer (Roy Batty); Sean Young (Rachael) e grande elenco.

Cidade de Deus (Brasil, 2002). Drama a cores, 130 minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora e
Distribuidora: VideoFilmes / Imagem Filmes. Produção: Elisa Tolomelli, Donald Ranvaud, Mauricio
Andrade Ramos e Andrea Barata Ribeiro. Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lundi. Roteiro: Braulio
Mantovani a partir da obra de Paulo Lins (1997). Montagem: Daniel Rezende. Fotografia: Cesar Charlone.
Elenco: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge e outros.

Cidade das Mulheres (Brasil, 2005). Documentário a cores, 72 minutos de duração. Ficha Técnica –
Produtoras: X-Filmes / Casa do Cinema da Bahia. Produção e Direção: Lázaro Faria; Roteiro: Cléo
Martins a partir da ideia desenvolvida na obra de Ruth Landes (1939). Montagem: Leandro Cazumbá.
Fotografia: Lázaro Faria e Maoma Faria. Participações (como entrevistadas): Mãe Stella de Oxossi, Mãe
Altamira Cecília, Mãe Carmem, Mãe Nitinha de Oxum, Mãe Gisele Cossard, Mãe Bida.

Conan, o Bárbaro (EUA, 1982). Filme a cores, 129 minutos. Ficha Técnica – Produtoras: Universal Pictures
/ Dino de Laurentiis Productions. Distribuição: Universal Pictures. Produção: Rafaella De Laurentiis,
Buzz Feitshans, Edward R. Pressman e Edward Summer. Direção: John Milius; Roteiro: John Milius e

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Oliver Stone a partir dos textos de Robert Roward. Fotografia: Duke Callaghan. Música: Basil Polidouris.
Elenco: Arnold Schwarzenegger; Max Von Sydow (rei Osric); James Earl Jones (Thulsa Doom), Sandhal
Bergman (Valeria), Gerry Lopez (Subotai) e grande elenco.

Dark City (EUA: 1998). Filme a cores, falado, 101 minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora e
Distribuidora: New Line Cinema. Direção: Alex Proyas. Roteiro: Alex Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer,
baseado em argumento de Alex Proyas. Produção: Produção: Andrew Mason e Alex Proyas. Fotografia:
Dariusz Wolski. Música: Trevor Jones. Elenco: Rufus Sewell (John Murdoch); Jennifer Connely (Emma
Murdoch); Kiefer Sutherland (Dr. Daniel Paul Schreber); Richard O’Brien (Sr. Hand); Ian Richardson (Sr.
Book); William Hurt (Inspetor Frank Bumstead) e grande elenco.

Décimo Terceiro Andar (EUA: 1999). Filme a cores, falado, 100 minutos de duração. Ficha Técnica –
Produtora e Distribuidora: Columbia. Direção: Josef Rusnak. Roteiro: Josef Rusnak e Ravel Ceteno-
Rodriguez, baseado em livro de Daniel F. Galouye. Fotografia: Wedigo von Schultzendorff. Música:
Harald Kloser. Elenco: Craig Bierko (Douglas Hall; John Fergusson; David); Armin M.-Stahl (Hannon Fuller;
Grierson); Gretchem Mol (Jane Fuller; Natasha Molinaro); Vincent d’Onofrio (Jason Whitney; Jerry Ashton); Daryl
Hannah (Pris); Edward James Olmos (Gaff) e grande elenco.

Final Destination (EUA: 2000). Filme a cores, falado, gênero Suspense / Terror. 98 minutos de duração.
Ficha Técnica – Produtora: Zide Perry Productions. Distribuidora: Warner Bros. Direção: James Wong.
Roteiro: Glen Morgan. Produção: Art Shaeffer e Craig Perry. Fotografia: Wedigo von Schultzendorff.
Música: Harald Kloser. Elenco: Ali Larter, Devon Sawa, Amanda Detmer e outros.

Gladiador (EUA, 2000). Filme a cores, 155 minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora: Universal
Pictures / DreamWorks SKG; Distribuidora: DreamWorks Dristibuctions LLC / Universal Pictures.
Direção: Ridley Scott. Roteiro: David H. Franzoni, John Logan, e William Nicholson.. Fotografia: John
Mathieson. Música: Hans Zimmer. Elenco: Russel Crowe (Maximus), Joaquin Phoenix (Commodus), Richard
Harris (Marcus Aurelius), Djimon Hounson (Juba), Connie Nielsen (Lucilla), Tomas Arana (Quintus) e grande elenco.

Matrix (EUA: 1999). Filme a cores, falado, 129 min. de duração. Distribuidora: Warner Bros. Direção:
Andy Wachowski e Larry Wachowski. Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. Produção: Grant
Hill e Joel Silver. Fotografia: Bill Pope. Música: Don Davis. Elenco: Keanu Reeves (Neo / Thomas A.
Anderson); Laurence Fishburne (Morpheus); Carrie Anne-Moss (Trinity); Huho Weaving (Agente Smith)
e grande elenco.

Metropolis. (Alemanha: 1926). Filme preto e branco, mudo, 140 minutos de duração. Ficha Técnica –
Produtora: Universum Film A. G.; Direção: Fritz Lang; Roteiro: Fritz Lang e Thea Von Harbou; Fotografia:
Karl Freund e Gunther Rittau; Produção: Erich Pommer; Música: Gottfried Huppertz; Efeitos Especiais:
Eugene Schufftan; Elenco: Brigitte Helm (Maria), Alfred Abel (John Fredersen), Gustav Frohlich (Freder),
Rudolph Klein-Rogge (Rotwang), Heinrich George, Fritz Rasp.

Nosferatu. (Alemanha, 1922). Terror de 90 minutos. Diretor: F. W. Murnau. Roteiro: Bram Stoker.
Produtor: Albin Grau. Elenco: Albert Venohr e outros.

Filme completo. http://www.youtube.com/watch?v=MEOsb6CRvNU

Perfume – a história de um assassino. (França / Espanha / Alemanha: 2006). Filme a cores, falado, 147
minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora: VIP 4 Medienfonds / Davis-Films / Ikirus Films S.L. /
Constantin Film Produktion GmbH / Nouvelle Éditions de Films / Castelao Producciones S.A; Direção:
Tom Tykwer; Roteiro e idealização: Andrew Birkin, Tom Tykwer e Bernd Eichinger, baseado em livro de
Patrick Süskind; Produção: Nernd Eichinger; Fotografia: Frank Griebe; Música: Reinhold Heil, Johnny
Klimek e Tom Tykwer; Elenco: Ben Whishaw (Jean-Baptiste Grenouille), Alvaro Roque (Jean-Baptiste
Grenouille - 5 anos, Franck Lefeuvre (Jean-Baptiste Grenouille - 12 anos), Dustin Hoffman (Giuseppe
Baldini); Alan Rickman (Antoine Richis), e grande elenco.

O Quinto Elemento. (França: 1997). Filme a cores, falado, 127 minutos de duração. Ficha Técnica –

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47 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Produtora: Columbia Pictures / Gaumont / Sony Pictures Entertainment; Direção: Luc Besson; Roteiro
e idealização: Luc Besson, baseado em estória de Luc Besson e Robert Mark Kamen; Produção: Patrice
Ledoux; Fotografia: Thierry Arbogast; Música: Eric Serra; Elenco: Bruce Willis (Korben Dallas), Milla
Javivich (Leeloo), Gary Olsman (Jean-Baptiste Emmanuel Zorg), Ian Holm (Padre Vito Cornelius); Chris
Tucjer (Ruby Rhod), e grande elenco.

O Senhor dos Anéis – a Sociedade do Anel (EUA: 2001). Filme a cores, falado, 178 minutos de duração.
Ficha Técnica – Produtora: New Line Cinema / Rhe Saul Zaents Company /WingNut Films; Distribuidora:
New Line Cinema / Warner Bros; Direção: Peter Jackson; Roteiro: Frances Walsh, Philippa Boyens, e
Peter Jackson, baseado no livro de J.R.R. Tolkien; Fotografia: Andrew Lesnie. Música: Enya e Howard
Shore. Elenco: Elijah Wood (Frodo Baggins), Ian McKellen (Gandalf), Liv Tyler (Arwen Undomiel), Vigo
Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Samwise Gamgee), Cate Blanchett (Galadriel), e grande elenco.

Sexy and City. (EUA: 2008). Filme a cores, falado, 148 minutos de duração. Ficha Técnica – Produtora:
HBO Films / Darren Star Productions / New Line Cinema; Distribuidora: PlayArt; Direção: Michael
Patrick King; Roteiro: Michael Patrick King, baseado em personagens do livro de Candace Bushnell;
Produção: Eric M. Cyphers, Michael Patrick King, John P. Melfi, Darren Star e Sarah Jessica Parker;
Fotografia: John Thomas; Música: Aaron Zigman; Elenco: Jessica Parker (Carrie Bradshaw), Kim
Cattrall (Samantha Jones), Kristin Davis (Charlotte York) e Cynthia Nixon (Miranda Hobbes), e grande
elenco.

FONTES LITERÁRIAS

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BIBLIOGRAFIA

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DOSSIÊ

49 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

OLHARES CINEMATOGRÁFICOS SOBRE A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

CINEMATOGRAPHIC VIEWS ON THE CARNATION REVOLUTION

Róbson Pereira da Silva1

https://orcid.org/0000-0001-6517-0842
http://lattes.cnpq.br/5608673598392485

Grace Campos Costa2

https://orcid.org/0000-0002-8449-7178
http://lattes.cnpq.br/3230047528753742

Lays da Cruz Capelozi3
https://orcid.org/0000-0002-4632-0742

http://lattes.cnpq.br/8785972568211269

Recebido em: 01 de outubro de 2024.
Aprovado em: 28 de outubro de 2024.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22007

1  Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia. Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso/Campus
Universitário de Rondonópolis. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universida-
de Federal de Goiás (Mestrado). E-mail: rpsilva@ufscar.br
2  Mestra em História, pela Universidade Federal de Uberlândia, na linha Linguagem, Estética e Her-
menêutica. Membro do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura - Nehac. E-mail:
gracecamposcosta@gmail.com
3 Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pela mesma instituição, con-
cluiu o Mestrado em História e o Curso de Graduação em História - Bacharelado e Licenciatura.
Editora assistente das Edições Verona (editora de livros acadêmicos). Membro do NEHAC - Núcleo
de Estudos em História Social da Arte e da Cultura e da Rede de Pesquisa em História e Cultura no
Mundo Contemporâneo. E-mail: syalcc@gmail.com

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RESUMO: A Revolução dos Cravos foi uma
das mais significativas mudanças políticas em
Portugal, representando um ponto de virada
crucial na sua história. Neste artigo, nossa
intenção é explorar como esse evento se refletiu
em produções cinematográficas. Para isso,
selecionamos dois documentários: “Torre Bela”
(Thomas Harlan, 1977) e “As Armas do Povo”
(Glauber Rocha, 1975), que foram realizados
durante os acontecimentos, com o objetivo de
evidenciar as ambivalências desse processo
histórico. Também incluímos um filme de ficção,
“Non ou a Vã Glória de Mandar” (Manoel Oliveira,
1990), que rememora a história portuguesa
por meio de suas derrotas, promovendo uma
reflexão sobre a construção e edificação da
nação até o momento da guerra colonial. Diante
dessas obras, buscamos ressaltar e examinar
os ecos desse evento na perspectiva histórica
da sociedade portuguesa, formando, assim,
um caleidoscópio de representações narrativas
sobre a Revolução dos Cravos. Para sustentar
parte das nossas análises, dialogamos com
interpretações sobre as linguagens documental
e ficcional que o cinema comporta, referenciando
Xavier (2013), Junqueira (2010), Ramos (2008)
e as investigações sobre a Revolução de Hannah
Arendt (2014, 2010).

Palavras-chave: Revolução dos Cravos;
Narrativas cinematográficas; processo
revolucionário português; Thomas Harlan,
Manoel de Oliveira; Glauber Rocha

ABSTRACT: The Carnation Revolution was
one of Portugal’s most significant political
changes, representing a crucial turning point in
its history. In this article, we intend to explore
how this event was reflected in film productions.
For this, we selected two documentaries:
“Torre Bela” (Thomas Harlan, 1977) and “As
Armas do Povo” (Glauber Rocha, 1975), which
were made during the events, to highlight the
ambivalences of this historical process. We
also included a fiction film, “Non ou a Vã Glória
de Mandar” (Manoel Oliveira, 1990), which
recalls Portuguese history through its defeats,
promoting a reflection on the construction and
improvement of the nation until the moment
of the colonial war . Before these works, we
highlight and analyz tthe echoes of this event
from the historical perspective of Portuguese
society, thus forming a kaleidoscope of narrative
representations about the Carnation Revolution.
To support part of our analyses, we dialogue
with interpretations about the documentary
and fictional languages that cinema involves,
referencing Xavier (2013), Junqueira (2010),
Ramos (2008) and the investigations into
Hannah Arendt’s Revolution (2014, 2010).

Key words: Carnation Revolution;
Cinematic narratives; Portuguese revolutionary
process; Thomas Harlan, Manoel de Oliveira;
Glauber Rocha.

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“a história deste filme não cabe nas imagens de alegria de um
povo, não são apenas as palavras libertas nas bocas dos ex-
plorados e dos oprimidos

(Glauber Rocha)

Filmes, filmes, os melhores se assemelham aos grandes
livros que, por sua riqueza e profundidade, dificilmente são
penetráveis.

(Manoel de Oliveira)

Quando nos referimos à Revolução dos Cravos, nos designamos a falar
do esfacelamento e da derrota da ditadura mais longa da Europa Ocidental
do século XX. Foram quarenta e oito anos de ditadura em solo português,
incluindo a experiência da guerra colonial no solo africano, entre 1961 e 1974.
O elemento de peculiaridade da Revolução dos Cravos, em relação a outros
processos revolucionários, está na capacidade que um exército, por meio de
soldados intermediários, teve de impulsionar um país em ditadura para a via
progressista, independentemente de questões partidárias. Porém, a partir disso,
especialmente em 1975, a esquerda pôde se aproximar da população, no que se
convencionou chamar de Processo Revolucionário em Curso que, segundo José
Rebelo1 oportunizou a liberação das utopias e a polifonia dos inconformados.

Foi nessa altura que começaram as ocupações das fábricas que passaram a ser geridas
por comissões de trabalhadores. Foram ocupadas propriedades agrícolas no Alentejo,
os grandes latifúndios, com a criação de unidades colectivas de produção. O Partido
Comunista tinha uma posição forte junto destas comunidades, impulsionando e en-
corajando essas ocupações. Mas o movimento alargou-se muito, não era só o Partido
Comunista. Houve uma multiplicidade de organizações da esquerda mais radical que
participavam também neste movimento. E, sobretudo, o que é extraordinário é que
havia gente que se manifestava e gente que gritava nas ruas sem pertencer a nenhum
partido. Foi uma espécie de libertação das vozes e das utopias das pessoas que pen-
savam que conseguiam tudo realizar e que se juntavam. Juntava-se um grupo e ocu-
pava, mesmo sem ser com um partido político a apoiar. Nessa altura fala-se muito do
poder popular, o poder popular que extravasa as próprias dimensões partidárias. [...]
Não estava muito claro o que é que as pessoas queriam efectivamente fazer, qual era o
modelo político. Quase que podíamos pensar nesse modelo mais pela negativa do que
pela positiva, isto é, pensava-se democracia, sim senhor, mas não na democracia tra-
dicional europeia. Daí que alguns grupos e até mesmo militares fossem apelidados de
terceiro-mundistas porque pensavam um bocado naquele sonho do terceiro mundo.
Não havia uma ideia muito clara quanto às instituições a criar, mas havia uma vontade
clara que era de fazer alguma coisa de diferente. No género de economia directa, das
tomadas de decisão por grupos de trabalhadores informais, etc, sem serem enquadra-

1  José Rebelo, além de professor e pesquisador, foi correspondente do jornal Le Monde em Portugal
durante o período em causa (e até 1991).

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dos politicamente. Foi extraordinário. Depois, há uma confrontação entre duas legiti-
midades: a legitimidade eleitoral, sobretudo pelo Partido Socialista, e a legitimidade
revolucionária, sobretudo pelo Partido Comunista. O Partido Comunista, que invocava,
para defender a sua posição como expressão da legitimidade revolucionária, a resis-
tência contra o salazarismo e os seus heróis e os anos que passaram na cadeia e as
torturas a que foram sujeitos. O Partido Socialista não tinha este passado. O Partido
Socialista tinha sido criado na Alemanha pouco tempo antes. O que sucedeu foi que,
em 25 de Abril de 1975, um ano imediatamente após a Revolução dos Cravos, houve
eleições para a Assembleia Constituinte e o Partido Socialista teve um resultado ab-
solutamente inesperado que ultrapassou os 37%. Quer dizer, as pessoas tinham um
bocado a ideia que o poder estava na rua e, portanto, atribuíam ao Partido Comunista
uma grande força junto do povo, que não se traduziu em termos eleitorais. Em contra-
partida, o PS, que até então estava mais ou menos ausente dessas manifestações de
rua, foi o PS que captou essa maior atenção eleitoral. E isso permitiu ao PS assumir-se
como representante dessa legitimidade eleitoral. E deu-se a eclosão do chamado ‘caso
República’ que teve uma grande repercussão, nomeadamente em França. (RFI, 2024,
s.n.)

Tratou-se, então, do momento histórico “refundador da democracia
portuguesa” (ABREU, 2014, p. 49), com uma busca ampla e diversa de legitimidades
de segmentos políticos e sociais. Mário Matos (2014), na ocasião do Colóquio dos
40 anos da Revolução dos Cravos, refere-se a esse processo como autolibertação
que foi formulado, mobilizado e aprovado pela sociedade portuguesa, bem como o
empreendimento da derrubada da condição de isolamento português promovido
desde o Estado Novo de Salazar diante do cenário europeu. Nas palavras de Mário
Matos (2014, p. 11):

Depois dum longo período de (auto)isolamento que votaria Portugal a um tendencial
silenciamento internacional, sobretudo devido à anacrónica obsessão do regime mo-
ribundo do Estado Novo em manter o seu império colonial, o país passaria a estar, li-
teralmente da noite para o dia, “nas bocas do mundo”. Se para os observadores mais
atentos da política nacional poderia haver sinais e rumores que indicariam, ainda que
de forma muito ténue, uma reviravolta política em Portugal, certo é que a comunidade
internacional foi, modo geral, tomada de completa surpresa pelos acontecimentos re-
volucionários ocorridos naquele pequeno país na extrema periferia da Europa. Como
referem Vieira e Monico (2014: 19) num volume recente dedicado ao impacto do 25 de
Abril e do PREC na imprensa internacional, dum momento para o outro, Portugal pas-
sou a ocupar “primeiras páginas de jornais, capas de revistas e aberturas de noticiários
radiofónicos e televisivos um pouco por todo o mundo, com uma intensidade que nun-
ca antes ocorrera na sua História.”

Essa mobilização inicialmente promovida por soldados, diante da fadiga da
guerra colonial, buscou interromper o poder do uso legítimo da força pelo Estado,
de modo a questionar as suas próprias operações nas colônias africanas, como
em Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, a partir de
uma atitude antidisciplinar, o que o difere do modus operandi das forças armadas
na América Latina, especialmente, no Brasil, Argentina e Chile, onde as forças

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militares estiveram alinhadas a projetos ditatoriais, na década de 1960. É lícito
apontar que a ditadura salazarista começa com um golpe militar e termina com
outro. Lincoln Secco (2013, p. 366) aponta que a Revolução Portuguesa possui um
duplo posicionamento peculiar; de um ponto ela é “europeia”, encerrando o “último
palco leninista” do Velho Mundo; e, em outro ponto, ela é “africana”, respondendo
a uma insurreição anticolonial enquanto incorpora também os ideais e guerras
de libertação nacional dos povos da África (alvo da colonização portuguesa)
que perdurou por quatorze anos, destacando por exemplo figuras de luta como
Amílcar Cabral (articulador da luta de independência na Guiné-Bissau)2.

Lincoln Secco (2013) aponta que a Revolução em Portugal foi inicialmente
um golpe militar para salvar a “dignidade” dos militares contra um regime
que levou à derrota colonial. Para Secco, a Revolução dos Cravos levou a uma
contradição entre a legitimidade popular e a hierarquia militar formal. O papel
dos militares mudou do apoio colonial para ações anticoloniais, influenciado por
contextos internacionais e locais mais amplos. A Revolução teve como objetivo
desmantelar as estruturas coloniais e fazer a transição para a democracia, com
vários modelos democráticos considerados.

Sobre isso, Pamela Peres Cabreira (2019, 02) aponta:

Podemos afirmar que a Revolução de abril de 1974 inicia com as revoluções africanas
em prol da libertação das amarras coloniais que já duravam séculos. Com o início
dos confrontos em 1961, Portugal viria a mudar toda a sua estrutura econômica para
sustentar o insustentável. A utilização dos termos para designar estas guerras de
guerrilha perpassa por questões ideológicas que não cabem espaço neste artigo para
serem discutidas, contudo, é importante demarcar que “Guerra Colonial” geralmente
é usado na historiografia para designar o período de 1961 a 1974 contra as lutas
independentistas das colônias africanas.

Assim, para Pamela Peres Cabreira (2019), a Revolução dos Cravos em
Portugal foi um ponto fulcral na transição do autoritarismo para a democracia
portuguesa, sobretudo no anseio por mudanças sociais e políticas significativas.
O processo da revolução foi caracterizado por lutas sociais, movimentos de
trabalhadores e desafios econômicos, levando a uma estrutura de poder paralela
dos trabalhadores e a uma subsequente crise econômica.

2  Embora Amílcar Cabral tenha fundado o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC), que preconizava a independência das colônias, a luta armada que dirigiu ocorreu
apenas na Guiné e não em Cabo Verde.

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A revolução documentada pelas lentes do cinema (Torre Bela e As Armas e o Povo)

O foco no controle organizado da produção pelos trabalhadores foi visto como crucial
para a transição socialista e o avanço do processo revolucionário. Sobre isso, podemos
nos remeter ao filme documentário franco-alemão Torre Bela, de Thomas Harlan, que
trata da ocupação da herdade Torre Bela, no Ribatejo, em 23 de abril de 1975, tendo como
desdobramento a criação de uma cooperativa de trabalhadores do campo. As atividades de
luta dos trabalhadores foram filmadas por Harlan durante oito meses, nas terras improdutivas,
atuante apenas na especialização de silvicultura, de aproximadamente cento e cinquenta mil
hectares, pertencentes ao Duque de Lafões; sendo este um dos cenários de desenvolvimento
político e revolucionário encabeçados por sujeitos precarizados que desejavam reorganizar a
vida comunitária e o mundo do trabalho agrícola.

Em Torre Bela, podemos ver vividamente como as palavras dos ocupantes não eram
apenas usadas para se posicionarem em relação à velha ordem social deposta, mas
também em relação uns aos outros dentro da própria cooperativa. As palavras ditas
em público tornavam-se um instrumento de posicionamento e reorganização comuni-
tária. Isto é patente, por exemplo na sequência da eleição tumultuosa de uma comis-
são da Junta, nas discussões sobre quem detinha o poder no interior do grupo, a pro-
priedade colectiva de uma pá ou enxada concretas ou sobre questões logísticas – o uso
a dar ao Palácio, o funcionamento de um refeitório, quem cozinharia ou o calendário
diário das actividades. A intensidade destes momentos é proporcionada pela monta-
gem de longos planos-sequência com som directo, de onde emergem as contradições
e as dúvidas dos ocupantes. Ora, em muitos dos filmes que atrás referimos, a palavra
e a voz são sempre pronunciadas depois do acontecimento e não no seu interior. São
muitas vezes reflexões de algo que já passou. Possuem obviamente um valor testemu-
nhal, mas, muitas vezes, são proferidas numa situação visivelmente construída para a
câmara, como é o caso das entrevistas ou depoimentos. Além disso, a palavra e a voz
têm neste tipo de cinema a função de enquadrarem, contextualizarem e intervirem de
forma directa sobre a organização das imagens. (COSTA, 2011, p. 227)

Para Alexandra Sofia Miranda dos Santos (2017), esse filme traz uma
abordagem materialista aos processos sociais da revolução portuguesa,
sobretudo por Harlan dimensionar o trabalhador enquanto sujeito político “até
o momento da intervenção da força militar contrarrevolucionária, como mostra
o final do filme” (SANTOS, 2011, p. 07). Para Santos, o filme se interessa pelas
contradições da Revolução dos Cravos, assim empreende a narrativa fílmica sob
o ponto de vista da ambiguidade:

As personagens da película Torre Bela afirmam-se pela sua ambiguidade, apesar da
sua postura política determinada, no momento mais radical e incerto da Revolução.
E, é talvez nestes termos, que podemos compreender a representação dos militares
do Movimento das Forças Armadas (MFA) no filme, do ponto de vista da “neutralidade”
em relação à luta dos trabalhadores, desconstruindo o mito criado em torno da ideia
de militar “herói” e “revolucionário” que domina algumas histórias sobre a Revolução

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portuguesa. E, ao mesmo tempo, por hipótese, aludindo ao “vazio de poder” que do-
minou o período da democracia-direta ou de duplo-poder (25 de abril de 1974 - 25 de
novembro de 1975), assim designado por Arcary (2004) e Varela (2011). A abordagem
cinematográfica ao processo revolucionário português, de que trata o filme, resgata
da raiz do cinema-verdade a perspectiva materialista e histórica que o filme Chronique
d’un Été (Crônica de um Verão) parece superar pela preferência dada à lógica do pensa-
mento formalista. Neste caso, opõem-se no debate entre Rouch, Morin e Harlan duas
formas distintas de produção de conhecimento implicadas na aproximação ao concei-
to de cinema-verdade: uma assente na dimensão subjetiva; e a outra na integração das
dimensões subjetiva e objetiva na abordagem aos fenômenos da vida social. (SANTOS,
2017, pp. 15-16).

Figura 1 – Cena de Torre Bela, de Thomas Harlan. Wilson e Eugénio em um acalorado diálogo. Eugénio
expressa preocupação com o fato de a cooperativa assumir seus pertences de trabalho, até mesmo suas

roupas, levando à percepção do impacto da experiência de coletivização.

FONTE: https://filmspot.pt/artigo/torre-bela-o-mais-marcante-documentario-do-periodo-a-seguir-ao-25-de-
-abril-disponivel-online-de-forma-gratuita-11692/

Nesses termos, na figura 01, podemos observar a cena que registra e captura
um evento micro-histórico em que o agricultor, Eugénio, questiona as diretrizes
da Cooperativa Agrícola Popular da Torre Bela, mostrando as complexidades
e contradições da situação que se desenrola. Assim, a representação se faz
com Wilson Zabu parado do lado de fora da residência dos trabalhadores na
fazenda, quando é questionado por Eugénio acerca do valor de sua ferramenta
de trabalho. Enquanto o trabalhador permanece invisível, sua resposta pode ser
ouvida indicando sua incerteza sobre o valor da ferramenta. Wilson reitera sua
associação com a cooperativa, no processo de coletivização. A interação entre
Wilson e Eugénio permanece ininterrupta na cena. Cinematicamente, o diálogo
não retrata a oposição conflitante entre Wilson e o fazendeiro, enfatizando mais
a discussão cooperativa sobre a propriedade coletiva dos meios de produção.
O foco está na continuidade que une os dois personagens, em vez de qualquer
ruptura em seu relacionamento. Segundo Alexandra Sofia Miranda Dos Santos
(2017, pp. 178-179), o potencial conflito de perspectivas é sugerido por meio dos

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cortes estabelecidos no processo de montagem do filme3, sobretudo, entre os
retratos de Wilson e Eugénio, contrastando com as fotos de outros agricultores
observando a conversa. Esses personagens são observadores passivos, não se
engajando prontamente no conflito dialogado, isso, até Maria entrar em cena
segurando uma panela, preenchendo a lacuna entre os dois trabalhadores e o
grupo. Maria apoia a sugestão de Wilson de garantir a ferramenta cooperativa
fazendo com que o trabalhador doe sua própria ferramenta, fortalecendo assim
a cooperativa. Essa cena aponta para as contradições próprias do processo de
luta.

José Filipe Costa (2011) nos apresenta que esse filme de Thomas Harlan
é visto como uma construção narrativa com um enredo dramático seguindo
os códigos narrativos clássicos, semelhante ao cinema documentário
observacional4. O autor compreende que a imagem em questão (figura 1) seja
reveladora do desenvolvimento das tensões pós-revolução, evidenciando as
dúvidas de um agricultor em relação ao processo de coletivização surgido na
constituição das atividades da cooperativa. Nesse sentido, o registro de Harlan
destaca a autenticidade da situação política em locus, sem recorrer a estratégias
argumentativas exteriores, assim basta registrar. É importante, neste filme,
destacar essa autenticidade de forma quase espontânea e compreender as
preocupações genuínas do agricultor, a fim de estabelecer um diálogo eficiente
sobre a coletivização resultantes dos processos da revolução. Ao reconhecer e
abordar essas questões com um olhar testemunhal e participativo da câmera, é
possível promover um entendimento mútuo e encontrar soluções inclusivas para
os desafios enfrentados e dispostos na cena que se desenrola na Cooperativa.

O filme apresenta personagens proeminentes como Wilson Zabu e José
Pedro Andrade, que estavam associados aos esforços políticos em prol da

3  A montagem é um item indispensável da gramática do cinema, ou seja, trata do processo de tornar
história apreensível. Segundo a Julia Gonçalves Declie Fagioli (2011, p. 47), a montagem é respon-
sável por construir narrativas cinematográficas, lidando com o que está fora de campo e o que fica
de fora. Ela organiza a sucessão dos planos e estabelece sua duração, inscrevendo o tempo no filme.
Além disso, a montagem é um componente essencial da escritura fílmica, dando sentido final às ima-
gens. Toda imagem guarda algo invisível, mas que pode ser imaginado.
4  Segundo Allan Barbosa (2009, p. 34), o documentário do modo observacional se caracteriza por
comunicar um acesso imediato ao mundo, sem intervenções, situando o espectador como um obser-
vador ideal. O roteiro é suprimido e a direção é minimizada, com os métodos de direção transmitindo
a impressão de invisibilidade da equipe técnica.

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Reforma Agrária na época, fornecendo informações sobre a ocupação e os
tensionamentos políticos envolvidos na ocupação da Torre Bela, como um caso
singular de desdobramento das imagens produzidas a partir de abril de 1974. Cabe
salientar a ênfase heroica dada a figura de Wilson Filipe, “Sabu” (1948-2020), em
todo o documentário, que se dá pelo seu histórico de “bandido social”, ala Robin
Wood, como expressa Thomas Halan a apontar algumas de suas motivações para
filmar Torre Bela.

Durante uma das assembleias do RAL I um soldado de- legado das unidades da escola
prática da cavalaria de Santarém, ponto de partida da «revolução dos cravos», fez um
relatório sobre o movimento camponês dessa zona: anunciava a ocupação iminente
das terras da família real de Bragança em Torre Bela, com Zabu à cabeça do movimen-
to. Zabu era o sobrenome de Wilson, rufia bem conhecido da escumalha de Lisboa,
condenado a quatro anos e meio de prisão em cativeiro por ter atacado um banco à
mão armada, terror da burguesia e herói popular, sobretudo junto dos jovens rapazes.
Rapidamente a equipa interrompe a rodagem nas casernas, onde trabalhava já há 40
dias e desloca-se a Torre Bela. Aí fica durante 8 meses. (HARLAN, 2013, p. 02).

Nas palavras de Costa (2011, p. 222):

[...] Os ocupantes eram trabalhadores agrícolas, alguns desempregados, outros
assalariados rurais ou pequenos proprietários, muitos deles com uma história pessoal
marcada pela participação na guerra colonial ou pela imigração. A ocupação da
herdade levada a cabo a 23 de abril de 75 insere-se num movimento geral de tomada
do poder popular nas fábricas, propriedades rurais e escolas que irrompeu depois
do golpe militar do 25 de Abril. As primeiras ocupações de terras datadas em finais
de 1974 ou inícios de 1975 (Rezola, 2007:209), começaram por ocorrer sobretudo nos
grandes latifúndios do sul, movimento que depois se expandiu para o Ribatejo. Muitos
historiadores têm sustentado a tese que foi esta dinâmica popular que transformou
o golpe de Estado do 25 de Abril numa revolução de caráter coletivo, baseada em
reivindicações relativas ao emprego, aumentos salariais e falta de exploração de
muitas terras férteis. As ocupações feitas à margem da lei, fundadas naquilo que se
designou de legalidade revolucionária, tiveram posteriormente a cobertura do Estado
em julho de 1975, quando foram publicados os Decretos-Lei 406-A/75 e 407-A/75
(Rezola, 2007:211)

Os acontecimentos em Torre Bela, documentados no filme de Thomas
Harlan, se apresentam como um tesouro da Revolução, sobretudo na medida
em que as ações da ocupação sofreram a influência direta da Liga de Unidade e
Ação Revolucionária (organização não partidária), e pela vontade expressa dos
ocupantes de não ceder o controle direto da gestão da cooperativa às estruturas

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partidárias. O tesouro revolucionário5 português está na capacidade de marcar o
país em uma sensibilidade revolucionária comum, como um modo de vida – uma
estrutura de sentimento, pela qual a revolução, como um movimento regulador
necessário, se torna uma linguagem vivida, pensada e articulada de forma pública,
na configuração de laços espirituais e políticos que se registrou historicamente.
Para Cabreira (2019), o estabelecimento de uma nova constituição, políticas
econômicas beneficiando populações desfavorecidas e precarizadas, o
enfrentamento das questões coloniais, dão um caráter destacado as atividades
revolucionárias portuguesas de então. Essas foram as principais prioridades
pós-revolução.

Ou seja, o Movimento das Forças Armadas, de certa forma, empreendeu
o incentivo à formação de um corpo populacional político revolucionário, que
foi impulsionado, mobilizado e representado pelos capitães de abril, que se
desdobrou em conselhos e comissões de trabalhadores, de camponeses,
mulheres, etc. Assim, como promessa democrática, se fez um processo de
incorporação de cidadãos no espaço público que, até então, esteve interditado
pela ditadura salazarista. Além Hannah Arendt, no texto A tradição Revolucionária
e seu tesouro perdido
, Martorano indica que as práticas dos conselhos6 e
comissões de trabalhadores7 estiveram atreladas à vontade direta por democracia

5  Esse tesouro é disposto nas análises de Hannah Arendt (2011), em Sobre a Revolução, no capítulo
A tradição Revolucionária e seu tesouro perdido, no qual ela discute os aspectos distintivos das Re-
voluções Americana e Francesa, a partir do processo de memorização, daquilo que se desenvolveu
e restou do processo revolucionário. Segundo Antônio Batista Fernandes (2016), Hannah Arendt se
refere ao tesouro perdido da revolução como os sistemas de conselhos, dos quais ela acredita repre-
sentarem um sistema capaz de oportunizar a participação individual direta no governo, como uma
espécie de adensamento do espaço público. Nesses termos, segundo Fernandes, a filósofa vê os siste-
mas de conselhos como um meio de criar um espaço para a liberdade e o surgimento da ação política,
na medida em que permitem que os indivíduos se envolvam ativamente na governança. Assim, Aren-
dt contrasta esses sistemas de conselhos com os sistemas partidários, destacando como ambos eram
desconhecidos antes das revoluções e são uma consequência do postulado revolucionário moderno
que concede a todos os habitantes o direito de participar das esferas políticas públicas. A participação
é o adensamento do processo revolucionário, ou seja, o seu tesouro. O conceito de Arendt do tesouro
perdido enfatiza a importância desses sistemas de conselhos na revolução, retratando-os como um
componente valioso, mas muitas vezes esquecido, da mudança política; afinal, contemporaneamente,
optamos pelos partidos políticos em detrimento dos sistemas de conselhos. Ademais, a filósofa sugere
que esses sistemas têm o potencial de facilitar a governança democrática direta e aprimorar a agência
individual dentro da esfera política. Ao enquadrá-los como um tesouro perdido, Arendt ressalta a
importância desses sistemas de conselhos na preservação e promoção da liberdade política e do enga-
jamento ativo dos cidadãos. Cf.: (FERNANDES, 2016)
6  Cf.: (KORSCH; MATTICK, 1973).
7 Cf.: (SUARÉZ, 2023).

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e designaram, historicamente, o ensejo de superação da burocracia do Estado
burguês. Ademais,

o estudo do conselhismo [que] engloba não apenas os autores apresentados de forma
restritiva como integrantes dos “grupos comunistas de conselhos” – isto é, Karl Korsch,
Anton Pannekoek, Herman Gorter etc., conforme a posição defendida por Paul Mattick.
Se assim o fizéssemos estaríamos excluindo da pesquisa autores como Lênin, Leon
Trotsky, e mesmo Antonio Gramsci, entre outros. Para nós, os “conselhistas” são to-
dos aqueles que pensaram a questão dos conselhos operários em sua relação com o
partido socialista e com o Estado operário, e não exclusivamente os que considera-
vam estes novos organismos como expressão automática da democracia direta e da
superação dos partidos, como é o caso de alguns dos marxistas analisados por Paul
Mattick. (MARTORANO, 2009, p. 17)

Trata-se de um tesouro revolucionário, nos moldes apontados por Hannah
Arendt (2011), na medida em que emergem organismos de mobilização popular
içados por anseios por transformações que pusessem fim da precariedade na
vida social portuguesa pelos entraves antidemocráticos. Assim, “eles sempre
surgiam como organismos espontâneos do povo, não apenas fora do âmbito de
todos os partidos políticos, mas inteiramente inesperado por eles e seus líderes”
(ARENDT, 2011, p. 241). Assim, nos interessa perceber o desenvolvimento de uma
sensibilidade revolucionária, a qual o cinema foi um dispositivo mobilizador e
arquivo dessa estrutura de sentimento revolucionária.

Segundo Jacques Lemière (2005), o cinema português, após a revolução de
1974, encontrou uma vazão de liberdade artística e expansão cinematográfica.
Após o regime ditatorial (1926-1974)8, de ênfase salazarista, ser derrubado em 25
de abril de 1974, os cineastas portugueses puderam explorar temas anteriormente
censurados e expressar suas ideias livremente através do cinema, bem como
exibir filmes estrangeiros até então censurados, como Último Tango em Paris
(Bernardo Bertolucci, 1972).9

O referido filme foi exibido pela primeira vez em 30 de abril de 1974, sendo
que em dois meses houve filas gigantescas à porta do Cinema São Jorge. Esse

8  Acerca das referências cronológicas: Não obstante o regime salazarista (Estado Novo) ter sido ins-
titucionalizado com a entrada em vigor da Constituição de 1933, a historiografia portuguesa aponta
geralmente como baliza cronológica inicial do regime ditatorial o ano em que ocorreu o golpe de
Estado que lhe deu origem, 1926. Daí ser habitual a periodização 1926-1974 para a ditadura, que
se prolongou para além da “morte” política de Salazar em 1968 (antecipando a sua morte física em
1970). [contribuição de parecerista não identificado]
9 Sobre isso conferir: Documentário “Portugal 74-75 - O retrato do 25 de Abril”, de Joaquim Furta-
do, RTP, 1994. Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/portugal-7475/

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exemplo aponta para o expurgo erótico a um regime político caracterizado pela
repressão, controle midiático e educacional de forma centralizada e com ações
de sufocamento da dissidência e da oposição política. Assim, podemos perceber
o poder libertador de Eros pelo cinema. O projeto autoritário “descarta as forças
criativas de Eros, restringindo-lhe a ação, no máximo, ao âmbito puramente sexual
e limitando sua força como elemento constitutivo da sociedade” (FIGUEIREDO,
1992, p. 31).

No bojo dos acontecimentos revolucionários, as lentes do cinema não
faltaram à revolução. Prova disso, é olhar do cineasta brasileiro Glauber Rocha
registrado na obra “As Armas e o Povo”, que recebe a assinatura do Coletivo de
Trabalhadores da Actividade Cinematográfica. Lemiére (2005) aponta que o
referido filme destacou o envolvimento de grupos políticos de esquerda e o papel
do MFA (Movimento das Forças Armadas) durante o período revolucionário de
1974-75, bem como levantou questões controversas sobre a proteção oferecida
aos ex-líderes do regime e as potenciais tensões políticas dentro das estruturas
de poder emergentes. No filme, Glauber Rocha atua como uma espécie de
repórter que age no calor do acontecimento, ao entrevistar os agentes inseridos
na cena revolucionária e os trabalhadores no dia 01 de maio de 1974, a fim de
sentir a ambiência revolucionária por parte da população portuguesa dispostas
nas praças e ruas de Lisboa. As pessoas entrevistadas, por Glauber em um
tom quase censitário, apresentam as mazelas de uma vida precarizada pelo
regime, suas reclamações ganhavam a cena na medida que as ações do MFA se
desenrolavam. O filme tem como práxis a dimensão sindical e a luta de classes,
ou seja, “uma prática revolucionária assumiu proporções de completo impasse
no Sindicato dos Profissionais de Cinema” (GEADA, 1977, p. 119). Natália Tavares
(2021, p. 41) aponta que As Armas e o Povo é construído com uma montagem fílmica
que faz das informações explicativas e apreendida por meio da organização dos
planos, da temporalidade alternada entre o narrador e a população entrevistada.
Assim, o documentário adota uma estrutura expositiva que intercala a voz do
narrador com imagens e entrevistas, sem desafiar as categorias que organizam
o conhecimento dos acontecimentos. O filme, então, aponta características do
modelo participativo, transmitindo a sensação de comunicação direta com o
público durante as manifestações históricas e revolucionárias.

Tanto Torre Bela quanto As armas e o Povo são filmes documentários que
ingressam em acontecimentos concernentes e desdobrados da Revolução

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dos Cravos, dando destaques para as ações e posições populares diante do
empreendimento revolucionário. Assim, com esse anseio participativo da
câmera no bojo dos acontecimentos, esses últimos passam a ser filmados onde
o olhar do diretor tem a câmera como testemunha, o olhar do personagem, como
agente do processo, e do espectador que participa de uma troca de olhares
simulada, com as devidas mediações pelas quais o acontecimento é produzido
e, por conseguinte, passa a ser reproduzido pela linguagem construtora do filme
e com aquilo que foi filmado. Geralmente, o documentário recebe uma espécie
de estatuto de maior proximidade com o real, pois flerta com a figuração realista
dada pelo ato violento de filmar e tomar a palavra.

Diferentemente do jornalismo, o documentário se realiza após o acontecimento, mas
diferentemente do espetáculo, é-lhe proibido “reconstituir” o que não filmou. Assim,
ele coloca em jogo o primado do real que parece cada vez mais necessário ao motor
libidinal que faz girar as sociedades. (Seria preciso fazer a história da impressão de
realidade no cinema.). (COMOLLI, 2008, p. 20)

Porém, como arte, o documentário produz uma espécie de retoque da
realidade (assim, fazendo dela material manuseado pela invenção), a partir do ponto
de captação da câmera que escolhe o que deve ser inserido no campo de visão,
bem como o que deve ser deixado de lado, de quem deve ser ou não entrevistado
etc. Por exemplo, em Torre Bela, a cena em que os trabalhadores deliberam acerca
da adesão da constituição da Cooperativa, para dar dramaticidade aos discursos
das lideranças diante da massa de trabalhadores do campo, Thomas Harlan usa
do artificio do zoom sobre os rostos e corpos dos líderes em construção, como
Wilson, e a figura combatente de Camilo Mortágua, um dos fundadores da Liga de
Unidade e Acção Revolucionária (LUAR). A escrita da câmera e a montagem a todo
tempo quer imprimir artisticamente a intensidade da luta, como acontecimento.
Assim, a câmera é usada de forma crítica a fim de produzir um efeito enfático de
realidade, a partir de um critério de dramaticidade que, de certa forma, é uma
operação da ficção. Alexandra dos Santos (2017, pp. 75-76) faz uma detalhada
descrição da referida cena de Torre Bela.

A imagem abre em fade in, a câmera segue num plano de costas um grupo de
trabalhadores que caminha para a escadaria lateral de pedra. Vários trabalhadores
já se encontram aguardando no alto. É anunciada a data do dia, por meio da legenda
“Quarta- feira, 24 de abril”. A câmera continua seguindo os trabalhadores de costas
que caminham para o espaço da assembleia. Uma grande movimentação é captada
pela câmera. Depois de um corte, do alto, a câmera capta o plano de um grupo de
trabalhadores que faz parte da assembleia. Num movimento de afastamento com a

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técnica do zoom, a imagem abre. O olhar do espectador foi ampliado, e agora pode
aceder a toda a imagem da assembleia. A câmera está situada por detrás de Wilson, o
trabalhador que dirige a reunião. Wilson através do megafone informa que “Os donos
desta terra não estão de acordo com a cooperativa” e confirma o que já havia sido
comentado por Maria no fechamento da cena anterior sobre a garantia de trabalho
para alguns trabalhadores e não para todos. O resultado da reunião é exposto entre
os trabalhadores e são abertas falas entre os diferentes protagonistas. Um dos
trabalhadores manifesta o propósito da luta dos trabalhadores: “(...) dar a terra a quem
a trabalha”. E Wilson segue comentando sobre o processo de Reforma Agrária que
decorre no resto do país, e a necessidade de firmar um acordo de cooperativa entre
os trabalhadores. A câmera não procura mais os protagonistas de forma incessante,
eles estão posicionados na frente da assembleia, e aos poucos vão surgindo outros
entre o quórum dos trabalhadores. As diferentes “vozes” que se destacam como Camilo
Mortágua, que apela à continuidade da luta dos trabalhadores pelo acesso à terra, “(...)
com serenidade e conscientes dos direitos”, garantem o desenvolvimento da assem-
bleia, expondo os pontos de interesse dos trabalhadores para uma tomada de posição.
Nesta cena Mortágua está no alto falando para a assembleia. No próximo quadro já se
encontra no meio da multidão, e do seu lugar afirma ainda a importância de ter aces-
so às terras, mas “(...) também às instalações, também imóveis, também máquinas e
também tudo aquilo que é necessário para amanhar a terra”. Wilson reforça do alto
que para amanhar a terra “teremos de ter dinheiro”, e Mortágua afirma que existe o
Instituto da Reforma Agrária (IRA) para apoio financeiro e técnico. Neste plano de se-
quência terminamos com o tema da modernização do campo pelo trabalhador, que por
hipótese, já é anunciado nos momentos iniciais do filme com o uso dos sons do motor
agrícola e dos pássaros – máquina e natureza -, introduzido por montagem vertical so-
bre a imagem aérea da Quinta Torre Bela. Além disso, e por suposição, começa a for-
mar-se o enredo em torno da busca dos trabalhadores pela propriedade coletiva dos
meios de produção, apoio técnico e financiamento para que possa ser investido capital
na cooperativa de trabalhadores. No final da cena, Wilson apela ao voto de todos so-
bre o acordo de cooperativa. Os trabalhadores são unânimes em afirmar o acordo de
cooperativa que garante trabalho para todos, para ser encaminhado como decisão dos
trabalhadores nas negociações com o proprietário D. Miguel.

Em Mas afinal o que é documentário, Fernão Ramos delineia certas
características definidoras dos documentários, incluindo a incorporação de
narração de voz, entrevistas, depoimentos, a utilização de imagens de arquivo,
o envolvimento pouco frequente de atores de ofício, a ênfase única na escala
de cenas e técnicas distintas, como operação de câmera portátil. Para Ramos
(2008, p. 22), o “documentário estabelece asserções ou proposições sobre o
mundo histórico.” Assim, Ramos afirma que se trata de uma narrativa contendo
imagens-câmeras que transmitem afirmações e informações sobre o mundo,
dando a condição de intérprete para o espectador. É responsabilidade da narrativa
documental articular eficazmente essas afirmações, que têm o potencial de
serem diluídas ou fragmentadas por natureza. Entre o diversificado conjunto
de narrativas que envolvem o cinema, a narrativa documental destaca-se pela
sua característica distintiva, dada pela sua estrutura sígnica que funciona como
uma ferramenta de comunicação transparente facilitando o estabelecimento de
afirmações ou postulados sobre o mundo ou o eu que a narrativa representa, a

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partir do seu cotejamento do ideal de verdade, também ambicionado, de forma
diferente, pelo cinema ficcional, assim, ambas as formas de cinema compartilham
certas estruturas e procedimentos expressivos que, segundo Teixeira:

Tanto para um como para o outro, a verdade não resultava da criação cinematográfi-
ca, não era um efeito-verdade que os processos imagético- narrativos do cinema
compunham e punham em circulação no mundo, mas algo que lhes era exterior, dado
de antemão e que se expunha como objeto de descoberta e revelação pelo cinema.
A verdade como revelação de algo imerso na espessura, opaca ou transparente, do
mundo, e a que se tinha acesso, fosse por meio de uma parafernália de artifícios do
cinema ficcional, fosse pela visão límpida e direta do cinema documental. (TEIXEIRA,
2006, p. 255).

Essas “parafernálias” é que possibilitam o retoque dado ao real que só
pode ser acessado por efeitos compartilhados tanto pela dimensão ficcional
e documental. Assim, ambas as entidades, ficção e documentário, exibem
semelhanças e particularidades em suas composições estruturais e operações de
comunicação, indicando assim uma relação ou conexão potencial entre as duas.
Além disso, essas duas possuem características compartilhadas que sugerem
uma semelhança em seus princípios subjacentes e estruturas operacionais,
destacando a possibilidade de um dialogismo ou influência compartilhada
em seu desenvolvimento. Essas formas de dar retoque e acessar o real se
possibilitam a partir da mobilização da gramática do cinema que oferece formas
para interpretação da realidade, como expõe Comolli (2008, p. 262):

Os inocentes falarão de realidade manipulada, trucada. Mas filmar, cortar, montar -
escrever, em suma - é, evidentemente, manipular, orientar, escolher, determinar, em
resumo, interpretar uma realidade que nunca se apresenta a nós como “inocente” ou
“pura”, a não ser que assim a fantasiemos. Como os filmes de ficção, os documentá-
rios são colocados em cena. Acontece que o alvo dessa mise-en-scène é a realidade
reapresentada apenas de maneira acessória, ela está muito mais direcionada para o
espectador, interessada no funcionamento de seu olhar, no jogo de seus desejos e de
suas crenças.

O papel da narrativa documental e sua posição direta é crucial na transmissão
destas afirmações ao público, garantindo uma representação organizada e
coerente do mundo ou de si mesmo no processo de apresentação. Existe uma
dimensão artística e estética que corrobora para a construção dos efeitos
de realidade embutidos nos documentários, como uma espécie de operação
desconstrutiva do cinema enquanto ilusão. “Há na prática do cinema documentário
uma espécie de redução do cinema ao essencial: corpo e máquina.” (COMOLLI,

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2008, p. 20). Para Ramos (2008), o cinema documentário se caracteriza também
como narrativa que carrega consigo intenções e as indexações projetadas pelo
diretor na obra e que, muitas vezes, devem ser prontamente percebidas pelos
espectadores. Segundo Comolli, no documentário existe uma ideia de relação
direta com o objeto a ser filmado (o que não lhe é exterior), a representação do real
com o retoque artístico cinematográfico, ou mesmo, com a realidade referenciada,
mesmo quando sonega o seu referente. “O cineasta filma representações já em
andamento, mises-en-scène incorporadas e reencenadas pelos agentes dessas
representações” (COMOLLI, 2008, p. 85). Desse modo, segundo Guimarães e
Caixeta (In: COMOLLI, 2008, p.212), o real pressiona e ronda a cena filmada.
Dessa feita, o documentário suscita a invenção da realidade quanto um objeto do
mundo, que produz uma inscrição verdadeira:

A inscrição verdadeira concerne à duração partilhada entre quem filma e quem é filma-
do, de tal modo que o tempo do filme se compõe com o tempo do mundo, que sempre
deixa seu vestígio nas imagens, nos sons e nas falas. Se o documentário não perde sua
diferença para a com a ficção é justamente porque “um filme é feito de brechas por
onde sopra o vento do real, a corrente de ar do inconsciente”. O real, aqui, refere-se
tanto ao referente (apanhado em sua dimensão espacial e temporal) quanto à noção
lacaniana. Comolli insistirá que a potência do filme documentário consiste justamente
nessa sua dificuldade convertida em virtude: “O cinema, na sua versão documentária,
traz de volta o real como aquilo que, filmado, não é totalmente filmável, excesso ou
falta, transbordamento ou limite - lacunas ou contornos que logo nos são dados para
que os sintamos, os experimentemos, os pensemos.” Evidentemente, se o documen-
tário convoca o real dessa maneira, ele não desconhece o quanto toda representação
é obra de linguagem e nem ignora o fato de que os signos jamais se fundem ao real, por
mais intensa que seja a força acontecimental com que ele vem cindir a cena filmada.
(COMOLLI, 2008, p.212)

Nesses termos, não nos interessa, de forma direta, as tensões entre o
cinema ficcional e o documental, sobretudo, a partir do primado do real. Nos
interessa, então, que as filmagens de Torre Bela e As armas e o Povo, na forma do
documentário, tratam do acontecimento a partir do apelo realista e espetacular
que nos permitiu rastrear parte do resíduo do tesouro revolucionário português,
pois, os filmes na mesma medida em que documentam também ficcionalizam a
revolução e suas possibilidades. Isso é possível, pois, o documentário lida de certa
forma com o rastro empírico da imagem, pois foi feito como registro pensado sob
o modo de relação entre quem filma e quem é filmado e, por conseguinte, por
quem olha-o como acontecimento filmado com critérios da escrita e linguagem
cinematográfica e suas operações específicas (montagem, trilha sonora,
fotografia, etc.).

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A revolução e o campo da ficção (Non ou a Vã Glória de Mandar)

Acerca da Revolução dos Cravos como último cenário revolucionário europeu
e a questão da luta anticolonial em África, esse duplo movimento apontado por
Secco e Cabreira pode ser visto no filme Non ou a Vã Glória de Mandar (de Manoel
Oliveira, 1990). Nessa película, a História de Portugal é tomada como alegoria e,
com isso, ainda que se trate de uma ficção, o filme se apresenta com um toque
de história monumental, movido pela capacidade narrativa dos personagens
soldados - que narram e reconstituem, em uma perspectiva professoral e
pedagógica, alguns dos principais episódios de guerra que o país já enfrentou,
especialmente aqueles em que saiu derrotado.

Os atores, que vivem os soldados em guerra, também vivem sujeitos
históricos que são apresentados em seus processos narrativos sobre os eventos
históricos anteriores as guerras coloniais na África. Por exemplo, o personagem
Alferes Cabrita, vivido por Luís Miguel Cintra, é também Viriato e Don João de
Portugal. O personagem Soldado Manuel, vivido por Diogo Dória, é também o
Guerreiro Lusitano e Primo de D. João. Já o personagem do ator Luis Lucas,
o soldado Brito, é também o Guerreiro Lusitano e o Guerreiro Alcácer. Por fim,
o ator Miguel Guilherme vive o Soldado Salvador e o Guerreiro Lusitano. Essas
inversões se dão pelo uso de cenas em flashback. As disposições dos personagens
se caracterizam na execução de dois tempos históricos na composição diegética
do filme. Os soldados vivem o seu presente no tempo da ação do filme, mas o
acessam de forma narrativa na busca por sentido de estarem numa guerra
fracassada, o que os faz despertar para a História, a partir da capacidade ativa
de narrar as vãs glórias de um passado português carregado de derrotas. Ou seja,
o filme de Manoel Oliveira dimensiona a história política de Portugal sob a égide
da alegoria da derrota.

Segundo Idelber Avelar (2003), as alegorias da derrota, em contextos pós-
ditatoriais, funcionam no enfraquecimento da dimensão épica, pois indicam os
índices do fracasso histórico e se propõe a interpelar o presente na condição
de alegoria, se posicionando como um desvio imposto pelas ruínas de derrotas
históricas não completamente simbolizadas no plano político e social. No
filme Non ou a vã glória de mandar, isso funciona em um enredo fragmentado
entre o passado e o presente, pelo qual Manoel de Oliveira criou uma reflexão

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peculiar sobre a história de Portugal, trazendo como índices alegóricos as ações
referentes à vã glória de mandar, da lenda de Viriato até à Guerra Colonial (tema
enfático na relação passado e presente neste filme), passando por personagens
como D. Afonso Henriques a batalha de Toro, o decepado D. Duarte de Almeida, a
união dinástica com Castela através do casamento dos infantes Afonso e Isabel,
a Ilha dos Amores de Luís de Camões, a morte do príncipe D. João, a inglória
batalha histórica de Alcácer Quibir, o trágico destino de D. Sebastião e, por fim, o
desfecho final nas terras africanas, no dia 25 de Abril de 1974 - data em que toda
a ação do filme ocorre no presente, representando o fim do sonho português do
Quinto Império.

Essa vontade interrompida é culminada na última sequência do filme, em
que o Alferes Cabrita, um estudante do curso de licenciatura em História, começa
a delirar em um hospital de Luanda, devido aos graves ferimentos adquiridos no
front de guerra em território africano. Ismail Xavier (2013) chama isso de “percurso
na tônica de uma poética do desastre”. O personagem tem sua voz embargada,
quase silenciada, na medida que vai tomando altas doses de morfina e uma
imagem interna a sua mente vai se formando.

No plano dos delírios resultantes da violência das dores sobre o corpo de
Cabrita, a partir do cruzamento de imagens interiores versus imagens exteriores
que configuram o estado de espírito do alferes, surge a imagem alegórica de um
cavaleiro da Guerra de Alcácer Quibir10, sendo ele D. Sebastião, que tem a sua mão
ensanguentada no centro do enquadramento, com um jorro volumoso de sangue,
na medida em que sua mão está em contato direto com a lâmina dos gumes da
espada. A figuração mítica do sebastianismo se faz na imagem interna da mente
do alferes e, dentro dela, se transfigura a aparição do personagem histórico D.
Sebastião com as mãos ensanguentadas que, por sua vez, encontra referência
10  A Batalha de Alcácer Quibir, que aconteceu em 1578, foi um confronto militar entre o Rei Dom
Sebastião de Portugal e o Sultão de Marrocos. O motivo da batalha foi a preocupação de Dom Sebas-
tião com o avanço dos muçulmanos sobre Marrocos, pois acreditava que eles poderiam tentar retornar
à Península Ibérica. Dom Sebastião recebeu o apoio das tropas do Sultão Mulei Mohammed, e juntos
enfrentaram as tropas lideradas por Abd al-Malik, com o suporte dos otomanos. Nesse confronto os
portugueses foram derrotados e Dom Sebastião desapareceu sem maiores explicações, o que gerou
especulações e alimentou o mito do Sebastianismo. Esse evento histórico é de grande importância
para a cultura portuguesa, pois marcou o início desse fenômeno mítico, no qual surgiu a crença na
volta do rei desaparecido para restaurar o país e consolidar a posição de um Império português.
Cf.: https://blogdabn.wordpress.com/2017/08/04/fbn-documentos-literarios-um-alvara-de-d-sebas-
tiao-o-desejado-nos-manuscritos-da-inquisicao-de-goa/

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no acontecimento externo, as gotas de sangue pingando na bolsa de transfusão e
o vomito hemorrágico do soldado, fruto de uma sua hemoptise terminal, quando
está prestes a morrer. Ismail Xavier vê Cabrita como o oposto de Dom Sebastião,
personificando os efeitos e o padecimento da violência histórica discutida no
filme:

Derramado nas várias instâncias do “Non”, esse sangue se identifica com o destino na-
cional trabalhado em cada momento do passado através de personificações, figuras
que condensaram situações, portadoras das noções nucleares que marcam a difícil
superação de um traço de identidade que o filme desenha e redesenha, mas que por
fim questiona, ao figurar a passagem do domínio da vaidade, vontade de poder obsti-
nada e arrogância, para o domínio da lealdade, da sensatez e do diálogo encarnado em
Cabrita. Nesse esquema bem afinado à alegoria tipológica do cristianismo, Cabrita é o
anti-Dom Sebastião que encara o seu par antitético e recolhe no seu corpo a violência
sobre a qual ele próprio discorreu ao longo do filme. (XAVIER, 2013, p. 44).

A figura de D. Sebastião será retomada por Manoel de Oliveira no filme O
quinto império–ontem como hoje (2004). O sebastianismo é carregado por uma
mística da conquista interrompida que se apresenta da seguinte forma no filme
de 2004:

O quinto império–ontem como hoje (2004): acompanha os momentos que ante-
cedem a decisão tomada por D. Sebastião (interpretado por Ricardo Trêpa), em 1578,
de invadir o Marrocos e, com isso, deflagrar a Batalha de Alcácer-Quibir. A narrativa
do filme segue sempre em seu castelo, num clima claustrofóbico que parece sugerir
a presença de uma mescla entre angústia e loucura, nos comportamentos de um rei
obcecado pela glória futura. Após a derrota de Portugal nessa batalha, surge o mito
do sebastianismo, que consiste na ideia de que um dia D. Sebastião retornará montado
num cavalo branco para tirar Portugal do jugo de outras nações e conduzi-lo ao tão
aguardado Quinto Império. (PIANCO, 2011, p. 51)

Em Non..., D. Sebastião, antepassado de Cabrita, não corresponde a imagem
do retorno do antigo rei no cavalo branco a fim de conduzir Portugal ao Quinto
Império, mas sim ao flagelo e agonia da derrota que, segundo Mariana Veiga Silva
(2014, p. 84)

[se] vê a figura de Dom Sebastião, que desembainha a espada e segura-a com tal força
que acaba por machucar suas mãos; o sangue d’El rei goteja pela espada no mesmo
ritmo que o sangue do alferes goteja na bolsa de transfusão. Existe todo um diálogo de
imagens, mas a cena toda – que tem aproximadamente 15 minutos de duração – passa-
-se completamente sem palavras.

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Ismail Xavier (2013, p. 44) aponta que a morte de Cabrita possui um paradoxo
que a faz ao mesmo tempo “heroica e vexaminosa”, pois a morte gerenciada
e exposta é de um cidadão comum sem significado messiânico e que ganha
significado por fazer parte de uma constelação maior, simbolizando virtudes e
valores perdidos em um processo em que a morte marca o fim das obsessões
nacionais evocadas pela história de Portugal durante o filme. Segundo Luís Krus
(1991, p. 174), essa imagem reforça a narrativa autoflageladora e sacrificial dos
soldados, constantemente, evocada nas narrativas sobre os acontecimentos
referentes à história da expansão portuguesa e dos conflitos coloniais, nas cenas
antes da agonia final de Cabrita. Ou seja, a evocação da História e do patrimônio
cultural de Portugal é também feita no filme pelo uso referencial e poético de
Os Lusíadas (Luís de Camões) quase de forma monumental, sobretudo na voz e
no corpo de Cabrita, a quem cabe posicionar, pelo ato de narrar, o lugar do país
lusitano na construção civilizatória moderna que, ao mesmo tempo, produziu
cultura também construiu a barbárie sob a mesma base. Isso nos remonta a
sétima tese de Walter Benjamin em As teses sobre o conceito de história (1940),
onde o filosofo alemão aponta:

[...]Os despojos, como é de praxe, são também levados no cortejo. Geralmente lhes
é dado o nome de patrimônio cultural. Eles poderão contar, no materialista histórico,
como um observador distanciado, pois o que ele pode abarcar desse patrimônio cul-
tural provém, na sua globalidade, de uma tradição que ele não pode pensar sem ficar
horrorizado. Porque ele deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gê-
nios que criaram, mas também à escravidão anônima de seus contemporâneos. Não há
documento de cultura que não seja documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele
não pode libertar-se da barbárie, assim também não o pode o processo histórico em
que ele transitou de um para o outro. (BENJAMIN, 2016, p. 12-13).

Essa alegoria tem um caráter dramático, a fim de indicar uma morte também
simbólica de uma história oficial consonante com o autoritarismo salazarista
e suas justificativas de guerra com base na história épica e desbravadora de
Portugal. O sangue derramado aponta para o esvaziamento de sentido dos
embates épicos e do colonialismo dado no presente da ação do filme, antes
posto pela “mediação de memórias nacionais que enunciava, pela ilusão da
história, o sentido de sua missão, do seu comum destino” (RAMOS, 1991, p. 173).
Essa dimensão de uso da história, por parte dos soldados, se apresenta como
uma espécie de compensação imaginária de cumprimento de um destino trágico
que os esperava, o que se confirma na cena final do filme. Nas palavras de Rui

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Ramos (1991, p. 174) “a campanha militar era feita, contra o Mundo, em nome
dessa História. Talvez o facto de a ouvir ajudasse os combatentes a descobrirem
o sentido, para a morte que os esperava”.

Quando a morfina não faz mais efeito, Cabrita é levado a óbito, e esse sendo
registrado na data que eclodiu a Revolução dos Cravos. A imagem de registro no
prontuário do alferes é vocalizada literalmente em consonância com a imagem,
a palavra é tomada e dada pela voz over para escrever junto da imagem a ênfase
do acontecimento. Assim, a morte do soldado simboliza a derrota de inúmeras
glórias narradas e listadas por ele nas carrocerias dos caminhões de guerra nos
embates coloniais. Porém, a Revolução para ele não é experiência a ser narrada,
se torna um objeto exterior ao filme, na medida em que ele se encerra com a
morte. A voz que antes vocalizava textos de cronistas e religiosos, agora, agoniza
e se cala no dia que outro marco da história portuguesa se estabelecia longe do
alcance do seu conhecimento. Sobre essa cena que aponta para o uso das formas
teatrais e integração e preservação do teatro na linguagem do cinema nos filmes
de Manoel de Oliveira, como já descrito por Francisco Javier Ruiz del Olmo (2023),
Luíz Krus (1991, p. 172) nos aponta:

A verdade secreta... inexplicável... o sentido último... São estas as palavras que Manoel
de Oliveira faz dizer ao alferes Cabrita, antes de lhe substituir a voz pelo sangue e de lhe
determinar uma agonia cuidadosamente datada no dia 25 de Abril de 1974. A sequên-
cia situa-se num hospital militar anónimo, numa enfermaria ocupada por um grupo
de soldados feridos, mutilados e ausentes pela dor. Apenas um deles, um rosto a que
uma espessa ligadura descobre um olho atónito e perscrutador, parece consciente do
momento. O grande plano que lhe capta o olhar visionário pelo sofrimento, escolhe-o
como o último testemunho, como o registo e a memória final da morte do alferes, o mi-
litar-universitário, o estudante de história que, ao longo do filme, por entre as intermi-
náveis estradas africanas, contava aos seus subordinados, aos seus soldados, coisas
do passado, do país, coisas sobre Portugal. (KRUS et al., 1991, p. 172)

Figura 2 - O Olho que testemunha a História e a Morte

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70 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Cabe salientar que o plano, no qual se encontra um olho envolto de uma
grande bandagem branca, apresenta-se um olhar testemunhal e partícipe que
expecta a morte do alferes narrador da História de Portugal, ao mesmo passo
que testemunha a derrota da guerra colonial e a impossibilidade de narrá-la em
seus próprios termos, sem o auxílio monumental da História oficial. Esse olhar
aponta para nós o caminho inglório da guerra colonial sobre ele próprio e Cabrita,
conforme aponta Xavier (2013, p.131).

[...] o olhar sem rosto do ferido no hospital moderno que, envolto em bandagens, ex-
pressa o horror diante da morte de Cabrita; e, por fim, há as feições do próprio alferes,
que acentuam o contraste entre a bonomia das preleções históricas, onde se insinuam
as inclinações melancólicas do intelectual, e o momento dramático da sua agonia, que
se desenha como um ajuste de contas, e de olhares, na hora da morte, longe da refle-
xão serena.

Com essa cena, o personagem Cabrita morre sem atribuir um sentido
específico para a guerra e ao montante de histórias, de homens que desejaram
fazer a guerra, em prol de Portugal, que o mesmo alferes narrou durante os
tempos de combate em terras africanas. Sobre isso, Rui Ramos afirma que o
destino trágico dado ao personagem, por Manoel de Oliveira, não permitiu Cabrita
ver o sentido de sua própria História por morrer no Dia da Revolução dos Cravos,
que simbolizou a posição histórica e aclamada acerca da iniciativa de parte das
forças armadas diante de uma ditadura longeva, iniciada por Salazar, na década
de 1930. Por isso, nesse caso, a história seria vã. Nas palavras de Ramos:

Enquanto desconhecermos o que se segue, nunca descobriremos o sentido do que se
passa. O alferes-historiador morre no dia 25 de abril de 1974. Se tivesse sobrevivido,
teria talvez descoberto um sentido na guerra (preparou a queda da ditadura, etc.). A
morte fez que o que lhe aconteceu permanecesse para ele um enigma, isto é: um puro
acaso, o azar de quem tentou a fortuna que rege o mundo. (RAMOS et al, 1991, p. 75)

Nesse sentido, é importante frisar que o filme de Manoel de Oliveira coloca
a história em uma posição central no ecrã, o que o faz estar muito próximo
daquilo que caracteriza o que chamamos de filme histórico. Segundo Alcides
Freire Ramos (2002), a partir de seu diálogo crítico com Sorlin, o filme histórico
é um filme de ficção, que coloca o público diante de seu patrimônio histórico
de forma propositada. A história toma o centro dos debates, na medida em que
ficção e história se sobrepõe, inclusive, mesmo que o filme cite e ou dialogue

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71 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

com documentos e considere a consultoria de historiadores, ele se faz a partir
do uso da imaginação histórica diante dos fatos constituídos, documentados
e conhecidos historicamente, a fim de apresentar pelo passado questões que
inquirem o presente de produção da obra.

Tínhamos visto que para P. Sorlin “todos os filmes históricos são filmes de ficção”. Ao
afirmar isso, o autor queria salientar que os cineastas “até mesmo quando se baseiam
sobre documentos, devem reconstruir de maneira puramente imaginária a maior parte
daquilo que mostram (grifo nosso)”. “ Sorlin tinha apresentado como exemplo disso a
seguinte situação: cenários, móveis ou roupas, que deverão ser colocados em cena,
podem ser feitos “à semelhança daqueles do período histórico representado”, se o di-
retor se basear “sobre textos ou quadros” de época, mas, por outro lado, “só os atores
são responsáveis pelos gestos, pelas expressões e pela entonação”. Para ele, estamos,
neste último caso, no campo puramente ficcional. Por isso, arremata sua argumenta-
ção, dizendo: “Ficção e história se sobrepõem constantemente uma sobre a outra. E é
impossível estudar a segunda ignorando a primeira (grifos nossos)”. Neste ponto, Sorlin
chama a nossa atenção para o fato de que o filme histórico contém dados retirados dos
documentos (não-ficção = história) e, de acordo com o exemplo oferecido, imagens
criadas pela imaginação dos atores (ficção = não-história). (RAMOS, 2002, p. 328).

O salto dado por Ramos (2002, p. 329), em relação a concepção de filme
histórico de P. Sorlin, está quando ao analisar o filme Os Inconfidentes (de Joaquim
Pedro Andrade, 1972), Ramos indica que mesmo com um filme entremeado de
pesquisas, citações, ambientação da mise en scène, pode haver o impacto da
imaginação no processo de interpretação da História, pois, a partir da relação
forma e conteúdo, os dados históricos não se separam de maneira evidente.
Segundo Ramos (2002, p. 329): “Por vezes, onde há os documentos tidos como
tradicionais verificados, ao mesmo tempo, há imaginação do autor recortando e
criando novos dados.”

No caso de Non, o desejo por história, por parte de Manoel de Oliveira, solicitou
o auxílio de dois historiadores, tidos como conselheiros: Aurélio de Oliveira e o
Padre João Francisco Marques, esse último especialista na produção de Padre
António Vieira, o qual o Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma é a matéria
moral posta em Non. Isso pode ser visto no monólogo do último combatente de
Alcácer-Quibir sobre o “Non”, no qual ele diz com ênfase o texto do Sermão da
terceira quarta-feira da Quaresma, em uma situação de deflagradora derrota:

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72 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Terrível palavra é um NON. Terrível palavra é um NON. Não tem direito nem avesso. Por
qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim,
ou do fim para o princípio, sempre é NON! Quando a vara de Moises se converteu naquela
serpente tão feroz que fugiu dela para que o não mordesse, logo perdeu a figura, a fe-
rocidade e a peçonha. O NON não é assim! Por qualquer parte que o tomeis, sempre é
serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo. Mata a esperança,
o último remédio que a natureza deixou a todos os males. Não há corretivo que o mode-
re, nem arte que o abrande, nem lisonja que o adoece. Por mais que confeiteis um NON,
sempre amarga. Por mais que o doureis, sempre é de ferro.

Assim, a presença desses conselheiros se dá, na obra fílmica de Oliveira,
a partir da necessidade de reafirmar uma consciência histórica e uma reflexão
moral, a partir da produção literária do cânon português. Segundo Alessandra
Zuliani (2013, p. 58), o título do filme de Oliveira tem suas raízes no “Não” disposto
no sermão do Padre António Vieira e na imprecação do Velho do Restelo, no Canto
IV
, de “Os Lusíadas”, postas nos termos: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça desta
vaidade a quem chamamos Fama!”, no filme adaptado na frase “Vã Glória de
Mandar”.

Segundo Anamaria Filizola (2010, p. 151), uma dimensão de ficcionalização
da história se coloca na maneira teatralizada que os episódios históricos são
apresentados no filme, bem como o aspecto do estilo realista se faz nas cenas
dos soldados no espaço da guerra. Nas palavras de Filizola (2010, p. 151):

Enquanto a viagem do comboio merece um tratamento fílmico realista no que respeita
ao tempo, espaço e personagens, os episódios históricos, e embora concebidos com
cuidadosa reconstituição de época, principalmente na composição dos personagens,
figurino e cenário, resultam numa representação mais teatral. Tal procedimento tem
um efeito bastante interessante: é como se o passado mais distante não pudesse ser
recuperado senão de uma forma metafórica, de uma aproximação do que foi.

Ademais, junto com a composição estilística para designar os tempos
históricos, o filme aponta para a relação intrínseca entre cultura e barbárie,
tendo na História o material para demonstração disso, na medida em que aponta
desastres causados pela vaidade do poder e ao mesmo passo em que destaca
um projeto universal para um mundo melhor sob a égide portuguesa e seu afã
colonizador, sobretudo na África naquele próprio contexto do acontecimento
da ação. Sobre esse processo ambíguo posto na produção da cultura, no filme,
Ismail Xavier encontra a ambiguidade posta na vontade de narrar de Cabrita e o
argumento do “Non” sugerido no texto de Padre Antonio Vieira, durante o período
anterior a agonia do personagem:

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73 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Este é o terreno de ambiguidades em que se move o alferes: ao expressar seu descré-
dito no falido colonialismo, se move menos no terreno das ideias que alimentavam a
oposição a Salazar e mais num terreno de generalidade humanista que ora absorve a
linguagem do jesuíta, ora assume a pertinência do princípio do “Non” como ordenador
da história portuguesa enquanto perdurar o messianismo imperial. Por outro lado, o
filme compensa suas afinidades barrocas expressas no título e na forma como dese-
nha a sucessão dos desastres causados pela vaidade do poder, introduzindo na fala do
alferes o senso de um movimento civilizatório cuja dimensão ascensional marca um
projeto universal de criação de um mundo melhor. Nessas oscilações, pode falar de Vi-
riato do jeito que fala (condições para entrar na história mundial) e pode insinuar o lado
positivo da presença portuguesa nessa mundialização dos africanos, pois lhes oferece
condições para unificar e constituir uma nação. (XAVIER, 2013, p. 141)

Na percepção de Anamaria Filizola (2010, p. 152), a perspectiva do soldado
é historicista, o que faz com que ele inclua Guerra Colonial no espectro da
longa duração. Segundo a autora, isso se dá, pois a Guerra Colonial é apenas
um dos eventos escolhidos pelo alferes no manancial de exemplos dos seus
conhecimentos monumentais da história portuguesa, a qual ele apresenta para
os soldados. No discurso do alferes, ele menciona a influência e intervenção
dos deuses, fazendo referência aos Lusíadas, no qual os deuses simbolizam a
transcendência e a vontade humana. Esse simbolismo é aplicado aos destinos
individuais, coletivos, nacionais e civilizacionais da história portuguesa em
diferentes períodos. O afã da monumentalização da História de Portugal no filme,
se apresenta na busca de minimizar o efeito prático da relação intrínseca entre
cultura e barbárie. Embora essa não desapareça, segundo Xavier (2013, p. 142),
é como se houvesse uma cisão entre o plano da dádiva (processo cultural de
civilização efetuada pelos portugueses no mundo moderno) e o plano violento
das conquistas (empresa colonial portuguesa sobre outros territórios). Cabe
dimensionar, em concordância com Filizola (2010, p. 157-158), que as dádivas
são postas na ideia de grandes feitos que estetizam o uso de Os Lusíadas no
filme, a partir da estetização de um inventário das conquistas e navegações
ultramarinas no qual se apresenta o engrandecimento acrítico de Portugal: “eis
o melhor da história, literatura, o contato com outras civilizações como troca,
como conquistas compartilháveis, como mar-oceano, e não como tomada, seja
de territórios seja de gentes” (FILIZOLA, 2010, p. 157).

Na sequência da Ilha dos Amores, segundo a autora, é onde se concentra no
filme a simbolização dessa ideia de destino, porém essa é tomada para fora da
ação do filme e da suspensão da História factual, objeto da narração de Cabrita,
mas se apresenta na construção poética e teatral do poema de Luís de Camões,

DOSSIÊ

74 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

em que os deuses e humanos celebram o cumprimento da missão civilizatória
esperada de Portugal:

O episódio escolhido para simbolizar essa missão cumprida se encontra fora da Histó-
ria, mas está no poema: trata-se do prêmio recebido pelos portugueses dos deuses: o
descanso na Ilha dos Amores, preparada por Cupido a mando de Vênus. Surgida dentre
um nevoeiro, a Ilha se oferece aos valentes marinheiros, fatigados depois de cumpri-
rem com o que estava previsto e destinado à pátria, como um banquete, para o corpo
e o espírito, de abundância de frutos e amor das ninfas. Os putti flecham a todos, Tétis
mostra, ao Gama, Vênus, que desce sentada numa concha segura por três cisnes. A
Máquina do Mundo, presente no discurso do alferes, não aparece na representação fí-
lmica da sua narrativa.

Dessa feita, ao se fazer com base no enaltecimento do documento de cultura, o filme
de Manoel de Oliveira acaba, em certa medida, por obliterar os efeitos e resultados dessa
“missão civilizatória” que produziu um “círculo que se iniciou em 1578”, carregado de violência,
do qual Cabrita seria tributário no filme dando seu o suspiro final e pagando com a própria
morte (XAVIER, 2013, p. 141). Assim, a Revolução dos Cravos no filme seria um desvio desse
círculo, pois indica a derrota da Guerra Colonial e a vitória da qual o alferes participou, mas não
pôde ver acontecer. Por conseguinte, o destino e a missão se tornam trágicos e vinculados a
construção monumental da alegoria da derrota que indica o fim no continuum de uma longa
duração remetida durante todo o filme. Cabrita é posto como o último mártir da “Estação da
Paixão portuguesa” (XAVIER, 2013, p. 130). Por isso que a revolução é o marcador da morte e a
questão colonial em África é recalcada no filme. Segundo Xavier (2013, p. 134),

a questão específica da África permanece, em verdade, recalcada no filme, seja nos
seus aspectos mais recentes (anos 1970), seja em sua história geral, pois a recapitu-
lação do passado em grande escala elide toda a questão da colonização na África, a
escravidão e o tráfego negreiro, experiência de que Portugal manteve o controle entre
os séculos XVI e XIX, enriquecendo senhores do comércio e o Estado num período que
é posterior ao que os flashbacks põe em cena, concentrados que estão nas refregas da
península Ibérica e na luta contra os mouros, sendo a derrota de 1578 seu último e mais
dramático episódio, referência a partir da qual se faz o salto para 1974.

Assim, percebemos que o processo de monumentalização produz uma
seleção violenta no ensejo de construir e consolidar uma tradição cultural
e histórica, produzindo escombros que encobrem determinados agentes e
seus respectivos pontos de vista sobre os acontecimentos, bem como induz a
hierarquia e as posições no jogo da enunciação do filme. Ismail Xavier (2013, p.
131) aponta que, para a produção de presença da monumental missão civilizatória
portuguesa, o negro e o continente africano são tornados ausentes na relação
passado e presente produzida no filme. O crítico demonstra isso, quando analisa
que os negros estão ausentes nos flashbacks (das lutas inglórias e integrante
das missões dos portugueses) e só são vistos como combatentes à distância

DOSSIÊ

75 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

no momento de desenlace, quando Cabrita é violentamente atingido. Nas cenas
de guerra, o interesse da câmera está concentrado na ação e no destino dos
protagonistas portugueses, deixando os negros em segundo plano. Temos como
exceção, apenas a figura de violência mais impactante, produtora de grande
horror, que se dá quando negro africano é ferido violentamente, ao aparecer em
cena correndo e gritando, segurando o ventre dilacerado e com suas vísceras
na mão. Assim, a posição e as lutas anticoloniais dos africanos se apresentam
como um subentendido, para não dizer um interdito no filme. A opção de Manoel
de Oliveira está intensamente voltada para o outro lado, a partir do argumento
sobre a negatividade do “Non”, o diretor incide em representar a absorção
poética da derrota, do desastre e do fracasso e a interrupção do sonho imperial
e histórico almejado por Portugal, tendo em 25 de abril de 1974 o banho de “água
fria” numa vontade remontada a séculos. Assim, o povo, os negros africanos,
a ação dos “capitães de abril”, os trabalhadores etc., não coincidiram com a
mobilização monumental da História Portuguesa optada por Oliveira, para os fins
da construção do seu filme de ficção histórica, diferentemente, por exemplo, dos
filmes documentais supracitados, mesmo considerando as especificidades das
intenções e linguagem utilizadas por cada um deles.

Do povo à vã glória revolucionária: apontamentos acerca das representações fílmicas da
Revolução dos Cravos

Apesar de diferentes gêneros trabalhados entre os filmes escolhidos para
serem analisados ao longo do artigo, onde cada um explora a sua representação
acerca da Revolução dos Cravos, faz-se necessário apontar algumas
considerações sobre as películas elencadas.

Nos documentários Torre Bela (1977) e As Armas do Povo (1975), cujos
eixos centrais refletem nos camponeses e trabalhadores durante o processo
revolucionário, abordam um tom muito mais efervescente diante da ruptura das
políticas salazaristas.

Diante de um regime que durou mais de quarenta anos, mesmo após a
ausência da figura política de Salazar em 1968, o então presidente de Portugal,
Américo Thomaz, deu continuidade à ditadura no país até 1974, momento da
eclosão da Revolução dos Cravos. Tal denominação foi de um acontecimento

DOSSIÊ

76 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

esperançoso para os tempos sombrios até então: uma popular oferece um cravo
vermelho para um soldado, que posteriormente, este o coloca em seu fuzil. Nas
palavras de Cláudio de Farias Augusto (2012, p. 22),

a partir daquele momento existiriam, ali, novas perspectivas de vida; um futuro com
uma orientação política mais à esquerda – esperança, aliás, cultivada há tempos por
uma parte considerável dos revolucionários e almejada pela sociedade recém-liberta-
da do jugo ditatorial.

Este período marca a população portuguesa como um caminho inverso
à ditadura e na direção da democracia pluripartidária e dos avanços das ideias
políticas de inclinações socialistas. Destarte, os documentários Torre Bela e
As Armas do Povo representam esse otimismo presente em Portugal durante o
processo revolucionário no início dos anos de 1970.

Após a Revolução dos Cravos, Portugal nomeou através da Comissão
Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA), o general Spínola e
Costa Gomes.11 Mesmo com a volta dos exilados políticos e com uma Constituição
Democrática, Portugal ainda enfrentava problemas de instabilidade econômica
e questões relativas a políticas de imigração. Em 1986, Portugal decide entrar
na Comunidade Econômica Europeia – posteriormente rebatizada de União
Europeia, em 2007 – cuja tentativa era buscar uma recolocação sociopolítica
entre os principais países europeus, após muitos anos de isolamento e de sanha
colonial.

Dessa forma, sobretudo na década de 1980, o clima que antes era de
festividade pelas promessas democráticas e reconstrutivas de Portugal,
materializa-se ao sentimento de desilusão entre a população:

A cada aniversário da Revolução, pode-se constatar, no geral, uma desilusão angustia-
da tanto por parte dos que a fizeram e dos que a viveram quanto por parte de algumas
das atuais forças políticas institucionalizadas e da população mais jovem. A experiên-
cia democrática não trouxe, por si só, a necessária alavancagem do setor econômico,
já que o país ocupa um desconfortável segundo lugar dentre as economias mais frá-
geis da zona do euro – situando-se abaixo apenas da Grécia. Desilusão assombrada
pela sensação de que, ironicamente, foi implantada uma ditadura econômico-finan-
ceira pela União Europeia para o favorecimento de certos países-membros que, desde
outrora e de uma forma ou de outra, sempre estiveram no comando do mundo – e que
também colonizaram implacavelmente a África. (AUGUSTO, 2012, p. 170 – 171).

11  O militar Antônio de Spínola, eleito em março de 1974, mas que em pouco mais de seis meses
renuncia o cargo após as constantes pressões dos grupos conservadores. Consequentemente, o militar
Francisco da Costa Gomes assume a presidência pelos próximos dois anos. Após o sufrágio universal,
ocorrido em 1976, o militar Antônio Ramalho Eanes assume o posto por uma década. In: AUGUSTO,
Cláudio de Farias. A revolução Portuguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

DOSSIÊ

77 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Por isso, os documentários no calor dos acontecimentos apontavam para
as possibilidades do tesouro revolucionário que, nas décadas subsequentes, se
tornava perdido. Não obstante, Non, ou a Vã Glória de Mandar, lançado em 1990,
explora uma concepção menos otimista do processo revolucionário. Conforme
já dito, o diretor Manoel de Oliveira teve os primeiros lampejos sobre o filme
ainda em 1970. Entretanto, após um período significativo de distanciamento dos
acontecimentos de 1974, o clima já não é de festividade como os abordados pelos
documentários aqui trabalhados.

Rememorando o imperialismo português do passado, sobretudo com a
figura mítica de Dom Sebastião, Oliveira dirige uma trama com um olhar irônico
sobre as glórias vividas em tempos mais distantes. Uma das cenas do filme
enfatiza as grandes navegações portuguesas como um dos maiores legados do
país, segundo o diálogo entre Soldado Brito e Alferes Cabrita.

Soldado Brito: Os descobrimentos do século XV são então a nossa maior dádiva ao
mundo?
Alferes Cabrita: Não é sem motivo que Luís de Camões da prémio aos nossos
navegadores “os deuses faz descer ao vil terreno e os humanos subir ao céu sereno.”

Sob a ótica salazarista, rememorar com saudosismo às glorias imperialistas
do país, além de enaltecer a figura mítica de Dom Sebastião, eram práticas
comuns do período pré-revolucionário, conforme aponta a historiadora Maria
Luisa de Almeida Pasckes (1985, p.86).

Antes disso, a sociedade portuguesa foi contaminada pelo passado épico da nação das
grandes descobertas marítimas. O salazarismo difundiu a “grande missão histórica”
que Portugal tinha a cumprir, sobretudo nas colônias africanas. Aliás, não foi a partir
daí que que estava assentada a ideia de “Comunidade Lusíada’? Ora, com isto Salazar
suscitou nos espíritos portugueses o mito do sebastianismo: a salvação nacional pas-
sava pela preservação de todas as raças e credos (desviando novamente o conflito de
classes sociais).

D. Sebastião também aparece de maneira inglória ao longo de Non, pois se
desconstrói a imagem do mito, além de buscar explicações de cunho pessoal para
justificar a derrota de Alcácer-Quibir, como fica visível em uma fala do Alferes
Cabrita.

Alferes Cabrita: É o senhor da sua vontade e todos que recomendam prudência, o rei

DOSSIÊ

78 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

taxa de covardes. Era assim impetuoso nosso rei D. Sebastião. Dizem que sofriam de
um corrimento, doença chamada gonorreia. E até culpavam disso o seu temperamento
voluntarioso e irascível. Mas a verdade é que era esse o seu caráter. Quando um rene-
gado português veio dar fé do ocorrido no arraial mouro, e dar-lhe conselhos vanta-
joso, o rei mandou correr com ele. O nosso D. Sebastião só queria glória. Glória sem
contradita, glória ganha a peito descoberto, sem ardis de tática, nem espécie alguma
de manhã no combater.

O soldado, neste momento, se vale da deformação do mito glorioso, quase
de forma grotesca. As imagens de batalha de Alcácer-Quibir em Non, também
revela essa face pouco lisonjeira dada ao mito do sebastianismo. As sequências
são confusas, com planos abertos, sem recorrer à velocidade ou diversidade de
ângulos tão comuns em filmes sobre guerras, uma vez que “o espetáculo aqui é
mais para o patético, com uma trilha predominantemente árabe para mostrar os
24 mil combatentes do lado lusos cercados pelos 87 mil (mais 25 mil atiradores)
mouros”. (CONTRERA, 2012, p.68-69). A monumentalização da História, dessa
feita, se dá forma carnavalizada.

Vale ressaltar que na filmografia de Manoel de Oliveira, que a ironia do
saudosismo do império português também aparece em outra obra. Em Filme
Falado
, lançado em 2003, temos alguns pontos muito próximos à estrutura de
Non. Ambos os protagonistas ocupavam a função de narradores e historiadores
que explicam os grandes momentos europeus do passado, com destaque para
os feitos de Portugal. A morte dos dois personagens também se torna inevitável
perante à trama:

A morte das duas portuguesas no final de Um Filme Falado relaciona uma alegoria liga-
da a certos eventos do século XVI, [...] a outros (fictícios) de 2001, com a morte da pro-
tagonista Maria Joana e a sua mãe na explosão do navio. Em Oliveira, teleologicamente
portanto, há uma ligação do Portugal do século XVI com a Revolução dos Cravos (Non)
e com a morte da história e do futuro desse Portugal parte de uma União Europeia que
não o reconhece muito bem (Um Filme Falado). (CONTRERA, 2013, p. 7)

Portanto, temos aqui não só a distinção de gêneros fílmicos de dois
documentários e um filme de ficção. Temos diferentes percepções acerca do
processo revolucionário: ora no calor dos acontecimentos, ora com um certo
distanciamento temporal. Assim, as películas referenciadas representam
exposições de mentalidades, que vai desde agentes revolucionários até a das
lembranças saudosistas, porém decadentes, de um Portugal que não existe mais.


Referências

DOSSIÊ

79 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

ABREU, Georgina. Torre Bela e a utopia louca de uma vida melhor’- dois estudos
transculturais. Diacrítica - revista do centro de estudos humanísticos, n.28/2, p.49-
61, Portugal Universidade do Minho - Centro de Estudos, 2014.
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
AUGUSTO, Cláudio de Faria. A Revolução Portuguesa. Coleção Revoluções do Século
XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
AVARES, Nathália Ourives. A “Revolução” dos Cravos e a narrativa cinematográfica:
as armas e o povo, 1975 e Capitães de Abril (2000). 2023. 68 f. Trabalho de Conclusão
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A Política Entre-As-Mulheres e a construção do espaço público em Garotas do Abc
(2003), de Carlos Reichenbach

The politics Between-Women and the construction of public space in Garotas do Abc
(2003), by Carlos Reichenbach

Felipe Biguinatti Carias1

https://orcid.org/0000-0002-3875-1067
http://lattes.cnpq.br/0050134969631779

Recebido em: 03 de setembro de 2024.
Revisão final: 24 de novembro de 2024.

Aprovado em: 10 de janeiro de 2025.

http://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21885  

1  Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre e doutor em
História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da mesma universidade. Membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Linguagens e Cultura (GEPEHLC). Tem experiência
na área de História e cinema, atuando principalmente nos seguintes temas: Crítica Cinematográfica;
Estética da Recepção e História do Cinema Brasileiro. E-mail: felip.ufmt@gmail.com

RESUMO: A vitória de Luiz Inácio Lula da
Silva em 2002 interrompeu o pacto sócio-
político brasileiro, tal acontecimento produziu
um ressentimento na classe média reacionária.
Carlos Reichenbach, no filme Garotas do ABC
(2003), elabora esse conflito simbólico por
meio da vida das operárias da indústria têxtil
Mazini. Diante disso, esta pesquisa analisou a
obra a partir do conceito de esfera pública para
Hannah Arendt e Roberto Da Matta, bem como
o ressentimento segundo Maria Rita Kehl.

Palavras-chave: cinema nacional, esfera
pública, violência, atmosfera.

ABSTRACT: The victory of Luiz Inácio Lula
da Silva in 2002 interrupted the Brazilian socio-
political pact, this event produced resentment
among the reactionary middle class. Carlos
Reichenbach, in the film Garotas do ABC (2003),
elaborates on this symbolic conflict through the
lives of the workers at the Mazini textile factory.
Accordingly, this research analyzed the film
through the concept of the public sphere as
discussed by Hannah Arendt and Roberto Da
Matta, as well as resentment according to Maria
Rita Kehl.

Key words: national cinema, public sphere,
violence, atmosphere.

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INTRODUÇÃO

Após a redemocratização, a democracia política (Ulysses Guimarães) e a
democracia social (Luiz Inácio Lula da Silva) estavam cindidas nas eleições de
1989. A primeira possuía o apoio institucional, mas pouco diálogo com o povo. A
segunda, apesar da aceitabilidade popular, não apresentava um bom desempenho
na articulação política institucional. Ulysses Guimarães, principal nome do centro
liberal, acumulou apenas 6% dos votos. Luiz Inácio Lula da Silva, representante da
esquerda, acumulou 47% dos votos válidos no segundo turno, número insuficiente
para derrotar os 53% dos votos válidos de Fernando Collor. Diante da derrota, o
Partido dos Trabalhadores (PT) alterou a estratégia do purismo para a estratégia
da conciliação com o intuito de sanar as limitações da democracia social. Nas
eleições de 2002, o partido conseguiu efetivar a aliança e alçou Lula à cadeira
presidencial. Todavia, a modificação institucional desestabilizou, em certa
medida, o projeto político neoliberal iniciado por Collor que suplantava a esfera
pública em nome da esfera privada. Alteração capaz de reacender pensamentos
reacionários integralistas e neonazistas na sociedade brasileira, evidenciando
que a transição institucional não representou necessariamente uma mudança
simbólica.

Aberta a sucessão presidencial de 1989, quando os partidos de esquerda apresentaram
candidaturas próprias, o candidato do centro, Ulysses Guimarães, principal nome
dos liberais da tradição republicana, se vê reduzido a 6% dos votos, e, em que pese
o bom desempenho eleitoral da esquerda, a direita vence com Collor, imprimindo
um desfecho inesperado para a transição. A ruptura não vinha, pois, pela esquerda,
mas pelo lado oposto. O discurso de posse de Collor, em 15 de março de 1990, uma
orgulhosa declaração de princípios do ideário neoliberal, significava que o coroamento
da transição teria como seu momento conclusivo uma clara ruptura com a tradição
republicana e com o tipo de valorização da esfera pública que ela representava. A
transição que, na interpretação da direita, até então se limitara à reconquista da
liberdade política, teria chegado, afinal, ao seu término, com a instauração da “mais
ampla e efetiva liberdade econômica” que seu governo viria a implementar.
Desde já, a categoria ruptura passa ser a palavra-chave da direita. Já eleito, às vésperas
de assumir a Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, em seu discurso
de despedida do Senado, em linha de continuidade com aquela declaração de Collor,
decretava o fim da era Vargas. Nesses dois momentos a mesma intenção: o processo
de transição se fecharia com a primazia do privado sobre o público, dissociado, de vez,
do seu impulso original, onde esteve presente a tentativa de combinar os ideais da
democracia política com os da democracia social. (VIANA, 2000, p, 19 – 0)

Com o objetivo de elaborar o impacto simbólico da redemocratização,
principalmente após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, analisaremos a obra

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Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach à luz do sentimento político da
época, dando ênfase no conflito entre esfera pública, acepção de Hannah Arendt,
e mandonismo patriarcal brasileiro, esfera privada. A antropologia comparativa
de Roberto Da Matta será fundamental para articular os efeitos do deslocamento
do eixo do poder político. A pesquisa parte de duas perguntas iniciais: Qual a
concepção de esfera pública mobilizada durante a redemocratização e como a
classe média brasileira se mobilizou para destruir o desenvolvimento incipiente
dessa esfera pública?

O projeto inicial de Reichenbach era criar dois longas-metragens narrando
um clube operário e uma indústria têxtil no ABC Paulista. Diante do grande
volume de material, modificou a proposta para seis filmes, tendo Garotas do ABC
como o primeiro com o título inicial Aurélia Schwarzenega. O projeto não obteve
o desenvolvimento esperado, o que levou a produção de um único filme com a
sintetização das histórias em Garotas do ABC.

Como Aurélia é a base inicial do filme, ela recebeu uma centralidade maior
do que as outras personagens. O nome e a estrutura carregam as contradições
dos anos 2000, um período de forte marcação identitária para a população negra,
mas, ao mesmo tempo, saturada pela influência cinematográfica estadunidense
devido ao fechamento da Embrafilme e o fortalecimento das distribuidoras
majors2 no Brasil. Tal contradição é exibida no jogo entre afirmação e ausência
de identidade na cena de abertura. No mesmo instante em que Aurélia define o
seu gosto pessoal por Schwarzenegger ao dançar nua em seu quarto saturado
de posteres do ator, ela exibe uma ausência de identidade ao não refletir sua

2  “As majors são as grandes distribuidoras internacionais, por exemplo, Miramax (distribuidora do
filme Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund); Universal Pictures, Warner Bros,
Walt Disney etc. Todavia, é importante destacar que a relação entre o cinema nacional e as majors
não é uma interação neutra. De acordo com artigo 3º da Lei do Audiovisual, as majors possuem o
controle da distribuição dos filmes brasileiros. Bruno Wainer (ex-membro da distribuidora Lumière e
fundador da distribuidora nacional Downtown Filmes (2005), faz o seguinte comentário sobre a pre-
sença das majors no Brasil em entrevista ao Franthiesco Ballerini. “Ao mesmo tempo, as distribui-
doras internacionais no Brasil têm a dúbia e inusitada missão de garantir a bilheteria dos filmes
nacionais e dos filmes de Hollywood. Explique de que forma esse delicado trabalho é feito, em
termos logísticos, todas as semanas
. A Lei do Audiovisual, que criou o artigo 3º e com isso entregou
às distribuidoras majors o controle da distribuição dos filmes brasileiros mais competitivos, foi o que
foi possível criar nos anos 1990, visto que naquela época não havia muita opção e ninguém aceitaria a
criação de uma nova Embrafilme. Observando a estratégia das majors em relação ao filme brasileiro,
noto que elas se comprometem com um número muito baixo de filmes nacionais por ano, no máximo
meia dúzia. Assim podem buscar uma acomodação de datas que não perturbe o lançamento do seu
produto prioritário, o blockbuster estrangeiro.” (BALLERINI Apud CARIAS, 2023, p. 19).

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imagem no espelho, mas apenas fotografias do astro.
A ausência de identidade da personagem, pelo menos inicialmente, é

importante para compreendermos a obra na sua completude, principalmente no
que diz respeito a presença dos neonazistas no filme. Diante do vazio identitário
nacional, cabe aos fascistas tentarem preencher a falta com o imaginário
integralista da década de 1930. Somente quando Aurélia se encontra como
indivíduo, reflexão que ocorre no espaço público ao compartilhar os problemas
com as suas amigas, que os fascistas, um deles é Fábio, seu namorado, perdem
força e mobilização social.

A obra é organizada por essa dinâmica, de um lado a esfera pública produzida
no tempo livre das operárias, tanto dentro quanto fora da fábrica de tecelagem
Mazini. Do outro, o pensamento xenófobo e excludente dos brancos. Cabe
destacar que não há um sentido prévio na esfera pública, elas conversam de
tudo, de casamento e sexo a religiosidade e exploração no trabalho. Em alguns
momentos as ofensas e brigas são inevitáveis, porém, resolvidas no próprio
espaço. Em certa altura do filme, Lucineide (Fernanda Carvalho Leite) começa
a implicar com todas as meninas no refeitório, mas é com Indalércia (Viviane
Porto) que a briga se eleva. Ambas se acusam de usuárias de drogas (cocaína
e maconha), Indalércia não suporta as ofensas e quebra um prato na cabeça de
Lucineide. O sangramento é expressivo, mas sem muita gravidade. O que marca
nessa cena é a preocupação de todas, apesar das desavenças, com o bem-estar
de Lucineide. A operária Paula, responsável por “cuidar” de todas as operárias,
solicita que Lucineide peça desculpas para Indalércia. As duas fazem as pazes
no vestiário da fábrica de ambiente iluminado. Logo em seguida a cena é cortada
para um local fúnebre com dois esqueletos em meio a terra. Há uma explosão e
visualizamos diversos operários masculinos trabalhando na pedreira do pai de
Salesiano. O personagem Salesiano aparece e afirma ver uma cena linda onde
“os “putos” trabalham para o seu futuro”. O contraste entre espaço democrático
iluminado e local cinzento da pedreira sintetiza os conflitos políticos elaborados
pelo filme.

A ala neonazista é representada pelos personagens Salesiano de Carvalho
(Selton Mello); Fábio (Fernando Pavão); Ruggero (Fábio Ferreira Dias), Alemão
(Milhem Cortaz) e Nicanor (Eduardo Sofiati). O grupo não suporta a liberdade e
autonomia das mulheres, localiza nelas e nos imigrantes o inimigo interno para

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justificar o fortalecimento da dominação e exploração3. Do ponto de vista da
tradição ocidental, seria o que Hannah Arendt argumenta sobre a substituição da
política pela História. Tendo em vista que a política possui duas características,
a liberdade do ser humano de recomeçar e a possibilidade de dialogar entre os
iguais no espaço público, no qual para os gregos era a Ágora na polis. Para suprimir
a política, o Ocidente retirou o diálogo entre os iguais e fortaleceu a lógica da
História progressiva como a única maneira possível de movimentação social.
Dentro da História progressiva, há os mais avançados e os menos avançados
temporalmente.

A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde
surge a política. A primeira é:
a) Zoon politikon: como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua
essência – conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-
-os-
homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe ne-
nhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece
como relação. Hobbes compreendeu isso.
b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado.
Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos
bem-sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state
os nature as a war of all Against all
, de Hobbes. É a religião de cada um contra todos
os outros, odiados porque existem sem sentido – sem sentido exclusivamente para o
homem criado à imagem da solidão de Deus. (ARENDT, 2022, p. 23 – 4).

Hannah Arendt conclui que a solução criada pelo Ocidente diante da ausência
da política foi a projeção de uma História universal, lugar capaz de produzir uma
história linear ao dissolver a pluralidade dos homens em um indivíduo-homem.

Do ponto de vista metodológico, a obra será interpretada a partir do conceito
de cinema e ideologia para Jean Patrick Lebel, e atmosfera e stimmung de acordo
com Hans Ulrich Gumbrecht. A proposta de Lebel é estabelecer uma interpretação
dos signos colocados em circulação e a ruptura com qualquer essencialismo
técnico ou narrativo como processo de historicização da obra. Diferente da teoria

3  Vladimir Safatle, no livro “O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indiví-
duo”, aponta como o Estado hobbesiano, base teórica para formação do Estado moderno, utilizou-se
do afeto medo para exercer a coesão social. E, para a efetivação do medo, é necessário a criação de
um inimigo interno para justificar o monopólio da violência. Tal concepção de Estado estrutura-se
entre a “norma” e os “anormais”, sendo que a norma sempre tem o monopólio da força para a “pro-
teção” da sua identidade. “Pois, se, de todas as paixões, a que sustenta mais eficazmente o respeito às
leis é o medo, então deveríamos começar por nos perguntar como ele é produzido, como ele é conti-
nuamente mobilizado. De forma mais precisa, como se produz a transformação do medo contínuo da
morte violenta, da despossessão dos bens, da invasão da privacidade, do desrespeito à integridade de
meus predicados em motor de coesão social. (SAFATLE, 2018, p. 16 – 7).

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“desconstrucionista” da “natureza” ideológica do aparelho técnico4, comum à
revista francesa Cinéthique, e da noção ideológica das formas de representação,
da revista Cahiers du Cinéma5. Enquanto forma de compreensão do espaço de
experiência6, Gumbrecht contribui ao deslocar a linguagem da condição de
representação para produção de presença. Para Gumbrecht, toda linguagem
carrega a presença do tempo, e ao passo que o espectador entra em contato com

4  Estamos de acordo com a crítica feita por Ismail Xavier ao Lebel no livro “O discurso cinemato-
gráfico: a opacidade e a transparência”, o autor apresenta uma visão ingênua sobre os instrumentos
técnicos produzidos pela ciência, defendendo uma neutralidade técnica. Segundo Xavier. “O exemplo
mais nítido desta discussão é fornecido pela crítica de Lebel à tese de Cinéthique sobre os efeitos
ideológicos do aparelho de base. Para Lebel, a câmera e o equipamento cinematográfico são produtos
da ciência e da técnica, sendo neutros do ponto de vista ideológico. (XAVIER, 2005, p. 156).
5  Lebel aponta a seguinte crítica às revistas. “Depois desta longa volta, parece-nos que nenhuma
forma cinematográfica – quer seja ao nível da <<desconstrução>>, do cinema directo, da montagem
ou da <<realização>> em geral – pode pretender ter significado em si mesma.
Mas, se é verdade que nenhuma destas formas ou processos estilísticos transmite um <<sentido>>
unívoco e privilegiado (dado uma vez para sempre), não é menos verdade que a significação (ou efei-
to ideológico) só se manifesta no cinema através das formas.
O erro está em proceder de uma maneira fixista para com estas duas realidades, uma vez que elas não
estão separadas uma da outra mas unidas numa relação dialéctica.
Com efeito, podemos agora dizer, como conclusão deste assunto, que estes processos ou figuras de
estilo só adquirem sentido devido à sua posição relacional em função do conjunto dos elementos que
formam o filme, tanto ao nível ideológico como estrutural. O efeito ideológico de cada forma provém
do lugar que ocupa na estrutura do filme, ao mesmo tempo que o efeito ideológico desta estrutura
é a resultante dos efeitos ideológicos das diferentes formas que a compõem. A importância relativa
de cada elemento em relação aos outros e em relação à estrutura do conjunto varia sensivelmente
segundo um jogo de determinações e de sobredeterminações que formam uma rede de mediações
extremamente complexa, através da qual tem interesse seguir o caminho do <<sentido>> de cada
filme.” (LEBEL, 1989, p. 83 – 4. grifo do autor).
6  Espaço de experiência na acepção de Koselleck. Para o autor, a linguagem produz um sentido
temporal capaz de projetar um horizonte de expectava. A reflexão cumpre o papel de romper com o
idealismo ou com a meta história, trazendo materialidade para o exercício analítico. Todo o imaginá-
rio do futuro é produto da relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Koselleck
faz a seguinte afirmação. “Evidentemente, o que esperamos para o futuro é delimitado de maneira
diferente daquilo que experimentamos no passado. Expectativas cultivadas podem ser ultrapassadas;
experiências realizadas, no entanto, são colecionadas. Por isso, o espaço de experiência e o horizonte
de expectativas não podem ser remetidos um ao outro de forma estática. Eles constituem uma dife-
rença temporal no presente, entrelaçando o passado e o futuro de modo desigual. Com isso, teríamos
definido uma característica do tempo histórico que, ao mesmo tempo, pode indicar mutabilidade.”
(KOSELLECK, 2014, p. 308). A premissa teórica do autor contribui na interpretação tanto das garo-
tas do filme, quanto dos neonazistas em relação às expectativas sobre a recém democracia.

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essa linguagem, ele sente a ambiência ou stimmung do tempo7.
Diante disso, analisaremos como Reichenbach elabora, a partir da intimidade

das garotas do ABC, a importância da liberdade de circulação no espaço urbano
como estímulo da política entre-os-homens. E como os neonazistas, adoradores
de Richard Wagner e odiosos da população nordestina, promovem o imaginário
da História e do homem único para justificar a sua suposta superioridade.

RESSENTIMENTO E VIOLÊNCIA NA CLASSE MÉDIA

O ressentimento, enquanto sentimento da época, é articulado na obra por
meio do fundo e da forma. A contraposição entre os espaços dos grupos expõe
essa dinâmica. Enquanto na ala democrática não há uma liderança central e o
espaço público, seja na fábrica, na rua ou no Clube Democrático, é iluminado
e filmado em plano aberto; no grupo neonazista a liderança está no Salesiano
e o espaço de filmagem, bar Bilhar Modelo e local externo em que Fábio leva
Aurélia para as relações sexuais, é fúnebre e fétido. O contraste serve para criar
a ambiência, motivo da podridão, do ressentimento da classe média.

A cena na qual apresenta o bar Bilhar Modelo é filmada por uma câmera
fluida e em plano sequência da visão subjetiva de Fábio. Apesar do líder do grupo
ser Salesiano de Carvalho, é por meio de Fábio que o espectador conhece o grupo
neonazista. Em ambos os cenários a câmera transita livremente com o intuito de

7  Gumbrecht define stimmung da seguinte maneira. “Na já mencionada oposição entre o descontru-
cionismo e os estudos culturais, ambas as partes fazem afirmações sobre a ontologia dos textos em
termos do paradigma da “representação”. Pressupõe-se que os textos “representam” uma realidade
extralinguística (ou, dito de outro modo, “queiram” fazê-lo, mesmo que tal seja impossível). A princi-
pal diferença entre o descontrucionismo e os estudos culturais têm a ver com a rejeição ou a afirmação
da capacidade que os textos têm de se ligar a outras coisas. Ao contrário, uma ontologia da literatura
que depende de conceitos resultantes da esfera do Stimmung não põe o paradigma da representação
no centro da questão. “Ler com a atenção voltada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à
dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade
física – algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam
necessariamente envolvidas. De outro modo, seria impensável que a declamação de um texto lírico,
ou a literatura em voz alta de uma obra em prosa, com ênfase na componente rítmica, alcançasse e
afetasse mesmo aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão. De
fato, existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung.” (GUMBRECHT, 2014, p. 14).

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criar uma atmosfera realista8 e de imersão no espaço. Primeiro visualizamos o
letreiro do bar ao estilo de motel ao lado direito do plano. Logo em seguida corta
para uma escadaria escura e suja onde Fábio é filmado pelas costas adentrando
ao espaço. Ao chegar ao local, todos os membros do grupo são apresentados
nesta ordem, Ruggero, Alemão, Salesiano e Nicanor. Todos o humilham por estar
se relacionando com uma mulher negra, ou como dito por eles, uma “negrinha”. A
piada gira em torno do desejo de gravidez de Aurélia.

Fineza (Paulo Bordhin), o garçom do bar, é o único a consolar Fábio. Há uma
complexidade maior em Fábio, desde o início o personagem demonstra incômodo
com os pensamentos de Salesiano. Por outro lado, é agressivo quando Fineza
tenta consolá-lo. Em seguida, retorna a imagem do letreiro do bar como forma de
afirmação da identidade, Salesiano entra em frente ao letreiro e argumenta que o
irmão do Ruggero foi dispensado da empresa Wulf. Após o comentário, Ruggero
afirma, em posição de lamento, “que os 4 anos de empresa não valeu de nada,
foi substituído por causa de dois “Pernambucanos””. O personagem não expõe
nenhum embasamento no seu comentário, apenas localiza um inimigo para
despejar o seu ódio e frustração. O grupo, diante da situação racista, organiza um
atentado em um bar chamado “Cantinho do Nordeste”, localizado em Diadema.
Nota-se que o diretor relaciona estilo de bar, “habitat natural” dos grupos, com a
posição social de cada um.

Observar a estrutura dos personagens contribui no entendimento do
ressentimento. Salesiano, por exemplo, faz questão de expor o conhecimento
de música clássica e filosofia, mesmo completamente estereotipado, como
argumenta o professor (líder sindical André Luiz Oliveira interpretado por Dionisio
Neto), para tentar criar o imaginário de legitimidade do espaço da intelectualidade
de sua classe, qualquer grupo que almejar “ocupar” esse lugar, será tratado com
ódio e violência9. Ruggero e os demais personagens da ala reacionária operam
com a mesma lógica.

8  O realismo escolhido pelo diretor não tem a ver com a busca de uma verdade no cinema, mas um
meio de sustentação de uma hipótese, neste caso, a propagação do pensamento neonazista após a
vitória de Lula.
9  Jessé Souza, no livro A Elite do Atraso: Da escravidão a Lava-Jato, argumenta que até a vitória do
Lula em 2002, havia um pacto social brasileiro onde a população negra era responsável pelo trabalho
braçal, a ralé social; a classe média pela educação intelectual nas Universidades e a Elite pelo sistema
financeiro. A modificação desse pacto social a partir de 2002 levou ao ressentimento e ao ódio de
alguns grupos, principalmente da classe média ao ver a “ralé” nas Universidades.

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Durante a organização do atentado, visualizamos os quatro personagens em
primeiro plano e diversos cartazes em segundo plano, imagens sintetizadoras
da ambiência do espaço. O primeiro cartaz é de uma mulher branca de biquini
em posição erótica; o segundo exibe uma imagem sensual da atriz Vera Ficher e,
por último, o cartaz do filme Django (1966), de Sergio Corbucci10. Nota-se nessa
mise-en-scène a erotização do corpo feminino e da violência, ambas somadas
ao sentimento de justiceiro, tropo narrativo do filme Django. A cena descrita
apresenta duas concepções de ressentimento nas quais dialogam com a acepção
de Maria Rita Kehl.

No caso dos personagens, a nível nacional, há o ressentimento na política,
muito comum nas democracias liberais oscilantes entre a promulgação de
direitos e a permanência endógena da desigualdade social. A privação do
direito prometido produz um sentimento de “direito roubado”. Porém, ele não
foi roubado por um grupo ou pessoa individualmente, mas pela própria lógica de
funcionamento do capitalismo11 experienciado no século XXI. Antes de definir o
ressentimento nas democracias liberais, a autora marca uma diferença com os
regimes totalitários ou em sociedades fortemente estratificadas. Para Kehl, a
vida nua não gera ressentimento, uma vez que retira do sujeito a capacidade de
produzir o novo.

10  Laura Mulvey no texto “Prazer Visual e cinema narrativo”, disponível no livro “A Experiência do
cinema”, organizado por Ismail Xavier, analisa o cinema clássico hollywoodiano e as diferentes for-
mas de olhar sobre o corpo feminino, ora a mulher aparece como ameaça, por isso deve ser domestica-
da, ora como sexualizada, motivo de legitimação da violência. “A magia do estilo de Hollywood, em
seus melhores exemplos (e de todo o cinema que se fez dentro de sua esfera de influência), resultou,
não exclusivamente mas num aspecto importante, da manipulação habilidosa e satisfatória do prazer
visual. Incontestado, o cinema dominante codificou o erótico dentro da linguagem da ordem patriar-
cal dominante. E foi somente através dos códigos do cinema bastante desenvolvido de Hollywood
que o sujeito alienado, dilacerado em sua memória imaginário por um sentido de perda, pelo terror de
uma falta potencial na fantasia, conseguiu alcançar uma ponta de satisfação através da beleza formal
desse cinema e do jogo com as suas próprias obsessões formativas.” (MULVEY, 2018, p. 357).
11  Ladislau Dowbor, no livro “A era do capital improdutivo”, apresenta as fragilidades dos Esta-
dos-Nacionais diante da violência global do mercado financeiro. A consequência da disputa injusta
é a insegurança populacional. De acordo com Dowbor, “Faz parte também desta crise civilizatória o
desajuste nos espaços. A economia se globalizou, com corporações transnacionais e gigantes finan-
ceiros operando em escala mundial, enquanto os governos continuam sendo em grande parte nacio-
nais e impotentes frente aos fluxos econômicos dominantes. Os instrumentos políticos de regulação
permanecem fragmentados em cerca de 200 países que constituem o nosso planeta político realmente
existente. Com a desorganização que disso resulta, populações inseguras buscam soluções migrando
ou apoiando movimentos reacionários que julgávamos ultrapassados.” (DOWBOR, 2017, p. 10).

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A vida nua produz uma espécie grave de abatimento e resignação, mas não o
ressentimento. Este é o afeto característico dos impasses gerados nas democracias
liberais modernas, que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade
social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada.
Os membros de uma classe ou de um segmento social inferiorizado só se ressentem de
sua condição se a proposta de igualdade lhes foi antecipada simbolicamente, de modo
a que a falta dela seja percebida não como condenação divina ou como predestinação
– como nas sociedades pré-modernas – mas como privação. São os casos em que a
igualdade é “oficialmente reconhecida”, mas não obtida na prática” que produzem o
ressentimento na política. É preciso que exista um pressuposto simbólico de igualdade
entre opressor e oprimido, entre rico e pobre, poderoso e despossuído, para que os
que se sentem inferiorizados se ressintam. (KEHL, 2015, p. 21 – 2).

O movimento de promulgação simbolicamente antecipada dos direitos
sucedido por um sentimento de privação do direito prometido, base do
ressentimento, faz parte da história das sociedades liberais. Terry Eagleton
comenta essa questão do ponto de vista da esfera pública e da crítica no livro
A função da crítica. De acordo com o autor, a elite cultural floresceu mediante
a separação entre Estado e sociedade civil, justamente por proporcionar a
livre circulação de ideias e mercadorias. Porém, a partir do momento em que a
elite cultural se tornou mais exclusiva, ela passou a ver a esfera pública como
ameaça. Se no século XVIII há um fortalecimento da esfera pública através da
promulgação de direitos, no século XIX os mesmos direitos sofrem uma privação
de circulação12.

De acordo com os personagens neonazistas, o seu direito ao trabalho foi
privado pela presença dos “pernambucanos”. A única forma de garantir a efetivação
do direito simbolicamente antecipado seria pelo uso do ódio contra o “inimigo”
interno, lógica que retoma ao sentimento medo como coesão social apresentado
por Safatle. Desse ponto de vista, o atentado violento ao espaço público (bar
Cantinho do Nordeste) e o espancamento dos pernambucanos surgem como ato

12  Terry Eagleton faz o seguinte apontamento: “Na verdade, porém, as ideologias da esfera pública e
da elite cultural estão em desacordo: desde Coleridge, a elite cultural eleva-se por sobre as ruínas da
esfera pública clássica como uma reorganização “vertical” das relações “horizontais” de poder dessa
mesma esfera. A academia de Arnold não é a esfera pública, mas uma forma de defesa contra o pú-
blico vitoriano. Seus apelos à intervenção do Estado nas questões culturais – ao Estado como corpo-
rificação da razão legítima – refletem o desaparecimento da clássica economia capitalista liberal num
momento em que o Estado começa a mergulhar fundo na esfera da bolsa de mercadorias, no período
de depressão econômica das últimas décadas do século XIX. Essa intervenção do Estado, como diz
Habermas, é fatal para a esfera pública clássica, que floresceu exatamente a partir de uma separação
entre o Estado e a sociedade civil. Com a moderna “estatificação” da sociedade e a socialização do
Estado, e com a transgressão das tradicionais fronteiras entre o privado e o público, o espaço da esfera
pública clássica se reduz rapidamente.” (EAGLETON, 1991, p. 56 – 7).

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92 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

de justiça, esfera da segunda acepção de ressentimento de Kehl. Muito comum
nos filmes maniqueístas hollywoodianos, o protagonista geralmente não possui
um dilema psicológico capaz de interromper o moralismo das suas ações. Dentro
da lógica do ressentimento, o outro por excelência é o culpado de sua privação. O
mundo político-econômico nacional e internacional ou os pensamentos internos
não influenciam na dificuldade de acesso aos direitos. O personagem ressentido,
em certa medida, pertence a certa dramaturgia popular de qualidade mediana.
Ausenta-se de sua estrutura qualquer conflito de consciência, como em Hamlet,
ou o tormento do arrependimento presente em Édipo e MacBeth.

O ressentido não duvida de si mesmo; não coloca em questão a justeza de seus atos e
suas motivações. Do ponto de vista do ressentimento, quem está em questão é sem-
pre o outro. Muito da filmografia maniqueísta norte-americana tem no ressentimento
o ponto crucial, explicativo (revestido de uma compreensão “psicológica”, pseudoin-
teligente) para os atos de um personagem. É o personagem violento cuja maldade se
explica quando se revela que teria sido abusado na infância, por exemplo. Ou o poli-
cial vingativo que se arroga direitos acima da lei, uma vez que teria sofrido a perda de
um ente querido nas mãos de um criminoso. O ressentimento, nesse caso, reveste o
arbítrio individual e a violência, grandes recursos de bilheteria, de uma superioridade
moral aparentemente inquestionável. Sempre se há de encontrar um culpado conve-
niente para inocentar o herói ressentido. (KEHL, 2015, p. 39).

A organização do atentado dos justiceiros ressentidos ocorre por meio
do plano sequência, estilo constante no filme. A técnica provoca uma maior
ambiência, como se o espectador fizesse parte daquele universo a partir do
olhar da câmera. Os significantes colocados em circulação, como se verá na
recepção do filme mais adiante, carregam a atmosfera do tempo de produção.
Há um elemento de presença na imagem, como afirma Hans Ulrich Gumbrecht no
livro Atmosfera, ambiência, Stimmung. Porém, isso não quer dizer que o diretor
tem a capacidade de representar a realidade, mas elaborar que toda produção
de significante carrega na sua tessitura a complexidade do tempo. A circulação
da câmera entre os personagens na busca de um realismo, mistura entre ficção
e realidade da época, segundo os trabalhos de Esther Hamburger, somado ao

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discurso integralista de Salesiano de Carvalho13, dimensionam na recepção um
sentimento da época de produção.

Por exemplo, durante a mesma cena no bar Bilhar Modelo, Salesiano faz
o seguinte pronunciamento: “A lei acima do homem, a ordem acima da lei. O
direito acima da ordem, e o Brasil acima de tudo.” Após a fala, Alemão argumenta
eufórico “Abaixo ao caos.” Nicanor desanimado com a situação, fala “A baianada
é brasileira”. Salesiano completa “Só que é de segunda classe, porra.” Dentro do
imaginário do grupo, como a democracia liberal não garantiu os seus direitos,
agora cabe a utilização da violência e da lógica antidemocrática para conquistar
o objeto privado, pensamento ressentido que permanecerá na cinematografia
brasileira, principalmente no filme Tropa de Elite: O inimigo agora é outro (2010),
de José Padilha. Ou seja, Reichenbach não exibe uma realidade, mas diferentes
afetos que circulavam no período.

De forma irônica, durante o atentado contra os trabalhadores, Reichenbach
aponta como ninguém dentro do grupo se entende ou reconhece alguma
inteligência neles. Na primeira parte, Alemão e Ruggero espancam os
trabalhadores de modo que o espectador visualiza somente as sombras. Durante
a cena, Salesiano fala para Nicanor não sair do carro porque os dois são uns
ignorantes violentos desconhecedores de qualquer estratégia. Intelectual seria
ele, munido da estratégia maior de aniquilamento total dos imigrantes por meio
da explosão de dinamites da pedreira do seu pai. Porém, quando saem do carro
para explodir o bar com a dinamite, Fábio pergunta o que ele poderia escrever na
parede. O pseudointelectual, destituído de qualquer ideia, fala “Sei lá, mano, põe
aí: “Baianos, go home’. Sei lá. Seja criativo.” A mistura entre o inglês e o português
aumenta a sátira da ignorância do grupo. Por outro lado, a desorganização

13  Lucas Rodrigues Pires faz o seguinte comentário no texto “As garotas do Cartão”. “O filme se
torna mais atual quando se lê sobre mortes de mendigos e ataques de skinheads no metrô. Sem contar
os Carecas do ABC, inspiração explícita para o bando de neofascistas de Salesiano. Reichenbach quer
demonstrar que a xenofobia e o racismo não apresentam fundamento nenhum. Por isso coloca perso-
nagens boçais como todo o grupo neonazista, alguns em crise (como Fábio, o namorado de Aurélia,
dividido entre os conselhos dos amigos racistas e o amor pela namorada negra, e o contador, que
visivelmente é um nerd misógino afetado mentalmente). Da turma deles, apenas Salesiano se salva,
mas dentro de sua derrota e solidão. Seu discurso final, assim como quase todos no filme, foi tirado
da obra A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, um dos autores que influenciaram Hitler, e
mostra um indivíduo já louco, isolado, sem mais ouvintes (a câmera reitera isso ao filmar de baixo
para cima e girando ao seu redor). Ao final de tudo, um livro de Plínio Salgado, fundador do movi-
mento fascista nacional nos anos 30, o Integralismo, desfaz-se nas ondas do mar enquanto Salesiano
profere seu epílogo.” (PIRES, 2004).

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tosca analisa um problema série que ganhará força no futuro, mas Reichenbach
percebeu no instante em que surgiu, como aponta Wallace Andrioli, no texto
Garotas do ABC (2003) Classe operária de carne e osso.

Mas Reichenbach nunca foi um cineasta de adesão fácil e visões totalizantes ou
hegemônicas da sociedade brasileira. Aqui, apesar da euforia pelo momento do
país, ele consegue diagnosticar uma espécie de mal-estar subterrâneo que ecoa no
presente. Por mais que “Garotas do ABC” carregue nas tintas do ridículo ao lidar com
personagens de extrema-direita, o filme dedica uma atenção a eles que não é gratuita.
À exceção do líder do grupo, interpretado por Selton Mello, os demais são homens
pobres, fodidos. O espaço que frequentam, um bar decadente, é cenário típico dos
filmes do diretor, habitat das figuras boçais que tanto aprazem ao cinema marginal.
Há, portanto, interesse real de Reichenbach nesses supremacistas toscos e patéticos.
Mais recentemente, Fellipe Gamarano Barbosa fez análise semelhante no irregular
“Domingo” (2018), identificando a presença de forças reacionárias, mas adormecidas,
no momento da ascensão do PT ao poder. Essa, no entanto, é uma leitura retrospectiva,
construída em meio à emergência irresistível do bolsonarismo – logo, relativamente
fácil de ser feita. Reichenbach conseguiu perceber a existência dessa extrema-direita
boçal enraizada nos marginais sociais no auge da euforia lulista. (ANDRIOLI, 2020).

O ódio ao PT e a qualquer grupo que remeta ao Nordeste permanece no
imaginário brasileiro por conta da mudança do pacto social no qual remete a
América Portuguesa, a divisão entre espaço privado (casa) e espaço público (rua)
debatida por Roberto Da Matta no livro Carnavais, Malandros e Heróis, tema do
próximo tópico.

ESPAÇO PRIVADO E O PACTO SOCIAL BRASILEIRO

A análise de Roberto Da Matta possibilita interpretar tanto o filme quanto o
período, uma vez que o autor parte dos ritos sociais e simbólicos para entender o
contexto brasileiro. Para a teoria de Da Matta fazer sentido, é necessário retornar
a pergunta inicial. Como compreender a permanência e a radicalização da
violência na esfera simbólica após a mudança institucional do autoritarismo com
a promulgação da Constituição Federal de 1988? Segundo Da Matta, o homem
brasileiro sempre separou o universo social em dois ambientes, a esfera da rua,
local da desordem, do imprevisível e inconstante; e a esfera da casa, universo
controlado pelo poder central masculino. Para compreender a dicotomia casa e
rua na sociedade brasileira, o autor compara o carnaval de Nova Orleans com o
carnaval brasileiro. Segundo a sua interpretação, o carnaval de Nova Orleans, e

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grande parte das instituições ritualísticas dos EUA, como clubes e sociedades
secretas do tipo Ku Klux Klan, tem o objetivo de marcar uma separação interna
em uma sociedade considerada igualitária. Ou seja, para burlar e destruir a
igualdade institucional, a sociedade civil cria grupos fechados onde apenas os
escolhidos podem fazer parte, seja na esfera profissional e econômica, seja na
esfera educacional e universitária.

Pois, de fato, a essência do racismo, das associações exclusivistas e do Carnaval de
Orleans (com suas krewes aristocráticas) nada mais parece ser do que uma tentati-
va para recolocar um princípio de diferenciação num meio social onde o credo oficial
o excluiu legal e juridicamente. É precisamente porque o credo igualitário é forte e
onipresente que a hierarquia tem que se insinuar de modo injurioso e, como diz Myrdal,
pervertidamente: por meio de clubes fechados, de sociedades secretas e do Carnaval
que, subitamente, apresenta o meio social americano de modo totalmente ordenado,
com cada classe e grupo racial no lugar que ocupam no eixo político-econômico (DA
MATTA, 1983, p. 132).

Se na experiência americana há um fortalecimento da igualdade por meio
das instituições, mas uma segregação por meio dos clubes secretos. No Brasil,
apesar do acesso livre da população nos espaços institucionais, como o Carnaval,
o núcleo, enquanto espaço de decisão, fica restrito às esferas particulares da
família e da cor. O carnaval é de todos, mas a administração, o controle dos clubes
e da circulação do dinheiro, é de um pequeno grupo.

É, a meu ver, essa forma organizacional que permite a enorme flexibilidade exibida
pelas escolas de samba, possibilitando a criação de um campo social próprio, especial,
onde se podem congregar ricos e pobres, pretos e brancos, dominantes e dominados.
A escola de samba parece ter uma dupla ordem organizatória. No meu centro existe
um núcleo de pessoas fortemente relacionadas entre si pelo parentesco, pela residên-
cia, pela cor e pelas condições gerais de existência social. São os “donos” ou os “pais”
da agremiação: seus fundadores, criadores e sustentadores morais. Agora, em torno
desse centro, existe uma outra ordem muito mais flexível e difusa, compondo uma área
voltada para o mundo exterior. Aqui, as pessoas entram e saem, não tendo o mesmo
tipo de lealdades básicas do que as que estão no centro da instituição. (DA MATTA,
1983, p. 103 – 4).

A comparação cumpre um papel fundamental para entender a especificidade
do Brasil e o impacto da alteração do eixo do poder. Enquanto o poder estava
centrado nas mãos de poucos, não havia problema de em alguns espaços houver
a interação entre brancos e negros, reforçando o mito da democracia racial.
A questão só se torna um problema quando as periferias começam a ocupar a
centralidade do poder, neste caso, com a vitória de Lula em 2002. A partir desse
momento, o pacto social começa a sofrer fissuras e atormentar o imaginário dos

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conservadores. Dentro da lógica racista brasileira, a vitória do PT representou a
invasão da casa (esfera privada da ordem) pela rua (esfera pública da desordem).
Arnaldo Jabor, no filme Tudo bem (1978), já havia comentado sobre esse medo. A
obra produz uma alegoria do Brasil a partir da “invasão” de diversos trabalhadores
a uma casa de classe média decadente, onde para a sua reestruturação requer o
estabelecimento de um pacto de subserviência às multinacionais estadunidenses.
Para a efetivação do plano, é necessário apagar qualquer vestígio da presença
do povo durante a reforma da casa. A obra cumpre uma função dupla no filme,
apresentar o povo e possibilitar a invasão por meio da reforma da casa/Brasil
para receber os americanos, porém, ao final, os vestígios do povo precisam ser
excluídos, similar a história de Brasília contada no documentário Conterrâneos
Velhos de Guerra
(1992), de Vladimir Carvalho. Ismail Xavier, no livro O olhar e a
Cena
, faz a seguinte interpretação sobre a obra de Jabor.

A questão aqui é a contenção dos “excessos populares”. A reforma gera
a gradual invasão do espaço familiar pelas figuras do trabalho, as classes
subalternas. Sua função é preparar o cenário para a festa final em homenagem
ao americano, ocasião em que a família, cumprindo seu ritual de classe, vai
apagar os sinais dessa presença de povo e trabalho. No processo, desenha-se a
tradicional imbricação de intimidades entre patrões e empregados, tudo dentro
da economia informal, dos salários precários compensados por cortesias que
fazem o orgulho da família como gente “legal”. (XAVIER, 2003, p. 333).

A diferença entre uma obra e outra, apesar de ambos os protagonistas
serem adeptos do movimento integralista, gira em torno da efetivação ou não da
exclusão dos rastros da população. No caso de Garotas do ABC, em diálogo com
a vitória de Lula em 2002, em vez de apagar os rastros, há a ocupação do espaço
de poder que, como comenta Da Matta, permaneceu por tanto tempo intocável.
Toda essa gama de elementos contribuiu para reforçar o ressentimento dos
neonazistas. O ponto mais alto de ódio dos ressentidos acontece quando invadem
o Clube Democrático, símbolo do espaço público das trabalhadoras.

A presença do afeto democrático no espaço do clube não circula de maneira
idealizada, mas como um sentimento aberto onde todos podem viver livremente,
de conservadoras a prostitutas, apesar dos comentários moralistas. Há uma
aproximação com os cafés da França do século XVIII e a formação da rua como
espaço público moderno, porém, destruídos em momento de ascensão da esfera
privada. A alegoria desse conflito moderno das democracias liberais aparece no

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filme nas cenas paralelas entre o Clube e o Bilhar. No primeiro a alegria, a dança e
o diálogo são afetos constantes, diferente do bar Bilhar, onde a briga, o alcoolismo
na imagem de Sofia (Vera Mancini) e o autoritarismo são práticas comuns. O
contraste é tão forte que eles resolvem, a pedido de Fábio para buscar Aurélia, ir
ao Democrático e espancar a todos, ou seja, destruir o espaço público. Marshall
Berman, ao interpretar a modernização de Paris a partir de Baudelaire, articula
uma reflexão que pode dialogar com a situação narrada no filme. Haussmann, ao
reorganizar a arquitetura urbana de Paris na época de Napoleão III, foi obrigado
a pavimentar as ruas, por exigência do imperador, com macadame. A estrutura
mostrava-se inadequada, pois, produzia muita lama durante a chuva e muita
poeira na seca, dificultando a circulação na cidade.

Com isso, a vida dos bulevares, mais radiante e excitante que toda a vida urbana do
passado, era também mais arriscada e ameaçadora para as multidões de homens e
mulheres que andavam a pé.
É esse, pois, o palco da cena moderna primordial de Baudelaire: “eu cruzava o bulevar,
com muita pressa, chapinhando na lama, em meio ao caos, com a morte galopando
na minha direção, de todos os lados”. O homem moderno arquetípico, como o vemos
aqui, é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozi-
nho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas.
(BERMAN, 2007, p, 190).

A tentativa de sufocar o exercício democrático é iniciado com o atentado
violento do grupo de Salesiano; o deslocamento ocorre como um cortejo militar. A
cena retoma a leitura de Da Matta sobre a moralização da rua por meio da marcha
militar como forma de manutenção do poder14. A trilha sonora do cortejo é uma

14  Roberto Da Matta apresenta a seguinte reflexão: “É, então, no centro da cidade que se realizam
os desfiles militares. No centro, que é retomado pela ordem e emoldurado de maneira cívica e mo-
ralista, perdendo assim sua moldura diária, dominada pelas transações econômicas altamente indi-
vidualizantes. Nas paradas, os personagens são as autoridades que, paradas num palanque, recebem
as “continências” dos soldados. O foco é a bandeira e os símbolos nacionais, encarnados também
em pessoas que ocupam cargos sagrados na estrutura de poder do Estado. A rígida separação entre o
povo massificado, de um lado, e de outro as autoridades e os soldados a elas associados revela bem
o esqueleto e o drama de uma sociedade na sua vertente mais autoritária, quando a rua e a praça são
tomadas do povo e passam a pertencer aos soldados que, armados e fardados, estão renovando seus
laços de lealdade para com as autoridades. (DA MATTA, 1983, p. 83).

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sinfonia de Richard Wagner como reforço15 do caráter neonazista. A confusão
criada pelo grupo não tem a intenção, dentro da narrativa fílmica, de afirmar
a destruição abrupta do recém espaço público, mas dizer que a democracia
incipiente terá que conviver com uma ala antidemocrática ávida pelo seu fim.
Ao final da obra, durante o rompimento de Fábio com Salesiano, visualizamos
nas costas do líder o sigma, símbolo do integralismo, ao estilo de M, O Vampiro
de Dusseldorf (1931), de Fritz Lang. A cena faz uma homenagem ao filme, como
também afirma a permanência da memória histórica do integralismo no presente.
Apesar da interpretação cômica dos neonazistas, Carlos Reichenbach não se
furta de apontar os problemas de ódio no passado, presente e futuro16.

15  De acordo com Da Matta, há três rituais relevantes na sociedade brasileira, o reforço, a inversão
e a neutralização. As práticas ritualísticas, como o “você sabe com quem está falando”, está na esfera
do reforço da posição do poder; já o carnaval, ao trocar as posições sociais, está na esfera da inversão.
Por último, a neutralização, se manifesta em locais de gestos controlados, apesar de ocorrer a inversão
e o reforço do poder, por exemplo, a missa. Há a inversão entre Deus/homens, mas sem questionar
ou reforçar o poder.
16  Gilberto Silva Jr. No texto “Crítica de ‘Garotas do ABC’, estabelece a seguinte interpretação
“Uma atenção especial deve ser direcionada à personagem Salesiano de Carvalho (Selton Mello) e a
seu grupo neo-fascista. Apesar de nunca minimizar o risco representado por tais figuras, o filme não
deixa de destacar o absurdo e o ridículo por traz deles. Dotado de condição financeira privilegiada e
formação universitária, Salesiano vai encontrar eco a suas idéias elitistas e discriminatórias somente
entre seus companheiros derrotados do salão de sinuca: um nerd recalcado, dois operários desempre-
gados e de cabeça fraca e um neurótico depressivo. E mesmo esses o vêem como um descontrolado,
um Loose cannon, como dizem os americanos. Carlão por vezes os retrata de forma quase cômica
– os operários aparecem se estapeando como os Três Patetas – mas essa utilização de humor é uma
forma de escarnecer tais personagens através do deboche, dentro de um espírito “anarco-libertário”
que o diretor proclama para seu filme. Esses não deixam de ser apresentados como um bando de
incompetentes, haja visto a forma como são praticamente enxotados em sua invasão ao Clube Demo-
crático. Mas mesmo debochando, o cineasta não deixa de estar atento à ação nociva de tais grupos
e a sua proliferação com um discurso que se apropria de intensificação das diferenças sociais para
difundir o ódio. (SILVA, 2002).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Reichenbach alcançou uma repercussão baixa no público geral e
média na crítica especializada17. O tema do filme, embora estivesse em alta como
comenta Andrioli18, não era atrativo ao público geral, uma vez que as atenções
estavam voltadas aos blockbusters por motivo de monopólio na distribuição. Para
além da questão da lógica de mercado, Garotas do ABC, de acordo com a crítica,
não obteve uma repercussão satisfatória devido a precariedade dos atores nas
atuações naturalistas. Chico Fireman, ao analisar a produção, argumenta que
Reichenbach possui grande experiência como diretor de cinema, porém, continua
com o hábito de “selecionar atores muito mal”.

Garotas do ABC é filme cheio de problemas. O maior deles talvez seja perceber ter
sido concebido de uma forma ingênua, quase primária. Carlos Reichenbach, do alto de
sua experiência como cineasta, continua com o péssimo hábito de selecionar atores
muito mal. Quase todos os novatos ou desconhecidos são muito ruins, com atuações
flagrantemente fracas, porém levadas a sério (ou ignoradas em sua precariedade)
pela direção. Selton Mello, por outro lado, compõe um personagem com tanto exagero
que se perde na tentativa de profundidade. A qualidade das performances prejudica
muito a intenção do filme, que parece ser a de estabelecer um mosaico de pequenos
personagens do ABC. (FIREMAN, 2004).

A interpretação de Fireman possibilita perceber a relevância da atuação
naturalista enquanto parâmetro analítico da época, muito influenciado pelas
produções e festivais estadunidenses. Tanto Ruy Gardnier quanto Reichenbach
argumentam as problemáticas de um tempo no qual ao invés de analisar a obra
pelo que ela é, interpretam a partir do que ela deveria ser do ponto de vista da
lógica de mercado.

17  Público – 10.746 espectador. (BALLERINI, 2012, p. 290).
18  O crítico faz a seguinte contextualização do filme. “Há um componente subversivo no próprio
princípio de “Garotas do ABC” (2003). Ao localizar o enredo no ABC Paulista e colocar operárias
como protagonistas, Carlos Reichenbach abre diálogo com todo um conjunto de filmes que, realizados
entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, se engajaram no registro do nascente “novo sindicalismo”
brasileiro, nessa mesma região. “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” (1979), de Roberto Gervitz e
Sérgio Toledo, “Greve!” (1979), de João Batista de Andrade, “Linha de Montagem” (1982), de Renato
Tapajós, “ABC da Greve” (1990) e “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), de Leon Hirszman, aderiram
aos valores e bandeiras desse movimento, tomando-o como uma força de combate à ditadura militar,
naquele momento ainda vigente, e também renovaram a esperança nos trabalhadores como agentes
de transformação social, adormecida no cinema de esquerda desde o golpe de 1964.” (ANDRIOLI,
2020).

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Talvez valha como valor de posição de um outro status internacional da figura dele,
talvez seja por isso que ele tenha aceitado, ou talvez porque tinha coisas que lhe
interessavam de fato, esteticamente, para trabalhar. Agora, a gente passou pelo
olhar do público, pela expectativa de público e o que um filme significa em relação ao
público, mas uma coisa decisiva esse ano me pareceu também, tanto em relação ao
público em geral como ao público especializado, se dar nesse aspecto da imprensa e
da crítica, sobretudo com relação ao filme do Carlão, Garotas do ABC, que foi recebido
mesmo pelo público mais sofisticado, não só da crítica como de um típico espectador
cinéfilo, como já se falou aqui, como se fosse um filme cm más atuações e esquisito,
quando ele nunca teve a idéia de ser um filme com atuações naturalistas. E o que me
choca nessa opinião avalizada, de críticos, é o fato de que eles não sabem mais olhar
para um filme que não tem interpretações naturalistas. (GARDNIER, 2005).

Ao longo da obra, nota-se uma pluralidade de referências cinematográficas,
de Spike Lee a Lucio Fulci. Há no filme uma preocupação com a circulação
dos significantes em vez de uma construção de representação através da
performance naturalista. Reichenbach não estava necessariamente interessado
em representar a vida das operárias ou dos neofascistas, mas sentir do ponto
de vista simbólico a mudança de comportamento e ambiência, na acepção de
Gumbrecht19, após a vitória do líder sindical. A proposta do artigo foi analisar a obra
para compreender como Reichenbach sistematizou essa leitura simbólica, os
sentimentos que proporcionaram o acesso dos trabalhadores ao espaço público,
mas, ao mesmo tempo, reprimido violentamente pelos aversos a qualquer prática
democrática.

REFERÊNCIAS

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Aberto. Disponível em: https://www.planoaberto.com.br/critica/garotas-do-abc-2003/. Acesso em:
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de Janeiro; Bertrand Brasil, 2022.

BALLERINI, Franthiesco. Cinema brasileiro no século 21: reflexões de cineastas, produtores,

19  Para Gumbrecht a ambiência cumpre a seguinte função na linguagem. “De maneiras diferentes,
por meio de diferentes elementos textuais, todas essas obras permitem que o leitor encontre realida-
des do passado. Temos uma obrigação profissional, para os acadêmicos e os críticos de hoje, que os
desconsiderem. Essa imediatez na experiência de presentes passados ocorre sem que seja necessário
compreender o sentido das atmosferas e dos ambientes; não temos de saber quais motivações ou cir-
cunstâncias os ocasionaram. É aquilo que nos afeta no ato da leitura envolve o presente do passado
em substância – e não um sinal do passado, nem a sua representação. (GUMBRECHT, 2014 , p. 25).

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distribuidores, exibidores, artistas, críticos e legisladores sobre os rumos da cinematografia nacional.
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entre violência e alteridade na representação da periferia. – Dados eletrônicos (1 arquivo : 264 f., il.
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DOSSIÊ

103 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

AS CIDADES NO NEORREALISMO ITALIANO:
RESSIGNIFICAÇÕES DO ESPAÇO URBANO

CITIES IN THE ITALIAN NEOREALISM:
RESIGNIFICATIONS OF URBAN SPACE

Mauricio de Medeiros Caleiro1

http://lattes.cnpq.br/6334293393460056

Recebido em: 24 de agosto de 2024.
Aprovado em: 22 de janeiro de 2025.

http://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21794


1  É Doutor em Comunicação e Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade
Federal Fluminense, além de Master of Arts em Film Studies pela University of Iowa (EUA).
Graduou-se em Comunicação Social, com Bacharelado em Cinema (1999) e em Jornalismo (2001),
ambos pela UFF. Trabalha desde 2001 como jornalista profissional, com publicações nas revistas
Ideia na Cabeça, Caros Amigos, Observatório da Imprensa, além do blog Cinema & Outras Artes, do
qual foi editor responsável entre 2009 e 2015. Atualmente, pesquisa as relações entre mídia digital,
política e ideologia. E-mail: caleiro.mauricio@mail.com

RESUMO: O artigo em tela se propõe a
examinar como o espaço urbano é representado
em três filmes clássicos do neorrealismo
italiano, combinando análise fílmica, Teoria
Histórica do Cinema e e o conceito bakhtiano de
cronotopia. Em produções que assumidamente
privilegiam questões sociais, feitos no contexto
das propostas estético-narrativas de um dos
principais movimentos cinematográficos contra-
hegemônicos da história do cinema, objetiva-
se investigar que papel têm as cidades, e com
quais significações.

Palavras-chave: neorrealismo italiano,
espaço urbano, representação, teoria histórica
do cinema.

ABSTRACT: This article aims to analyse
the ways in which urban space is represented
in three classic films of Italian neorealism,
combining film analysis, History Film Theory
and the Bakhtian concept of chronotopy. The
goal is to investigate what role cities play, and
with what meanings, in movies that openly
privilege social issues, produced in the context
of the aesthetic-narrative proposals of one of
the main counter-hegemonic cinematographic
movements in the history of cinema.

Key words: italian neorealism, urban
space, representation, film history theory.

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Introdução

Um dos principais movimentos da história do cinema, que viria a
exercer grande influência no surgimento dos “cinemas novos” – inclusive e
destacadamente no Brasil -, o neorrealismo italiano tem como duas de suas
principais características a troca dos estúdios pelas ruas e o engajamento
social. Tais características o tornam, por razões que serão em breve explicitadas,
particularmente propício para o exame da representação que faz da cidade, tema
deste trabalho, e se devem, em parte, ao contexto em que surge, no imediato
pós-Guerra.

Com Roma liberada em junho de 1944 e após mais de duas décadas sob o
jugo do fascismo, “A crônica da liberação tornou-se tema candente no país […]
politicamente dividido entre aqueles que se alinharam durante pelo menos duas
décadas ao fascismo e os que lutaram pelo fim da ditadura e da ocupação […]
Coube, sobretudo, aos cineastas o papel de cronistas do presente” (MENDES,
2013, p. 27).

Tal papel logo seria culturalmente validado: “Com a exibição de Roma Cittá
Aperta
, em dezembro de 1945, o cinema passa a ocupar um papel de destaque
na cultura italiana do após-guerra. O protagonismo desse renascimento
cinematográfico é o neo-realismo” (FABRIS, 1996, p. 34)2. Embora, ao contrário
dos filmes examinados neste artigo, a ação de Roma, Cidade Aberta (Roberto
Rosselini, Itália, 1945) se passe majoritariamente em interiores, a cidade ocupa
posições-chave já no filme que a maioria dos críticos aponta como marco de
inauguração do movimento:

O cenário que abre e fecha o filme é o de Roma, com a cúpula da Basílica de São Pedro
ao centro, vista de ângulos opostos. Essa imagem colocada nos dois extremos da his-
tória reafirma que a cidade é uma personagem que se sobrepõe à ficção, que sua pre-
sença sólida e concreta ficou capturada como estava naqueles meses [de filmagem]”
(SANCHEZ, 2015, p. 233-34).

2  Para preservar a fidelidade ao original, as citações são reproduzidas ipsis litteris, mesmo se com
grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, que passou a vigorar no Brasil em 2009 e é seguido
na redação do artigo.

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Nos anos seguintes, o protagonismo e a importância que as cidades passam

a ter no neorrealismo italiano são de tal ordem que se tornam tema de uma série
de estudos específicos, formando uma sub-linha de pesquisa. No período inicial
desses estudos, um dos mais prestigiosos críticos de cinema da Itália chega a
afirmar que o espaço urbano é o “inegável protagonista” (LA POLLA, 1975, p. 66)
dos filmes dirigidos por Vittorio De Sica no período:

Termômetro de costumes e progresso, ou pelo menos de mudança, a cidade é, por
razões óbvias, a primeira entidade humana e geográfica a ser afetada da maneira mais
conspícua e atroz pela barbárie da guerra. […] A cidade no cinema de De Sica neste
período também estará presente por esses motivos, mas o que importa é que ela assu-
me um papel que, em uma inspeção mais detalhada, não é externo, mas, ainda que nas
dobras da narrativa, tematicamente central. (LA POLLA, 1975, p. 67).

Para se referir a tal fenômeno, a pesquisadora Ana Stevanovska cunhou, em
sua tese de doutorado, o conceito de “imaginação “geocentrada” do neorrealismo”
(STEVANOVSKA, 2019, p. 9, aspas dela), uma tendência que pode ser parcialmente
explicada por três das principais características do movimento: a mencionada
preferência pelas ruas, em vez dos estúdios, motivada tanto por razões
econômicas quanto pelo avanço tecnológico trazido pela maior portabilidade dos
equipamentos (BONDANELLA, 2004, p. 132-138); prioridade a temáticas urbanas,
em um momento de expansão demográfica e reconstrução das cidades após a
Segunda Grande Guerra (HOBSBAWN, 2000, p. 200); e, sendo, segundo Cesare
Zavattini, principal ideólogo e roteirista de filmes clássicos do neorrealismo, um
movimento de perfil “político, antifascista e abertamente comprometido com
mudanças sociais” (ZAVATTINI, 1979, p. 229), o desejo de retratar – e denunciar - a
vida da maioria do povo, em um período em que a forte retomada das dinâmicas
trabalhistas do capitalismo industrial nas grandes cidades italianas acirrava
conflitos sociais (COHEN; FEDERICO, 2001, p. 74-75).

A tese da imaginação “geocentrada” do neorrealismo se confirma também
em termos quantitativos: dos 78 filmes neorrealistas feitos entre 1945 e 1956,
compilados pela pesquisadora Mariarosaria FABRIS (1996), 28 aludem a uma
referência geográfica, sendo que 16 destes incluem no título o nome específico de
uma cidade italiana. De Roma, com nove citações, à minúscula Luglio, terra natal
de Paolo e Vittorio Taviani e palco de um massacre de civis em 1954 que seria o
tema do curta metragem de estreia dos irmãos na direção cinematográfica.

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Espaço, estética e humanismo

O papel preponderante exercido pelas cidades no cinema italiano não
se inaugura, porém, com o neorrealismo. Reflexo do próprio destaque que
arquitetura e urbanismo historicamente desempenham nas cidades do país –
notadamente em Roma -, o tema aflora já na chamada “fase dourada” do cinema
mudo italiano (1908-1917), como demonstra em livro a scholar Angela Dale VACCHE
(1992). Segundo a autora, a oposição entre monumentalidade arquitetônica
urbana e subjetividade social foi tema recorrente em ao menos dois períodos do
cinema italiano: o dos grandes épicos do cinema mudo – cuja epítome é Cabíria,
dirigido por Giovanni Pastrone em 1914 – e, duas décadas depois, nas sequências
externas dos chamados “telefoni bianchi”, os dramas urbanos pretensamente
refinados que, estimulados pelo próprio Mussolini, caracterizam a produção
cinematográfica de todo o período fascista.

Porém, após mais de uma década em que a representação da cidade limitava-
se ao ornamental ou ao cenográfico, o diferencial trazido pelo neorrealismo foi,
como aponta a maior especialista brasileira no movimento italiano, Mariarosaria
Fabris, que “As temáticas que transformam homem e paisagem em protagonistas
inspiravam-se diretamente na realidade e na necessidade de registrar o presente”
(FABRIS, 1994, p. 27). Segundo ela, “O neo-realismo redescobria a paisagem
italiana e nela reintegrava o homem” (FABRIS (1994, p. 27). Assim, como sublinha o
diretor Michelangelo Antonioni, a paisagem não era tratada como “um amontoado
de elementos exteriores e decorativos, mas [como] um conjunto de elementos
morais e psicológicos” (citado por FABRIS, 1994, p. 77).

Para o pesquisador Marco Melanco, autor de um livro em que analisa o
tratamento que o cinema italiano dispensa à paisagem, do período silencioso ao
início deste século, esse diferencial no tratamento da paisagem resultaria em um
ganho qualitativo distintivo, inerente ao movimento: “O neorrealismo deixa suas
páginas mais expressivas, mais importantes e ricas, quando é a própria geografia
do ambiente que se impõe, quando a câmera se move em um panorama que já
parece denso e povoado de vozes, sobre as quais enxerta esquemas e figurações
próprias” (MELANCO, 2005, p. 59).

Alguns autores, como os dois abaixo citados, apontam para uma valorização
do humano – seja em referência ao talento dos diretores ou pelo humanismo

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da abordagem - para explicar esse tratamento diferenciado do espaço no
neorrealismo:


O espaço indicado como o “sentido” principal da história contada, ou como o sujeito
central da narrativa. Os críticos [estudados pela pesquisadora] compartilham a visão
sobre a heterogeneidade dos personagens neorrealistas e, no entanto, quase todos
os ensaios dedicados ao tema insistem na centralidade do “horizonte humanista”, da
urgência dos diretores de filmarem a Itália, da colocarem suas câmeras nas ruas, no
campo e nas cidades, transformando a realidade circundante no motivo principal de
suas obras. A descoberta da verdadeira Itália em todos os suas contradições consti-
tuem a matéria-prima sobre a qual os artistas se debruçam, cada um dos que segue
um registro estético e expressivo próprio. O olhar como o principal imperativo do novo
cinema, portanto, em vez de usar os cenários como simples fundo das histórias con-
tadas, transforma-as na instância principal a ser contada. (STEFANOVSKA, 2019, p. 29)

Ainda que talvez seja prudente ressalvar tanto a afirmação referente à capacidade
de transformação da realidade circundante (quanto se trata, na verdade, de recriá-la
via representação, mas sem gerar um “novo real”), quanto o possível exagero de afirmar
que a realidade transformada seria a protagonista dos filmes em questão, a citação tem
o mérito de abordar diferentes aspectos da relação entre os realizadores neorrealistas
e o espaço, seja ao abordar sua motivação, o modo como concretamente operam a
aproximação com o objeto fílmico, o olhar como imperativo distintivo do neorrealismo
e, ponto central, o caráter humanista da representação.

Autor de um texto canônico sobre o neorrealismo italiano, escrito em plena
efervescência do movimento, em que se concentra, sobretudo, na técnica narrativa
adotada nos filmes (movimentos de câmera, enquadramentos, montagem,
ambientação), comparando-a à técnica narrativa de romancistas norte-
americanos (Faulkner, Hemingway, Dos Passos) e à técnica pictórica de Matisse,
André Bazin destaca, em relação à questão do tratamento cinematográfico, a
técnica e habilidade dos diretores neorrealistas para concatenar materialidade
ambiental e psicossociabilidade humana:

Os cineastas italianos […] reúnem numa densidade particular ambientes e pessoas,
porque sabem como descrever uma ação sem dissociá-la de seu contexto material e
sem amortecer a singularidade humana em que ela se encontra embricada; a sutileza
e suavidade de seus movimentos de câmera nesses espaços apertados e naturalida-
de do comportamento dos personagens que entram em campo fazem dessas cenas a
peça de habilidade por excelência do cinema italiano (BAZIN, 1978, p. 300)

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Metodologia

As reflexões sobre as relações entre história e cinema dão ensejo, a
partir dos anos 90, a um hoje vasto subcampo acadêmico (“Film History
Theory”) formado, sobretudo, por pesquisadores advindos dos Estudos de
Cinema, da História e da Comunicação. Seria improdutivo para o trabalho
e impossível, pela exiguidade de espaço, sequer esboçar a epistemologia
específica de tal nicho. Interessa-nos, porém, reter a contribuição de um
conjunto de três historiadores e um linguista, citados de forma recorrente em
tal subcampo, que produziram reflexões passíveis de serem concatenadas de
forma a fornecer uma contribuição metodológica coerente para este trabalho.
O primeiro desses pesquisadores é o linguista russo Mikhail Bakhtin,
através do conceito de cronotopia. Formulado no interior dos estudos linguísticos
como uma resposta tardia ao formalismo russo dos anos 20, veio a público em
1937, através do ensaio “Forms of Time and Chronotope in the Novel”, mas só se
popularizaria nas universidades ocidentais a partir dos anos 60. Em sua formulação
original, a noção bakhtiana de cronotopia diz respeito a um processo de mão
dupla em que, por um lado, as representações erigidas pelo romance influenciam,
através de processos como identificação, comparação e estranhamento, entre
outros, a percepção do leitor, no tempo presente, acerca do mundo em que vive;
e, por outro lado, em que as alterações por que o mundo social passa ao longo do
tempo modificam a percepção do leitor acerca das representações efetuadas no
romance. O próprio Bakhtin assim resumiu o processo:

A obra e o mundo nela representado projetam-se para o mundo real e o enriquecem, e
o mundo real adentra a obra e seu universo como parte do processo de criação, bem
como parte de sua vida subsequente, numa renovação contínua da obra através da
percepção criativa de ouvintes e leitores. Evidentemente, esse processo de trocas e
mediações é, em si, cronotópico: ele ocorre primeiro e de forma mais proeminente
no mundo social historicamente desenvolvido, mas sem jamais perder contato com o
espaço histórico em mutação, num processo contínuo de renovação da obra através da
percepção criativa de ouvintes e leitores (BAKHTIN, 1981 [1938], p. 254).

Tal formulação, embora interior às reflexões de Walter Banjamin sobre
história, acaba por dialogar com estas, particularmente na forma como conecta
a percepção - ou mesmo o registro da existência - do passado à sua evocação no
presente. Como parte de um processo que acabou por alçar parte considerável
da produção teórica do linguista russo a um papel relevante também em relação

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à teoria cinematográfica, o conceito de cronotopia seria adaptado para os
Estudos do Cinema por acadêmicos como os professores Robert Stam (NYU),
Hamid Naficy (Northwestern) e Vivien Sobchak (Berkeley), que ajuda a definir a
cronotopia:

Dotada por Bakhtin de uma variedade de conotações e funções, a cronotopia é uma
ferramenta para análises sintéticas, não somente por identificar e confirmar a força
e informação acerca do espaço na estrutura temporal [...], mas também por abranger
historicamente a relação fenomenológica entre texto e contexto de um modo mais
fluido do que aquele possibilitado pelas análises genéricas tradicionais (SOBCHAK,
1998, p. 149)

Em outro eixo, a prioridade que os cineastas neorrealistas concedem aos
ambientes urbanos - seja com intencionalidade documental, como ambientação
realista, ou como tema central -, somada à filmagem nas ruas e à tematização
das relações sociais, tende a ser potencialmente fecunda para análises que
privilegiem o que o historiador Marc Ferro chama de “entorno documental” (1975).
Tal conceito, como o nome indica, refere-se à apuração de dados documentais
e históricos, mesmo em filmes ficcionais, através da atenção a elementos
acessórios às tomadas, em sequências não filmadas em estúdios.

Ainda na França, a produção teórica de Michèle Lagny e Pierre Sorlin,
individual ou em dupla, dialoga – e eventualmente conflitua – com os pressupostos
de Ferro. Ambos destacam-se pela proposição de metodologias específicas
para a análise de questões históricas no cinema. Enquanto Lagny sistematizou
o seu método em uma única publicação, que se tornou referencial (1992), Sorlin,
que tem uma produção concentrada no exame da produção cinematográfica
europeia, esboçou suas propostas analíticas em diferentes trabalhos publicados
entre 1980 e 2015, Em comum, os dois franceses advogam por uma metodologia
histórico-cinematográfica que leve em conta tanto a análise fílmica quanto fatores
externos à produção, desde aqueles ligados às motivações do filme até os que
se relacionam à sua recepção. A diferença é que a abordagem de Lagny propõe
uma análise fílmica mais verticalizada e detalhada, uma espécie de arqueologia
das representações que vasculhe indícios históricos em cada área específica
(cenografia, maquiagem, trilha sonora, etc.), em um processo eventualmente
complementado por pesquisas adicionais. Trata-se, portanto, de um método que
depende, de um lado, de alguma expertise em análise fílmica; e, de outro, de bom
grau de conhecimento histórico ou da capacidade de pesquisa de temas de tal

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campo.
Já Sorlin, embora não deixe de valorizar o papel da análise fílmica, dá mais

peso, em sua metodologia, a fatores exteriores à narrativa, sobretudo aqueles
relacionados ao filme enquanto produto cultural industrial e à análise passível de
ser feita a partir da contraposição entre:

1) O que e como é narrado; 2) O repertório imagético da produção – dividido
entre “imagens primárias” (fotos promocionais, artigos em revista, cartazes, as
imagens dos próprios fotogramas que compõem o filme) e “imagens globais”
(universalmente identificáveis); 3) O grau de inserção comercial e circulação
cultural do filme enquanto produto e a especulação das razões que o determinam.
Em suas próprias palavras:

Não estamos interessados nem em filmes como obras de arte nem em cinema enquan-
to linguagem; queremos aprender os filmes como imagens (feitas de som, fotogramas
e palavras) disponíveis em sociedades contemporâneas. Filmes são objetos, mas ob-
jetos de um certo tipo, industrialmente produzidos, vendido ao público que os compra
em troca de prazer, e o nosso contexto [analítico] deve conter todas essas caracterís-
ticas. (SORLIN, 1991, p. 9)

Este artigo, embora eventualmente recorra às metodologias analíticas de
Lagny e Sorlin, não tem a ambição de incluir aspectos extrafílmicos na pesquisa.
Seu escopo, no que diz respeito à metodologia, limita-se ao exame do que é
oferecido pela narrativa dos filmes selecionados. Para tanto, além do trabalho
dos autores mencionados, recorre-se à análise fílmica de perfil semiológico
(BELLOUR, 2000; VANOYE e GOLLIOT-LÉTÉ, 1994) e ao método de estruturação
analítica desenvolvido, em seu estudo clássico sobre Humberto Mauro, por
Paulo Emílio Salles GOMES (1974), com eventuais incursões à análise do discurso
(ECO, 2005; ORLANDI, 2007) para um desvendamento mais aprofundado de
significados.

Deve-se ressalvar que não se objetiva, aqui, oferecer uma análise fílmica
que contemple todos os polos e principais desenvolvimentos dramáticos de cada
narrativa, apenas o necessário para uma apreensão compreensiva geral: o foco
é priorizar o exame do papel que os centros urbanos desempenham nos filmes
selecionados, em um esforço para desvelar sua significação.

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As cidades segundo o neorrealismo: análise dos filmes

Escombros, ruínas, e alguma vida: Alemanha, Ano Zero

Uma cidade bombardeada, quarteirões arrasados, restos de incêndio em
meio à destruição. Durante 70 segundos, a abertura de Alemanha, Ano Zero
(Roberto Rosselini, 1948) limita-se a apresentar ao espectador, em registro
documental, o espetáculo da destruição urbana causado pela guerra. Nenhum
personagem humano, nenhuma trama propriamente dita. Só, em sucessão de
travellings horizontais fundidos, o impacto, sobre o espectador, da imersão em
escombros do que um dia foi local de moradia ou trabalho de dezenas de milhares
de pessoas, enquanto os créditos são exibidos e com a a atmosfera de destruição
enfatizada por uma trilha sonora pungente. Assim, já de início a narrativa explicita
que, mais do que cenário e locus da ação, a cidade desempenha uma função
propriamente dramática no fime em questão.

Em seguida, em um procedimento cuja raridade, na história do cinema,
acaba por reforçar a intenção de sublinhar tal protagonismo urbano, a mesma
sequência de imagens é repetida, em idêntica montagem, desta feita com os
créditos substituídos por uma voz em off que reforça tanto o aspecto documental
quanto a importância, para o significado do filme, da cidade em questão: “Este
filme, rodado em Berlim no verão de 1947, não visa mais do que fornecer um quadro
objetivo e realista desta imensa cidade semidestruída, onde três milhões e meio
de pessoas vivem uma existência desesperada, quase sem se darem conta disto.
”.

Esse evidente protagonismo dado à cidade justifica-se e, ao mesmo
tempo, é facilitado, em grande parte, pela pletora de significações facilmente
identificáveis em relação ao duplo fenômeno de uma metrópole quase totalmente
destruída e por esta cidade específica, palco final da Segunda Guerra, ter abrigado,
nos anos imediatamente anteriores à filmagem, o centro da então maior ameaça
à democracia e à autonomia dos povos.

O início propriamente dito da trama, logo após os créditos, confirma o
protagonismo da cidade em Alemanha, Ano Zero: em um plano geral bem aberto,
com um bosque tomando a metade inferior da tela, Berlim é apresentada de
longe, em lenta panorâmica circular à direita que termina com um movimento

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vertical descendente até um cemitério, que, após uma fusão de imagens, é
mostrado povoado de trabalhadores, em sua maioria crianças, brigando pelo
direito de cavar covas em troca de 250 gramas de margarina americana. À alusão
metafórica à morte, produzida pela contraposição entre imagens de escombros
da guerra e do cemitério, a narrativa acrescenta, já de saída, um retrato do grau de
desespero ali vivenciado, da dissolução ética e da exploração do corpo humano –
mencionando, ainda, com amarga ironia, os termos das relações entre parte dos
habitantes e os “libertadores” americanos.

Tais temas, que serão abordados, de forma recorrente, durante todo o
filme, são retomados já na apresentação do protagonista, um menino de seus
11, 12 anos, Edmund Köhler (Edmund Moeschke): a mera caminhada do cemitério
onde trabalha ao prédio em escombros onde vive reforça o desespero e a fome
vigentes: ele presencia populares tentando retalhar um cavalo atropelado para
se alimentar e, para poder cozinhar, recolhe restos de carvão caídos de um
caminhão.

A entrada de Edmund em cena altera a dinâmica de protagonismo e de
significação do filme. A cidade não apenas continua a desempenhar um papel de
extrema relevância, mas o fato de dividir seu protagonismo com o personagem de
um menino em um cenário de esgarçamento social tende a multiplicar a gravidade
das denúncias. Por dois motivos principais: do ponto de vista da caracterização
do personagem, pela fragilidade psicossocial etária e pela presumida ausência de
base educacional e ética de uma criança que cresceu sozinha em meio à guerra; e,
no que diz respeito às caracterizações externas atribuíveis ao personagem, pelo
retrato de um menino em luta pela sobrevivência facilitar alusões metafóricas ao
futuro, tanto dele enquanto sujeito quanto como representante da sua geração e
país.

Essa alusão metafórica, será utilizada de forma recorrente ao longo da
narrativa, e pode ser exemplificada até mesmo em uma sequência sem falas, de
uma só tomada, um longo plano-sequência cuja duração e (só) aparente gratuidade
dramática tornam significativa: após ser repreendido por um policial por catar
carvão do chão, Edmund é mostrado de frente, em plano médio, caminhando em
direção à câmera em um caminho ladeado de escombros. Ele para, olha à direita
e à esquerda, para onde decide caminhar. A câmera o acompanha de lado, em
travelling paralelo que acaba por se transformar em um movimento panorâmico
horizontal, até que, com a música dramática num crescendo, o menino é mostrado

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de costas, em profundidade de campo, caminhando por uma rua ladeada de
escombros de ambos os lados. Para onde?

A resposta a esta questão será dada, de forma trágica, ao final dos 78
minutos do filme. Os acontecimentos que a pavimentam estarão diretamente
ligados à cidade em ruínas, mesmo quando encenados em ambientes interiores.
Mas, no que diz respeito propriamente à trama, é o encontro casual, na rua, de
Edmund com um ex-professor, Karl-Heinz (Franz-Otto Krüger), que deflagra o
processo que induzirá ao desfecho. Valendo-se da notória influência que exerce
sobre o ex-pupilo, o professor o convence a ir ao quartel-general dos norte-
americanos tentar vender nada menos que um discurso de Hitler. O filme fornece,
assim, uma primeira caracterização de Karl como um simpatizante nazista – que
será corroborada sequências adiante, por meio de um diálogo com um amigo –, e
uma metáfora sobre o desprestígio da educação, em mais uma amostra do grau
de corrupção moral daquela sociedade. A segunda sequência após o reencontro
entre os dois oferece, não apenas no entorno documental, mas com destaque, um
precioso registro cronotópico do transporte urbano de Roma, com um grupo de
pessoas no ponto esperando o bonde, sua chegada dominando todo o lado direito
da tela, o desembarque dos passageiros – com uma delas olhando diretamente
à câmera, com um sorriso envergonhado que quebra e denuncia o ilusionismo
fílmico -, sucedido do embarque dos demais passageiros, incluindo o professor e
seu ex-aluno, e a partida do bonde, até sair completamente de quadro, deixando
ao fundo, por uma duração que a destaca, a imagem de um prédio em ruínas.

As pregações amorais do mestre – que, através do encontro com um
amigo, tem seu passado de apoiador do nazismo corroborado para o espectador -
acabam sendo compreendidas pelo ex-aluno como um estímulo cifrado para que
mate o próprio pai, acamado. Trata-se de uma sequência paradigmática do modo
como a mise en scène não apenas utiliza os escombros para fins dramáticos, mas
eventualmente os prioriza em relação aos personagens de carne e osso: Edmundo
é acompanhado, em plongée, do momento em que ele entra no prédio (cujo
primeiro andar está em ruínas) até quando sobe para o segundo andar e, agora
com a tomada em contra-plongée, atinge o final da escada, onde a escuridão não
permite ver praticamente nada. A tela fica escura; ouvem-se apenas e gemidos.
O pai está morto.

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O bloco narrativo em que se dá a débacle final de Edmund, embora se inicie
no apartamento do professor – que reage furioso ao saber que Edmund matara
o pai -, tem todo seu desenvolvimento espacial e dramático nas ruas de Berlim:
ao sair correndo do apartamento, Edmund tenta se enturmar com garotos que
jogam bola, mas é rechaçado, numa sequência que acaba, mais uma vez, com uma
tomada metaforicamente significativa do garoto caminhando sozinho no sentido
contrário ao da tela, ladeado por escombros. Privado da infância, Edmund torna-
se definitivamente um pária ao ser rejeitado pela família, que não o perdoa pelo
parricídio.

Alemanha, Ano Zero, para além de um registro (semi)documental ou de
uma ficção de forte tonalidade realista acerca de um momento histórico, é
intencionalmente dotado de uma teleologia dramática, para a qual o espaço
urbano desempenha papel fundamental:

O diretor expressa significados implícitos, escondidos em tomadas de paisagens apa-
rentemente reais, entrelaçando continuamente dois mundos sobrepostos: por um
lado, o das ruínas da guerra que acabou de terminar e por outro um primordial e mítico
que pode ser vislumbrado” (STEVANOVSKA, 2019, p. 15).

Mas o final do filme não deixa margem para esperança. A dupla significação
metafórica atinge a culminância através do paralelismo entre os escombros
físicos que a guerra causou à cidade e o desmoronamento psicológico que aflige
o menino, culminando com seu suicídio – que, reforçando a significância de tal
paralelismo, se dá pulando do que restou de um edifício para as ruínas abaixo.

O final de Alemanha, Ano Zero, além de romper um tabu ainda hoje vigente
em termos de representação da infância, explicita tanto o engajamento crítico
quanto estético do movimento: “Com cenas filmadas in loco, em locais devastados
por bombas, transformados em ruínas, ou paisagens de uma urbanidade perdida,
assim como a esperança e civilidade de seus habitantes, o cinema neorrealista se
impôs como crítica social e denúncia de uma realidade que a estética tradicional
fílmica não mostraria” (SANCHEZ, 2015, p. 232).

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A cidade como metáfora do poder e do capital: Umberto D

Assim como Alemanha, Ano Zero, a tomada inicial de Umberto D (Vittorio De
Sica, 1953) também prioriza a imagem de uma cidade. Mas, ao contrário do filme
de Rosselini, a tomada é estática, em leve plongée e, enquanto os créditos iniciais
são exibidos, não focaliza destroços, mas sim a atividade de uma movimentada via
urbana, ladeada de prédios e estabelecimentos comerciais e com intenso tráfego
de carros, motocicletas e carroças. Aos poucos, o que, nos segundos iniciais, não
passava de uma mancha escura indistinta, em profundidade de campo, no canto
inferior esquerdo da tela, revela-se uma passeata de protesto, que vai tomando
quase toda a rua, com predomínio de homens de idade avançada, que brandem
cartazes pedindo aumento nas aposentadorias.

Ao chegarem ao prédio do ministério, a polícia os impede de avançar.
Com exceção de dois planos de conjunto que estabelecem a disposição física
de protestantes e agentes da lei, toda a sequência é construída com closes
sucessivos, com um quê de montagem soviética, de indivíduos que ora descrevem
a miséria em que se encontram, ora verbalizam reivindicações. Após a dispersão,
executada através de jipes militares que saem das estreitas ruas circundantes,
o que resta dos protestantes é enfocado em um plano geral, em profundidade de
campo, contrapondo-os ao enorme edifício ministerial, cuja monumentalidade,
reforçada pela tomada em contra-plongée e pelo intenso reflexo da luz solar em
sua fachada, sugere a retomada, em clave neorrealista, dos procedimentos de
representação identificados por Dale VACCHE parágrafos acima mencionados:
metaforicamente, é como se o poder do Estado, encarnado pelo prédio que o
abriga, oprimisse os manifestantes e, assim como efetivamente os policiais o
fazem, os ameaçasse.

O protagonista Umberto (Carlo Battiti), em diálogo com Orazio,
companheiro de fuga e outro idoso na miséria, relata que, das 18 mil liras que
recebe de aposentadoria, 10 mil se destinam a pagar o aluguel do quarto em que
mora, valor que acaba de ser aumentado. No início do filme, portanto, a cidade,
é apresentada não apenas como como local de embate entre forças sociais –
aqueles que reivindicam condições dignas de vida versus a polícia, braço armado
do Estado, que os reprime -, mas, ao sopesar, através do diálogo, o peso do aluguel
no orçamento mensal de Umberto, o meio urbano é caracterizado também como

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fator de carestia e opressão econômica.
No próximo bloco narrativo (GOMES, 1974), diversas sequências em

interiores detalham a situação de Umberto – sem dinheiro para a subsistência,
faminto, prestes a ser despejado, doente, tendo como aliados apenas seu
cãozinho Flike e Maria, a empregada da pensão (Maria Pia Casilio). Ante o despejo
iminente, ele concorda em ser internado num hospital público, seja por uma
cama para dormir, seja pela esperança em se curar. Mas, ante o pouco-caso dos
médicos e a alta rotatividade indicativa da pobreza geral, logo é posto pra fora. A
sequência em frente ao hospital é paradigmática da apreensão neorrealista das
técnicas de representação do cinema fascista, ressignificadas narrativamente:
a monumentalidade do hospital é inicialmente destacada em um plano aberto
lateral, em profundidade de campo, que faz com que a construção ocupe mais
da metade da tela. Umberto e um amigo saem para a rua atravessando o arco
da porta, e se evidencia a desproporção entre o tamanho dos dois homens e
o da construção. O cumprimento que trocam, despedindo-se, é interrompido
pela chegada de uma ambulância que quase os atropela ao adentrar pelos
arcos, sublinhando a desconexão dos personagens com a velocidade do mundo
moderno.

O entorno documental das sequências externas seguintes, que retratam o
esforço de Umberto para resgatar Flike, recolhido a um canil púbico e prestes a ser
sacrificado, além do que oferecem de elementos para a análise dos direitos dos
animais em perspectiva histórica, são ricas pelo que retêm das ruas do subúrbio
de Roma, por onde circulam: veem-se operários trabalhando no asfalto, militares
em meio aos transeuntes, velhos comerciantes em uma feira de rua montada
numa praça. O volume e o modelo de carros que por elas circulam servem de
objeto a uma cronotopia automobilística, pois o que foi apreendido como realista
quando da exibição do filme, tende a causar estranheza ao espectador de hoje,
seja pelo ritmo e volume menores de trânsito, em comparação com o de uma
capital europeia atualmente, seja pelo tamanho maior e pelos formatos dos
carros, muito diferentes dos atuais.

Após o ultimato da senhoria a Umberto, de que será atirado às ruas no da
seguinte, a narrativa se vale de uma iluminação mais escura e, através da angulação
dos enquadramentos, da ênfase na contraposição das dimensões físicas humanas
à das construções, enfatizando a monumentalidade das edificações do centro de
Roma. O cair da noite marca a passagem para as sequências que constituem o

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clímax dramático do filme. Logo no início, uma tomada demora-se no retrato de
um cinema de rua, seus cartazes, seus luminosos, a disposição espacial com a
bilheteria na ao centro e as entradas ao lado, a chegada de homens de terno e
mulheres de vestidos, ambos de chapéu, formando um registro valioso para uma
cronotopia da atividade cinematográfica, que Ladrões de Bicicleta, próximo filme
sob análise, enriquecerá.

Formando um bloco narrativo unido não apenas espacialmente (as ruas
centrais de Roma), mas dramaticamente, com quase sete minutos de duração e
composto de 33 tomadas, as sequências que encenam as tentativas desesperadas
de Umberto de conseguir dinheiro para subsistir marcam, segundo a maioria dos
críticos, o ápice do filme, tanto em termos estéticos quanto dramatúrgicos. Tanto
seu embaraço e constrangimento ao abordar amigos quanto, sobretudo, sua ao
fim insuperável vergonha em esmolar – função para qual designa o cachorrinho –
primam por um agridoce equilíbrio entre a dramaticidade e um leve tom cômico
que tem algo de chapliniano. São, também, as mais profícuas em sugestões de
temas para análise da representação da cidade no neorrealismo. A expressão
do protagonista, a fotografia escurecida, a música e, sobretudo, a mencionada
contraposição da fragilidade humana à monumentalidade das edificações
impregnam a narrativa de uma atmosfera crepuscular, desesperançada, visando
transmitir ao espectador o estado de ânimo de Umberto.

De volta a seu quarto, encontra-o vazado por um enorme buraco na parede,
fruto de uma reforma que a senhoria decidiu fazer sem sequer avisá-lo. Ali,
tomado pelo desespero, Umberto aventa uma solução radical, em um sequência
cujo sentido é construído apenas com recursos visuais e sonoros, sem fala ou
expressão de pensamento. Um plano de conjunto retrata Umberto sentado em
sua cama, pensativo, quando o reflexo das faíscas de luz provocadas pelo atrito
do bonde com os trilhos, na rua, chama a sua atenção. Ele levanta-se e caminha,
acompanhado por uma panorâmica à direita, até ficar em primeiro plano;
quebra-se o eixo da câmera e ele é mostrado, em plano de conjunto, do lado
oposto à cama, olhando pela janela. Uma elegante tomada em plano médio, em
contra-plongée, captura, visto por cima, o bonde passando, os trilhos ladeados
pelos paralepípedos molhados e um lampião acima, em primeiro plano. Em nova
sucessão plano de conjunto/quebra de eixo, Umberto abre a janela. Com a música
num crescendo dramático e o zoom fechando primeiro no rosto de Umberto,

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depois nos trilhos do bonde, a ideia do suicídio é claramente anunciada.
Mas ao voltar-se para o quarto, Umberto depara-se com Flike, e dar um

destino digno ao cachorro passa a ser a o fio que o liga à vida, a motivação última
antes de deixar de viver.

O último bloco narrativo retrata os esforços do protagonista para dar
um destino digno a Flike. O anticlímax das tomadas da cidade ao amanhecer,
captando as ruas povoadas do dia anterior agora vazias - e o cinema fechado –
colabora para a atmosfera depressiva. O périplo em busca de um cuidador para
o cão inclui tanto uma sequência inteira no interior de um bonde - em um valioso
acréscimo para o registro cronotópico dos transportes púbicos nos filmes-tema
deste artigo -, quanto uma visita a zonas suburbanas da cidade, oportunidade
para constar que, embora as edificações, em medidas verticais, não fiquem nada
a dever às das zonas centrais, seu estado de conservação denuncia seu grau de
decrepitude.

Embora permaneça urbano, o ambiente da última sequência diferencia-
se bastante dos anteriormente apresentados no filme: o parque, próximo à
linha férrea, onde se dão as últimas tentativas de Umberto de se livrar de forma
digna de seu bicho de estimação, presenteando uma garotinha. Após o cão
conseguir evitar a própria morte sob os trilhos do trem, nos braços de seu dono,
será também o palco onde, reforçando a caracterização chapliniana, Umberto e
Flike, caminhando parque adentro, em profundidade de campo, se resignam a
continuar a vida, ainda que sem remédio ou solução.

A ambiguidade da cidade capitalista em Ladrões de Bicicleta

O filme abre, ainda com os créditos sendo apresentados, com uma
panorâmica circular à direita focalizando uma jardineira chegando ao ponto
final, no que pode ser elencado como mais um elemento para um estudo das
cronotopias do transporte público em Roma. O ponto localiza-se em “um bairro
periférico, em que se tem a arquitetura de conjuntos habitacionais da classe
operária, denotando desde já a importância desse aspecto para a narrativa do
filme” (SANCHEZ, 2015, p. 235).

Da jardineira e dos arredores vem uma pequena multidão de homens, à
espera de serem chamados para trabalhar. Antonio (Lamberto Maggiorani) é

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chamado, mas não tem uma bicicleta, imprescindível para a vaga. As sequências
seguintes, que mostram seu périplo para arrumar o veículo, se iniciam com seu
encontro com a esposa, Maria (Lianella Carell), oportunidade para o filme retratar
tanto a aridez e a pobreza da vida nos conjuntos habitacionais quanto a dureza
da lida das mulheres, obrigadas a carregar pesados baldes para obter água de
um poço. Apenada da situação, Maria vence a resistência dele e penhora todo
o enxoval da casa, possibilitando recuperar a bicicleta da família, que também
havia sido penhorada.

Como observa Pierre Sorlin, a representação da cidade em Ladrões
de Bicicleta
(Vittorio De Sica, 1948) apresenta como diferencial a atenção que
dá a áreas suburbanas de Roma, algo raro de se ver nas demais produções do
movimento filmadas na capital: a maioria das sequências externas se passa no
empobrecido lado Oeste da cidade, com incursões a áreas mais afluentes (centro
e zona Leste) praticamente limitadas ao cumprimento das funções trabalhistas
por parte de Antonio (SORLIN, 1991, p. 120-123).

A notória exceção, com duração de um minuto e meio e formada por sete
tomadas, todas nas ruas de Roma, é sequência em que o casal, alegre após
recuperar a bicicleta, se desloca sobre ela, do local de emprego de Antonio
para uma cartomante. O grau de resolução da mise en scène (ritmo, decupagem
e movimentos de câmera, iluminação, trilha sonora, desempenho dos atores)
corrobora aquela habilidade especial dos realizadores neorrealistas para o
tratamento do ambiental e do humano à qual o citado Bazin se refere. Aos olhos de
hoje, fornece, ainda, um registro variado da vida, tanto nas ruas centrais quanto
no subúrbio, com destaque para diversidade da fauna urbana – padres de batina,
trabalhadores braçais, madames, militares, muitas crianças -, para as fachadas e
vitrines dos estabelecimentos comerciais e, uma vez mais, para o transporte nas
movimentadas artérias centrais.

A introdução, na trama, do filho de oito anos de Antonio, Bruno (Enzo Staiola)
adiciona lirismo – e uma pitada de humor -, através do retrato do carinho paterno e
da idolatria do garoto pelo pai. Ponto alto do filme, a sequência em que, com o dia
nascendo, os dois saem, da casa para o trabalho, na bicicleta tornou-se um ícone
do cinema mundial, sendo reiteradamente citada e aludida - inclusive no filme
brasileiro O Grande Momento (Roberto Santos, 1959), com Gianfrancesco Guarnieri
emulando Antonio. Com duração de dois minutos e vinte segundos, compõe-se
de nove tomadas que, alternando-se entre, por um lado, tomadas fechadas que

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sublinham o estado de ânimos dos personagens, e planos abertos elaborados
e sugestivos em termos de significação, eventualmente em movimento, com
particular cuidado com a iluminação, de modo a transmitir ao espectador que se
trate de um périplo longo e que se inicia ainda com os resquícios da noite e termina
com o sol já alto. O resultado é, ao mesmo tempo, de incomum plasticidade e
notável técnica cinematográfica, a serviço tanto da eficiência narrativa quanto
do estímulo à empatia espectatorial com os personagens, humanizando-os ainda
mais.

O idêntico figurino de pai e filho, o mesmo omelete embrulhado que guardam
no bolso do macacão operário, o fato de ambos se deslocarem no mesmo horário
de outros vestidos como eles – divididos entre muitas bicicletas e uma jardineira
com passageiros dependurados para fora -, culminando com o diálogo em que
Antonio diz ao filho (quando este desembarca no posto de gasolina em que trabalha)
que passa às 19 horas para apanhá-lo aponta para a continuidade histórica de um
processo de exploração trabalhista que indistingue adultos e crianças. Toda a
sequência é altamente sugestiva em termos de cronotopias, tanto em relação à
já mencionada representação do transportes quanto do trabalho.

O modo como a sequência correlaciona os personagens e o espaço é
ilustrativo de um processo que David Brancaleone, autor de um livro em dois
volumes sobre a influência do neorrealismo na América Latina, assim descreve:

Pode-se argumentar que a prática espacial neorrealista revela a complexa realidade
da cidade dialética e trabalha através de um novo tipo de ficção, que se inscreve e se
confronta com a vida cotidiana. Ela descreve e pesquisa, mapeia e mede, determina
e define o espaço, trazendo-o à visibilidade por meio da câmera. O pano de fundo da
cidade ganha vida quando ela é encontrada e atravessada por personagens neorrealis-
tas” (BRANCALEONE, 2014, p. 5-6).

Em termos de representação da cidade, a sequência delineia com clareza,
ao longo do trajeto dos personagens, as diferenças urbanísticas entre o subúrbio
e as ruas mais centrais de Roma: à medida que a caravana de trabalhadores
avança, vai deixando para trás ruas empoeiradas e esburacadas, depois largas
avenidas ladeadas de árvores e com desolados conjuntos habitacionais ao fundo,
refletidos pelo sol, e adentrando vias asfaltadas e mais estreitas, ladeadas de
estabelecimentos comerciais e com grande fluxo de pessoas e veículos – incluindo
bondes no lugar de jardineiras.

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Ainda no mesmo bloco narrativo, mas em novo conjunto de sequências, o
início da atividade de Antonio como colador de cartazes de filmes dá ensejo a
uma série de alusões metacinematográficas, que vêm adensar as cronotopias
da atividade cinematográfica anteriormente propostas. Inicia-se com uma
referência ao cinema clássico e ao star system hollywoodiano com Antonio
colando um cartaz da icônica imagem de Rita Hayworth no filme Gilda (Charles
Vidor, EUA, 1946), que a mitificou como “a mulher inesquecível”. Seguem-se
referências às comédias do período silencioso, primeiro na interação entre o
outro colador e as crianças que os rodeiam, depois na alusão ao personagem de
Charles Chaplin, quando uma das crianças acompanha um senhor que caminha
em direção contrária da tela, em profundidade de campo, emulando Carlitos.

O bloco narrativo seguinte se inicia com uma acentuada mudança na
tonalidade dramática, com o roubo da bicicleta de Antonio por um transeunte. Toda
a sequência da tentativa de perseguição ao ladrão é, ao mesmo tempo, de grande
tensão e suspense e muito dinâmica em termos de movimentação espacial. As
ruas comerciais de Roma são mostradas de diversos ângulos, incluindo planos
bem abertos do alto, que fornecem, ao mesmo tempo, a dimensão dos termos da
perseguição e um registro semidocumental das movimentações e fluxos urbanos,
com destaque para o caótico trânsito de veículos e a considerável quantidade
de pessoas (muitas aparentemente sem consciência prévia das atividades de
filmagem, a julgar por suas reações).

A rigor, o bloco narrativo em questão só irá se encerrar perto do final do
filme, quando Antonio perder as esperanças de recuperar sua bicicleta e decidir-
se por uma medida desesperada. Entre o roubo e tal momento, há uma série de
oito sequências em que predomina o esforço de recuperação do veículo, em meio
a tramas acessórias envolvendo temas conjugais e morais com tramas acessórias
passadas em interiores (igreja, escritório, casas de Antonio, da cartomante, do
jamais autuado ladrão), em sua maioria protagonizadas pelo pai e seu filho. O
ponto culminante do bloco é o modesto jantar numa pizzaria, no qual, através
das reações de Bruno à empáfia de outro garoto, sentado em uma mesa onde
um grupo bem-vestido desfruta de um banquete com vinhos e diversos pratos.
Saudada, entre outros, por Paulo Emílio Salles Gomes e David Neves, a sequência
evidencia a capacidade de combinar denúncia social e lirismo.

No que se refere especificamente ao espaço urbano, o fato de o roubo
da bicicleta os obrigar a de deslocarem a pé gera uma acentuada mudança na

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velocidade do deslocamento, o que por sua vez limita a diversidade de ambientes.
O grande destaque são as sequências em uma feira livre, muito similar àquela de
Umberto D, com a impressão de realidade sugerindo um registro semidocumental
do modo de se vestir e se comportar em um comércio popular.

Após resultarem infrutíferas suas tentativas de recuperar a bicicleta mesmo
após Antonio localizar e confrontar o ladrão, ele se ostra desolado, perambulando
pelas ruas de Roma com o filho. As sucessivas imagens de bicicletas sem dono
por perto, disponíveis nas ruas de Roma, contrapostas a tomadas de Antonio a
observá-las, fazem coincidir o olhar do espectador e o do personagem no interior
da narrativa, permitindo ao primeiro identificar o estágio psicológico do segundo
e antecipar sua predisposição ao ato de furtar. Trata-se de um expediente
que parece exemplificar o diagnóstico da pesquisadora Renata Latuf Sanchez
segundo a qual, [em Ladrões de Bicicleta], “o espaço urbano representado
exerce uma influência constante sobre as ações dos personagens, que parecem
ser guiados por este espaço e suas atividades” (SANCHEZ, 2015, p. 238).

Em vários filmes neorrealistas, a cidade, do ponto de vista sociológico, é
representada como um microcosmo da sociedade italiana mais popular, habitat
do “homem do povo”. Neste sentido, “torna-se um “material” moral e sociológico,
um lugar em que, sobretudo, concentra-se uma aglomeração humana e social de
miséria e desespero, [ainda que] sua significação em termos metafóricos resulte
ambígua e mais diversificada” (VIGNI, 2017, p. 17). Em Ladrões de Bicicleta ela pode
significar, por exemplo, tanto o espaço de exploração quanto de oportunidades
para o trabalhador, pois é a necessidade de divulgar os filmes que o cinema da
cidade exibe que dá ao pai a chance de ganhar o sustento de sua família; mas,
por outro lado, é um crime majoritariamente urbano - o furto de um meio de
transporte – que determina tanto seu desespero, ao ver-se privado de seu meio
de ganhar a vida, quanto sua desgraça, ao tentar furtar outra bicicleta.

Se a piedade que Bruno mostra-se capaz de despertar salva o pai do
linchamento e da prisão, custa a este o respeito do filho, que em vergonha se
transforma. Mas, ao final, as mãos dadas ao caminharem, ladeados de uma
multidão, em direção ao crepúsculo, em profundidade de campo, aponta para o
perdão.

Tudo somado, o final de Ladrões de Bicicleta oferece uma visão negativa da
cidade. A exclusão de pai e filho parece sugerir uma metáfora segundo a qual as
benesses que o meio urbano pode oferecer são vetadas aos menos favorecidos. O

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fato de o menino tomar parte da multidão que marcha em direção ao crepúsculo,
somado à anteriormente estabelecida continuidade de posição social entre pai e
filho, indica, metaforicamente, que se trata de um estado de coisas que tende a
se prolongar para as próximas gerações.

Conclusões

Ao lado de Bazin, Siegfried Kracauer, expoente da segunda dentição da
Escola de Frankfurt, se valeu de forma pioneira e extensiva do neorrealismo
italiano para aprofundar o debate sobre o realismo no cinema. Segundo ele,
Ladrões de Bicicleta e Umberto D estão entre os filmes em que “os protagonistas
não são tanto indivíduos particulares, mas tipos que representam grupos inteiros
de pessoas” (KRACAUER, 1965, p. 164).

À luz do que afirma Kracauer, pode parecer uma contradição a constatação
de que os três filmes neste artigo analisado cumprem duas das principais
propostas programáticas de Cesare ZAVATTINI (1979) para o neorrealismo: retratar
o cotidiano de pessoas comuns, e fazê-lo através do recurso ao pendimento,
ou seja, acompanhando “de perto” e com vagar seus atos, sem as abreviações
apressadas e “objetivas” do modo institucional de representação hollywoodiano
(que se vale da montagem para suprimir gestos e acelerar a narrativa).

Nos três casos analisados, tais escolhas acabam por reforçar a centralidade
do humano nos filmes neorrealistas e, ao mesmo tempo desempenham papel
fundamental no retrato da infância arrasada pela guerra em Alemanha, Ano Zero;
na falta de perspectivas – materiais, sociais, psicológicas – da velhice em Umberto
D
; e na denúncia de um ciclo de exploração e exclusão que tende a se perpetuar
em uma sociedade fragmentada por desigualdade e corrupção em Ladrões de
Bicicleta
.

A aparente contradição entre a produção de metáforas sociais – no
sentido mais amplo do adjetivo –, a partir de retratos cotidianos e humanistas
do(s) protagonista(s), denota, para além da intencionalidade dramatúrgica que
a construção de roteiros proporciona, uma capacidade de transformação do
particular no universal que constitui uma das pedras de toque do neorrealismo
italiano.

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Mas, talvez a análise dos filmes neste artigo apresentada permita sugerir que
esse diferencial representativo centralizado no indivíduo mas metaforicamente
eficaz tem um preço – e o custo seja pago, em parte pelo menos, pelo espaço (no
sentido físico, geopolítico do termo). E de duas maneiras principais, combinadas
ou não: “despersonalizando” o espaço, deixando de valorizar o que a cidade
tem de peculiar, de famoso, de distintivo, de turístico, de mais simbólico; e
“metaforizando” o espaço, ou seja, impregnando-o de sentidos metafóricos, a
exemplo do que acontece com os protagonistas.

Esse processo dual é corroborado por todos os filmes neste artigo
examinados. Nenhum deles dá destaque ou sequer contempla com algum vagar
marcos urbanos distintivos das cidades retratadas. Tanto Umberto D quanto
Ladrões de Bicicleta
têm, como apontado, diversas sequências em que Roma
tem um papel relevante para a narrativa, porém quando não metafórico (o uso
das edificações como símbolo do poder em Umberto D; o final de Ladrões... com
a multidão marchando ladeada de prédios sugerindo um matadouro) ou alegórico
(a cidade como espelho do capitalismo, como apontado por diversos críticos em
relação a Ladrões...), não suficiente para distinção exclusiva. Pois mesmo do que
se consegue distinguir no entorno narrativo ou em algumas sequências urbanas
– a perambulação de Umberto pela zona central; o périplo do casal, de bicicleta,
por ruas comerciais –, o que se vê são ruas de uma cidade aparentemente grande
com veículos e pessoas cujo vestuário remete a meados do século XX. Não
fossem alguns letreiros em italiano, seria preciso alguma familiaridade com as
ruas de Roma para identificar a capital. Claro que o idioma e o gestual dos atores
não deixam dúvidas quanto ao país em que se passa a ação, mas, em relação à
Roma em si, não se verifica a intenção de distingui-la visualmente.

O processo de “metaforização” se dá mesmo em relação à Berlim de
Alemanha, Ano Zero –, o filme em que a ligação entre história e espaço urbano
é mais rica de significados para a narrativa, entre os três analisados. Pois
parece válido argumentar que, a depender do grau de conhecimento histórico
do espectador e à medida que as décadas passam e o pós-Guerra se torna uma
referência cada vez mais distante para o espectador do tempo presente, a Berlim
em ruínas ali mostrada tende a ser menos apreendida como aquela cidade na sua
concretude, e mais como uma metáfora para a destruição do meio urbano pela
guerra, cuja cronotopia pode remeter, por exemplo, a Sarajevo, Bagdá ou Gaza.

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É importante ressalvar, no entanto, que relativizar o papel das cidades
como entes geopolíticos e históricos característicos, nos filmes aqui abordados
não equivale a negar a importância que neles têm. Assim como Berlim
desempenha um papel fundamental em Alemanha, Ano Zero, nem Umberto
D nem Ladrões de Bicicleta seriam os filmes que são se não se passassem em
Roma. Talvez seja possível dizer que as cidades metafóricas do neorrealismo, ao
expandir o imaginário em relação às cidades reais, as enriquecem ainda mais.

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Gilda (Charles Vidor, EUA, 1946)
Ladrões de Bicicleta (Ladri di Bicicletta, Vittorio De Sica, Itália, 1948)
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Umberto D (Vittorio De Sica, Itália, 1953)

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127 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

OS HERÓIS ANÔNIMOS NA CONSTRUÇÃO DA CAPITAL FEDERAL: UMA ANÁLISE DE
BRASÍLIA SEGUNDO FELDMAN (VLADIMIR CARVALHO, 1979)

THE UNSUNG HEROES IN THE CONSTRUCTION OF THE FEDERAL CAPITAL: AN
ANALYSIS OF DE BRASÍLIA SEGUNDO FELDMAN (Vladimir Carvalho, 1979)

Aline Carrijo1

https://orcid.org/0000-0002-2995-2684
http://lattes.cnpq.br/8346569277199695

Carolinne Mendes da Silva2

https://orcid.org/0000-0002-3009-420X
 http://lattes.cnpq.br/0081117927947860

Recebido em: 30 de agosto de 2024.
Aprovado em: 23 de dezembro de 2024.


 https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21861

1  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, com projeto de pesquisa na área de
História e Cinema. Possui graduação em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(2009), graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009), mestrado em
História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012) e MBA em Documentário pela
Fundação Getúlio Vargas (2016). E-mail: aline2586@gmail.com
2  Doutora e mestre pelo Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH-USP), possuo bacharelado e licenciatura em História pela mesma faculdade, na
qual ministro também cursos de extensão nas áreas de cinema e pensamento decolonial. Atuo nas
áreas de História das relações raciais no Brasil, História das relações de gênero no Brasil, Ensino de
História e Educação para as Relações Étnico-Raciais. Sou professora de História na Prefeitura Muni-
cipal de São Paulo e no Colégio Santa Cruz. E-mail: carolinne.silva@alumni.usp.br

RESUMO: O presente artigo propõe uma
análise do filme Brasília segundo Feldman (21
min, color., 35 mm), obra do cineasta Vladimir
Carvalho sobre os operários que foram construir
a capital federal. Realizado durante o período
de transição democrática, o filme nos provoca
reflexões sobre essa outra história de Brasília,
vista pelos trabalhadores, em contraste com
aquela consagrada e mitificada, encabeçada
pelos “homens de poder”.

Palavras-chave: Vladimir Carvalho,
Brasília, cinema moderno, modernização do
Brasil.

ABSTRACT: This article analyzes the film
Brasília segundo Feldman (21 min, color., 35
mm), by filmmaker Vladimir Carvalho. It tells
the history of the workers who went to build
the federal capital. Made during the period
of democratic transition, the documentary
provokes us to reflect on this other history of
Brasília, by workers’ point of view, in contrast to
the consecrated and mythologized one, headed
by “men in power”.

Key words: Vladimir Carvalho, Brasília,
modern cinema, Brazil’s modernization.

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Vladimir é um documentarista paraibano, ainda em atividade, que se
estabeleceu em Brasília há mais de 50 anos como professor da Universidade de
Brasília (UnB). Produziu 23 filmes, entre longas e curtas, dos quais 12 foram sobre o
Distrito Federal e as cidades do interior de Goiás. Ele se formou com cineastas do
Cinema Novo, compartilhando os preceitos estéticos desse movimento, mas seu
deslocamento geográfico mobilizou novos repertórios que foram incorporados
na realização dos seus filmes. Em sua trajetória, sempre se dividiu entre o campo
e a cidade, sendo Brasília aquela para qual mais dedicou atenção.

Neste artigo, nos centraremos no filme Brasília segundo Feldman, assinado
por Vladimir Carvalho e por Eugene Feldman. Apesar de a montagem e a concepção
do filme serem do primeiro, praticamente todas as imagens são de Feldman, um
designer gráfico estadunidense que veio para o Brasil em 1959. Elas têm caráter
amador e mostram em grande parte os candangos, como ficaram conhecidos
os construtores de Brasília. Essas informações são trazidas pelo próprio filme
na voz de um narrador extradiegético. A mesma voz diz que as imagens teriam
mostrado de forma inédita a construção de Brasília “até agora”, ou seja, até
o momento de lançamento do filme, em 1979. O mais comum, até então, eram
imagens consideradas oficiais, de Juscelino Kubitschek e sua equipe, e dos
momentos celebrativos da nova capital.

O filme mostra operários sendo transportados em caminhões, trabalhando
na maior parte das vezes sem capacete e sem proteção, comendo marmita no
meio da poeira vermelha do Cerrado ou em momentos de lazer. As tomadas
são tremidas, inconclusas e, por vezes, sem foco. Como indicam os letreiros,
há também algumas imagens adicionais, realizadas pela equipe de Vladimir,
e nas quais aparecem os dois depoentes que compõem a banda sonora do
documentário. Um deles é Athos Bulcão, pintor e autor de diversos painéis em
Brasília, e o outro é o Luiz Perseghini, ex-operário, que trabalhou na construção
da capital – e que será o personagem principal de outro filme de Vladimir, que leva
seu nome, Perseghini (1984). Provocados pela voz extradiegética, que cumpre
papel de entrevistadora, eles olham as imagens e tecem comentários sobre elas
ou sobre a época de uma maneira geral, em depoimentos que muitas vezes se
contradizem. Em alguns momentos, as vozes também se confundem e é preciso
muita atenção para saber quem está falando.

A narração verbal descreve as cenas, fala sobre o que é visto e o que está
acontecendo nas imagens, mas conta também causos e histórias que fogem do

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que está sendo apresentado visualmente. Podemos dizer que, assim como as
imagens, os depoimentos são disformes, inconstantes, não lineares. Os assuntos
são voláteis, não seguem uma sequência lógica, vão e voltam. Apesar disso, a
instância narrativa parece se construir a partir de contrastes estabelecidos nas
locuções, na montagem e nas imagens.

Logo no início do curta, vemos a chegada de JK. Quem narra esse momento
é Athos Bulcão. Ele fala que o presidente chega no Vickers, avião presidencial da
época, comprado por Juscelino, e ressalta: “Até então, não tinha esses aviões em
linha” (BRASÍLIA [...], 1979, 2min01). Nas imagens, os militares marcham, dezenas
de jornalistas aguardam sua chegada. Tudo é um espetáculo na chegada do
presidente à capital, até mesmo o seu transporte: não é qualquer avião, como
nos informou Bulcão ao evidenciar o modelo exclusivo da aeronave. Em dois
planos, é ela que se destaca; as pessoas aparecem por baixo de suas asas. Em
seguida, todos aguardam novamente, mas agora para ver Juscelino partir em
seu helicóptero para sobrevoar a construção da nova capital. Mais uma vez, as
pessoas estão sob o meio de transporte, agora debaixo das hélices do helicóptero
que giram sobre suas cabeças. Nessa sequência da chegada de JK, também
somos apresentados aos homens que estão ao seu redor. Bulcão identifica Israel
Pinheiro, “braço forte de Juscelino na construção de Brasília” (BRASÍLIA [...],
1979, 2min26) e o então jornalista e depois político Pompeu de Sousa. Depois cita
o arquiteto e pintor Artur Lício Pontual e o designer gráfico Aloísio Guimarães.
Eles estão em frente a um carro, que também aparece na próxima sequência.

Vemos o carro por trás em uma estrada de terra. Logo depois passa um
ônibus e, na direção contrária, uma carroça. No plano seguinte, o carro está de
frente e, ao seu lado, está um dos caminhões que levavam os trabalhadores em sua
carroceria; na frente dos dois, um homem de bicicleta. O próximo plano já mostra a
bicicleta atrás do caminhão e a poeira vermelha que sobe. A sequência apresenta
evidentes contrastes internos: entre o carro fechado que leva trabalhadores
qualificados e o carro aberto com os trabalhadores braçais, sujeitos ao pó e às
mudanças do tempo; entre os carros e a carroça, que vai na direção contrária;
e entre os carros e a bicicleta, que fica para trás “comendo poeira”. Ela também
contrasta com a sequência anterior: tanto na dicotomia que justificou a capital –
a chegada de Juscelino recheada de símbolos da modernidade contra o atraso da
região que estaria em transformação – quanto na diferença de tratamento entre
os “homens do poder”, em seus aviões, helicópteros e carros confortáveis, e os

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trabalhadores, de bicicleta, carroça ou na carroceria da camionete.

Figura 1 – Diferentes meios de transporte durante a construção de Brasília


Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 3min10.

Nota: Sequência de planos que mostra o contraste dos meios de transporte durante a construção da capital.

Em uma das sequências seguintes, ocorre uma situação inusitada, ainda
mais contrastante com a realidade. Um elefante aparece no meio do Cerrado
descampado, de longe – totalmente descolado da flora e da fauna locais. A câmera
se aproxima aos poucos e, então, corta para um plano médio do animal. Ele está
completamente enquadrado e a lente faz um movimento de zoom in até fechar
em seus olhos, com parte de sua tromba. Na banda sonora, descobrimos sua
história pela narração de Bulcão: “Era o tal do elefante Detefon”, que um amigo de
Juscelino teria dado a Brasília. E completa: “Parece que sofria de reumatismo, foi
um dos fundadores do Jardim Zoológico” (BRASÍLIA [...], 1979, 4min25). Além da
imagem e da situação inusitada, ficamos ainda sem saber quem foi o fundador,
se o amigo ou o elefante.

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Figura 2 – Elefante “Detefon” destaca-se em meio ao Cerrado

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 4min25.
Nota: O elefante Detefon, no meio do Cerrado descampado, contrasta com a fauna local.

Outra sequência também demonstra o contraste entre a situação dos
trabalhadores braçais e os considerados qualificados, como arquitetos,
designers, pintores, urbanistas etc. Na imagem, tratores passam pela estrada de
terra, fazendo poeira. A voz que ouvimos parece de Vladimir dizendo que “Parece
mais coisa da guerra, não?”. Ao que Bulcão responde afirmativamente: “Parecia,
tinha um aspecto de bombardeio. Essa buracaria. Mesmo as casas que a gente
morava lá, quando chovia era lama para todo lado, que essa terra toda virava
lodaçal” (BRASÍLIA [...], 1979, 4min43). Em seguida, enquanto o pintor conta sobre
um caso em que uma “matilha de cães do Cerrado” roubou espetos de carne em
um churrasco, corta para um plano de homens trabalhando em um escritório. Eles
olham alguns papéis e depois se posicionam contra a luz que entra pela janela. A
imagem seguinte é de um plano praticamente preenchido de poeira. Quase não
se vê nada. A câmera tremida vai se aproximando dos tratores que levantam o pó
e de uma construção ao fundo. Depois corta para um caminhão abarrotado de
trabalhadores na carroceria. Apesar da fala de Bulcão sobre a situação das casas
em que viviam, há nas imagens uma oposição entre o conforto dos trabalhadores
do escritório, dos planejadores, e daqueles que executavam as obras, ao menos
no ambiente de trabalho.

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Figura 3 – Contraste entre trabalhadores em ambiente interno e externo

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 4min43.
Nota: A montagem estabelece, pela alternância dos planos, um contraste entre o ambiente de trabalho dos ope-

rários, similar à guerra, e dos planejadores da obra, em seus escritórios.

Ainda nessa sequência, a história divertida e prosaica de Bulcão sobre os
cães ladrões de carne também acaba por entrar em contraposição com a fala
seguinte de Perseghini. Ele conta sobre como as companhias “como a Rabelo, a
companhia americana e as demais firmas” (BRASÍLIA [...], 1979, 5min46) adquiriam
carne e consumiam dentro da cantina: as carnes de segunda e de terceira eram
jogadas fora por caminhões para os urubus comerem. No entanto, as pessoas que
moravam na Vila Amaury3 aproveitavam para comer essas carnes, já que, apesar
de haver trabalho em Brasília, muitos tinham até dez filhos. No fim da sequência,
após outras imagens de trabalhadores sob sol e poeira, há novamente um plano
de dois homens, dentro do escritório, analisando um documento.

Na alternância entre imagens externas e internas, de desconforto e conforto
e, entre história trágica e anedota, a sequência também ajuda a montar a ideia
de contraposição sustentada pela instância narrativa. A partir daqui ganham
destaque os temas relativos às condições de trabalho, e duas sequências parecem
consolidar o contraste como intrínseco à narrativa e indicar o sentido que ele

3  Comunidade que se formou irregularmente durante a construção devido à falta de habitação. Tor-
nou-se, posteriormente, Sobradinho, no Distrito Federal.

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imprime na fatura do filme. Ele se estabelece não apenas pela composição dos
planos e da montagem, mas pela própria qualidade da imagem.

***

Na maior parte do filme, as cores das imagens são em tom pastel,
característico de registros mais antigos. No entanto, aparecem algumas poucas
em contraluz, e especificamente contra o sol, aumentando o contraste e se
destacando em relação ao conjunto do filme. Apesar de mais raros, esses planos,
dois deles, especificamente, trazem um alto teor de carga simbólica, tanto pela
maneira como são apresentados esteticamente quanto pelo lugar em que estão
dispostos na montagem.

Após ser questionado se houve acidentes durante a construção, o pintor
Athos Bulcão fala que houve “bem menos do que se esperava”, e que os operários
não usavam proteção como deveriam. O operário Luiz Perseghini contesta,
dizendo que não havia assistência social nem remédio, que acontecia, sim, muito
desastre e que vários operários morriam ao cair das estruturas. Acrescenta que,
quando isso ocorria, o corpo desaparecia de imediato, para não haver desânimo
entre os companheiros do morto. Então diz: “[...] centenas de vidas foram
assim, perdidas em trabalho. [...] Acho que noventa por cento dessas pessoas,
os familiares não receberam indenização, não. Dava por nome de desaparecido”
(BRASÍLIA [...], 1979, 7min55). Nesta última frase entra um plano que se destaca.

Ele dura 6 segundos, de 7min58 até 8min04. Alguns operários estão em
cima de um tablado pintando o teto de uma construção. O plano, como dito, é em
contraluz: vemos apenas as silhuetas e as sombras projetadas no teto. A lente
faz um movimento de zoom in enquanto os trabalhadores pincelam. A imagem da
sombra faz parecer que eles pintam suas próprias projeções. O plano, em contra-
plongée
, coloca os operários numa posição de destaque, no alto, realizando uma
atividade considerada criativa, de pintura. Por outro lado, não vemos seus rostos,
não sabemos quem são. Parece que, quando exaltados, os trabalhadores surgem
apenas como sombras.

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Figura 4 – Pintores

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 7min58.
Nota: Um plano em contraluz mostra operários pintando um teto, e suas sombras destacam-se na imagem.

O quadro aparece exatamente após Perseghini narrar sobre os corpos
desaparecidos da construção, o que intensifica a ideia dos operários como
imagens esquecidas na história. Após a fala, sobe o som de uma música de
tambores e há uma transição para o próximo plano.

A segunda imagem é o último plano do filme, também contra o sol. Vemos
apenas a silhueta de um homem. Se, dentro da narrativa fílmica, fica nítido que
é um operário, na imagem isolada, ele poderia ser um cowboy, como nos filmes
de faroeste. O operário aqui remete a um herói forasteiro, a uma figura mítica,
mas cujo rosto, mais uma vez, não é possível visualizar. Nesse sentido, temos
duas imagens esteticamente chamativas, quase heroicas, que valorizam esses
operários, mas sem identificação nem mesmo de seus traços.

Este último plano também finaliza uma sequência representativa do filme em
que Perseghini, após ser questionado se ele e seus companheiros tinham noção
de que estavam participando de um grande acontecimento construindo Brasília,
responde que, de certa forma, sim, mas que esperavam apoio do governo: “O
candango ficou relegado ao esquecimento. As obras que às vezes a gente ajudou
a construir, a gente não pode passar nem perto, se passar, conforme ela, vai até
preso. Isso é coisa certa” (BRASÍLIA [...], 1979, 20min26). Fica explícito, em sua
fala, o sentimento de descaso do operário que ergueu a cidade, foi desprezado

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pelo governo e esquecido pela história.

Figura 5 – Cowboy

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 20min37.
Nota: O último plano do filme mostra a imagem de um homem que, isolado, assemelha-se a um cowboy dos

filmes de faroeste.

Nessa última fala, Perseghini também se remete diretamente ao tempo
presente da feitura do filme. Ele diz que não poderia passar nem perto das
construções que seria preso, ou seja, ele está falando de uma situação “atual”,
do momento em que está sendo dado o depoimento. O ano em que o filme foi
realizado, em 1979, é um período politicamente intenso, de início da transição
do regime militar. Começaram a ser elaboradas reflexões sobre o que significou
o regime ditatorial e o que se projetava para o futuro, configurando-se o que
podemos chamar de batalhas de memória.

Nesse período, houve um processo de resgate da imagem de Juscelino
com o objetivo de construir um passado positivo anterior à ditadura, centrado
na figura do ex-presidente (CEDRO, 2003, p. 213). No cinema, um exemplo claro
desse esforço em valorizar a imagem do político é o documentário Os anos JK,
uma trajetória política
(1980), de Silvio Tendler. A imagem do ex-presidente é
criada no filme com base na ideia de conciliação, do homem que conseguiu reunir
e acalmar todas as forças sociais ao redor de si, e acaba por servir a um momento
em que se elaborava um pacto entre setores divergentes da sociedade contra a
ditadura, a chamada frente ampla.

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Já a partir do curta de Vladimir, constrói-se, ainda que indiretamente, uma
crítica ao governo de JK, pois mostra a história dos operários que ergueram a
cidade idealizada pelo ex-presidente, mas que depois não poderiam nem mesmo
andar por ela livremente. Nesse sentido, Brasília segundo Feldman exalta figuras
historicamente excluídas, ainda que de forma anônima, em contrapartida à
tendência comum à época de valorização de grandes heróis nacionais. Elabora-
se uma crítica sobre como as classes operárias são continuamente excluídas do
processo histórico-social, colocando-as em primeiro plano. No entanto, esses
trabalhadores, mesmo quando exaltados como construtores do país e possíveis
heróis nacionais, sabemos quem são? Os planos contra a luz parecem nos
perguntar se de fato conhecemos o trabalhador brasileiro. Você tem imagens
que mostram esse povo, mas elas falam de fato sobre ele?

Jean-Claude Bernardet aponta que uma das limitações do filme é o fato de
Feldman não filmar as moradias dos candangos, por exemplo, mas sim a situação
no trabalho, ou no máximo “o domingo” deles (BERNARDET, 2003, p. 256). Além
disso, para o autor, haveria certo resquício de uma postura sociológica no
curta, quando a voz da locução inicial afirma que a câmera de Feldman fixou “o
puro do candango” (BRASÍLIA [...], 1979, 26seg). Essa generalização partiria do
particular para o abstrato, tendendo a construir uma visão mais direcionada
sobre a realidade. No entanto, essa denominação não se concretiza no projeto
do Feldman, nem do próprio Vladimir, já que há um interesse claro do filme pelos
candangos e suas condições de trabalho, e não pela definição de uma categoria
sociológica. A própria estrutura do filme, realizada com uma postura crítica,
não apenas na temática, mas também no uso que faz das imagens de arquivo,
indicaria a ausência dessa perspectiva.

Como aponta Bernardet, é comum que as imagens de arquivo sejam
utilizadas como ilustração em documentários, como no caso do filme de Tendler,
que é construído com o intuito de gerar uma imagem positiva de Juscelino
Kubitschek, como líder conciliador e capaz, como um modelo a ser seguido. Com
esse propósito, as imagens usadas são “rigorosamente domadas e enquadradas”
(BERNARDET, 2003, p. 248) por mecanismos como seleção, montagem, música
e locução, para dizer o que se quer dizer, o que tende a reduzir as ambiguidades.
Todavia, em Brasília segundo Feldman, não se atribui um significado anterior às
imagens: elas vão sendo comentadas pelos depoentes como se eles fossem
espectadores. É o próprio filme que cria uma situação que será registrada e

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transformada em um produto final.
Nesse sentido, poderíamos alinhar formalmente o curta aos chamados

filmes-dispositivo, categoria utilizada por Consuelo Lins para aproximar a
produção de Eduardo Coutinho, Cao Guimarães, João Salles, Sandra Kogut e Kiko
Goifman. Segundo a autora, esses cineastas realizaram filmes “que prescindem
da feitura de um roteiro em favor de certas estratégias de filmagem que não
têm mais por função refletir uma realidade pré-existente, nem obedecer a um
argumento construído antes da filmagem” (LINS, 2007, p. 45). Dessa forma, os
diretores encarariam o mundo não como um lugar “pronto para ser filmado”,
mas sim em constante transformação e, por isso, construíram procedimentos
específicos para filmar a realidade a partir de “dispositivos” (LINS, 2007, p. 45).

O dispositivo seria, assim, algo que produz, ativa e cria realidades e
percepções que não preexistiam a ele: “Ao contrário dos roteiros que temem o
que neles provoca fissuras e afastam o que é acidental e aleatório, os dispositivos
documentais extraem da precariedade, da incerteza e do risco de não se
realizarem sua vitalidade e condição de invenção” (LINS, 2007, p. 46).

No caso em análise, a premissa é simples: mostrar as imagens para duas
pessoas que viveram a realidade e deixar que elas narrem suas experiências.
Surgem as aleatoriedades, as contradições e as falas sobre aspectos que
não estão registrados, mas são importantes para os que narram. Assim, os
movimentos do filme são construídos também pelo que determinam os depoentes
e, posteriormente, claro, pela montagem. O próprio filme se declara como um
“testemunho” sobre os primeiros tempos de Brasília, uma visão, entre outras.

Assim, Brasília segundo Feldman se constrói por uma postura inovadora
tanto do ponto de vista temático – de produção de memória dos trabalhadores, e
não dos “grandes homens da história”, em 1979 – quanto formal, do uso crítico das
imagens de arquivo. No entanto, como sabemos, forma e conteúdo não andam
separados, e é exatamente esse uso crítico das imagens de arquivo que também
possibilita a visualização mais direta das sobreposições de temporalidades que
compõem o documentário, como vimos pelo depoimento de Perseghini que,
ao falar livremente sobre o que vê, chama atenção para o momento em que o
testemunho está sendo realizado.

Ao longo do filme há também outras referências sobre a época do
depoimento, adicionando camadas de significações à narrativa. Antes de falar
sobre o massacre da Guarda Especial de Brasília (GEB), por exemplo, Perseghini

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pergunta: “Pode falar, né? Deve falar ou não?” (BRASÍLIA [...], 1979, 15min28).
Apesar de 1979 ser um momento de abertura política, ainda há um contexto
marcado pela relação direta com a censura e com a violência da ditadura
militar. Voltando à sequência descrita, em que Perseghini fala sobre as famílias
que tiveram seus integrantes tidos como desaparecidos, elabora-se mais uma
relação com o tempo de realização do filme ao tratar de um tema caro à ditadura:
o desaparecimento sistemático de cidadãos por parte do Estado. Situação que
fica ainda mais evidente com a história do massacre da Pacheco Fernandes.

Perseghini conta que houve uma chacina na construtora Pacheco Fernandes
Dantas por questão de alimentação. Ele afirma que a GEB “tomava posição” diante
de qualquer reclamação, de qualquer alteração que houvesse ou nos alojamentos
ou nas cantinas. Segundo o operário, a Guarda agia por ordem de Israel Pinheiro,
presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) –
apresentado no início do filme como braço direito de Juscelino Kubitschek.
Devido à má alimentação e à falta d’água, teria havido uma insubordinação na
cantina. A GEB chegou por volta de uma hora depois, sem avisar, e metralhou o
acampamento: “Os que não fugiram foram baleados. E os que foram baleados e
mortos foram imediatamente ajuntados pelos caminhões” (BRASÍLIA [...], 1979,
16min30) e enterrados. Haveria pessoas ainda vivas com o braço amputado por
conta dessa situação. E um cabo que participou da chacina teria enlouquecido,
traumatizado em consequência do massacre.

O episódio do massacre está cercado por versões que divergem entre si no
que diz respeito ao número de mortes e à maneira de encadear e avaliar os fatos,
mas não há negação sobre o episódio ter ocorrido nem mesmo na versão oficial.
Gustavo Lins Ribeiro fez uma análise aprofundada sobre o assunto com base em
depoimentos de operários e no discurso oficial apresentado nos jornais. Ele afirma
que não é possível saber a quantidade exata de mortos, já que nos testemunhos
esse número pode chegar a 140, enquanto as versões dos jornais em geral
apontam 1 morto e alguns feridos. No entanto, para o autor, independentemente
do número de mortos, “o registro para alguns trabalhadores de até 140 mortes é
a expressão de como a violência em grande escala ficou registrada na memória”
(RIBEIRO, 2008, p. 232):

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Quando relativizo a importância do número de mortos, o faço porque, apesar da
diferença de escala de um para 140 poder alterar qualitativamente o julgamento moral
e político do acontecimento, qualquer que seja o número, ele é o resultado de uma
estrutura de violência que operou em um determinado acampamento. O número de
mortos advém de uma mesma estrutura cuja compreensão é mais importante do
que as versões sobre os seus resultados. As diferenças de versões, que aqui tomo
expressas na diferença do número de mortos, mostram também que o lado agredido
enfatiza a dimensão da agressão por meio de grandes quantidades. Já o lado agressor
tenta minimizá-la pelo mesmo elemento, o número de mortos. (RIBEIRO, 2008, p.
232)

Para Ribeiro, nessa disputa de versões, a visão oficial costuma ser carregada
de “aparência de verdade”, já que é veiculada por autoridades constituídas e faz
“com que a suposta neutralidade do Estado” (RIBEIRO, 2008, p. 232) sirva de aval
para sua veracidade. A memória popular, por sua vez, não registrada, fica sujeita
a deformações no tempo e passa a ser associada a um mito popular, passado
“de boca em boca”, e que não mereceria credibilidade. No entanto, a memória
dos testemunhos que ressalta a violência é sustentada pela maneira como se
configuraram as forças de poder durante a construção de Brasília, na prática,
para os operários, através da ação brutal da Guarda Especial de Brasília.

A GEB era uma instituição policial de caráter paramilitar, criada pelo
Departamento Regional de Polícia de Brasília e que estava subordinada à
Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás. No entanto, as despesas de
ordem material e pessoal eram responsabilidade da Novacap, a companhia criada
por JK para gerir a construção da capital (SOUSA, 2011). Segundo Hermes Aquino
Teixeira, a GEB tinha “missão repressiva na área das obras, dos acampamentos
e da Cidade Livre, garantindo o intenso ritmo de trabalho” (TEIXEIRA , 1996, p.
41). Geraldo Joffily, por sua vez, ao analisar o perfil dos policiais que integravam
a Guarda, afirma que a polícia vinculada à empresa estatal era, na verdade,
responsável pela insegurança da população:

[...] uma espécie de grupo de segurança ou guarda policial, infundindo mais temor do
que respeito. Era comandada por um general reformado e alguns oficiais militares,
atuando, de fato, pela orientação rotineira de alguns delegados ou comissários vindos
das polícias de Minas Gerais e Goiás. Os praças eram escolhidos entre os candangos
de maior porte e alguns ferozes elementos da polícia goiana. [...] Um policiamento or-
ganizado de método tão primário representava os poderes do próprio Estado (aceito
ou imposto, não cabe agora discutir), com um mínimo de estabilidade e equilíbrio para
o único objetivo que se tinha em mira: construir Brasília. [...] Como era de se esperar,
estes primitivos métodos iriam favorecer toda sorte de abusos de autoridade, pros-
perando as violências, extorsões, subornos e prevaricações. (JOFFILY, 1977, p. 52-53)

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Ribeiro mostra que as arbitrariedades da Guarda também foram denunciadas
em diversos jornais à época. Na edição de 27 de julho de 1958 do jornal A Tribuna,
que circulava no Núcleo Bandeirante, lia-se: “Novacap Terceira República
do Brasil. A polícia da Novacap Assalta o Direito Constituído da Democracia
Humana. Ditadura Implantada por uma Corporação Inconstitucional” (RIBEIRO,
2008, p. 57). Já na edição de 26 de março de 1959 do jornal O Anápolis, da cidade
de mesmo nome, em Goiás, nas proximidades do DF, denunciava-se: “A Polícia
da Novacap está exorbitando suas Funções. E Faz Espancamentos em Moças e
Menores” (RIBEIRO, 2008, p. 58). Além disso, segundo Teixeira, houve pelo menos
sete denúncias na Justiça contra o corpo policial envolvendo extorsões, abusos
e violência (TEIXEIRA, 1996, p. 42).

Para Ribeiro, a repressão violenta e impune da GEB foi possível devido à
necessidade instituída por JK em inaugurar a obra na data prevista e ao grande
poder concentrado na mão da Novacap, como já exposto, mas também pelo que
ele denominou de “ambiguidade jurídica”, que caracterizava a área da construção.
Segundo o cientista social, essa situação jurídica é marcada pela indefinição
da responsabilidade do Estado com os habitantes do território. Isso ocorreu,
basicamente, por dois motivos. A Constituição do Estado de Goiás previa que o
território a ser doado para a construção da nova capital seria transferido para a
administração federal a partir do momento em que ela fosse inaugurada, ou seja,
no dia 21 de abril de 1960. No período da construção, portanto, o território ainda
seria pertencente a Goiás. No entanto, os municípios que foram desmembrados
para dar lugar ao DF – Planaltina, Formosa e Luziânia – eram pequenos e não
tinham estrutura burocrática para dar conta das novas demandas advindas com
a enorme migração de pessoas para a região. A Delegacia e a Justiça do Trabalho,
por exemplo, ficavam em Goiânia, que à época era de difícil acesso.

Além disso, a própria criação da Novacap como empresa pública responsável
pela construção permitiu, na prática, que a companhia atuasse como o próprio
Estado no território – comandada por Israel Pinheiro, indicado por JK:

[...] o que mais chama atenção é que, sendo uma obra federal, o Estado tenha se
deslocado fortemente para uma área isolada, trazendo consigo um poderoso órgão
ligado ao Executivo, mas, em última instância e de fato, tenha deixado ausentes
os órgãos cujas funções seriam mediar o conflito entre capital e trabalho (tanto do
Executivo, Ministério do Trabalho; quanto do Judiciário, Justiça do Trabalho). (RIBEIRO,
2008, p. 198)

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Para um juiz do trabalho entrevistado por Ribeiro, houve uma deliberação de
manter o estado anômalo, para garantir a exploração do trabalho. Em uma edição
de 1960 do jornal Novos Rumos, do Rio de Janeiro, uma nota diz:

Aos homens do Governo que estão à frente da construção de Brasília atribui-se esta
frase: a Justiça do Trabalho não deve atrapalhar a construção... Em outras palavras:
não deve haver limites para a exploração dos trabalhadores. (RIBEIRO, 2008, p. 199)

Ainda que houvesse um movimento, principalmente no Rio de Janeiro,
contra a mudança da capital, a nota parece se somar a outras evidências sobre o
tema da exploração do trabalho. Ao extinguir essas instituições, e garantir uma
atuação repressiva impune da GEB, criava-se uma espécie de estado de exceção
durante a construção, permitindo arbitrariedades em nome da inauguração da
capital e da suposta instauração da modernidade e da “civilização” na região.
Estabelece-se uma contradição escancarada entre o teórico projeto civilizador e
a configuração de uma terra sem justiça durante o período da construção.

Ao delegar essa tarefa à Novacap e a Israel Pinheiro, como presidente da
companhia, Juscelino também consegue, de certa forma, se afastar da imagem
de autoritarismo que se configurou na localidade. Segundo Ângela de Castro
Gomes, uma das grandes preocupações de JK, desde o início de sua vida pública,
foi se associar à ideia de tradições democráticas, com uma narrativa pessoal que
o vinculava à modéstia, à paciência e à habilidade política (GOMES, 2002, p. 14).
Postura que pode ser considerada vitoriosa, principalmente durante a transição
democrática. O curta de Vladimir acaba por ir contra essa versão.

Apesar de não se tecer críticas diretas à figura de Juscelino Kubitschek ou
ao seu governo, o presidente é diretamente associado à figura de Israel Pinheiro.
Numa das primeiras falas do pintor Athos no filme, ele apresenta Israel Pinheiro
como o braço forte de Juscelino durante a construção. Depois, Perseghini afirma
que quem mandou a GEB para conter a rebelião que gerou o massacre foi o
presidente da Novacap. Em um outro ponto do filme, que fala sobre a construção
do lago em Brasília, Perseghini também acusa Israel Pinheiro de não ter ouvido
as vozes dos trabalhadores e ter pedido o fechamento das comportas que daria
origem ao lago, desconsiderando as pessoas que moravam no lugar onde a água
ia começar a subir: “E a água chegou a inundar muitos barracos de ficar até pelo
joelho. Teve noite de família acordar com água já na cama, porque a comporta

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tinha que subir, a água tinha que subir na comporta” (BRASÍLIA [...], 1979, 12min49).
Há, portanto, essa associação direta, por parte de Perseghini, entre o

massacre, as más condições de trabalho e a figura de Israel Pinheiro. E se ele é
apresentado, logo no início do filme, como o homem de confiança de JK, podemos
dizer que a narrativa constrói a ideia de que o massacre e a violência sobre os
candangos acontecem sob tutela de seu governo. Assim, na contramão de exaltar
um período antes da ditadura tido como positivo principalmente no momento da
transição democrática, como vimos, Brasília segundo Feldman apresenta indícios
de autoritarismo também antes da ditadura militar.

Daniel Aarão Reis fala da necessidade de analisar as permanências da
ditadura em nossa sociedade, como a política autoritária que persistiu mesmo
com o fim do regime. Segundo o historiador, “a ditadura reatualizou e exacerbou
no Brasil a cultura autoritária” (REIS, 2002, p. 72), e a Constituição de 1988 não
conseguiu resolver o desafio de acabar com o autoritarismo. Nessa mesma
linha, entendemos que é preciso inserir a ditadura militar em estudos de longa
duração para compreender esse caráter constitutivo da violência no Estado e
na sociedade brasileira, que inclua não apenas o pós-ditadura mas também o
período anterior.

Para isso, violências, opressões e repressões acontecidas durante os
governos democráticos também precisam ser estudadas e devidamente
criticadas. E o filme de Vladimir nos permite fazer essas reflexões. Em uma
de suas falas, Perseghini parece resumir o constante e histórico processo de
violência pelo qual passavam as trabalhadoras e trabalhadores de baixa renda
no país e também durante a construção da capital: “Brasília ofereceu até muitas
vantagens pra alguns, mas pra outros não. Operário é sempre operário. Bastante
sacrificado, né?” (BRASÍLIA [...], op. cit., 14min57).

***

Outro tema que aparece no filme, ainda que de maneira mais tangencial,
mas que de certa forma se impõe pelas imagens e pelo depoimento, é a presença
das mulheres durante a construção. Nas imagens, há apenas algumas mulheres
em contraste com centenas de homens. A primeira aparece no segundo minuto
do filme, quando um grupo de pessoas aguarda a chegada de JK. Aparece uma

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mulher de costas, de mãos dadas com uma criança. Em outro momento, a câmera
enquadra uma mulher negra com uma criança, durante a chegada de Juscelino.
Mas é durante o provável domingo dos trabalhadores, em um local identificado
por Perseghini como o Núcleo Bandeirante, que elas mais aparecem.

Um plano mostra uma pessoa de branco, com uma sombrinha da mesma cor
– ela está de costas e a sombrinha tampa sua cabeça, mas, pelas vestimentas,
podemos inferir que seja uma mulher. Em seguida, a câmera faz um movimento
e mostra outra mulher de vestido branco comprido e mangas longas. Primeiro
a visualizamos de costas, então ela se vira e vemos que está grávida. Logo em
seguida aparece uma mulher de vermelho. A câmera parece acompanhá-la
fazendo um movimento para a direita. Passa um caminhão em primeiro plano e,
quando ele sai, ela não está mais enquadrada. Apenas alguns segundos depois
ela reaparece vindo na direção contrária. Outro veículo passa em primeiro plano,
ela ressurge rapidamente. Passa outro caminhão e ela não é mais vista neste
plano. Sua imagem parece escapar o tempo todo da câmera, dos registros,
representando, de certa forma, a própria ausência das mulheres na história.
A câmera agora faz um movimento mostrando uma fila de homens. Corta para
outro plano, em que ela aparece encostada em uma parede de um mercado. A
lente faz um zoom in para mostrá-la melhor.

Figura 6 – Mulheres no Núcleo Bandeirante

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 10min40 e 11min26.
Nota: Mulheres aparecem no filme no “dia de domingo”; apesar de poucas referências, elas estiveram presentes

durante a construção de Brasília.

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Particularmente nesta última sequência, que acompanha a mulher de
vermelho, há um interesse explícito da câmera por ela. Não é acidental seu registro.
Provavelmente, aquela mulher com uma roupa que se destaca até mesmo pela
cor, caminhando entre uma maioria de homens, chamou a atenção de Feldman.
A menor presença de mulheres na localidade também deve ter sido motivo para
o interesse. É no momento em que ela aparece que Perseghini fala sobre elas:
“Quase não havia mulher em Brasília, né? Quase que era só homem mesmo”. E
depois diz que iam mulheres de Goiânia, de Patos de Minas, para trabalhar como
prostitutas durante a construção, “que fazia fila de 4, 5, 6 homens pra uma mulher
só”. Em seguida esclarece que “não participava dessas coisas”, e que se sentia
mal, mas que “a turma levava isso no natural, né?” (BRASÍLIA [...], 1979, 10min51).

Se os operários ficaram muito tempo sem o devido reconhecimento do
papel que exerceram durante a construção, às mulheres esse lugar foi ainda
mais renegado. Nos últimos anos, no entanto, começaram a surgir diversos
estudos sobre o tema, que demonstram que elas foram fundamentais para
o estabelecimento da nova capital, ainda que em menor quantidade que os
homens. De acordo com o Censo Experimental, divulgado em 19 de maio de 1959
(INSTITUTO [...], 1959), residiam na nova capital 64.314 pessoas, das quais 34,18%
eram mulheres. Essa proporção, no entanto, variava conforme a localidade. Nos
acampamentos das construtoras, o número de mulheres era menor, já que, em
geral, eram permitidos apenas homens solteiros. Somente alguns alojamentos
tinham espaço para famílias (RIBEIRO, 2008). Assim, as famílias se concentravam
principalmente fora dessas regiões, como, por exemplo, na Vila Amaury. Ali, havia
uma proporção de 884 mulheres para cada 1.000 homens, um número bem mais
equilibrado. Em outros núcleos autônomos, como Taguatinga e Cidade Livre,
também havia números mais próximos entre eles e elas.

Além disso, como interpreta José Gomes do Nascimento, as mulheres,
em boa parte, tinham idade entre 20 e 29 anos e trabalhavam não apenas como
donas de casas, mas também eram ativas em áreas como serviço, comércio e
entretenimento, no caso das prostitutas (NASCIMENTO, 2019, p. 304). Segundo
Nascimento, um possível motivo para diversos relatos sobre haver poucas
mulheres na cidade, como o de Perseghini, era a proporção entre casadas e
solteiras. Levando em consideração apenas estas últimas, a proporção cai para

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a metade: 17 mulheres para cada 100 homens.
O autor aponta que essas mulheres também sofreram ações repressivas

por parte da GEB. Para manter o alto ritmo de produção do operariado, a Guarda
era responsável por manter a ordem no território, proibindo bebidas alcoólicas,
por exemplo, ou expulsando aqueles ou aquelas que não estavam registrados
pelas construtoras e que poderiam causar problemas. Entre as questões que
precisavam ser resolvidas também estava a chamada Zona de Baixo Meretrício
(ZBM), que “prejudicava” a imagem de Brasília. A ZBM era uma movimentada
zona de prostituição nas imediações da Cidade Livre. Segundo Nascimento,
“diferentemente do que era divulgado na época, foi um ambiente cercado de
violência, não apenas pelas rixas entre os trabalhadores que disputavam as
mulheres como também pela repressão da polícia a esses sujeitos e às prostitutas”
(NASCIMENTO, 2019, p. 320).

As imagens das mulheres no curta, principalmente daquelas com crianças,
ou da grávida, também dão indícios da formação de laços na localidade, em
detrimento da ação concreta por parte do Estado através das companhias para
evitar que famílias se estabelecessem no local. O projeto previa fixação provisória
para os trabalhadores, e os planejadores acreditavam que grande parte deles
voltaria para seus lugares de origem: “O rompimento deste esquema inicial se
deu em diversos momentos e esteve pontilhado de conflitos que envolviam a
participação intensa dos operários da construção civil” (RIBEIRO, 2008, p. 236).

Outro momento que mostra essa presença dos operários, para além do
trabalho, é quando aparece uma imagem de um homem de vermelho, rodeado por
outras pessoas. Em um plano mais próximo conseguimos ver que ele segura um
livro. Na narração, Perseghini identifica o homem como sendo o “Pau de Arara”,
um dos pioneiros da cidade, que ficou assim conhecido por ter chegado num pau
de arara. Ele diz:

O Pau de Arara fazia com aqueles livrinhos, composição nordestina, sobre aquelas
histórias que aconteciam. Então, fazia esses folhetos e vendia nas obras, os candangos
[...] gostavam demais de ler aquele livrinho, de Maria Bonita, de Lampião. E ele continua
aqui em Brasília, provisando esses livrinho e engendrando por aí. (BRASÍLIA [...], 1979,
9min50)

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Essa cena é particularmente interessante, porque ela “invade” o ambiente
de trabalho. Ao que parece, eles estão no meio da jornada, já que o Pau de
Arara “vendia nas obras” os folhetos. Ainda que houvesse um alto controle das
longas jornadas de trabalho por parte das companhias, ocorriam também
pequenas transgressões. É possível inferir sobre a criação de momentos de
prazer, de respiro, em que a socialização acontecia por outros termos. Ascende
aqui também, particularmente, a cultura nordestina, que será fundamental em
Conterrâneos velhos de guerra.

Figura 7 – Operário vende folhetos nas obras

Fonte: BRASÍLIA [...], 1979, 9min47.
Nota: Um homem identificado como “Pau de Arara” conta histórias ou recita poemas para outros operários, que

escutam interessados.

O filme se constrói, portanto, dentro dessa ideia de contraste entre uma
história dos grandes homens e uma história popular, um projeto de modernidade
que acaba por se configurar em uma prática violenta e autoritária por parte do
Estado e na constante desigualdade de tratamento aos trabalhos do país. Sua
linguagem permite expressar a tensão entre a imagem da capital como síntese
do processo modernizador no interior do país e a realidade de exploração dos
operários. Todas essas questões, além do tema do massacre, da loucura,
da velocidade e da guerra, serão aprofundadas por Vladimir em seu longa
Conterrâneos velhos de guerra (1990), já no contexto pós-ditadura. No entanto,
aqui elas já aparecem e somos defrontados com uma outra história de Brasília.

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MEIA NOITE EM PARIS, UM FILME PARA A HISTÓRIA

MIDNIGHT IN PARIS, A MOVIE FOR HISTORY

Roberto Abdala Junior Abdala Junior1
https://orcid.org/0000-0003-2866-7459

http://lattes.cnpq.br/7014946989727038

Recebido em: 02 de agosto de 2024.
Aprovado em: 10 de janeiro de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21647  

1  Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/2009). Graduado em His-
tória (2001), é mestre em Educação (2003) pela UFMG. Professor da Faculdade de História (FH) da
Universidade Federal de Goiás (UFG), leciona na graduação em História e nos Programas de Pós-
-Graduação em História e em Performances Culturais (Faculdade de Ciências Sociais - FCS/UFG).
E-mail: abdalajr@gmail.com

RESUMO: O filme Meia noite em Paris
oferece oportunidade ímpar para professores e
pesquisadores da História refletirem sobre seu
ofício. O artigo analisa a obra, sob as ferramentas
da Didática da História, com o fim de apontar
algumas das ações comuns empregadas na
vida prática para representar o passado de que
forma que ele é “deformado” por elas. Ao final
da análise muitas questões fundamentais das
práticas em sala de aula e fora dela, bem como
as possibilidades do uso de filmes em pesquisas
poderão ser tomadas de maneira instigante.

Palavras-chave: História, Didática da
História; análise fílmica.

ABSTRACT: The film Midnight in Paris
(2011) offers a unique opportunity for history
teachers and researchers to reflect on their
craft. The article analyzes the work, under
the tools Didactics of History, in order to point
out some of the common actions employed
in practical life to represent the past in what
way it is “deformed” by them. At the end of
the analysis many fundamental questions about
classroom and out-of-class practices, as well as
the possibilities of the use of films in research,
may be taken up in a thought-provoking way.

Key words: History; Didactics of History;
filmic analysis.

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Introdução

O cinema sempre foi um grande desafio e também um monumental fascínio
para os pesquisadores das Ciências Humanas. A “magia” e a “técnica” dos
filmes que, desde o final do século XIX, permitem dar a ver o real em movimento
– passado, presente ou futuro – nunca deixaram de fustigar historiadores,
antropólogos, sociólogos, filósofos, além de artistas e teóricos de cinema,
linguistas, semioticistas etc. No campo da História, nem sempre os profissionais
se aproximam dos poetas. No interior desse universo, como historiador, gostaria
de refletir sobre algumas dimensões da sétima arte, bem como pontuar avanços
nos diversos campos do conhecimento que podem lançar luz sobre as relações
entre cinema e história/História, almejando encontrar em um filme o que Benjamin
vislumbrava no início do século XX, uma forma de educação das massas.2 Neste
texto apresentarei algumas observações para as quais um filme pode ser tão
fundamental quanto um texto acadêmico para nos fazer refletir sobre história/
História.

O filme Meia noite em Paris (2011) é a narrativa das peripécias de um
roteirista de Hollywood que, embora bem sucedido, está em crise quanto a sua
“vida prática”.3 O escritor Gil Pender, protagonista dessa saga que lhe levará
ao “esclarecimento”, mostra-se frustrado por não se dedicar, como gostaria, à
literatura e, como vai sendo revelado ao longo do filme, também está “insatisfeito”4
com suas escolhas em relação ao casamento, à noiva e ao amor que sente por

2  Pode-se depreender da palestra de Damião (2015) que Benjamin (Benjamin, 2012) considerava o
cinema uma arte que poderia cumprir o papel de “educador das massas”, como alguns contemporâ-
neos sonhavam.
3  Ao longo do texto tomei a liberdade de inserir termos empregados pelos pesquisadores da Didática
da História, muitos sugeridos por Rüsen, a fim de deixar mais claro as contribuições da obra cinema-
tográfica para refletir sobre práticas ligadas à história/História e/ou à Teoria da História e historiogra-
fia, colocando-os entre aspas para destacá-los.
4  Segundo argumentos de Rüsen e Williams, as interpretações que novos discursos sobre o passado
apresentam – especial e respectivamente, da historiografia e das artes – sobre a experiência do tempo
servem para orientar as ações no presente, de forma que, no futuro, se possam superar as insatisfações
que a vida atual apresenta.

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ela. Os “acontecimentos” – reais e/ou imaginários5 – que se acumulam ao longo da
viagem à Paris, culminarão com uma “ruptura” nesta estória/história.

A família da noiva é composta pelo pai, empresário com negócios na França,
que defende ideias do Partido Republicano dos EUA; o filme faz pensar que a
mãe é uma consumidora voraz da classe média norte-americana, sem profissão
ou trabalho remunerado. As posições políticas dos pais e, por extensão, dos
familiares são francamente conservadoras, pelo que se pode concluir ao assistir
ao filme. Os franceses não lhes parecem confiáveis politicamente, mas somente
como parceiros comerciais. Pender é, paradoxalmente, um liberal progressista,
mas os sogros – e talvez a noiva – o considerem de “esquerda”, segundo pode-se
inferir da narrativa. Mesmo o casamento, em vias de se consolidar, assemelha-se
mais a um acordo de cooperação como aquele que levou a família à França, pois
não nos é dado a ver muito romance entre Gil e Inez.

Fascinado pela dinâmica convulsionada da urbanidade, Allen que tomara
Nova Iorque como cenário de inúmeros filmes, faz em 2011 como outro conterrâneo
da literatura, Hemingway (2017) que saudou a cidade em Paris é uma festa (A
moveable feast, 1964/2017). O cineasta, cujos filmes se caracterizam por uma
crítica mordaz à sociedade norte-americana, reverencia a capital francesa com
entusiasmo apaixonado. Mas, reduzir Meia noite em Paris (2011) a esta definição é
empobrecê-lo muito, do ponto de vista das inúmeras questões que suscita.

A ode de Allen à Paris é arte pura. Arte cinematográfica de primeira
grandeza. Mais do que isso, o filme é um ensaio sobre história/História; sua
importância, significado, magia; mas, também, suas mazelas. A película
representa uma demonstração cabal de como o cinema, e cinema de ficção, pode
nos fazer pensar sobre temas complexos, como em História, sem embrenhar por
experimentalismos metafísicos ou retóricos que, em linguagem cinematográfica,
podem tornar-se enfadonhos ou até degenerar em argumentos pobres ou mal

5  Há uma ironia no filme quanto ao paradoxo real/imaginário no cinema, bastante positivo que o
cineasta não deixou de apontar. A respeito do impacto das representações narrativas do mundo na
vida cotidiana, individual e/ou coletiva, há uma série de campos de conhecimento com pesquisas e/
ou argumentos que têm buscado estudar esse paradigma. A ideia da existência de indivíduos isolados
das sociedades foi, brilhantemente, contestada por Elias (1994), mas existem outros estudos nesse
sentido, entre eles, pode-se consultar, em viés mais individual e cognitivo como Vigotski (2010), Bru-
ner (2012, 2013), Torrens (2018), ou mais antropológico, como Geertz (1989). No caso do cinema o
debate parece superado, considerando que sempre há um operador da câmera que registra o que quer
que seja considerado “real”. Um texto de Dubois (2001) é especialmente esclarecedor sobre o tema.

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elaborados,6 como espero comprovar.

Linguagem, cultura, cinema e as teses de Bakhtin

Tomar um filme como objeto de um trabalho acadêmico de História se
mostrou também esclarecedor acerca de alguns importantes debates no campo
de ensino-aprendizagem de história/História. Historiadores são especialmente
preocupados com método, pois são seus procedimentos que garantem a
cientificidade das pesquisas (Rüsen, 2015). No caso de filmes e outras narrativas
audiovisuais as sugestões de Stam (1992, 1999) são muito pertinentes: garantem
uma abordagem objetiva e, metodologicamente, eficiente (Abdala Jr., 2016).

O autor considera que as teses bakhtinianas superam outras abordagens
empregadas em análise de filmes (Stam) e os usos noutros campos de pesquisa
têm comprovado que oferecem uma miríade de possibilidades.7 No texto, vamos
empregá-las com o fito de analisar o filme que é objeto de nossa atenção, sempre
fazendo referência a alguns dos demais campos com os quais elas dialogam,
especialmente, a Psicologia Sociocultural (Vigotski, 2010; Wertsch 1997, 1999)
e as Performances Culturais (Abdala Jr., Lage, 2013; Bauman, 1986). Não houve
preocupação em aprofundar as reflexões sobre esses diálogos bakhtinianos,
que somente foram indicados, na medida em que são fundamentais para que a
análise se efetive.

Obedecendo a finalidade deste trabalho, mantive um viés interdisciplinar.8
A estratégia decorre das teses de Mikhail Bakhtin, considerando a possibilidade
de serem empregadas às obras de linguagem que circulam na cultura e pelo fato
de servirem de suporte teórico aos diversos pesquisadores citados a seguir,

6  Não podemos esquecer um filme brasileiro, igualmente engraçado e que também apresenta os
problemas relacionados à Teoria da História, especialmente, no que se refere à escrita e o poder que
ela confere, bem como às versões dos acontecimentos. Refiro-me ao filme Os narradores de Javé de
Eliane Café (2004).
7  Sobre usos no cinema, consultar Stam (1992, 1999); sobre Performances Culturais e Antropologia
– Cultura Popular, R. Bauman (1977, 1986, 1990), sobre sua articulação com Psicologia (Sociocul-
tural), Antropologia – Memória e história, J. Wertsch (1997, 1999) e sobre outras possibilidades de
aplicação nas Ciências Sociais, Goulart, Sacramento (2010).
8  Sobre a interdisciplinaridade no campo da educação, Borries (2018, p. 14) escreve: “eu pessoal-
mente insisto enfaticamente na natureza interdisciplinar constitutiva do ensino da história, na sua
função de ponte, pelo menos entre história, educação, psicologia e estudos culturais.”

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permitindo explorar uma noção de semiótica bakhtiniana da cultura.9 Nesse caso,
há que atentar para dois aspectos: resguardar limites disciplinares, mas refletir
sobre possibilidades de articulação e/ou complementaridade entre argumentos,
noções e reflexões entre as teses de Bakhtin e Vigotski10 ou aplicá-las em
pesquisas noutros campos de conhecimento. Na prática, alguns dos autores aos
quais recorro realizaram operações desta natureza, como R. Stam, empregando
as teses de Bakhtin ao Cinema, J. Wertsch estudando as complementaridades
entre as teses de Bakhtin e Vigotski que pudessem contribuir com a Psicologia, ou
R. Bauman ao aplicar as teses de Bakhtin para estudar manifestações populares
no campo da Antropologia e Abdala Jr. e Lage para analisar Performances
cinematográficas.11

A cultura é concebida por esses autores como o universo semiótico no
interior do qual lhes interessam as obras de linguagem que são as principais –
mas não as únicas12 – responsáveis pelo compartilhamento das experiências
humanas no tempo, a história. Todos concordam que é por meio da cultura que
vão se configurar as mentes dos seres humanos e o mundo com o qual elas
vão interagir e no interior da qual vão compartilhar os significados e sentidos
a ele atribuídos.13 No campo de suas pesquisas, a linguagem é considerada a
matéria-prima empregada no trabalho de forjar as obras – os signos/discursos/
manifestação da cultura – que conferem significados ao mundo da experiência.14
Importa observar que estas concepções dialogam, estreitamente, com as duas
categorias históricas, de viés antropológico, propostas por Koselleck (2006, p.
305-327): espaço de experiência e horizonte de expectativa.

A partir destas reflexões preliminares, fica evidente que chave metodológica
para apreender o mundo da experiência é encontrar um enquadramento teórico
que permita uma aproximação a essas práticas discursivas, segundo as quais
significados sociais e os sentidos particulares que são atribuídos ao real. A
pertinência das teses de Bakhtin reside exatamente no fato de que, por meio

9  Ver sobre alguns avanços nesse campo em Abdala Junior (2024).
10  Ver a respeito James Wertsch: a primazia da razão mediada (Smolka; Mortimer, 2011, p. 91-119).
11  Ver a respeito, Bauman (1986, 2008) e Abdala Jr. e Lage (2013).
12  A ideia é considerar todas as ações humanas que não sejam mecânicas como de linguagem, como
sugerem Vigotski (2010), Certeau (2014) e Geertz (1989).
13  O argumento baseia-se nas teses de Vigotski da Psicologia e Geertz da Antropologia.
14  Merece registro o fato de que Chartier (1989, p. 66) recorre à definição de cultura proposta por
Geertz (1989).

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delas, é possível esclarecer como as linguagens operam nos processos de
configuração dos discursos, a fim de que eles cumpram seus papeis na cultura.
Assim, as obras realizadas pelas linguagens tornam-se acessíveis à análise e
permitem que seus significados e sentidos sejam apreendidos em diversas áreas
das Ciências Humanas.

A teoria bakhtiniana parte da premissa de que todos os discursos são
dialógicos, condição que inclui, obrigatoriamente, um interlocutor, um público. O
princípio dialógico faz com que não interesse a Bakhtin o discurso “em si”, mas os
múltiplos diálogos que asseguram aos discursos15 um papel a desempenhar16 na
cultura. Decorre daí que o objeto de análise para Bakhtin é o enunciado completo
no interior do qual o discurso cumpre seu papel. Nesse sentido, suas teses visam
a apreender o discurso vivo, ou seja, o discurso no momento sociocultural e
histórico de sua enunciação, bem como exige que os elementos verbais, mas,
igualmente, os não verbais sejam considerados na análise.

O dialogismo também faz do público um elemento essencial da investigação,
pois tem uma participação efetiva nos processos de produção de significados e
desdobramentos de sentido. Outro elemento fundamental dos discursos é que,
sendo dialógicos, promovem no público uma “reação responsiva” que deve ser
tomada em sua dimensão semiótica17. Ao destacar a dimensão semiótica de
qualquer enunciado sem reduzi-lo ao discurso verbal; mas, seguindo as diretrizes
bakhtinianas, apreender também o não-verbal e o impacto sociocultural que
representa na cultura da sociedade de época.

Não é difícil reconhecer no argumento bakhtiniano que o “enunciado” é
concebido como um acontecimento sociocultural e historicamente situado. A
passagem de Bakhtin, a seguir, esclarece como os discursos operam no mundo
da vida prática e a complexidade com a qual é preciso analisar as enunciações
das quais eles participam e seus significados. Bakhtin argumenta que:

15  A concepção de discurso que estamos explorando consiste em reconhecer que o mundo – material
e/ou simbólico – só se dá ao conhecimento por meio das linguagens – escritas, musicais, matemática,
teatrais etc. – convergindo para a concepção semiótica de cultura.
16  O termo em inglês para desempenho ou representação é performance (ENGLISH DICTIO-
NARY, 1998, p. 383).
17  Segundo Stam (1992, 1999), Bakhtin não empregou o termo semiótica, mas o de translinguística.

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A obra, assim como a réplica do diálogo, visa à resposta do outro (dos outros), uma
compreensão responsiva ativa, e para tanto adota todas as espécies de formas: busca
exercer uma influência didática sobre o leitor, convencê-lo, suscitar sua apreciação
crítica, influir sobre êmulos e continuadores, etc. A obra predetermina as posições
responsivas do outro nas complexas condições da comunicação verbal de uma dada
esfera cultural
. A obra é um elo na cadeia da comunicação verbal; do mesmo modo que
a réplica do diálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com aquelas
a que ela responde e com aquelas que lhe respondem [...] (Bakhtin, 1992, p. 197, grifo
nosso).

Observe-se que a responsividade é um elemento que opera de forma
articulada ao dialogismo, pois toda interpelação espera uma reposta. A reação
responsiva pode ficar restrita à sua dimensão cognitiva e instigar algum processo
de ensino aprendizagem, ou se desdobrar, socioculturalmente, em ações e/ou
criações humanas, individuais e/ou coletivas. A ideia de respostas inerentes aos
enunciados abre possibilidades de incluirmos aspectos explorados em nossas
reflexões, sobretudo, nas pesquisas da História e das Performances Culturais.

Ao consideramos que o propósito é aplicar as reflexões na análise de uma
narrativa audiovisual – um filme –, é importante lembrar como Stam propõe o uso
das teses bakhtinianas no cinema. Segundo o pesquisador:

Esse conceito multidimensional e interdisciplinar do dialogismo, se aplicado a um fe-
nômeno cultural como um filme, por exemplo, referir-se-ia não apenas ao diálogo dos
personagens no interior do filme, mas também ao diálogo do filme com filmes anterio-
res, assim como ao “diálogo” de gênero ou de vozes de classe no interior do filme, ou o
diálogo entre as várias trilhas (entre a música e a imagem, por exemplo). Além disso,
poderia referir-se também ao diálogo que conforma o processo de produção específi-
co (entre produtor e diretor, diretor e ator), assim como às maneiras como o discurso
fílmico é conformado pelo público, cujas reações potenciais são levadas em conta.”
(Stam, 1992, p. 33-34, grifo nosso).

Ensino-aprendizagem18

Vigotski afirma que todo pensamento “desempenha alguma função, algum
trabalho, resolve algum problema.” (Vigotski, 2010, p. 475, grifo nosso). O argumento
bakhtiniano seria, pois, plenamente acolhido por Vigotski, uma vez que para ele
os “processos cognitivos superiores” dos seres humanos são saltos operados na
mente como respostas aos desafios apresentados a eles na vida prática. Vigotski
é categórico ao afirmar que
18  O termo “ensino-aprendizagem” tem sido empregado por pesquisadores que recorrem às teses
de Vigotski, segundo eles, porque essa seria a tradução correta do termo em russo para o português.

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155 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

se o meio ambiente não apresenta nenhuma dessas tarefas... não lhe faz novas exi-
gências e não estimula seu intelecto, proporcionando-lhe uma série de novos objetos,
o seu raciocínio não conseguirá atingir os estágios mais elevados, ou só os alcançará
com grande atraso (Vygotsky, 1994, p. 50, grifo nosso).

O psicólogo está destacando a necessidade de o ser humano ser interpelado
no interior da cultura para que seja capaz de realizar os saltos cognitivos de que
necessita para alcançar um nível superior em seus processos mentais. Os diálogos
e apelos da cultura, os “novos objetos” – novamente, entendidos como semióticos
– são mais do que interessantes, mas fundamentais para que os seres humanos
cheguem à maturidade detendo algumas das habilidades que trouxeram na sua
carga genética.

Ao considerarmos que os processos de ensino-aprendizagem dos seres
humanos assentam-se nos “apelos”, nas “interpelações” operadas na cultura
pelos discursos que circulam na cultura na qual estão inseridos, una observação
de Bakhtin torna-se estratégica. Tomando o par metodológico dialogismo/
reação responsiva como fundamento epistemológico do funcionamento dos
discursos nas práticas socioculturais, o pensador russo sugere que a apreensão
do processo ocorre da seguinte maneira:

Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar
o seu lugar adequado no contexto correspondente. [...] Assim, cada um dos elementos
significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas
nossas mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. [...] A compreensão é uma
forma de diálogo; [...] Na verdade, a significação [...] só se realiza no processo de com-
preensão ativa e responsiva (Bakhtin, 1997, p. 131).

Performances Culturais

As reflexões anteriores deixam evidente a importância de incluirmos no
quadro teórico do debate noções trabalhadas pelas Performances Culturais,
assegurando assim que outros elementos “não verbais” e até/ou performáticos
da enunciação/exibição de um filme possam ser, minimamente, considerados na
análise.

O campo das Performances Culturais é difícil de ser apreendido, pois se ancora
em proposições de pesquisadores de diversas áreas das Ciências Humanas19 que

19  Ver a respeitos Langdon (2006), Bauman e Briggs (2013), Abdala Jr. e Lage (2013).

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156 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

consideram “o mundo como teatro”.20 Aproximando-se da performance-art ou a
tomando como paradigma, as ações e/ou participações individuais e/ou coletivas
na sociedade não são naturalizadas, mas tomadas como socioculturalmente
significativas. Noutros termos, as ações humanas que não sejam mecânicas são
consideradas como encenações21 que, mesmo não tendo finalidades artísticas,
são carregadas de significados e visam participar da vida sociocultural, ou seja,
realizar uma performance.

Os estudos de performances no cinema ainda são incipientes, condição
que me levou a deixar fora da análise aspectos importantes, como o papel das
câmeras e seus movimentos, da iluminação, das cores etc. Analisarei, pois, alguns
aspectos das performances culturais empregadas no filme, como encenações
e comportamentos dos personagens, cenários e outros elementos não verbais
da narrativa, sem aprofundar ou entrar em detalhes, mas destacando o papel
sociocultural que desempenham ao dialogar com a cultura, sobretudo artística
e histórica. Merece atenção, entretanto, que a linguagem cinematográfica é,
inclusive historicamente, mais próxima do teatro do que da literatura, condição
que permite transitar com mais segurança nesse campo.

Ainda que não aprofunde o debate, a encenação desempenha um papel
chave nas pretensões dos realizadores dos filmes em relação às “repostas” que
esperam construir com seu público. A intenção é oferecer um suporte teórico
para a análise, de forma que uma sequência do filme possa ser tomada como
objeto em diálogo com outros elementos da narrativa e/ou com o repertório dos
públicos, para promover uma “reação responsiva” significativa para promover o
entendimento da obra ou para colocar em debate questões colocadas em tela.

História

As análises a seguir tomam o quadro teórico apresentado para orientar a
análise e interpretação da narrativa cinematográfica, assim como emprega as
teses de Rüsen para refletir história/História, especialmente no que concerne
à “cultura histórica”, às narrativas propriamente históricas e suas funções
socioculturais. No texto vou explorar um argumento de Rüsen, segundo o qual

20  Conferir sobre o tema, Burke (1992).
21  Ver Certeau (2014) e Goffman (2014) sobre o assunto.

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157 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

as “narrativas históricas” servem como orientação de como os seres humanos
devem agir no presente para superarem as insatisfações que a vida prática
apresenta na atualidade.

Rüsen confere ao conhecimento histórico o traço antropológico que a
cientificidade moderna lhe retirara, o que lhe faz de reconhecer que outras obras
da cultura também pretendem atribuir significado ao passado, incorporando-
as nesta noção. A todo esse acervo de obras que atribuem significado ao
passado Rüsen chama de “cultura histórica”. O teórico da História observa que
as investigações deste campo devem ser, necessariamente, submetidas aos
métodos históricos e que o conhecimento histórico acadêmico, - seguindo
Ricoeur – são expressos por meio de narrativas e construídos a partir de uma
questão, uma “pergunta” orientadora dos processos que envolvem a pesquisa e a
produção do conhecimento.

Ao campo da teoria da história que se dedica ao ensino-aprendizagem da
História, Rüsen (2015, p. 247-273) chama de “Didática da História”. Ao explicar as
três dimensões cognitivas da história ele argumenta que a primeira é a “empírica”
que consiste na “representação do fluxo temporal”, continuidade entre passado,
presente e futuro que lhe conferem “sentido e significado”. A segunda é “formal”
que articula as relações entre as categorias de tempo e que é engendrada pela
narrativa – a narratividade22 – por meio da qual é expresso o conhecimento,
propriamente, histórico. A terceira é “funcional”, cuja unidade de forma e
conteúdo cumpre a “função específica na cultura” de orientar a “vida humana
prática” (Rüsen, 2015, p. 114-115).

A partir desta pequena introdução pode-se considerar que há um elemento
aglutinador dos três campos de conhecimento que entram na composição
dos processos de ensino-aprendizagem da história/História e da pesquisa: a
pergunta que interroga o passado e por meio da qual se estrutura a narrativa
da história/História (Rüsen). A questão (de pesquisa) pode ser entendida,
bakhtiniana e cinematograficamente, como “apelo” que os discursos fílmicos
fazem aos públicos, esperando a sua “reação responsiva” - elemento intrínseco
ao dialogismo discursivo que fundamenta essas mesmas narrativas. Além disso,
a pergunta também pode ser considerada como o elemento discursivo que

22  A “narratividade” a qual Rüsen se reporta corresponde ao que propõe Ricoeur (1994), frequente-
mente, citado em seus trabalhos. Ver o debate em Rüsen (2015, p. 162-166).

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promove os saltos cognitivos na mente dos seres humanos que, assim, alcançam
a “zona de desenvolvimento proximal” (ZDP) vigotskiana e passam a operar com
os “processos cognitivos superiores” (Vigotski, 2010) por meio da indagação.

Observe-se que se todas essas noções e reflexões forem tomadas de forma
articulada e complementar, pode-se formular uma semiótica da cultura, uma
vez que o conjunto de elementos considerados não é conflitante e tampouco
concorrente, mesmo porque cada campo de conhecimento tem seu objeto e está
em buscar de apreendê-lo nos seus respectivos limites disciplinares. Assim, é se
justifica a opção pela interdisciplinaridade e o foco nos processos socioculturais
e a abordagem antropológica. Afinal, há o reconhecimento de que é no interior
da cultura que todos os teóricos e suas abordagens consideram possível
apreender seus objetos e que são as obras de linguagem que operam as diversas
formas de interação que os serres humanos empregam nos processos que lhes
interessa estudar. Nesse contexto também é que emerge a categoria narrativa
como articuladora de todos esses campos de conhecimento e a possibilidade
de defender as teses bakhtinianas como ferramentas – cultural tools de Wertsch
– ideias para investigar as operações que lidam com obras de linguagem que
denomino semiótica bakhtiniana da cultura.

Reflexões sobre História em Neia noite em Paris

As emoções da arte são emoções inteligentes (L. S. Vigotski)23

Um cenário monumental!

Meia noite em Paris tem início com uma longa série de tomadas da “Cidade
Luz”. Ao som de Sidney Bechet – Si tu vois ma mère24– pontos turísticos e cenas
cotidianas parisienses são exibidas na tela por quase quatro minutos. O “cenário”
monumental que Paris representa, no interior do qual a “trama” vai se desenrolar,
nos é apresentado como uma paisagem a ser desfrutada, pois as imagens-
movimento da cidade são, paradoxalmente, despidas da pressa da metrópole. A
câmera é mais “documental” – faz registros “etnográficos” de Paris, manipulando-
os de forma a não deixar a aceleração urbanística destacada. Assim como outras
23  Vigotski (1999, p. 267).
24  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=njFgl_dGz54.

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obras de arte, o filme apresenta ao público do cinema a “mágica” Paris. Explora
uma memória que não há mais na atualidade, ou porque só pode existir no e para os
personagens do filme, nas diversas vezes que foram a Paris e no reconhecimento
de o quanto a cidade é cheia de “lugares encantadores” (MEIA; 4’:43”).

Metaforicamente, a Paris dos anos 2010 é “revelada” pelas câmeras de Allen.
As câmeras e os olhos por trás delas modulam o que de “mais interessante” há
para “ver” naquela que foi a capital cultural do século XIX. Mas, ao contrário de
outras obras de arte similares, logo perceberemos que a Paris do filme é mais
protagonista que cenário. As ruas, monumentos, feiras, carros; a arquitetura
e a vida de Paris são-nos, enfim, apresentados como o “lugar” no qual nossa –
“nossa”, no sentido de a obra ser algo partilhado entre realizadores, artistas e
público – estória/história vai se dar. Uma ficção que toma a monumental capital
francesa como cenário para apresentar um enredo prosaico, “ordinário”, onde
real e ficcional vão se entrelaçar e interrogar mutuamente.25

O termo lugar também tem um significado estrito quando se refere à Paris.
Segundo explicou Nora26 nos anos 1980, três elementos compõem os lugares de
memória
: a dimensão material, como um arquivo; a funcional, como um manual
de aula, e/ou o simbólico, como uma cerimônia comemorativa. A capital francesa
é, sem dúvida, um dos “lugares de memória” universais da cultura ocidental, em
que essas três dimensões coexistem de forma orgânica. Mais do que Nova Iorque,
cidade mais frequente nos filmes de Allen, a Paris que nos é revelada na tela
representa um passado que é, a um só tempo, tradicional e moderno; passado e
presente; ruptura e continuidade.

O caráter emblemático de Paris para a cultura ocidental assenta-se em
elementos como a experiência empírica de urbanidade moderna que materializou-
se, como lembra Benjamin (1986), na capital francesa, mas é também lugar
material e simbólico – onde consolidaram-se os valores iluministas universais
do século da Revolução Francesa. A exuberante beleza de Paris se confunde, se
entrelaça, está imbricada com a dimensão universal dos valores humanos, erigida
pelas lutas sociais que tiveram lugar na cidade e seus arredores, dos quais somos
todos devedores.

25  Merece atenção a obra do renomado documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho, sobre o tema:
Jogo de cena (2007).
26  Nora (1993, p. 1-28).

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No entanto, o nova-iorquino Allen vai além, e nos apresenta,
cinematograficamente, a Paris histórica que Hemingway, entre outros de sua
geração de artistas, frequentou e saldou: a cidade das artes, da Grande Arte. O
filme faz menção a arte dos anos 1920, também da Belle Époque e suas feiras,
lembra a herança renascentista e, por extensão, indica a importância de toda a
tradição artística ocidental que a cidade representa em ruas, bulevares, pontes e
catedrais, mas também em museus, cafés e restaurantes.

O trabalho do diretor é expressão pungente da sétima arte. O filme brinda o
público com uma reverência quase sacra à cultura ocidental, não somente à sua
arte e magia, mas a toda a tradição iluminista e revolucionária que, historicamente,
Paris representa e que jamais deixou de ser alvo de ataques ao longo do tempo.
Não seria exagero afirmar que, como descendente de judeus, Allen nutre uma
admiração especial pelo humanismo ilustrado que a cidade viu nascer, acolheu
e difundiu pelo mundo, tema que não é objeto da nossa reflexão, mas deve ser
lembrado. A cidade que foi palco – em diversos sentidos – da grande revolução,
onde circularam pensadores, ideias e ideais, espaço permanente de libertinos
e libertários, nos séculos XVIII, XIX, XX, não permite a qualquer ser humano que
conheça história, negligenciar.

As praças, bulevares, ruas, ruelas e passagens sentiram o peso de personagens
reais da história, famosos e anônimos. Nos lugares de Paris ocorreram, reuniões,
revoltas e revoluções: a Francesa de 1989, a Comuna de 1871, a revolta de maio de
1968. Nos cafés, restaurantes e bares circularam lideranças políticas, literatos,
filósofos, militares e revolucionários de todas as matizes, origens, idades e
tempos. A história foi vivida na cidade de forma vibrante, encharcada de sangue,
suor e lágrimas... Talvez, nenhuma cidade ocidental do mundo moderno tenha
sentido, tão intensamente, a pujança da história como Paris. A cidade, de
seu lado, não deixa que o transeunte mais desatento se esqueça de sua saga,
nomeando e reverenciando a história que carrega como uma lápide, em castelos,
catedrais, monumentos, estátuas, nomes de ruas, praças etc. A cidade de Paris,
veladamente, venera a humanidade por meio de lembranças que exibe ao público
que circula por ela, humanizando seu cotidiano prosaico.

A intenção não é avançar sobre essa ode cinematográfica à Paris, das
conquistas humanistas da filosofia, artes e ciências. Gostaria de demonstrar
como a obra de Allen reflete, de maneira brilhante, sobre possibilidades de
todos nós – professores, professoras, historiadores, historiadoras e demais

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cientistas sociais, jornalistas, escritores, pessoas comuns etc. – que temos o
passado como foco e/ou problema, sermos capazes de investigá-lo e apresentá-
lo narrativamente.27 Os problemas ligados às práticas de investigação e/ou
conhecimento e/ou representação do passado, como Rüsen (2007, 2014, 2015)
insiste em enfatizar, têm origem na ausência de ferramentas teóricas próprias da
História como ciência, sobretudo, mas, não somente, do método.

O argumento contrário, ou seja, a pertinência e apuro em obras que se
esmeraram em seguir reflexões e recomendações teórico-metodológicas
da História são amplamente comprovados em muitas obras da cultura,
especialmente do cinema.28 A título de exemplo pode-se citar a bem humorada
ficção de Narradores de Javé (2004), trazendo questões epistemológicas da
História, especialmente sobre a escrita, as versões e os agentes que formulam
os discursos sobre o passado; o inclassificável JFK (Stone, 1991), debatendo o
poder dos agentes sociais, manipulações e/ou falhas na investigação sobre
um acontecimento chave e emblemático da História recente dos EUA; os
documentários A batalha de Argel (1966), narrativa que representa uma História
audiovisual da libertação da Argélia.

Cabra marcado para morrer (1984) é outro filme cuja sofisticação na
construção do discurso cinematográfico pode ser considerado um trabalho
análogo à escrita de um historiador, equivalente a uma “escrita audiovisual”
da História do Brasil sobre a luta dos trabalhares do campo no período entre
as décadas de 1960 e 1980.29 Utopia e barbárie (2009) noutra proposta, formula
um ensaio crítico sobre a história política mundial do século XX, realizado
exclusivamente com fontes audiovisuais; um trabalho monumental que merece
um estudo como as regras do método histórico orientaram a sua invenção. Mas,
sem se dar conta – sem a intenção de realizar essa façanha – a arte de Allen faz e

27  A forma de representação narrativa é aquela que tem sido reconhecida como a mais pertinente
para expressar a história como conhecimento e que também permite um diálogo mais estreito com o
cinema, também o mais clássico. No pensamento de Rüsen que orienta nosso trabalho, não há qual-
quer restrição a outras formas de representação. O autor, pelo contrário, recorre frequentemente a
quadrinhos e charges etc. Conferir em Rüsen (2001, 2015).
28  Seguindo as orientações das teses da Teoria e Didática da História de Rüsen e semióticas da Fi-
losofia da Linguagem de Bakhtin, em diversos momentos do texto farei menção a denominações que
nos fazem pensar e/ou simbolizar a capital francesa como um recurso deliberado à(s) memória(s),
com a intenção de demonstrar a ligação intensa, incontornável, mas sobretudo, tensa, entre memória,
história/História.
29  Consultar sobre isso, Abdala Junior (2017).

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compartilha com o público a exploração de complexas questões históricas, bem
como reflete sobre algumas mágicas peripécias historiográficas, respondendo-
as com profunda sofisticação. Vejamos, pois, o trabalho diferente realizado por
Meia noite em Paris.

Início da trama

A câmera de Allen nos apresenta imagens atuais do lago nos arredores
de Paris, a cidade de Giverny que inspirava o pintor impressionista, Claude
Monet. Ao final dessa sequência nos deparamos com o casal a observá-
lo, quando Gil fala à Inez que seria romântico viver por ali, ao que ela retruca:
“Você está apaixonado por uma fantasia!” (MEIA; 4’:43” – 4”:47”). A montagem é
importante porque, logo após o público assistir a um conjunto de sequências que
apresentam, cinematograficamente, a Paris contemporânea, um diálogo do que
seria um clássico “casal romântico” hollywoodiano traz a questão da fantasia, da
ficção para o “primeiro plano”, a “performance cinematográfica” do romantismo
é, imediatamente, atacada. Noutros termos, as sequências em que o público
experimenta audiovisualmente toda a vivacidade da cidade, cujo passado é
monumental, é seguida de outras, nas quais a temática é, metaforicamente,
um desafio: aquilo com que Pender e o público (?) sonham – o “romantismo” –
não passa de “fantasia”, trata-se de uma ficção que fascina, apaixona, deve ser
reverenciada, mas não é realizável.

A seguir, durante um passeio de Gil e Inez com o casal de amigos da noiva,
Paul e Carol por Versalhes, a questão relativa à história/História é apresentada
de forma mais explícita. Inez explica a Paul que Gil está escrevendo um livro cujo
protagonista trabalha em uma loja de artigos antigos, “loja nostálgica” (MEIA,
10’: 10”) – “talvez como um museu ou um arquivo”, pode pensar o público que foi
interpelado pelo “comentário” – e acrescenta que o escritor sonha com a Paris
dos anos 1920. O pedante Paul explica que esse é o conhecido “Complexo da Era
Dourada” que consiste, segundo ele, na ideia errônea de que uma época diferente
é melhor do que aquela em que vivemos. No entanto, tudo não passa de “uma
negação de um presente doloroso”, conclui o personagem (MEIA; 10’:35”).

As sequências anteriores e outra comentada adiante fazem o público
mergulhar num debate histórico rico e instigante: questões simples, apontadas

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pelos personagens foram debatidas pelos historiadores da Escola dos Annales.
Ao contestarem a história que se fazia antes deles, sobretudo quanto ao trabalho
do historiador, afirmavam: não se trata de recolher, aleatoriamente, vestígios
do passado como um antiquário ou como o personagem do livro de Pender.
Não! O trabalho do historiador, afinal, é muito mais sofisticado do que recolher
vestígios: é fundamental que ele conheça profundamente o passado – detenha
um conhecimento propriamente histórico sobre o passado. Mais do que ter
erudição, é preciso criticar interna e externamente elementos de vestígios/
fontes que indiquem sua veracidade, deve-se interrogá-las de forma metódica,
ser capaz de interpretá-las à luz da Teoria da História que ordena toda a operação
historiográfica.

Em suma, é preciso conhecer, de forma sofisticada e crítica, a cultura
histórica de época a historiografia, a sociedade e sua cultura para vislumbrar a
historicidade
que deu lugar àqueles processos e personagens. Entretanto, esse
caráter do trabalho histórico ainda é desconhecido para o escritor e para o público
do filme. Será, a partir de sua saga pelo passado que Pender e o público vão
aprender como esse é um trabalho artesanal e intimamente ligado ao presente
seguindo o que Paul Bates diz a ele e também ao público. O passado pode iluminar
aspectos obscuros do presente e, eventualmente, até mesmo revelar elementos
que são dissimulados neste presente, sobretudo para “aqueles que não querem
ver” – como lhe dirá Gertrude Stein sobre a trama do livro e o evidente adultério
cometido pela personagem – de forma que o comentário que lhe fará inferir sobre
o comportamento de Inez no presente da trama (MEIA; 1:24’:02” – 1:24”:45”).

A obra interpela o público de forma sutil e a questão não está posta de forma
tão explícita, por enquanto. Análoga ao exercício do historiador, a situação de
Pender só vai adquirir significado a partir não de vestígios / “fontes históricas”,
mas da questão que é formulada para que se possa “lançar luz” ao passado,
“interpretando-o” e representando-o discursivamente por meio de narrativas
(Rüsen, 2015). O aspecto epistemológico da História como ciência está implícito
nesta narrativa cinematográfica, sobretudo no seu papel de “orientador das
ações no presente” que visam à superação de “insatisfações” com a vida prática
– seguindo a tradição do papel, antropológico, exercido pela cultura histórica
como sugerem as teses de Rüsen (2015). O argumento emergirá e se consolidará
ao longo do filme, bem ao gosto dos historiadores.

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O filme de Allen explora o fascínio que o passado – individual e/ou social –
exerce, efetivamente, sobre os seres humanos, pois, argumentariam distintamente
Rüsen, Geertz, Vigotski, Bakhtin: recorrer ao repertório compartilhado na cultura
é uma característica antropológica fundamental. Noutros termos, trata-se de um
fascínio que partilham muitos daqueles que formam os públicos da narrativa – um
traço que o cinema divide com outras formas de expressão que visam a colocar a
vida em cena, como as demais artes, especialmente, as do espetáculo.30

Colecionar vestígios do passado é uma atividade que pode ser realizada por
qualquer pessoa, é uma prática prosaica e pode até mesmo estar submetida à
lógica do “mercado” – condição que será devidamente demonstrada na sequência
de visita do casal e da sogra à uma “região de antiquários” de Paris para comprar
objetos antigos (MEIA; 30’:11” - 31’:20”; 41’: 41” - 45’:35”. Grifo meu.). Merece atenção
o fato de que visitas aos “antiquários” de Paris indicam que o diretor pretendeu
destacar, metaforicamente, esse aspecto entre as possibilidades de visitarmos,
conhecermos e reverenciarmos o passado.

Aventuras, entre o presente e o passado

Tememos a morte e questionamos nosso lugar no universo. A tarefa do
artista não é sucumbir ao desespero, mas achar um antídoto para o vazio
da existência. (Comentário da personagem Gertrude Stein ao livro de Gil
Pender).31

A história é uma resposta para esse desafio: é uma interpretação da
ameaçadora experiência do tempo (Rüsen, 2016).
32

Ao sair de uma cerimônia de degustação de vinhos em uma das primeiras
noites na cidade, “numa esquina qualquer de Paris”, Gil experimenta um momento
mágico. Ao soarem as badaladas da meia noite, um “Peugeot antigo” para na rua
em frente onde o escritor está e alguém de dentro do carro o convida a embarcar
(MEIA: 17’:25”, grifo nosso). O protagonista se mostra um pouco confuso, pois
está um pouco embriagado – como ele mesmo refletirá em sequências seguintes

30  Sobre o campo das performances consultar Correa (2015), Bauman (1977, 1986, 2000, 2008),
Bauman e Briggs (2013), Zumthor (2007) e Abdala Jr. e Lage (2013).
31  MEIA, 2011: 1:02’:00” – 1:02’:51.
32  Rüsen (2016, p. 47).

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– e, além do carro, as pessoas do seu interior estão em trajes, curiosamente,
do passado e, para um público mais atento, é possível reconhecer que são do
início do século XX. As imagens-movimento a seguir fazem com que o público
vá tomando conhecimento de que – pela magia do cinema – se abriu uma fresta
temporal que permite a Gil (como ao público) viajar para a Paris dos anos 1920.

O personagem da aventura, mas também o cineasta e nós – que compomos o
público com quem Allen dialoga –, enfim, todos os envolvidos com a performance
na qual o filme nos lança estamos às voltas com uma loja de antiguidades, cenário
do livro de Pender, como colecionadores ou negociadores de “lembranças”. A
condição não é outra, senão a de um historiador diante do passado que o instiga,
fascina, desafia e é ou poderá ser objeto de seu trabalho. A trajetória do escritor
se confunde, portanto, com a de qualquer professor de história e/ou historiador
diante do passado. Mas, todas essas incertezas, apreensões, angústias diante
do passado não estão veladas, como no caso dos profissionais da história, ou
são obscurecidas por “discursos” viciados que questionam o conhecimento
histórico acadêmico por quimeras teóricas e/ou por pura má fé ideológica.33 Não!
Novamente, essas emoções – incorporadas pelo protagonista – são apresentadas
ao público de forma explícita no desenrolar do filme. Vejamos, pois, como
interpretar a saga cine-historiográfica desse “super-herói”, criador de narrativas.

Gil está em Paris na primeira década do século XXI,34 mas, como detentor de
educação formal e artística, carrega consigo todos os sonhos quanto ao que era a
cidade dos anos 1920; sua sedutora e instigante magia, com a miríade de artistas
33  No Brasil, um país que conta com um dos maiores índices de ignorância histórica do mundo, com
baixos índices de escolarização e baixíssimos de letramento político e/ou de outra natureza, uma co-
leção faz sucesso há mais de uma década, violando e/ou distorcendo tudo o que de mais consagrado
temos em nossa historiografia: uma “Coleção do politicamente correto” que reúne diversos campo
das “Ciências das Humanas”. Mais recentemente o termo “mentira”, “farsa” ganhou o eufemismo
bizarro de “pós-verdade”. Todos esses elementos indicam o risco a que a Civilização Ocidental está
submetida atualmente, em relação à preservação da memória, à confiança na História e, sobretudo,
com a ameaça quanto a “verdade”.
34  Não há no filme preocupação com precisão histórica no que concerne a fatos e mesmo sobre as
possibilidades dos “encontros” terem, efetivamente, ocorrido entre os artistas. No quesito rigor his-
tórico parece que a produção atentou-se mais para lugares e personagens citados nos diálogos e/ou
representados na película. Allen usou a possiblidade fabulosa dos artistas se encontrarem na Paris dos
anos 1920 como mote para criar. Sabemos que houve uma convergência de artistas à cidade no pós-
-primeira guerra, mas datas exatas e se as permanências deles permitia e/ou ocasionou os encontros
sugeridos por Allen nos pareceu mais um exercício de criação cinematográfica. Porém, para nossa
reflexão esses aspectos são o que importam, menos, como veremos a seguir. Na obra memorialista de
Hemingway (2017 [1960]) sobre a mesma época em Paris (1921/26) alguns dos artistas são mencio-
nados, mas muitos outros nos são apresentados na tela.

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e intelectuais que a visitavam em busca de diálogos, desafios e inspiração.
No filme, esse dado não é objetivado. É necessário que o público detenha um
repertório sobre as indicações icônicas oferecidas, cinematograficamente, pela
narrativa que recorre à “cultura histórica” e artística do púbico e, tampouco, há
alguma preocupação com precisão histórica na obra.

Todos, com formação semelhante à de Pender, sabem que houve um
fenômeno interessante, historicamente e rico artisticamente na época: a atração
de artistas e intelectuais à Paris nos anos 1920. Mas, as datas exatas das viagens
dos artistas e se suas estadias na cidade se, efetivamente, ocorreram os encontros
sugeridos por Allen é uma tarefa a ser pesquisada. Na obra de Hemingway (2017)
que tem por foco a mesma época e parece ter inspirado o cineasta, alguns dos
artistas são mencionados. Entretanto, eles não representam nem a terça parte
dos personagens que vemos desfilar pela tela. Na verdade, a infinidade de
personagens citados cinematograficamente é impressionante e para identificá-
los é preciso pesquisar.

A ironia do diretor inverte a “hora da ilusão” dos contos de fada e, à meia noite,
envia o protagonista para a Paris dos seus sonhos – e, talvez, de parte do público
– para a “cidade encantada dos adultos”. O escritor de “roteiros de Hollywood”
sonha e, finalmente, encontra na Paris do século XXI, aquela mágica cidade
dos anos 1920 que reunia grandes artistas de todos os cantos do mundo. Gil o
público experimenta essa magia. Ao acompanharmos, cinematograficamente,
o protagonista em seus passeios mágicos pela cidade, testemunhamos sua
convivência com grandes personagens da cultura ocidental que circularam
como Hemingway, Cole Porter, John e Zelda Fitzgerald, T. S. Eliot, Jean Cocteau,
Picasso, Dalí, Buñuel, Man Ray, Josephine Baker, Djuna Barnes. São ainda
mencionados Modigliani e Braque. Também coexistem na trama a Paris da Belle
Époque, de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin e Degas.

Allen não economiza nas referências, pois, exatamente por ser um filme de
viés humorístico, não há necessidade de primar pela verossimilhança, mas sim
de “contextualizar” – histórica e artisticamente – para o público, a “realidade” na
qual se desenrola a trama. Numa palavra, o diretor está sendo “didático” com o
público. Lembrando que, ao contrário do professor e/ou historiador, uma narrativa
cinematográfica precisa ser mais direta e autoexplicativa, não sendo possível
responder perguntas e/ou escrever um pé de página, explicando alguma tomada
ou sequência que não tenha ficado esclarecida. Noutros termos, as convenções

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que regem elaboração de narrativas das aulas como as dos livros de História são
muito distintas das cinematográficas.

Assim, se os chamados “profissionais da história” precisam estar mais atentos
às imprecisões e anacronismos históricos do que os cineastas, a preocupação
destes últimos, por convenção, é que a trama seja clara e os elementos que a
compõem não tragam dificuldades de interpretação para um público mediano,
em termos de conhecimento, argumentos ou possibilidades de articulação entre
a narrativa e o repertório que este detém. Mas, essas não são, estritamente, as
únicas diretrizes que orientam a obra de Allen. Meia noite em Paris oferece ao
público um “contexto” sociocultural e histórico complexo para o desdobramento
de uma narrativa em que muitos artistas famosos estão reunidos, fazendo uma
reverência aberta e emocionada à cultura ocidental.

Historicidade e o árduo trabalho dos profissionais da história

É prerrogativa de romancistas criar personagens que matam aqueles dos
historiadores. A razão é que os historiadores evocam meros fantasmas,
enquanto os romancistas criam gente de carne e osso (Alexandre Dumas)35

Ao buscar nas críticas de Gertrude Stein diretrizes para sua literatura
incipiente, Pender convive com os personagens do passado que povoam seus
e nossos sonhos, mas, eles se apresentam – ao protagonista e ao público – com
a arbitrariedade inventada das representações, especialmente as “de massa”,
podemos inferir. Hemingway e o casal Fitzgerald são os mais emblemáticos
dessa cultura espetacular que a tela nos revela – não estritamente, no sentido
fotográfico, mas, sobretudo, no performático –, a mesma que florescerá, cada
vez mais, dessa época em diante. Os personagens, rigorosamente históricos, nos
são apresentados na tela de forma explicitamente “esquemática” – seguindo a
concepção proposta pela historiografia alemã.36 Nenhum deles, curiosamente,
nos parece real, ou melhor, a representação cinematográfica não é percebida

35  Alexandre Dumas, em Viva Garibaldi! Une odyssé em 1860 (Fayard, 2002) citado por Eco (2013,
p. 66).
36  Segundo Rüsen (2015), o conhecimento histórico tende a tornar-se, cada vez mais complexo, de
forma que a forma mais sofisticada de consciência, competência e narrativa histórica é a “genética”,
cuja composição caracteriza-se pela complexidade propriamente humana e resulta da reflexão crítica
acerca de outras interpretações do passado existentes.

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como verossímil por um público mais atento, a não ser Adriana – que é ficcional –
por quem o herói se enamora e os personagens do presente da trama.

Os personagens dos anos 1920 com quem Pender se encontra, embora
tenham existência real no passado, como destacamos, são-nos apresentados
como “caricaturas”. A estratégia acontece, por exemplo, quando Pender encontra
Hemingway no bar Polidor e fala com ele e com o público de forma grosseira, da
guerra, demonstra a masculinidade energicamente e chega a chamá-lo para briga
(MEIA; 24’: 08” – 24’: 34”); ou quando o escritor conhece Dalí que vê rinocerontes
em tudo, ou Buñuel que só vê filme e Man Ray que vê exclusivamente fotografia
(MEIA, 54’:40” – 58’: 05”). A sequência é especialmente importante por destacar
a busca da narrativa de interpelar o público e provocar uma “reação responsiva”,
pois, ela transcorre num bar e reúne ao mesmo tempo os personagens.

Os personagens representados pelo filme e que nós, o público “cultivado”,
reconhecemos porque serão reverenciados no futuro da trama e no passado
recente do Ocidente, se comportam como performers dos artistas – em sentido
pejorativo, de representação artificial, sem complexidade humana e/ou histórica,
inverossímil mesmo – em que a mídia, a partir dos anos 1920, vai/pode transformá-
lo. Allen põe em tela questões angustiantes para todos aqueles que amam a e/
ou têm fascínio pela história/História. Mas, parece que que não há possibilidade
de escapar da situação.37 Afinal, como representar o passado real, árido, sofrido,
complexo; humano enfim, de seus/nossos “heróis”, sem estereotipá-los? Como
expor essa miríade de grandes personagens no cinema (ou em qualquer forma
de representação: aulas, livros, exposições etc.) como frutos de experiências
humanas relevantes, mas também de trajetórias viscerais, dolorosas, ambíguas
e frágeis? Ou melhor seria manter as formas da história mais estereotipadas,
espetacularizadas, como são concebidas e difundidas na cultura massificada?
Afinal, qual é a Paris real? A cidade dos anos 2010, 1920 ou a de 1968, 1871, 1789? Uma
questão para quem ama cinema, mas sobretudo para aqueles que reconhecem
o monumental significado desses acontecimentos ocorridos em Paris para a
humanidade, ou a importância dos grandes movimentos sociais ocorridos nestas
datas.

37  Não há escape porque a representação dos personagens do passado é tão estereotipada que nos
fazem rir.

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Allen interroga – talvez como sonhou Benjamin – aos que formam os públicos
de seu filme sobre essa arte de trazer o passado para o presente, bem como as
complexas e intrigantes questões que isso implica e significa. Uma interrogação
mais contundente e intrínseca para aqueles/as que têm um compromisso com o
passado e que reconhecem o significado de algumas das conquistas ocidentais,
sobretudo no que tange aos avanços da democracia e do humanismo.

O que todos eles e suas ideais representaram para a humanidade e os riscos
de silenciar elementos de sua herança, caros para o presente e, frequentemente,
ameaçados. Afinal, fazer humor não consiste em violar a democracia, ou o
humanismo ocidental, ou a arte, arduamente forjados nos últimos dois séculos
de história/História. O que destacar e o que abandonar do passado, pois? O que
caracteriza, especialmente, a época que se pretende representar, o zeitgeist
alemão? Quais e que traços desses personagens devem ser destacados para o
público da atualidade e como seus papeis sociais podem iluminar as práticas do
mundo da vida, no passado e/ou seus desdobramentos ao longo do tempo até o
presente – conforme sugerem as teses de Rüsen?

No universo dos públicos do filme, muitos não são capazes de identificar
os movimentos artísticos e sociais e o engajamento de muitos desses artistas.
Ignoraram, sobretudo, o quão profundo e, às vezes, radical era o inconformismo
com a sociedade que alimentou seus respectivos ativismos na política e na
cultura de sua época. Afinal, é provável que só uma minoria saiba um pouco
mais das biografias dos artistas que contracenam/interagem com o artista
ficcional, Pender. Pior ainda, talvez saibam de curiosidades pouco louváveis.
Suas “histórias” são desconhecidas, enfim! Toda a história/História de suas lutas
pode ser ignorada: a dos personagens históricos, a da cidade e, quem sabe, até
mesmo da civilização na qual todos nós estamos imersos e somos devedores,
em alguma medida, de suas posições políticas e culturais; o quanto somos
herdeiros de suas ações e da arte que criaram. Não sabem, provavelmente, de
que histórias pessoais esses personagens emergem e/ou em que experiências
históricas estiveram mergulhados. Não têm, frequentemente, ideia das diversas
historicidades que caracteriza cada um desses artistas e suas obras.

Os públicos, historiadores e professores de história/História não podem
brincar com eles, como Pender o faz, ao sugerir um filme a Buñuel (MEIA;
1:12’:56” – 1;13’35”), no qual os personagens não conseguem sair depois de um

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jantar, situação que na obra do cineasta, O anjo exterminador (Buñuel,1962),
faz o falso verniz civilizatório desaparecer. Não! Isso não seria recomendável,
especialmente num época em que se tem atacado muitas biografias por deslizes
menores, somente para desqualificar, distorcer, ou apequenar grandes vultos
do passado, sobretudo quando as análises não destacam suas lutas sociais e/
ou políticas. Muito recentemente tem-se observado nas mídias – especialmente
sociais – ataques a suas realizações, em peças de propaganda e/ou manipulação,
chegando ao extremos de empregar anacronismos e/ou distorções ideológicas
absurdas – discursos toscos, rasteiros e sem fundamentação de qualquer
natureza.

O filme de Allen nos faz “ver” – nos diversos sentidos do termo, testemunhar,
sobretudo – o quanto pode ser arbitrário e rasteiro um olhar descuidado sobre
o passado. Mesmo que ele alimente nossas mais caras ilusões, como as do
herói do filme, especialmente, quando experiências verdadeiras e significativas
são colocadas de lado, épocas, acontecimentos e personagens deixam de ser
considerados importantes, perdem os traços que lhes conferem humanidade,
seu vigor existencial e histórico; perde-se, enfim, sua historicidade.

Abandona-se, enfim, qualquer possibilidade de esta obra deter algum
significado histórico, no sentido que lhe atribui Rüsen: o de orientar a vida prática.
Aliás, pelo contrário, pode servir mais para romper com alguns dos conhecimentos
humanos sobre o passado, acumulados pelas investigações históricas nos
últimos séculos, abrindo-se à manipulações de toda ordem. Considere-se o
quanto um pequeno deslize de interpretação sobre um acontecimento chave do
passado, como, por exemplo, aqueles decorrentes da Revolução Francesa poderia
ser desastroso para a compreensão da História edos avanços socioculturais
estratégicos que nos legaram.

A luz do passado como orientação para o presente

O livro do autor-personagem, segundo lê “Gertrude Stein” para o séquito
que estava em sua residência e o público dos cinemas, começa assim: “ Volta ao
passado era o nome da loja e seus artigos eram lembranças. O que era prosaico
e vulgar para uma geração foi transformado pela mera passagem dos anos,
tornando-se, ao mesmo tempo, mágico e simples” (MEIA; 1; 37’: 09” – 1; 37’:24”).

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A descrição poderia muito bem ser tomada como uma definição acadêmica
de História. O cineasta faz questão de enfatizar que não se trata de impressões
individuais. Lembranças prosaicas e vulgares para uma “geração” – aquele
coletivo – que experimenta a passagem do tempo, diríamos, a historicidade de
sua época que, ao recordá-la como algo “mágico e simples”, a configura como
história/História, mas, não para aqueles que não estiveram presentes.

O filme, metaforicamente, interroga o público: como um historiador e/ou
professor de história/História é, ou seria, capaz de apreender esse fenômeno
tão abstrato, a historicidade de uma geração tão complexa como aquela que
viveu no período entre guerras; que viveu as dores dos destroços materiais e de
vidas causados pela Primeira Grande Guerra e presenciou o desmantelamento do
mundo que lhe antecedeu? A geração que testemunhou o ataque às ideias e ideais
do Iluminismo ou viu ruir os pilares da “Belle Époque” europeia, que acompanhou
a ascensão do socialismo, dos fascismos, do nazismo, o avanço da intolerância
e das perseguições aos diferentes de toda ordem? A história daqueles homens
e mulheres – a “geração perdida” – que experimentou o colapso dos valores
iluministas, racionalistas e do humanismo clássico?

Há um contraponto que vai-se estruturando ao longo da trama, entre
as temporalidades e as paixões, pois as relações de Pender no passado é que
iluminam o quanto ele está “fabulando” no presente. Mais grave, Adriana, a moça
do passado é mais real e expressa mais humanidade do que Inez, sua consumista
e frívola “noiva” do presente. A narrativa vai tecendo essas características em
diversas sequências, mas enfatiza essa dimensão para o público em, pelo menos,
duas delas. Na primeira quando Stein, ao analisar o livro diz a Pender que:

Hemingway também o leu e crê que será um grande livro, mas sugeriu uma mudança.
[Pender.] E qual é? [Stein:] [Ele] Disse que era improvável que o protagonista não note
que a noiva está tendo um caso diante de seu nariz. [Pender] Como? [Stein:] Com o
outro personagem. O pedante (MEIA; 1;24’; 16” – 1: 24’: 33”).

A partir desse comentário, o que todos que assistem ao filme desconfiam
fica patente: Inez está saindo com seu amigo de faculdade, o pedante Paul. A
sequência demonstra,metaforicamente, como o “passado” e seus personagens
interferem no presente, fazem Pender reconhecer insatisfações de seu presente
na trama e, por fim, orientam sua ação e o levam a resolver sua vida prática.
Ele rompe definitivamente com a noiva e decide morar em Paris, abrindo a

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perspectiva Pender encontrar tempo para se dedicar à literatura, como seus
heróis do passado fizeram nos anos 1920. Allen não deixa de fazer um convite
– ainda que velado e metafórico – ao público para que abandonem seu mundo
de consumo, frívolo, sem graça, sem humanidade ou substância e busquem
realizar seus verdadeiros sonhos, como fizeram todos os heróis – os do passado
que “conhecemos” por meio do filme que inspiraram o escritor a fazer o mesmo,
romper com suas “ilusões”, passando a investir em seus verdadeiros “sonhos”.

A “verdade” do passado é confirmada por meio de um registro que também
orienta o herói. Ao passear pelas feiras de Paris, Gil encontra um livro antigo no
qual há uma menção à Adriana. Segundo o livro, a personagem dos anos 1920
sonhou com o escritor que havia conhecido – Pender – e, depois de receber dele
um par de brincos, resolve se entregar, romanticamente, à ele. Sabendo disso,
ele – depois de algumas peripécias – compra os brincos e os leva a sua nova
amada. Infelizmente, o desfecho da trama não se confirma como previa o vestígio
do passado – o livro – encontrado pelo escritor. Adriana, ao viajar para época da
“Belle Époque”, resolve ficar na Paris do final do século XIX, tão fascinada ficou
com as possibilidades mágicas do passado quanto Pender, no início da narrativa.

Ele tenta argumentar com Adriana que o melhor tempo é o atual – como
acabou por se convencer, depois de sua jornada ao passado idílico de suas
fantasias – considerando que ir ao passado somente pelo seu fascínio não
resolve as questões do presente, mas sua iniciativa é infrutífera. Adriana, como
muitos de nós que formamos o público do filme, opta por manter-se no passado
que, aparentemente, não lhe apresenta problemas. O nosso herói, ao contrário,
retorna à Paris contemporâneo e, enfim, dá sentido à sua vida e ao que pretende
realizar e ainda encontra alguém: uma parisiense que vende discos antigos na
região dos antiquários, mas que, ironicamente, percebe e desfruta da cidade
como Pender mesmo o faz.

Epílogo

A obra cinematográfica faz, pois, uma contribuição, significativa aos
interessados pelo passado como os profissionais da história/História, sejam
historiadores, professores de história, outros cientistas sociais, cineastas etc.
O texto destacou algumas dessas contribuições que podem muito bem receber

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ricos acréscimos. A importância e o diferencial de as questões históricas
serem abordadas por um discurso cinematográfico consiste no fato de que os
argumentos apresentados, embora sejam conhecidos e largamente debatidos
pelos profissionais ligados à história/História, raramente são expostos com
tanta clareza, propriedade e performatividade quanto a linguagem audiovisual
em movimento. Os esclarecimentos nascem, não dos recursos argumentativos
e/ou retóricos comuns aos textos de Teoria da História, mas das características
inerentes à linguagem cinematográfica.

A primeira delas é como as temporalidades e suas características podem
ser exibidas – nos diversos sentidos do termo – aos públicos, diferenciando
elementos da arquitetura, da indumentária, das músicas, danças, dos transportes,
iluminação, tratamentos de cortesia, costumes, das diversas práticas culturais;
enfim, de toda a “cultura histórica” de uma época. Há, claro, um afastamento, uma
separação entre as épocas pelas quais Pender circulou. Ele, apesar desse trânsito,
não se confunde no tempo, tampouco permite que os públicos se confundam.

Os momentos de ilusão de Pender não o levam e nem aos públicos a
cometerem anacronismos e/ou a ignorar diferenças entre as épocas. Na
sequência do suicídio de Zelda Fitzgerald (MEIA, 52’:30” – 53’:27), por exemplo,
Pender chega a destacar a separação temporal ao oferecer a ela um Valium – uma
“pílula do futuro” – ou quando argumenta com Adriana sobre os riscos de viver no
passado, exemplificando com o fato de a penicilina ainda não ter sido descoberta
– “sem antibióticos, anestésicos” (MEIA; 1: 21’: 20” - 1: 22’: 45”). A obra pode
apresentar anacronismos menores, sem importância, mas a narrativa prima por
se esmerar em evitá-los, ou permitir que eles comprometam o reconhecimento
das diferentes épocas e suas idiossincrasias. Noutros termos, a categoria tempo
não é naturalizada, tampouco as relações causais que constituem a história/
História.

A estratégia de apresentação dos personagens reais do passado de forma
bastante estereotipada, ainda que a pretensão seja humorística, expressa
de maneira incontornável sua falta de humanidade, ou se quisermos, as
características da “representação” dos personagens do passado os desumaniza,
tornando-os caricatos. Assim, o fato dos personagens do passado serem
apresentados ao público durante as interações com Pender e por meio de uma
narrativa cinematográfica, confere vivacidade a todo o processo, inclusive aos
próprios atores/personagens. Mas, ao assistirmos ao filme, a vivacidade e a

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“impressão de realidade”38 que caracterizam a linguagem culminam por enfatizar
que a representação de personagens criadas pelas diversas mídias, raramente,
deixam de ser estereotipadas, apresentando, frequentemente, homens e
mulheres do passado sem complexidade e/ou humanidade; “midiáticos”, no
sentido mais estreito da expressão.

Allen opera duas críticas ao recorrer a essas estratégias narrativas.
Primeiramente, como destacamos, demonstra aos profissionais da área como
é fundamental explorar a historicidade destes e de todos os personagens
históricos. A narrativa também deixa ver como as mídias preferem, fabricam
e reverenciam estereótipos. Assim como a cidade não deve ser naturalizada e
reduzida ao seu apelo turístico contemporâneo, ainda que nem todo o significado
da cidade possa ser apreendido, nenhum personagem histórico pode ser reduzido
a um estereótipo! Afinal, apagar a história de uma cidade ou de um personagem
apaga igualmente o horizonte humano que nos assegura agir no presente a fim de
transformar o futuro. Há pois uma metacrítica ácida, como é comum nos filmes
de Allen, a todos o sistema midiático do qual ele e sua obra fazem parte. Nesse
aspecto, é necessário uma leitura mais atenta da obra, embora possa não ser
fácil identificar todos esses elementos.

Meia noite em Paris faz ainda uma crítica aos romances pasteurizados
apresentados pelo cinema, sobretudo o hollywoodiano, ao desconstruir – esta
parece a palavra mais acertada – a relação entre Gil Pender – com sobrenome
– e Inez. Ao longo da narrativa, o “romance” vai se mostrando mais um contrato
entre interessados – assim como faz o pai da noiva com os franceses, numa visão
liberal –que, como ele, também não é muito reverenciado pela noiva. Não é sem
razão que ela “o trai” com o amigo e ainda confessa sem constrangimento, como
se isso não fizesse parte do “acordo nupcial” e pudesse ser tolerado pelo noivo.

A sequência é especialmente interessante: Pender confronta a noiva com
as opiniões dos artistas do passado sobre ela ter se relacionado com Paul, o

38  Segundo Aumont, a impressão de realidade é resultado da riqueza perceptiva típica do cinema
e se deve “igualmente à presença simultânea da imagem e do som [...] dando assim a impressão
de que o conjunto de dados perspectivos da cena original foi respeitado. A impressão é muito mais
forte quando a reprodução sonora tem a mesma “fidelidade fenomenal” que o movimento. [...] ela é
mais reforçada pela posição psíquica na qual o espectador se encontra no momento da projeção. [...]
definida por dois de seus aspectos. Por um lado, o espectador passa por um baixa de seu limiar de
vigilância; consciente de estar em uma sala de espetáculo, suspende qualquer ação e renuncia parcial-
mente a qualquer prova de realidade. Por outro lado, o filme bombardeia-o com impressões visuais e
sonoras.” (Aumont, 1995, p. 150).

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personagem pedante. O diálogo é revelador. Inez responde: “Sim! Todos estão
mortos há muitos anos.” (MEIA, 1:25’:05). Pender, então, diz: “Não! O passado
não está morto. O passado não passou.” – argumento que ele atribui a William
Faulkner (MEIA, 1:25’:09). O diálogo tematiza, claramente, uma questão chave
para todos aqueles que tem o passado como objeto. O diálogo torna incontornável
que o passado é algo vivo e que se faz presente, iluminando as artimanhas da vida
prática. Foi ele que “revelou” ao protagonista aspectos sobre sua vida conjugal e
que sua noiva o considerava como “morto”.

Acima de tudo, o diálogo testemunha o quanto Allen estava preocupado com
questões que se referem às relações entre passado/presente e defende que o
passado está muito atuante no presente, interferindo no mundo cotidiano atual –
em qualquer época contemporânea. Assim, ele não deixa que o público se engane:
o passado não passou, e mais; não é possível negá-lo e/ou tentar obscurecê-lo,
pois ele está muito vivo e basta um pouco mais de atenção para, não somente
decifrá-lo, mas para apreender como ele se faz presente cotidianamente.

Finalizo com uma passagem de Rüsen, cujas reflexões sobre Teoria da
História são, na atualidade, indispensáveis para pensar os processos históricos,
historiográficos e de ensino-aprendizagem - a Didática da História. Ao escrever
sobre as características da narrativa histórica, o historiador destaca o conceito
de “continuidade” que organiza as três dimensões do tempo – passado/presente/
futuro – que “ajusta a experiência real do tempo às expectativas humanas”.
A operação faz com que as experiências se tornem relevantes para “a vida
presente e influencie a construção do futuro.” (Rüsen, 2016, p. 48). Segundo
sua avaliação, “um progresso” nesse campo da historiografia ocorreria “se o
historiadores apresentassem a história para seus leitores de uma forma que, ao
lê-la, eles tivessem de criar por eles mesmos a atribuição de sentido a ideias de
continuidade, usando sua própria razão” (Rüsen, 2016, p. 57).

A sugestão de Rüsen aos historiadores serve, igualmente, aos professores
de história e a todos que realmente se dedicam a estudar o passado, sobretudo
aqueles que estejam a fim de projetar futuros muito mais felizes para toda a
humanidade. Talvez os filmes e outras narrativas audiovisuais possam trazer
contribuições relevantes para que esse sonho, acalentado por muitos se realize
no futuro.

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UM ESTUDO SOBRE O NATURALISMO EM THÉRÈSE RAQUIN, DE ÉMILE ZOLA, E A SUA
TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA CONTEMPORÂNEA PARA A ADAPTAÇÃO EM SEGREDO

A STUDY ON NATURALISM IN ÉMILE ZOLA’S THÉRÈSE RAQUIN AND ITS CONTEMPORARY
MEDIA ADAPTATION IN SECRET

Kassandra Naely Rodrigues dos Santos1

https://orcid.org/0000-0003-3347-1928
http://lattes.cnpq.br/6924382375292598

Milena Hoffmann Kunrath2

https://orcid.org/0000-0002-3335-1152
http://lattes.cnpq.br/0497963374492258

Recebido em: 29 de julho de 2024.
Aprovado em: 29 de janeiro de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21612

1  Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), mestre em Letras pela Uni-
versidade Federal de Pelotas (UFPel); licenciada em Letras - Português e Literaturas de Língua Por-
tuguesa pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA - 2017); possui Especialização em Artes
UAB/CAPES (UFPel). E-mail: kah_naelly@hotmail.com
2  Licenciada em Letras - Língua Portuguesa e Alemã, e bacharel em Artes Visuais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestre em Letras na área de Literatura Comparada pela
UFRGS e doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). Fez estágio de doutoramento sanduíche na Universidade de Konstanz (2014), sob
orientação da Profª Drª Aleida Assmann, com bolsa da CAPES. É professora efetiva na área de ale-
mão da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: milena.kunrath@gmail.com

RESUMO: O processo de adaptação costuma
receber críticas referente à sua fidelidade.
Partindo da perspectiva da adaptação como
tradução de uma mídia a outra, este artigo tem
por objetivo analisar semelhanças e divergências
entre o romance naturalista Thérèse Raquin,
publicado em 1867 pelo escritor francês Émile
Zola, e o filme Em Segredo, produzido nos
Estados Unidos em 2013, apoiando-se nos
estudos teóricos de Claus Clüver (2011) sobre
intermidialidade, no processo de transposição
midiática de Irina Rajewsky (2012), e na teoria
da adaptação de Linda Hutcheon (2013).
Palavras-chave: Thérèse Raquin,
literatura, adaptação, Em Segredo.

ABSTRACT: The adaptation process often
receives criticism regarding its fidelity. From
the perspective of adaptation as a translation
from one medium to another, this article aims
to analyze the similarities and divergences
between the naturalist novel Thérèse Raquin,
published in 1867 by the French writer Émile
Zola, and the film In Secret, produced in the
United States in 2013. This analysis is based on
the theoretical studies of Claus Clüver (2011) on
intermediality, Irina Rajewsky’s (2012) process
of media transposition, and Linda Hutcheon’s
(2013) theory of adaptation.
Key words: Thérèse Raquin, literature,
adaptation; In secret.

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179 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

INTRODUÇÃO

Com o surgimento e expansão de novas tecnologias, a sociedade passa a
expressar-se por meio das novas mídias, de acordo com GHIRARDI, RAJEWSKY
e DINIZ (2020) é uma transformação que está além das formas de produção
material e simbólica, mas reconfigura toda as vivências de uma sociedade e as
experiências dos indivíduos, as quais estão em diálogo com seu público-alvo de
produção.

A disseminação de novas mídias está cada vez mais presente dentro do meio
acadêmico através dos estudos interdisciplinares que trabalham com conceitos
como a intermidialidade, transmidialidade, midiação, adaptação, dentre outros,
os quais possuem por objetivo o diálogo entre diferentes mídias e a sua relação
com a sociedade.

Isto posto, o objetivo deste trabalho é analisar as semelhanças e divergências
entre o romance Thérèse Raquin (1867) e o filme Em Segredo (2013), título original
em inglês In Secret, partindo do conceito adaptação como sendo o resultado de
uma transposição intersemiótica entre dois diferentes sistemas de signos que
inclui a intepretação e recriação; e de transposição midiática, uma vez que há um
o processo de transpor elementos de um texto literário para uma mídia diferente,
adaptando-o conforme o sistema intersemiótico dessa nova mídia.

O romance Thérèse Raquin foi publicado em 1867 pelo escritor francês
Émile Zola e é considerado o romance precursor do movimento estético literário
naturalista. Narrado de forma impessoal e com muita precisão e detalhes, seu
enredo é desenvolvido em torno de um casal de amantes e a consequências de
um adultério que envolvem homicídio e, posteriormente, suicídio, dentro de uma
sociedade conservadora.

Baseado nesta obra de Émile Zola, o filme Em Segredo é um suspense erótico
estadunidense que se assemelha a estrutura narrativa da obra supracitada.
Produzido em 2013 por Mickey Liddell, e dirigido e roteirizado por Charlie Stratton,
Pete Shilaimon e William Horberg, teve uma apresentação especial e exclusiva no
Festival Internacional de Cinema de Toronto no mesmo ano, sendo lançado mais
tarde em 21 de fevereiro de 2014.

Isto posto, tanto o romance Thérèse Raquin, quanto o filme Em Segredo são
consideradas diferentes formas de mídias e que, por uma ser a adaptação da
outra, elas podem ser relacionadas, porém, também são completas isoladamente,

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isto é, não há necessidade que o público conheça as duas obras para entendê-las
separadamente.

O NATURALISMO EM THÉRÈSE RAQUIN

Com a temática da desilusão amorosa em alta na literatura do século XIX,
o romance Thérèse Raquin (1867) desenvolve-se em torno das consequências
de um adultério feminino dentro de um contexto social em que predomina o
conservadorismo. Entretanto, diferente de outros romances publicados durante
o século XIX que serviram de inspiração para este, e abordavam a mesma
temática, Thérèse Raquin traz uma ruptura em sua estética literária ao apresentar
personagens e ações animalizadas, amparadas pelas teorias do determinismo
social e da hereditariedade, e que justificariam as características patológicas
dos indivíduos ficcionais.

Segundo Arnold Hauser (1980, p.883), o romance naturalista teve por
influência o socialismo, o evolucionismo e, principalmente, de duas teorias
científicas difundidas em sua época, direcionadas e aplicadas ao campo
literário: a teoria determinista dos três fatores, advinda do historiador Hippolyte
Taine (1828 – 1893), que desacreditava na possibilidade do livre-arbítrio humano
e defendia que as atitudes e reações dos indivíduos estariam condicionadas a
fatores pré-determinados como raça, momento histórico e meio social; e a teoria
da hereditariedade genética, essa última inspirada na medicina experimental do
médico Claude Bernard-Horner (1813 – 1878), que, ao ser transposta para a literatura
naturalista, expandia à possibilidade de “herdar” características psicológicas e
até mesmo os vícios de seus antecessores:

Para Zola, como para a ideologia científica e socialista em geral, o homem é um ser
cujas qualidades são condicionadas pelas leis da hereditariedade e do ambiente, e, no
seu entusiasmo pelas ciências naturais, vai até ao ponto de definir naturalismo no ro-
mance simplesmente como aplicação do método experimental à literatura. (HAUSER,
1980, p. 967)

De acordo com Ivan Teixeira (2017), a divulgação de Thérèse Raquin não
somente estabelece um padrão de escrita narrativa apoiada nas ciências, como
também influenciou esteticamente outros escritores de sua época:

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Como se sabe, com Thérèse Raquin, Émile Zola define o padrão do romance médico,
que se concentra na apresentação, observação e análise de um caso específico de his-
teria sexual. Publicado duas vezes em 1867 (folhetim e volume), o romance causaria
escândalo e consolidaria a poética naturalista na França, desencadeando uma verda-
deira febre de imitações artísticas nas literaturas que partilhavam da poética cultural
estabelecida pela Europa. (TEIXEIRA, 2017, p. 816)

O romance, nada romântico, agradou apenas uma minoria de escritores e
apreciadoras da nova estética literária, sendo severamente depreciado e criticado
pela sociedade leitora em geral por abordar um tema velado na sociedade e
por sua violência explícita, assim como Louis Ulbach, conhecido ensaísta do
jornal francês Figaro, que acusou a obra de “literatura pútrida e pornográfica”.
(JOSEPHSON, 1956, p.107). Contudo, mesmo com as críticas severas, a publicação
desse romance Émile Zola concretizou sua perspectiva de uma escrita literária
que dialogava com as ciências e mais relacionada a uma ferramenta de aplicação
do método experimental ao estudo sociológico do indivíduo e de sua natureza
humana.

A trama passa-se em um sombrio recanto de Paris, onde vive uma modesta
família de comerciantes composta pela matriarca Senhora Raquin, uma mulher
egoísta afetuosamente que se dedica muito a seu filho, o doente Camille, que é
descrito como um rapaz fraco e ignorante, e sua prima Thérèse Raquin, quem
dá nome a obra, com quem se casa e cujo desejo reprimido ele não conseguia
satisfazer. Thérèse tem uma relação amorosa com Laurent, um robusto e
indolente filho de camponês, e, para sentirem-se tranquilos com os encontros
adúlteros, assassinam Camille. No final, assombrados pelo crime que cometeram,
o casal de assassinos suicida-se.

A narrativa diferencia-se de outros com mesma temática por apresentar uma
ruptura literária em sua estética ao trazer personagens e ações animalizadas,
embasadas no determinismo social e hereditário que justifica o lado patológico
dos indivíduos. Assim, mesmo com seus destinos impostos pelo meio social
onde estão inseridos, as personagens agem conforme suas naturezas. Logo
no prefácio à segunda edição francesa do romance é exposto com clareza os
objetivos da construção da narrativa, que também serve de defesa ao romance:

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Em Thérèse Raquin, eu quis estudar temperamentos e não caracteres. Aí está o livro
todo. Escolhi personagens soberanamente dominados pelos nervos e pelo sangue,
desprovidos de livre arbítrio, arrastados em cada ato de sua vida pelas fatalidades da
própria carne. Thérèse e Laurent são animais humanos, nada mais. Procurei acom-
panhar nesses animais o trabalho surdo das paixões, as violências do instinto, os de-
sequilíbrios cerebrais ocorridos na seqüência de uma crise nervosa. (...). Começa-se,
espero, a compreender que o meu objetivo foi um objetivo científico antes de tudo.
Quando as minhas duas personagens, Thérèse e Laurent, foram criadas, eu tive o pra-
zer de levantar e resolver determinados problemas: (...). Que se leia o romance com
cuidado e ver-se-á que cada capítulo constitui o estado de um caso curioso de filoso-
fia. Numa palavra, não tive senão um desejo: considerando um homem vigoroso e uma
mulher insaciada, procurar neles o animal, e mesmo ver unicamente o animal, lançá-
-los num drama violento, e observar escrupulosamente as sensações e os atos desses
seres. Eu simplesmente fiz com dois seres vivos o trabalho que os cirurgiões fazem
com cadáveres. (ZOLA, 2001, p.10).

À vista disso, o romance execrado por parte da crítica literária de sua época
devido à predominância de princípios mais conservadores da sociedade que vivia
da propagação das aparências e que resultou em um alvoroço também serviu de
ferramenta para difundir ideais e conceitos literários naturalistas, e na produção
posterior de outros trabalhos de Zola que aperfeiçoariam a estética.

O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO POR TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA

O termo intermedialidade, segundo GHIRARDI, RAJEWSKY, DINIZ (2020),
tornou-se controverso conforme começou a englobar diferentes as áreas do
conhecimento através do interesse de pesquisadores em estudar suas definições
e aplicações, o que auxiliou na desvinculação dos estudos comparatistas como
algo restrito apenas ao campo literário e transformou a mídia em objeto de estudo.

Apoiando-se em Claus Clüver, entende-se por mídia o meio de comunicação
composto por seu próprio sistema semiótico que transmite signos condicionados
à recepção e “inclui os transmissores (meios físicos e técnicos) e os qualifica
como “adequados”: isso depende do tipo do signo a ser produzido e transmitido. ”
(CLÜVER, 2011, p.13). Enquanto a intermidialidade é o estudo que envolve a relação
entre duas ou mais diferentes mídias: “implica todos os tipos de interrelação
e interação entre mídias; uma metáfora frequentemente aplicada a esses
processos fala de “cruzar as fronteiras” que separam as mídias” (CLÜVER, 2011,
p.9). Isto posto, o conceito de intermidialidade não está apenas relacionado a
produções artísticas, mas também as diferentes formas de mídias e seus textos.

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Já de acordo com Irina Rajewsky (2012), a intermidialidade trabalha com
as relações e condições de textos individuais e pode ser subdividida em
três categorias: a combinação de mídias; as referências intermidiáticas; e a
transposição midiática
. As adaptações de obras literárias para o audiovisual, por
exemplo, enquadram-se mais na categoria de transposição midiática, ou seja, é
traduzido um produto pertencente a uma determinada mídia para outra forma de
mídia. Nesse estudo, o texto “original” é conhecido como “fonte” desse novo texto
em outra mídia que, por sua vez, é denominado “texto-alvo”:

Intermidialidade no sentido mais restrito de transposição midiática (por exemplo,
adaptações cinematográficas e romantizações): aqui a qualidade intermidiática
tem a ver com o modo de criação de um produto, isto é, com a transformação de um
determinado produto de mídia (um texto, um filme etc.) ou de seu substrato de outra
mídia. Essa categoria é uma concepção de impermeabilidade “genética”, voltada
para a produção; o texto ou o filme “originais” são a “fonte” do novo produto de mídia,
cuja formação é baseada num processo de transformação específico da mídia e
obrigatoriamente intermidiático. (RAJEWSKY, 2012, p. 24)

O conceito de transposição midiática acredita que há um o processo de
transpor elementos de um texto literário para uma mídia diferente, adaptando-o
conforme o sistema intersemiótico dessa nova mídia. Para Clüver essa
transformação midiática:

(...) aplica-se claramente ao processo que chamamos de adaptação, normalmente para
uma mídia plurimidiática (romance para o cinema, peça teatral para a ópera, conto de
fadas para o balé, etc.), onde o novo texto retém elementos do texto-fonte (trechos do
diálogo, personagens, enredo, situações, ponto de vista, etc.) (CLÜVER, 2011, p.18)

Contudo, devido a interferências de diferentes perspectivas tanto internas
como externas ao meio acadêmico, durante muito tempo houve nos estudos
comparatistas uma predominante visão de superioridade de um texto fonte sobre
sua adaptação, os estudos voltavam-se apenas para a busca em comprovar as
fontes e influências, o que resultava no constante recebimento de críticas dessa
nova produção à sua fidelidade com o texto fonte:

(...) o Comparativismo, nos seus primórdios, ocupava-se especialmente de fontes
e modelos, bem como daquilo que se chamava de influência. Tratava-se do contato
passível de comprovação e às vezes hipotético entre textos, ou, mais precisamente,
do contato de autores, enquanto leitores, com textos, que deixava seus vestígios
concretos na própria criação. (CLÜVER, 2006, p.14)

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Isso ocorre devido a origem dos estudos sobre adaptação ter como
início o estruturalismo que, na prática, desprende as produções de suas
contextualizações e funções, estabelecendo um distanciamento qualitativo
entre a obra “original” e sua “adaptação”, sendo esta última avaliada de acordo
com seu nível de fidelidade ao texto fonte, o que resulta na sua desvalorização,
uma vez que não era considerada uma criação completa, mas sim um produto
dependente do “original”.

Desta maneira, o primórdio dos estudos comparativos voltava-se para as
perdas, ignorando todo o processo de intepretação e criação de um novo produto
que envolve também o contexto cultural de produção, os objetivos e o público
alvo, dentre outros critérios de criação.

Aos poucos no meio acadêmico a preocupação com a fidelidade foi sendo
substituída por estudos mais voltados a questões históricas e culturais que
viam a transformação como algo fundamental para construção de uma boa
adaptação. Logo, apoiando-se também nos estudos teóricos de Linda Hutcheon
(2013), a adaptação é o resultado de uma transposição intersemiótica entre dois
diferentes sistemas de signos:

Em vários casos, por envolver diferentes mídias, as adaptações são recodificações,
ou seja, traduções em forma de transposições intersemióticas de um sistema de sig-
nos (palavras, por exemplo) para outro (imagens, por exemplo). Isso é tradução, mas
num sentido bem específico: como transmutação ou transcodificação, ou seja, como
necessariamente uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos (HU-
TCHEON, 2013, p. 40).

Isto posto, o processo de transposição midiática envolve intepretação e
recriação conforme a época e o contexto cultural de seu público alvo. Por esse
motivo, é possível encontrar no texto-alvo elementos do texto fonte, bem como
também partes que precisam ser modificadas para que se construa um sentido
à nova mídia.

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THÉRÈSE RAQUIN E A ADAPTAÇÃO EM SEGREDO

Conforme desenvolvido no tópico anterior, a adaptação de uma obra
literária é o resultado de um processo que envolve novos significados por meio
da intepretação e recriação de acordo contexto sociocultural de seu público
alvo. Essa transformação de texto em imagens envolve uma equipe de produção
composta por diferentes profissionais que buscam transpor de um sistema de
signo para outro uma mensagem sem que ela se perca. Logo, alguns elementos
do texto fonte precisam ser modificados, ao mesmo tempo que outros são
mantidos para que se construa um sentido à nova mídia.

O filme Em Segredo (2013) é um thriller romântico ao mesmo tempo sombrio,
ambientado em uma obscura Paris de 1860, e apresenta uma história de um amor
obsessivo, iniciado por um adultério feminino, e com um crime brutal que se
assemelha narrativamente ao romance Thérèse Raquin (1867) ao também possuir
a mesma forma linear da trama com foco na trajetória da protagonista homônima
à obra Thérèse Raquin e no desenvolvimento de suas relações com os demais
personagens da história, apresentando até o mesmo número de personagens
que desempenham praticamente as mesmas funções que na obra literária.

Para quem teve acesso a ambas produções pode ser evidente as escolhas
para composição do filme sobre os temas e perspectivas de abordagem. Conforme
Linda Hutcheon (2013) quando assistimos a uma adaptação da qual conhecemos
a obra literária é natural automaticamente relacioná-las:

Se conhecermos esse texto anterior, sentimos constantemente sua presença pai-
rando sobre aquele que estamos experienciando diretamente. Quando dizemos que a
obra é uma adaptação, anunciamos abertamente sua relação declarada com outra(s)
obras(s). (HUTCHEON, 2013, p.27).

O romance inicia introduzindo o leitor ao ambiente da cidade de Vernon,
interior da França, para em seguida apresentar os três primeiros personagens
da narrativa, Senhora Raquin, seu filho enfermo Camille, e sua sobrinha Thérèse
Raquin, filha de seu irmão capitão Degans com uma jovem argelina.

Os primos Camille e Thérèse crescem juntos, dividindo a mesma cama. E
toda a dinâmica desta pequena família gira em torno de cuidados com a saúde de

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Camille, o qual a Senhora Raquin nutri uma proteção exagerada e egoísta.

Thérèse cresceu, deitada na mesma cama que Camille, sob os mornos carinhos da tia.
Tinha uma saúde de ferro e recebeu cuidados de uma criança franzina, compartilhando
os remédios que o primo tomava, mantida no ar tépido do quarto ocupado pelo pequeno
enfermo. Durante horas, ficava agachada diante do fogo, pensativa, olhando as chamas
de frente, sem baixar as pálpebras. Aquela vida forçada de convalescente dobrou-a
sobre si mesma; tomou por hábito falar em voz baixa, caminhar sem fazer barulho, ficar
calada e imóvel sobre uma cadeira com os olhos abertos e vazios de olhar. E, quando ela
levantava um braço, quando adiantava um pé, percebia-se nela elasticidades felinas,
músculos curtos e possantes, toda uma energia, toda uma paixão que se escondiam na
sua carne adormecida. Um dia, o primo caiu, dominado pela fraqueza; ela o ergueu e o
transportou, com um gesto brusco, e essa demonstração de força. (ZOLA, 2001, p.22)

Já no filme, a história inicia com a chegada da pequena Thérèse Raquin,
interpretada pela atriz Elizabeth Olsen, à casa de sua tia, a Senhora Raquin,
interpretada pela atriz Jessica Lange, e, em seguida, mostra os cuidados que a
jovem teve desde criança ao seu primo Camille, interpretado pelo ator Tom Felton.

O crescimento dos primos é exposto com um corte de câmera na cama em
que eles dividem. Destaca-se que quanto já adulta, a atriz Elizabeth Olsen, que
interpreta Thérèse, demonstra sempre uma apatia a tudo ao seu redor.

Figura 1 – 4 minutos e 40 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

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Figura 2 – 4 minutos e 50 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

O livro explora a questão da hereditariedade de Thérèse, em que o leitor tem
acesso a uma personalidade selvagem de Thérèse, a qual é oprimida pelo ambiente
e circunstância que se encontra, sendo obrigada a não fazer barulho, segundo o
narrador, guardando dentro de si os ímpetos de uma natureza selvagem:

Então, a vida tornou-se melhor para ela. Conservou os movimentos delicados, a fisio-
nomia calma e indiferente, continuou sendo a menina criada na cama de um enfermo;
mas viveu interiormente uma existência fogosa e arrebatada. Quando estava sozinha,
na grama, à beira do rio, deitava-se de barriga para baixo, como um animal, com os
olhos negros e arregalados, o corpo retesado, pronto para saltar. E ficava ali, durante
horas, não pensando em nada, fisgada pelo sol, feliz por poder fincar os dedos na terra.
Tinha sonhos loucos; olhava com desafio o que estrondava, imaginava que a água ia se
lançar sobre ela e atacá-la; então ela se retesava, preparava-se para a defesa, pergun-
tava-se com raiva como poderia vencer as ondas. (ZOLA, 2001, p.23)

Já no filme essa personalidade reprimida de Thérèse é comprimida em uma
cena, não existente no livro, que mostra a jovem observando com curiosidade e
desejo um jovem lavrador.

Figura 3 – 5 minutos e 39 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

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Figura 4 – 5 minutos e 54 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

No processo de adaptação de um romance para o uma produção audiovisual,
utilizam-se técnicas que vem ao encontro do texto fonte com a finalidade de
transpor um novo significado para essa nova produção. Para isso, torna-se
necessário alterar certas partes do texto adaptado. Essa diferença para Hutcheon
(2013):

Pode-se muito bem dizer que, enquanto o filme é capaz de expressar uma diversidade
de informações através das imagens, as palavras podem somente buscar uma aproxi-
mação - talvez isso seja verdade -, porém a aproximação é valiosa em sim mesma, pois
traz consigo a marca do autor. (HUTCHEON, 2013, p.21).

Sem possuir livre arbítrio, tanto no romance quanto no filme, Thérèse é
destinada desde pequena por sua tia a casar-se com seu primo, com o objetivo
explícito de cuidá-lo como forma de gratidão por ter sido acolhida. Assim, desde
pequena a jovem é preparada para desempenhar toda a função de proteção e
cuidados que a Senhora Raquin possui com Camille:

A senhora Raquin olhava os seus filhos com uma bondade serena. Tinha decidido ca-
sá-los. Sempre tratou o filho como se fosse um moribundo; tremia ao pensar que mor-
reria um dia e que o deixaria só e padecente. Então ela contava com Thérèse; dizia a
si mesma que a jovem seria uma sentinela vigilante junto a Camille. A sobrinha, com
seu semblante tranquilo, com seu devotamento mudo lhe inspirava uma confiança sem
limites. Conhecia o seu valor, queria dá-la ao filho como um anjo da guarda. Esse casa-
mento era um desfecho previsto, decidido. (ZOLA, 2001, p.24)

Em ambas narrativas a família Raquin muda-se para Paris por decisão de
Camille que, entediado com a atual vida campestre, busca seguir uma carreira, e
Thérèse, mesmo não consultada sobre a decisão, demonstra curiosidade sobre
a nova vida.

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Já em Paris, Camille reencontra um amigo de infância, Laurent, na Orléans
Railroad Company, lugar onde os dois trabalham, e, em seguida, o rapaz é
apresentado à família e passa visitá-los semanalmente durante as tradicionais
reuniões de quinta à noite.

Laurent, que no filme é interpretado pelo ator Oscar, Isaac, é um jovem
boêmio, forte e sedutor que viveu durante um tempo às custas de seu pai,
sustentando o ilusório sonho de ser pintor, no entanto, não possui talento para
tal arte:

No fundo, tratava-se de um preguiçoso com apetites vorazes, desejos bem definidos
de prazeres fáceis e duradouros. Aquele corpanzil pujante queria apenas ficar sem fa-
zer nada, chafurdar-se numa ociosidade e numa satisfação contínua. Gostaria de co-
mer bem, dormir bem, saciar amplamente suas paixões, sem sair do lugar, sem correr
o risco de um cansaço qualquer. (ZOLA, 2001, p.38)

A figura de Laurent representa o oposto de Camille e impressiona Thérèse
que logo o admira com curiosidade como se nunca tivesse visto um homem antes.

O filme acrescenta a esse personagem um tom mais sombrio ao mostrá-
lo com uma atração obscura por corpos desfalecidos, já tendo frequentado o
necrotério em busca de modelos para pintar.

Nas duas narrativas Laurent propõe pintar um quadro de Camille. Desenho
esse descrito como “rígido” e “seco”, com traços “grotescos” de um artista
“primitivo” e sem talento. (ZOLA, 2001, p.42), e que, após finalizada, a imagem
expunha “o rosto esverdeado de um afogado” que já predestina o destino de
Camille. (ZOLA, 2001, p.44).

Figura 5 – 23 minutos e 25 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

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Laurent decide ter um caso com a solitária Thérèse apenas por diversão,
e a moça sede na primeira investida. O primeiro contato físico entre Laurent e
Thérèse nas duas narrativas ocorre de maneira repentina, silenciosa e brutal após
a pintura do quadro de Camille. Laurent agarra bruscamente a jovem que se deixa
levar pela situação: “Ela teve um movimento de revolta, selvagem, enfurecida, e,
de repente, deixou-se levar, caindo no chão, sobre o assoalho. Não trocaram uma
única palavra. O ato foi silencioso e brutal. ” (ZOLA, 2001, p.45)

No filme, após essa primeira relação entre os amantes, os encontros são
condensados em várias cenas de cunho erótico. Já no romance, mesmo sendo
muito depreciado pela crítica, conforme vimos anteriormente, os trechos
descritivos que expõe o casal de amantes são menos explícitos, apresentando
uma crescente proximidade na relação íntima entre os dois.

A presença de Camille começa aos poucos a importunar Thérèse e Laurent
que juntos conspiram contra o rapaz. No filme, Camille torna-se um empecilho
ao casal de amantes quando decide sozinho, sem consultar ninguém, voltar para
Vernon.

A morte de Camille é semelhante em ambas obras. O rapaz é empurrado
na água por Laurent durante um passeio de barco e, afogando-se, chama por
Thérèse. Na narrativa literária isso ocorre de maneira mais descritiva, levando o
leitor a criar uma tensão sobre a morte de Camille:

Laurent apertou mais forte, deu um safanão, Camille virou-se e viu o rosto assusta-
dor do amigo completamente transtornado. Ele não compreendeu; foi tomado por um
medo vago. Quis gritar, e sentiu uma mão rude que lhe apertava a garganta. Com o
instinto de um animal que se defende, ergueu-se sobre os joelhos, agarrando-se às
bordas do barco. Lutou assim, durante alguns segundos. (ZOLA, 2001, p.79)

Em contraponto, no filme o passeio que inicia calmamente tem de repente
a cena cortada para outra sequência de imagens em que mostra os amigos da
família socorrendo Thérèse e Laurent. Desta maneira, a morte de Camille fica
subentendida em um primeiro momento, o qual apenas é confirmada com a visita
de Laurent ao necrotério para o reconhecimento do corpo do rapaz.

O espectador só tem conhecimento da forma como ocorre o assassinato de
Camille em um momento posterior de alucinação de Laurent que revela tudo a
senhora Raquin. Destaca-se que quando exposta a cena, expressões faciais da
atriz, Elizabeth Olsen, que interpreta Thérèse, evidencia que a moça foi induzida
ao crime, algo que não é distinguível na obra literária porque cabe ao leitor

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construir essa imagem.

Figura 6 – 47 minutos e 21 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

No romance conhecemos os personagens a partir da descrição do narrador e
de seus diálogos, quanto na produção audiovisual esse conhecimento ocorre por
meio de suas ações, ou seja, “(...)o modo contar (um romance) nos faz mergulhar
num mundo ficcional através da imaginação; o modo mostrar (peças e filmes)
nos faz imergir através da percepção auditiva e visual” (HUTCHEON, 2013, p.48).

No romance, o corpo desfalecido de Camille que Laurent encontra
no necrotério possui uma descrição detalhada e naturalista, essa imagem
assemelha-se à pintada anteriormente no retrato por ele em ambas mídias:

Camille estava hediondo. Havia permanecido quinze dias debaixo da água. Seu rosto
parecia ainda firme e rígido; os traços tinham se conservado, apenas a pele
havia tomado uma coloração amarelada e lamacenta. A cabeça, magra, os-
sosa, ligeiramente intumescida, fazia caretas; estava um pouco inclinada, com os ca-
belos colados na fronte, as pálpebras levantadas, mostrando o globo branquicento dos
olhos; os lábios torcidos, puxados para um dos cantos da boca, provocavam um escár-
nio; um pedaço de língua pretejada aparecia em meio à brancura dos dentes. Aquela
cabeça, como que curtida e esticada, por ter conservado uma aparência humana ficou
ainda mais assustadora de dor e de medo. O corpo parecia um monte de carnes dissol-
vidas; ele tinha sofrido horrivelmente. Percebia-se que os braços se despregavam; as
clavículas rasgavam a pele dos ombros. Sobre o peito esverdeado, as costelas provo-
cavam linhas pretas; o flanco esquerdo, rasgado, aberto, cavava-se no meio de trapos
de um vermelho sombrio. Todo o dorso estava apodrecendo. As pernas, mais firmes,
estendiam-se, cheias de placas imundas. Os pés estavam caindo. (ZOLA, 2001, p.94)

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Figura 7 – 53 minutos e 20 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

Durante a o afogamento Camille morde o pescoço de Laurent. Essa mordida
no romance é mencionada em mais de uma parte, representando a presença
constante da vítima e, consequentemente, do crime que ocorreu. Já no filme a
mordida é brevemente mencionada no casamento dos assassinos.

Na narrativa literária, após o assassinato, o narrador do romance passa a
referir-se ao casal, Thérèse e Laurent, por “assassinos”, e os dois ficam mais de
um ano sem encontrar-se sozinhos, como se matar Camille houvesse matado
também seus desejos. Já no filme o casal encontra-se amorosamente logo em
seguida ao crime.

Após casados, Thérèse e Laurent são mais atormentados pelo espectro do
afogado Camille, que imaginam estar presente entre eles semelhante à imagem
de quando encontrado morto, o que os impede de ter paz. Assim, um passa a
torturar o outro com o crime que cometeram.

O asqueroso quadro, outrora pintado por Laurent, também passa a
representar materialmente em ambas obras a presença constante de Camille na
intimidade do casal, e, consequentemente, do crime brutal cometido:

O assassino hesitava em reconhecer a tela. Na sua perturbação, esquecia que ele pró-
prio havia desenhado aqueles traços canhestros, espalhado aquelas tintas imundas
que o assustavam. O terror o fazia ver o quadro tal como era, medonho, malfeito, bor-
rado, ostentando sobre um fundo preto uma face caricata de cadáver. Aquela obra o
espantava e o esmagava pela sua feiúra atroz; havia sobretudo os dois olhos brancos
flutuando nas órbitas largas e amareladas, que lhe lembravam exatamente os olhos
apodrecidos do afogado do Necrotério. Ele permaneceu ofegante por um momento,
acreditando que Thérèse estava mentindo para tranquilizá-lo. Depois distingui o qua-
dro, e se acalmou, pouco a pouco. (ZOLA, 2001, p.146)

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Enlouquecidos, Thérèse e Laurent sofrem as consequências do homicídio.
Thérèse começa a ter pesadelos com Camille afogando-se. E, como uma
obsessão, tudo que Laurent desenha lembra a imagem de Camille no necrotério:
“O resultado foi o mesmo, Camille, deformado e sofrido, aparecia continuamente
na tela. (..). Acabou desenhado animais, cachorros e gatos; os cachorros e os
gatos assemelhavam-se vagamente a Camille. ” (ZOLA, 2001, p.175)

Nesse mesmo tempo o casal também passa a cuidar da Senhora Raquin que
ficou paralisada após sofrer um segundo acidente vascular cerebral devido à
perda de seu filho Camille. E durante uma crise de violência Laurent alucinando
revela o crime, e a senhora Raquin toma conhecimento de todo o crime:

Era inútil que Thérèse e Laurent a colocassem entre eles, em plena luz, pois ela já não
vivia o bastante para os separar e os defender de suas angústias. Quando esqueciam
que estava ali, que os via e ouvia, a loucura os dominava, eles viam Camille e procuravam
expulsá-lo. Então eles murmuravam, deixavam escapar confissões involuntárias,
frases que acabaram revelando tudo à senhora Raquin. Laurent teve uma espécie de
crise durante a qual falou como um alucinado. De repente a paralítica compreendeu
tudo. (ZOLA, 2001, p.181)

O fim de ambas narrativas ocorre com a tentativa de Thérèse e Laurent um
matar o outro, mas ao perceberem seus planos individuais e, desesperados,
suicidam-se ingerindo veneno.

No entanto, no livro os assassinos suicidam-se à noite, logo após as
tradicionais reuniões de quinta-feira, e seus corpos ficam toda noite sobre o
assoalho da sala de jantar sendo contemplados pelos olhos da Senhora Raquin.
Assim, o romance termina sem o descobrimento do crime:

E bruscamente Thérèse e Laurent explodiram em soluços. Uma crise extrema os es-
magou, os lançou nos braços um do outro, frágeis como crianças. Pareceu-lhes que
algo de terno e meigo despertava em seus peitos. Eles choraram sem falar, pensan-
do na vida de lama que haviam levado, que continuariam a levar, se fossem covardes
demais para continuar a viver. Então, lembrando-se do passado, eles se sentiram tão
cansados e enojados de si mesmos que experimentaram uma necessidade imensa de
repouso, de vazio. Trocaram um último olhar de agradecimento, diante da faca e do
copo de veneno. Thérèse pegou o copo, bebeu a metade e o estendeu a Laurent que
o esvaziou de um gole. Foi como um raio. Eles caíram um sobre o outro, fulminados,
encontrando enfim uma consolação na morte. A boca da jovem foi encontrar, sobre
o pescoço do marido, a cicatriz deixada pelos dentes de Camille. (ZOLA, 2001, p.230)

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Já no filme, os protagonistas ingerem veneno durante um passeio à tarde
e morrem sob os olhos da Senhora Raquin, que consegue expor que o casal foi
responsável pelo crime:

Figura 8 – 1 hora, 34 minutos e 44 segundos

Fonte: Em segredo, 2013

Por fim, tanto o romance Thérèse Raquin (1867), quanto o filme Em
Segredo (2013) são considerados diferentes formas de mídias e que, por uma
ser a adaptação da outra, elas podem ser relacionadas, porém, são completas
isoladamente, não sendo necessário que o público conheça as duas obras para
entendê-las separadamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transposição de um texto literário em outra mídia requer um processo de
adaptação entre diferentes sistemas inter-semiótico, por esse motivo, acreditar
que uma adaptação tem que ser fiel ao texto-fonte para ser válida significa anular
todo um processo de criação e recriação.

Como visto, o processo de adaptação pode resultar na compressão da
história, retirada de algumas partes ou intensificação de outras. Portanto, a
somente a fidelidade ao “original”, ou a falta dela, não deve ser o único critério
de qualificação de uma obra, porque a adaptação deve ser vista como uma nova
experiência, que proporciona ao seu telespectador/leitor outros sentidos ao
texto.

Desta forma, também é possível construir um diálogo entre o romance
Thérèse Raquin e o filme Em Segredo, porém, ambas são narrativas completas

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isoladamente, não sendo necessário que o público conheça uma para desfrutar
ou compreender a outra.

A maior semelhança entre ambas obras está em sua estrutura narrativa,
pois suas histórias desenvolvem-se a partir do adultério de Thérèse Raquin e
seu crime cometido contra seu marido Camille junto a seu amante Laurent,
apresentando também o mesmo número de personagens que desempenham as
mesmas funções.

No entanto, no filme não é explorada a questão da hereditariedade de
Thérèse, e sua personalidade selvagem e reprimida é comprimida.

A relação entre os protagonistas Thérèse e Laurent possui mais erotismo
no filme em comparação à narrativa literária, uma vez que os encontros entre
os amantes são condensados em várias cenas erotizadas, com a finalidade de
transpor a intensidade da relação que no romance é mais desenvolvida de forma
crescente.

Outra parte que se distingue entre as produções está no assassinato de
Camille que, na narrativa literária, ocorre de maneira crescente em tensão, sendo
mais descritiva e clara ao leitor. Já no filme, o assassinato fica subentendido em
um primeiro momento, sendo nítido ao leitor apenas posteriormente em uma
cena de alucinação de Laurent.

Nesse processo de transposição da narrativa literária para a produção
cinematográfica foi necessário não somente a intensificação de algumas partes,
conforme supracitado, mas também a amenização de outras: como a menção da
mordida de Camille no pescoço de Laurent; e o processo crescente de alucinação
dos assassinos e sua relação violenta e destrutiva.

Ambas obras também se assemelham na questão sombria do assassinato,
na forma grotesca que o corpo desfalecido de Camille é encontrado no necrotério,
no atormento que o espectro do afogado traz à Thérèse e Laurent, e no destino
suicida do casal.

No entanto, as narrativas também se diferem no final quanto ao esclarecimento
do crime, em que o romance não traz ao leitor se o crime é descoberto, em quanto
no filme é exposto que o casal é responsável pelo homicídio de Camille.

Por fim, se colocadas lado a lado percebemos que o romance tem
função de narrar de forma impessoal, detalhista, e partindo da concepção do
movimento estético literário naturalista a história de um adultério feminino e
suas consequências que envolvem assassinato e suicídio, enquanto o filme foi

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planejado de forma que se assemelhe a estrutura narrativa, porém, adaptado
conforme o sistema intersemiótico dessa nova mídia. Assim, cada produção é
influenciada por seu contexto histórico de criação, e tanto a narrativa literária
Thérèse Raquin, escrita em 1867, quanto sua adaptação Em Segredo, produzido
em 2012, são consideradas formas de mídias diferentes que podem tanto ser
relacionadas, como também narrativas completas se apreciadas separadamente.

Referências

EM segredo. Direção de Charlie Stratton. Produção de Mickey Liddell, William Horberg, e Pete
Shilaimon. Roteiro de Charlie Stratton. Estados Unidos: Sony Pictures, 2013. Online HBO (106
min.). Disponível em: https://www.primevideo.com/dp/amzn1.dv.gti.2d206279-4abb-4b87-
9853-1c93ff6a984e?autoplay=0&ref_=atv_cf_strg_wb . Último acesso em: 05 de fev. 2024.

CLÜVER, Claus. Inter Textus/ Inter Artes/ Inter Media. Revista Aletria. Belo Horizonte: Editora
UFMG, n. 14, jul./dez., p. 11-41, 2006.

CLÜVER, Claus. Intermidialidade. Revista Pós. Programa de Pós-graduação em Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, vol. 1, n. 2, nov. 2011/abr. 2012, p. 8-23,
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GHIRARDI, Ana Luiza; RAJEWSKY, Irina; DINIZ, Thaïs. Intermidialidade e referências
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HAUSER, Arnold. História social da Literatura e da Arte. TOMO II. Trad. Walter H. Geenen. São
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HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. 2.ed – Florianópolis:
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JOSEPHSON, Mathew. Zola e seu tempo. Trad. Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2ª edição, 1958.

RAJEWSKY, Irina-Intermidialidade, interextualidade e “remediação”- uma perspectiva literária
sobre a intermidialidade (pp. 15-45) in: DINIZ, Thaïs. Intermidialidade e Estudos Interartes:
desafios da Arte Contemporânea. Vol 1. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

TEIXEIRA, Ivan. Raul Pompeia e o naturalismo. In: TELES, Adriana da Costa. O naturalismo /
organização J. Guinsburg, João Roberto Faria. - 1. ed. - São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 806 –
840.

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197 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

ZOLA, Émile. Thérèse Raquin. Tradução de Joaquim Pereira Neto. 2. ed. rev. – São Paulo:
Estação Liberdade, 2001.

ZOLA, Émile. Do Romance. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Edusp, 1995;

ZOLA, Émile. O Romance Experimental. In: ZOLA, Émile. O Romance Experimental e o
Naturalismo no Teatro
. São Paulo: Perspectiva, 1982.

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JEAN-LUC GODARD E O CONTROLE DO PRESENTE: ALPHAVILLE, UNE ÉTRANGE
AVENTURE DE LEMMY CAUTION (1965)

JEAN-LUC GODARD AND CONTROL OF THE PRESENT: ALPHAVILLE, UNE ÉTRANGE
AVENTURE DE LEMMY CAUTION (1965)

Rafael Alves Pinto Junior1

https://orcid.org/0000-0002-8439-9586
http://lattes.cnpq.br/9208712284117352

Recebido em: 26 de junho de 2024.
Aprovado em: 22 de janeiro de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21432

1  Possui graduação em Arquitetura pela Universidade Católica de Goiás (1991), mestrado em Cul-
tura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2008) e doutorado em História pela Universidade
Federal de Goiás (2011). É, desde novembro de 2024, sócio correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico do Estado de Goiás (IHGG) e membro do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis
Para os Povos do Cerrado (Icebe) na cadeira n. 104 (Emílio Vieira). E-mail: rafael.junior@ifg.edu.br

RESUMO: Este texto propõe uma “leitura”,
entre outras possíveis, do filme Alphaville, une
étrange aventure de Lemmy Caution (1965),
de Jean-Luc Godard. Pretende-se, através
do instrumental teórico da cultura visual e
do imaginário, contribuir para a reflexão da
relação entre o cinema e as cidades. O foco
recai sobre a representação do espaço urbano,
examinando a arquitetura, e os ambientes
enquanto elementos estruturantes da narrativa.

Palavras-chave: ficção científica, distopia
urbana, filme noir.

ABSTRACT: This text proposes a “reading,”
among other possible interpretations, of the
film Alphaville, une étrange aventure de Lemmy
Caution (1965) by Jean-Luc Godard. Through
the theoretical framework of visual culture
and the imaginary, it aims to contribute to the
reflection on the relationship between cinema
and cities. The focus lies on the representation
of urban space, examining architecture and
environments as structuring elements of the
narrative.
Key words: science fiction, urban dystopia,
film noir.

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As cidades imaginárias geralmente representam, em alguma medida, os
anseios, medos e aspirações da sociedade que lhes deram origem. Neste contexto,
afirmações que inserem os espaços urbanos como causa e consequência de
biografias em paisagens culturais fragmentadas já constituem um lugar-comum
da crítica da cultura. Originalmente concebidas para armazenar, transmitir os
“bens da civilização” (MUNFORD, 1982, p. 38) e lugar da “própria humanidade”
(BRANDÃO, 2006, p. 13), as cidades passaram a ser associadas à impessoalidade,
ao medo e ao desconforto. Resultados de experiencias desastrosas que
produziram apenas lixo, ruinas e escombros (OLALQUIAGA, 1998), desencontros,
rupturas, exclusões e enfrentamentos. Lugares ou não-lugares (AUGÉ, 2008)
povoados por seres obrigados a viver em um ambiente onde a existência está
perpetuamente sitiada (SUBIRATS, 2010) cuja única justificativa é ser palco de
uma guerra de narrativas.

Este panorama de paroxismos pode ser levado adiante praticamente ad
infinitum. Diante disto, parece não ser possível dizer que não corresponda, de
certa maneira, com a realidade das cidades materializadas no ocidente após a
revolução industrial. Sobretudo, quando são constatados aumentos nos índices
de criminalidade vivenciados, com alguma defasagem temporal, tanto na Europa
quanto nos demais países industrializados a partir da década de 1960 (BONELI,
2010). Vale observar que estas visões distópicas e catastróficas podem também
ser combustível tanto para a criação quanto para a veiculação de alguns produtos.
No caso deste recorte, as visões do espaço urbano no cinema, notadamente, em
Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution.

Visto à distância de praticamente seis décadas, poucas obras suscitaram
questões que permaneceram contemporâneas quanto este filme concebido por
Jean-Luc Godard e lançado em 1965. Vista enquanto fonte historiográfica, uma
obra de arte se revela um manancial privilegiado com propriedades estilísticas,
formais ou iconográficas que remetem a percepções particulares: maneiras de ver
modificadas pela experiência social e pela própria leitura. Neste sentido, importa
reconhecer a materialidade da existência da “intenção” da obra, qualquer que
seja. Intenção aqui entendida de uma forma mais ampla, sendo uma construção
mental que descreve a relação de uma obra de arte com seu contexto, de acordo
com o sentido atribuído por Michel Baxandall (2006). Sendo um objeto histórico,

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a obra de arte, neste caso a cinematográfica, possui uma “qualidade intencional”,
a expressão de uma relação entre o objeto e sua temporalidade.

Alphaville pode ser inserido em uma série de produções cinematográficas
europeias e norte americanas que tem por tema distopias - entendidas como
‘utopia negativa” (JACOBY, 2007) - de controle absoluto. Temporariamente,
encontra-se precedido por Metropolis, dirigido pelo cineasta austríaco Fritz
Lang de 1927 e sucedido por 2001: uma odisséia no espaço, dirigido por Stanley
Kubrick e lançado em 1968. A distopia concebida por Godard já não se assenta no
mecanicismo de um espaço urbano industrial e antecipa a questão do controle
absoluto propiciado pelos computadores, especialmente os sencientes da
estirpe de HAL 9000, concebido por Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick.

Em 1965, Godard já era um cineasta relativamente reconhecido na Europa
(MORREY, 2005). Os primeiros curtas-metragens, como por exemplo, Operátion
Béton
(1954) e Une histoire d’eau (1961) já haviam chamado a atenção da juventude
parisiense e ele já havia produzido oito longas-metragens, entre eles, À bout
de souffle (1960), Une femme est une femme (1961), Vivre sa vie (1962), Le Mépris
(1963) e Bande à part (1964). Nomes que se tornaram célebres representantes
da Novelle Vague, como Anna Karina, Jean-Paul Belmondo e Brigitte Bardot, já
haviam passado pelas lentes das câmeras do diretor.

O próprio título do filme - Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution
já evoca uma dupla leitura. O nome da cidade, Alphaville, e a estranha aventura
do protagonista, Lemmy Caution. O título já adverte a natureza, no mínimo
perturbadora, da aventura. Estrelado por Eddie Constantine, Anna Karina,
Howard Vernon e Akim Tamiroff, o filme ganhou o Urso de Ouro do 15º Festival
Internacional de Cinema de Berlim em 1965. O roteiro combina os gêneros noir
e ficção científica. O protagonista, Lemmy Caution, interpretado por Eddie
Constantine, é o agente secreto criado pelo escritor britânico Peter Cheyney em
This Man Is Dangerous lançado em 1936. Apesar de que Eddie Constantine não foi
o primeiro ator a interpretar o personagem2, o sucesso fez com que ele passasse
a ser associado indissociavelmente ao papel.

A história se desenvolve em um futuro indefinido e em um planeta distante
da Terra. Não são observados cenários futuristas, engrenagens robóticas ou
adereços mecânicos. As ruas da capital francesa, tão conhecidas pelo diretor,

2  Interpretado originalmente por John van Dreelen em Brelon d´as, do cineasta Henri Verneuil em 1952.

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serviram às locações externas e os edifícios modernistas de vidro e concreto
serviram aos ambientes de muitas cenas. Godard, afastando-se de cenários
artificiais previsivelmente futurísticos, optou por ambientes reconhecíveis e
familiares, mas que são transformados pelo estranhamento das composições,
iluminações e enquadramento das imagens.

O filme tem início com o agente Lemmy Caution, que se passa por um
jornalista, Ivan Johnson, do jornal Fígaro-Pravda. O detetive sofre agressões logo
ao chegar no hotel e constata que está sendo mantido sob severa vigilância. A
missão secreta à Alphaville tinha três objetivos: localizar o agente Henri Dickson,
desaparecido; capturar ou eliminar o professor Leonard von Braun, criador do
computador e destruir a máquina maléfica Alpha 60 que controla ditatorialmente
a população da cidade. Ele chamava-se Leonard Nosferatu, havia sido expulso
dos países exteriores e se instalado naquele planeta distante onde criou uma
civilização perfeitamente organizada e baseada na lógica científica. Sob o disfarce
de jornalista, Lemmy Caution contava com a ajuda de Natasha von Braun, filha do
criador de Alpha 60 e funcionária do departamento de Propaganda e Memória. Ela
é uma arquetípica cidadã de Alphaville que ignora o significado de “consciência”,
“crítica” ou “amor” e sobrevive sem questionamentos às explicações que lhe são
dadas.

A placa da cidade explicita desde o início seus princípios norteadores: Silêncio,
Lógica, Segurança e Prudência. Os habitantes são controlados completamente
por Alpha 60 que aboliu, após deduções de lógica, o individualismo, o pensamento
livre e a manifestação das emoções. Esta abolição se deu mediante a simples
proibição e a substituição de conceitos contraditórios. Desta maneira, nenhum
residente deveria interrogar o “porquê” de algo ou alguma coisa, mas apenas dizer
a conjunção subordinativa causal ou explicativa “porque”.

Imerso em uma longa noite, o detetive defronta por diversas vezes com
luminosos com as equações da relatividade especial e da mecânica quântica
E=mc2 e E=hf – o que reforça os sólidos alicerces da ciência que sustenta
aquela civilização. Não demora para que apareçam oposições entre a fria
lógica matemática do computador e o maldisfarçado romantismo do detetive,
representadas pelas citações de versos de Capitale de la douleur, do poeta francês
Paul Éluard, publicado em 1926. Ao literalizar o texto, o poema desempenha
a função de romper com a linearidade da narrativa e apontar para o reino das
possibilidades. Também não demora para que Lemmy se apaixone por Natasha,

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o que introduz outra camada de imprevisibilidade no desdobramento da trama.
Guiado por Natasha, Lemmy Caution testemunha a execução de indivíduos

insurgentes. Um deles havia chorado quando a esposa faleceu e, como as
emoções eram proibidas, foi executado. Estas punições públicas aconteciam
em uma piscina onde os sentenciados, além de baleados, eram mortos a facadas
por mulheres de maneira sincronizada. As pessoas oriundas da orla exterior
eram, se possível assimilados, especialmente se fossem suecos, alemães ou
norte-americanos. Os demais, refratários ou inassimiláveis eram simplesmente
descartados. Para isto, havia um teatro das execuções onde os indivíduos eram
eletrocutados nos assentos enquanto assistiam a um espetáculo. A seguir, eram
despejados em recipientes de lixo e o ciclo se reiniciava. Caso algum indivíduo
demonstrasse sinais de cooperação e recuperação, eram enviados para um
hospital de doentes crônicos e podiam realizar a “cura” graças às massivas
operações de propaganda.

Através destes acontecimentos, percebe-se que a sociedade estabelecida
pela elite científica não é tão petrificada quanto pode parecer à primeira vista.
Há um elemento de instabilidade que permanece como uma espada de Dâmocles
no sistema. Novos elementos são assimilados e as divergências que surgem
no processo são identificadas através da vigilância onipresente e resolvidas
pela simples eliminação. Há, portanto, uma pressão no sistema que deve ser
contida, regulada e continuamente avaliada. A cidade se apoia sobre o controle
absoluto de seu funcionamento diário e sob o medo da desintegração. A situação
que parece pétrea e estável é, na realidade, extremamente frágil. Depende da
energia empregada nas atividades de verificação lógica, fiscalização e punição,
perpetuamente renovadas com a adição de novos problemas. O princípio original
da aplicação de deduções lógicas que sustenta Alpha 60 é, aparentemente
estável, mas o cenário real da administração do tempo presente certamente
não é. Em Alphaville não houve revoluções e insurreições pois o sistema havia
se mostrado eficiente em eliminar as dissonâncias e o número dos executados
pareciam limitados em parâmetros “aceitáveis”.

Lemmy Caution, diante deste cenário, percebe que está diante de um destino
que lhe parece terrível. Municiado com esta convicção ele indaga Natasha sobre o
conhecimento de algumas palavras que ela desconhece. Ela recorre ao dicionário
continuamente atualizado, também chamado Bíblia, e reclama que quase todos
os dias há palavras que desaparecem: “porque são malditas e são substituídas

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por novas palavras que expressam novas ideias” (ALPHAVILLE, 1968). O detetive
estimula as memórias e ela se lembra que não era natural de Alphaville, o que
explicaria suas manifestações emotivas que transparecem inadvertidamente.
Esta seria a causa das irrupções de suas dúvidas. O despertar da memória tem um
efeito devastador na personagem que se vê em uma nova posição, conflituosa,
daí em diante. Neste ponto, Godard parece sugerir que a narrativa opera enquanto
elemento da construção da própria memória que mesmo moldada e reconfigurada
sempre corresponde a uma atribuição de sentidos.

A partir deste ponto, os acontecimentos se precipitam. As comunicações
são suspensas e o casal é detido. Lemmy Caution é interrogado pelo computador
e este corresponde ao ponto alto do drama. Alpha 60 diz que o detetive é uma
ameaça à segurança de Alphaville e instala-se um impasse com o agente se
rejeitando a se converter à normalidade imposta. Lemmy sugere uma charada
a ser desvendada pela máquina: identificar o que nunca pode ser mudado, que
seria o passado que representa o futuro e que avança em linha reta e termina
por fechar o círculo temporal. A própria compreensão da proposta, representa,
para a lógica computacional de Alpha 60, uma dissolução. Se ele fosse capaz de
compreender o sentido trágico da pura aplicação dos princípios lógicos seria um
humano. Haveria sido capaz de criar uma ética. Diante disto, Alpha 60 entra em
colapso. Lemmy Caution consegue fugir, mata os guardas que o vigiam e vai ao
encalço do professor von Braun. Propõe a ele que o acompanhe à orla exterior e
o cientista, ao contrário, propõe que ele fique e colabore com o sistema. Oferece
uma recompensa: o controle de uma galáxia, ouro e mulheres. Lemmy Caution vê
que é impossível levar von Braun e o executa. Com a morte do criador a civilização
desmorona. Os que não morrem perambulam pelos corredores e ruas. O detetive
resgata Natasha e finalmente o casal consegue escapar da cidade.

Estes são, resumidamente, os acontecimentos que concatenam a narrativa
concebida por Jean-Luc Godard. Imersa nesta narrativa, Alphaville, enquanto
criação fílmica e dotada de singularidade, desempenha um papel estruturante
na trama, independentemente de ser imaginária ou representação metafórica
de alguma cidade concreta de seu tempo. Entretanto, este papel não se
revela imediatamente. Ao contrário, se dá após sucessivas aproximações e
distanciamentos que abrem possibilidades ao observador. Este recorte propõe
três delas, ressaltando que outras permanecem abertas.

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Uma delas corresponderia à uma leitura literal da narrativa e das citações.
Neste caso, são abundantes as referências facilmente identificáveis, plenas
de estereótipos e clichês: von Braun possui o mesmo sobrenome do célebre
engenheiro alemão Wernher von Braun, uma das principais figuras no
desenvolvimento do foguete  V-2  para o regime nazista na Alemanha durante
a 2ª. Guerra; Nosferatu seria uma citação do protagonista de Nosferatu, Eine
Symphonie des Grauens, filme dirigido por Friedrich Wilhelm Murnau e lançado em
1922 e Natasha seria uma citação de Natasha Rostova, personagem da famosa
literatura do autor russo Liev Tolstói e publicado entre 1865 e 1869. O mal estava
associado aos nazistas e o seu combate estava associado ao detetive norte-
americano enviado para sequestrar ou eliminar o perverso cientista, reafirmando
o discurso de vitória construído no pós guerra com a vitória dos Aliados contra o
Eixo. O próprio protagonista se descreve sendo veterano de Guadalcanal3 o que
reforça a construção do personagem associada ao heroísmo e ao lado “correto”
do enfrentamento bélico relativamente recente na memória europeia. À esta
análise, a narrativa é límpida, facilmente percebida e de desfecho perfeitamente
previsível. Aí, o amor romântico triunfa sobre a opressão e a impessoalidade
opressiva do controle totalitário. O bem vence de forma maniqueísta o mal que
lhe opõe.

Na orla exterior, a própria ideia de progresso havia evaporado e as diversas
civilizações enfrentavam diferentes níveis de decadência. Neste quadro,
Alphaville aparecia na posição de alternativa à degradação e degenerescência.
Oferecia a alteridade da construção de uma cidade especialmente modelada de
acordo com bases científicas. Em suma, uma cidade concebida para conjurar o
medo da degradação do próprio urbanismo. As demais cidades são as “outras”,
incoerentes, fragmentadas, cujas atividades econômicas e desordens sociais
prejudicam o exercício sereno das funções políticas. Gesto racional para recolocar
a questão urbana na via do progresso. Tanto que Alpha 60 estava cônscio que
espiões eram continuamente enviados para roubar o segredo do sucesso de
von Braun. A atração hipnótica de Alphaville derivava de sua imagem símbolo de
seu poder soberano auto emergente: uma das mais ancestrais dentre todas as

3  Travada entre agosto de 1942 e fevereiro de 1943 durante a guerra do Pacífico no contexto da Se-
gunda Guerra Mundial.

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funções urbanas.
Conforme é possível observar nas figuras 1 e 2, mantida na escuridão ou sob

o manto de uma neblina ou fumaça, a cidade aparece como a representação do
regime ditatorial que lhe deu origem e a iluminação é uma das maneiras de estruturar
as imagens. Sendo precisamente através desta relação de luz e sombra que se
estabelece o lugar da narrativa. Aí impera uma rigorosa disposição dos edifícios,
equivalente à imobilidade materializada pelo controle de Alpha 60. A própria luz
desempenha um papel arquitetural onde áreas de luz, marcações de pontos
luminosos e manchas de penumbra configuram linhas, superfícies e volumes.
Sugerem direções e não há horizonte natural visível. Tudo é construído, produto da
ação lógica deliberada e dirigida dos planejadores. As ruas, praticamente desertas,
são palco para figuras que emergem e desaparecem das sombras criadas pelas
fachadas, postes e faróis. Os pontos de vista, angulações e distâncias também
configuram espaços delimitados. Através deles, o enquadramento fecha sobre si e
procura minimizar os personagens aí contidos. As composições são frequentemente
desequilibradas, com a introdução de elementos irregulares, símbolos, sinais,
partes de textos, equações e partes de máquinas que sugerem uma sequência
opressiva. Imagens que expressam os medos e receios da sociedade europeia frente
a um mundo que acenava com a possibilidade do uso abusivo da tecnologia digital
que parecia encontrar seus lugares ideais nos ambientes sombrios e fascinantes
construídos por Godard.

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Figura 1 - Imagens de cenas urbanas. ALPHAVILLE, 1965



FONTE: https://www.youtube.com/watch?v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

Figura 2 - Imagens de cenas urbanas. ALPHAVILLE, 1965



FONTE: https://www.youtube.com/watch?v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

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Uma segunda maneira de abordar Alphaville seria ver a obra enquanto ficção
científica distópica, a representação de uma civilização que encontra o controle
absoluto resultante da aplicação de raciocínios puramente lógicos. Ao evocar
a relação fundamental do homem com a tecnologia, em particular, a digital, a
narrativa fílmica evoca algo além da imediata visualidade. Destinada ao grande
público e, portanto, coletiva e em circulação no corpo social, a tecnologia aparece
prenhe de significados, resultado dos desejos e medos de quem a controla. Sua
imagem desempenha a função de semióforo4, cujo valor não é medido pela simples
existência, mas antes pela força simbólica daquilo que representa. Fecundo, pois,
faz emergir efeitos de significações (CHAUÍ, 2000). A tecnologia articula o “dar a
ver” e o “dado a ver” que configura o cotidiano dos habitantes. É ela também que
funciona enquanto dispositivo criador do próprio real ao planificar elementos
do real no imaginário e tornar o imaginário previsível e real na materialidade
da cidade. Daí, o fato de que os residentes terem sido transformados em seres
despossuídos de individualidade, é puramente contigencial.

Neste ponto de vista, a representação dos habitantes é mais dramática
que a do próprio espaço construído da cidade. A planificação e o controle dizem
respeito à superação de todos os aspectos negativos geralmente associados aos
espaços urbanos. Através desse instrumental se materializava o melhor de dois
mundos: facilidade, conforto e igualdade na distribuição de recursos vitais de um
lado, e de outro, sossego, segurança e supressão da violência pela erradicação
de conflitos e alteridades. Habitar em um dos mundos da orla exterior era um
fardo que implicava em uma contínua negociação para a resolução de problemas
que se renovavam. Em Alphaville, até a chegada do agente secreto e protagonista
Lemmy Caution, não há agressões. A cidade, cenário sustentáculo da civilização
criada por von Braun, carregada de símbolos, sinais e significações aparece tanto
no que mostra quanto no que oculta. O planejamento, projeto e a previsão lógica
das situações aparecem enquanto ponto de perspectiva à construção de uma
identidade social pacificada. Espelho no qual se podia (re)encontrar continua e
narcisicamente a conhecida face pacifica concebida por quem lhe deu origem.

Ao longo da narrativa, é perceptível que a figura feminina desempenha uma
função dúplice e paradoxal: por um lado são as maiores vítimas e, por outro,

4  Semióforo, do grego Semeiophoros, palavra composta por semeion, “sinal” ou “signo” e phoros,
“trazer para a frente”, “tornar visível”, “expor”.

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os instrumentos através dos quais se perpetua a vigilância e a violência em
Alphaville. Suas imagens (figura 3) antecipam os androides, que foram fabricados
para atuarem como serviçais de diversos tipos, perfeitos simulacros, do romance
de ficção cientifica Androids Dream of Electric Sheep? de Philip Kindred Dick que
seria lançado em 1968. Marcadas por números tatuados, em alguns momentos
elegantemente vestidas e belas, enquanto em outros com a nudez exposta em
vitrine, aparecem acessíveis. Dóceis e submissas. Aparentemente, sempre
disponíveis a favores sexuais e entretenimento. São elas que, ao mesmo tempo,
colocam música, arrumam a cama e oferecem companhia. Ao mesmo tempo, são
vigilantes, atentas às informações e denúncias. Participam ativa, sincronizada
e impassivelmente das execuções nas piscinas públicas apunhalando os
sentenciados. A suavidade do nado artístico e a imagem da água adicionam
camadas de ironia à cena dramática da morte na água.

Figura 3 – Execução pública na piscina e imagens femininas. ALPHAVILLE, 1965.



FONTE: https://www.youtube.com/watch?v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

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A sequência de imagens da piscina suscita certo estranhamento (figura 3). As
composições, concebidas para destacar reflexos e transparências, exibem uma clara
mensagem no contexto da narrativa: a dissidência causa perturbação e insegurança e a cidade
ideal que é Alphaville oferece ordem e previsibilidade. Ao mesmo tempo, a cena explicita o
princípio lógico de Alpha 60: se a desobediência de princípios estabelecidos produz o caos
e, considerando que o caos é indesejável, faz-se necessário a eliminação do agente. Pura e
evidente aplicação do princípio da terapêutica: cessada a causa, cessa-se o efeito.

Os reflexos da água, ao devolver uma face de essencialidade, sugerem a naturalização
da própria imagem do puro fato, ao orgulho da própria contemplação (BACHELARD, 1997). A
plateia se comporta de maneira entusiasta, reafirmando socialmente a aplicação da punição.
Esta ironia, produzida no ambiente efervescente cultural do feminismo francês e nascente
Mouvement de Libérationdes Femmes  na década de 1960, aparece ainda mais anacrônica e
dissonante. Em uma cena, o detetive, ao presenciar a execução aquática, indaga a um dos
presentes se somente homens foram condenados. A resposta era que havia uma proporção
de cinquenta homens para cada mulher nas condenações à pena capital. Dito de outro modo,
a dominação havia atingido majoritariamente as mulheres que, impotentes, perderam a
capacidade de reagir e sublevar.

Outro ponto alto da narrativa corresponde ao encontro de Lemmy Caution com o
engenheiro chefe, no centro nervoso da cidade: Estação Central de Integração onde são
ajustados os problemas operacionais, repressão do banditismo, circulação de pessoas e
mercadorias e operações de guerra. Neste momento, o agente é informado que o princípio de
Alpha 60, o prototípico cérebro que possui uma inteligência auto emergente e que desenvolve
a si próprio, era calcular e prever. O engenheiro observa que a inteligência do detetive era
acima da média, o que era desejável, porém extremamente perigoso. Em seguida, é autorizado
que ele veja o computador com a observação que os circuitos não estavam funcionando a
contento. O computador estava dedicado a processar informações coletadas por informantes
a respeito dos países exteriores. Com estas informações, o centro de controle enviava agentes
infiltrados para provocar ataques, greves e rebeliões em outras galáxias.

Uma terceira maneira de abordar Alphaville inscreve a obra na ontologia, enquanto
elemento que torna possível múltiplas existências, no sentido atribuído por Heidegger (2013).
Nesta perspectiva, a voz gutural, cadenciada e mecânica de Alpha 60 desempenha o papel
de narrador omnisciente cujo objetivo é construir um simulacro. Precisamente, é este tipo
de narrativa que torna a obra de Godard inabordável enquanto pura representação. Metáfora
da construção narrativa e da própria linguagem, a cidade aparece sendo a expressão da
manipulação que é ao mesmo tempo causa e efeito da própria narrativa. Godard, ao jogar com
aspirações coletivas, tradições herdadas e a criação de novos valores e significações escapa
da armadilha de se reduzir o imaginário à sua dimensão ideológica. Muito menos opor a este
jogo de intenções o potencial drama acusatório da visão distópica. Os exemplos destacados na
figura 4 permitem ver a ação de uma complexa e sutil alternância que joga com a linearidade,
a circularidade, as circunvoluções e o labirinto em linha reta. Os próprios circuitos de Alpha 60

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são similares às salas dos corredores com salas onde acontecem os interrogatórios: labirintos
de circuitos que estão concatenados linearmente.

Uma urdidura visual e delicada parece estar no sustentáculo da narrativa. Elementos
desta engrenagem, as imagens dos espaços construídos oferecem condições para observar
que, de maneira similar aos mecanismos da ficcionalidade, os valores socialmente construídos
e cultivados têm uma mais sutil do que usualmente lhe são atribuídos. Valores que existem não
somente para prestigiar ou hostilizar determinadas perspectivas sociais, mas também para
exercer pressões para que sejam automatizados, isto é, considerados naturais (LIMA, 2009),
portanto inquestionáveis. Adiciona-se mais uma camada ao simulacro da voz onipresente. Um
desses elementos pode ser identificado na grande luminária redonda que pulsa frontalmente
em intervalos regulares no início do filme. Parece ser um elemento poético que tende a romper
com a linearidade da narrativa: nada a precede, a explica e nada a substitui. Entretanto, sua
aparição em outros momentos do filme forma uma sequência que reforça a simulação de
realidade criada em Alphaville. Um elemento visual que aparentemente significa uma coisa em
pouco tempo aparece sendo o seu contrário.

Figura 4 – Escadas espirais, corredores e mecanismos internos de Alpha 60. Representações femininas.
ALPHAVILLE, 1965



FONTE: https://www.youtube.com/watch?v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

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Este jogo visual entre o linear e o circular, representação da organização da
lógica interna do sistema é explicado pelo próprio Alpha 60 ao colocar que:

Ninguém vive no passado e ninguém viverá no futuro. O presente é a única forma de
vida. Essa qualidade não pode ser alterada por nenhuma forma. O tempo é como um
círculo que gira continuamente. O arco que desce é o passado, o arco ascendente é o
futuro. Tudo já foi dito. A não ser que as palavras mudem de sentido e os sentidos das
palavras. [...] Antes de nós, nada existia aqui, nem ninguém. Estamos totalmente sós.
Aqui somos únicos, assustadoramente únicos. O significado das palavras e expressões
já não são perpétuas (ALPHAVILLE, 1965).

Em seguida, a máquina explica a fragilidade da lógica humana que
inevitavelmente conduziu a erros e foi, pouco a pouco, destruindo a lógica: uma
vez conhecendo o “1” acredita-se conhecer o “2”, considerando que “1” mais “1”
são sempre “2”. O que os humanos se esquecem é que, antes de se entender o
resultado era imperativo compreender o significado de “mais”, sem o qual a
operação era destituída de sentido. Após esta fala e antes que o detetive esboce
alguma associação ideológica, o computador justifica que está consciente de
que nem no chamado mundo capitalista nem no comunista há uma vontade
malévola para subjugar seus povos. Não se trata de se ocultar atrás do poder
da doutrinação ou das finanças. O que há é ambição natural auto emergente em
qualquer organização para planificar suas atividades e garantir a continuidade.

Para Alpha 60, o controle da linguagem determinava o controle do
pensamento e consequentemente, do mundo psíquico e ações dos habitantes
da cidade. Também determinava o domínio do tempo presente e a anulação dos
sentidos de outras dimensões temporais: em Alphaville não há História e o futuro
estava reduzido ao conjunto de deduções previsíveis. Destinada à apropriação
individualizada dentro dos parâmetros colocados, o controle era o próprio eixo
da equação imaginal/imaginário/imaginante: instituição de práticas discursivas
capazes de determinar práticas sociais.

O simulacro estava completo. Alpha 60 era o dispositivo perfeito destinado
a (re)produzir aparências e controlar os sentidos atribuídos aos referentes:
ideia bem mais sutil que a simples fabricação ou imposição de diretrizes
programáticas. Aparece aí a dimensão mais complexa de Alphaville que decorre
da desmaterialização – ou eterização – da cidade. Transparece uma dimensão
invisível altamente centralizada: o controle institucionalizado. O cientista havia

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criado um aparato capaz de sustentar indefinidamente um mundo imaginário
possibilitando transformar o real em conteúdos plásticos para a (re)construção
ideal deste real. Assim, deduções baseadas em pura lógica poderiam gerar novas
deduções em um circuito continuamente retroalimentado. Circularidade perfeita,
perpetuum mobile. Para Lemmy Caution, esta eternidade de princípios geradores
pareceu uma atroz violência à população. Para von Braun era a realização de toda
a aspiração do conhecimento científico e totalidade da lógica.

Figura 4 – Imagens em negativo. ALPHAVILLE, 1965



FONTE:https://www.youtube.com/watch?v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

A morte de von Braun desencadeia o processo de autodestruição
que havia sido inoculado no sistema com proposta do detetive para que o
computador identificasse o que nunca poderia ser mudado. À medida que o
colapso avança, Godard introduz planos de cenas e sequencias em negativo,
invertendo opressivamente as tonalidades (figura 5). O diretor, de maneira
similar ao protagonista, impõe uma subversão à lógica das imagens e produz um
estranhamento. Reafirma visualmente sua posição de liberdade artística e seu

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direito ao emprego da imaginação. Em Alphaville, Godard coloca a representação
do autoritarismo e dos mecanismos de controle além do plano de qualquer
ideologia e insere a narrativa ao mesmo tempo critica a qualquer forma de
censura e ato de rebeldia formal constituinte da própria obra.

Referências

ALPHAVILLE. Direção de Jean-Luc Godard. Produção: André Michelin. Local:Mundial Filmes,
Paris, 1965. Imagens de cenas urbanas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=UitB6c8QP80. Acesso em 18 jun 2024.

AUGÉ, Marc. Não-Lugares. Campinas: Papirus, 2008.

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAXANDALL, Michel. Padrões de intenção. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BONELLI, Laurent. La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité. Paris: La Découver-
te, 2010.

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. As cidades da cidade. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo,
2000.

HEIDEGGER, Martin. Ontologia. Hermenêutica da facticidade. Petrópolis: Vozes, 2013.

JACOBY, Russell. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário e a afirmação do Romance. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2009.

MORREY, Douglas. Jean-Luc Godard. New York: Manchester University Press, 2005.

MUNFORD, Lewis. A cidade na História. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

OLALQUIAGA, Maria Celeste. Megalópolis. Sensibilidades culturais contemporâneas. São
Paulo: Studio Nobel, 1998.

SUBIRATS, Eduardo. A existência sitiada. São Paulo: Romano Guerra, 2010.

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UTOPIAS E DISTOPIAS URBANAS NAS TELAS DO CINEMA:
METROPOLIS E BLADE RUNNER

URBAN UTOPIAS AND DYSTOPIAS ON CINEMA SCREENS:
METROPOLIS AND BLADE RUNNER

Marcos Antônio de Menezes1

https://orcid.org/0000-0001-8472-8186
http://lattes.cnpq.br/5906542748941462

Recebido em: 16 de junho de 2024.
Aprovado em: 23 de dezembro de 2024.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21368

1  Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU (1996), mestrado em
História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Franca (1999) e dou-
torado em História pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2004). Estágio Pós-doutoral pela
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2016). É professor titular da Universidade Federal
de Jataí (UFJ), atuando no Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado e Doutorado) da Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, desde 2005. E-mail: pitymenezes.ufg@gmail.com

RESUMO: Aqui a intenção é pensar como
nosso ruminar sobre o futuro humano nos
remete para os imensos espaços de concreto
das metrópoles contemporâneas e, ao mesmo
tempo, como suas representações, utópicas e
distópicas, produzidas pela sétima arte, podem
nos ajudar a entender o frenesi de propostas
sobre o morar e viver no futuro.
Palavras-chave: utopias, distopias,
cidades, cinema.

ABSTRACT: The aim here is to reflect on how
our contemplation of the human future leads
us to the vast concrete spaces of contemporary
metropolises and, at the same time, how their
utopian and dystopian representations produced
by the seventh art can help us understand the
frenzy of proposals regarding living and dwelling
in the future.
Key words: utopias, dystopias, cities,
cinema.

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Com 55% da população da Terra, 4,4 bilhões de pessoas vivendo em
aglomerados urbanos, a atenção de projetistas do futuro se volta para a selva
de pedras na tentativa de desenhar, por sonhos e pesadelos, o destino da raça
humana. Fora do âmbito das engenharias, da arquitetura, do urbanismo e
planejamento, o pensar o futuro urbano encontra nas artes um terreno fértil.
Utopias e distopias são desenhadas, construídas por artistas de toda sorte.
Pródigos em futurologia, a literatura, ou melhor, a literatura de ficção e o cinema
científico encontram no tema seu deleite.

Obras literárias, como Admirável Mundo Novo  (1932) de Aldous
Huxley, 1984 (1949) de George Orwell, O Conto da Aia (1985) de Margaret Atwood, Não
Verás País Nenhum
 (1981) de Ignácio de Loyola Brandão, trazem para suas páginas
um mundo onde as cidades são onipresentes e apresentam uma representação
do futuro.

Uma estimativa fictícia daquilo que poderia ser um lugar (topos) ruim (dis) para se viver
é o que compõe o fio condutor do gênero distópico, contemplado principalmente na
literatura e no cinema. [...] Uma distopia geralmente apresenta uma descrição ficcio-
nal de uma sociedade que vai na contramão do ideal completo (da utopia) e costuma se
passar no futuro, em um contexto no qual o Estado se utiliza da razão para disseminar
a violência e controlar as massas a fim de perpetuar a desigualdade (GUIMARÃES, 2019,
n.p.).

Em nosso presente, a literatura e o cinema distópicos ganham cada vez
mais espaços nos diálogos e na construção de debates por apresentarem uma
realidade mimética, imaginada ou simulada, mais atrativa do que a realidade
empírica.  A capacidade que a ficção tem de conduzir ideias inquiridoras de
interesses político-econômicos das sociedades por meio das representações
artísticas é atraente.

Nas artes, na literatura, assim como nos quadrinhos, séries ou filmes, a
distopia tem sido mobilizada na hora de criticar a sociedade atual, já que oferece
uma perspectiva extrema de questões que nos preocupam hoje, por exemplo,
o avanço da ciência, o consumismo ou certas políticas com tendência ao
totalitarismo.

Na literatura e nas artes em geral, podemos encontrar os antecedentes mais
remotos da distopia em obras como A República de Platão (século IV a.C.) e Utopia
de Thomas More (1516), embora só possamos falar de distopia dentro da ficção
científica a partir do século XIX, quando esse gênero surgiu. No entanto, essas
obras às vezes aparecem nas genealogias da ficção científica, obviamente para

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dar distinção à sua linhagem.

Cinema e ficção científica

A distopia sempre encontrou seu melhor companheiro no gênero de ficção
científica e invadiu a nova arte que nasceu no século XX: o cinema. Desde o
primeiro momento em que chegou à telona nas mãos do expressionismo alemão
com o filme de Fritz Lang (1890-1976), Metropolis (1926), até os dias atuais, as
narrativas distópicas têm embalado produções cinematográficas, embora, claro,
vejamos exceções em alguns filmes que estão no limite da ficção científica, como
as adaptações cinematográficas de Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut,
Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, e V de Vingança (2006), de James
McTeigue.

Na década de 1980, a ficção científica distópica provocou uma revolução
no cinema com o longa Mad Max 2 (1981). O filme quebrou recorde de bilheteria
ao apresentar um universo pós-apocalíptico no qual acontece uma guerra pelo
petróleo entre grandes potências mundiais. Outros filmes também revolucionaram
a forma e a técnica de produzir obras cinematográficas no campo da ficção, como
o famoso Exterminador do futuro (1984).

  Depois disso, as distopias começaram a ocupar ainda mais espaço nas
telinhas e conquistaram a atenção dos telespectadores. As adaptações de livros
clássicos também contribuíram para que as distopias ficassem mais conhecidas
no cinema e ganhassem maior relevância.

Desde seus primórdios, o cinema tem um vínculo estreito com a atmosfera
e paisagem urbanas. Isso se deve, naturalmente, à própria relação entre cinema
e modernidade, uma vez que esta propiciou a fertilidade do terreno em que se
desenvolveria a arte cinematográfica que, desde o primeiro quarto do século
passado, tem se colocado como veículo de transmissão das ideias de pensadores
que olham para o presente e, ao interrogá-lo, constroem imagens ficcionais
que levam os espectadores a sair da sua posição de conforto e dialogar com os
problemas de construção de uma vida coletiva em um mundo que a cada dia mais
apresenta problemas para garantir o bem-estar de todos.

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Mais do que uma forma de manifestação artística, o cinema ajuda a criar símbolos e
não apenas registros e reproduções de imagens. O cinema trabalha as sensações de
quem o assiste. As imagens, mais do que conceitos, teriam vida própria, capazes de
criar uma cultura de imagens. Assim, as imagens [...] propagam-se, embora alteradas,
em todas as classes sociais, não conhecem limites de escolha, nem de estilo nem de
nação (ARGAN, Apud TRINDADE, 2002, p.3)

Ao interrogar a vida das sociedades no planeta, o cinema e seus criadores têm
inquerido cada vez mais a vida das comunidades nas grandes metrópoles, pois as
cidades, até mesmo por meio de sua arquitetura, possibilitam “ler” suas histórias
e imortalizá-las. Segundo Rolnik (1995), a definição de cidade tem sua essência
urbana em outros tempos e lugares e referências à hierarquização espacial. Elas,
as cidades, seriam análogas a um “ímã”, afinal, elas criam “um campo magnético
que atrai, reúne e concentra os homens” (ROLNIK, 1995, p. 12).

Para Bauman (2009, p. 35), “é nos lugares que se forma a experiência humana,
que ela se acumula, é compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado
e negociado”. Então, é nos questionarmos acerca do lugar de cada indivíduo
na sociedade que os problemas reais da atualidade podem ser representados
exacerbadamente e isso pode ocorrer nas ficções cinematográficas distópicas
ou na intangibilidade esperançosa das utopias.

Em 1926, o cineasta alemão Fritz Lang trouxe, para as telas, o filme Metropolis,
sua representação das cidades que, no futuro, poderiam redimir a humanidade
de toda sua perversidade. Sua obra fílmica, em parte, pode ser relacionada a uma
corrente estética específica do cinema alemão — a do Cinema Expressionista,
que faz “a crítica social, alinhada a certa visão pessimista que, no período
abarcado pelas Guerras Mundiais e pelos entreguerras, buscava expressar de
maneira particularmente intensa os temores, angústias e insatisfações do
homem urbano” (BARROS, 2011, p. 161-162). A obra apresenta a desigualdade entre
a classe trabalhadora e os planejadores da cidade com o clássico enredo de um
amor impossível entre membros da sociedade de classes distintas. 

Em 1982 o cineasta inglês Ridley Scott rodou Blade Runner, filme baseado
na novela Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968) do escritor americano
Philip K. Dick (1928-1982). A película é ambientada na Los Angeles de 2019,
momento em que a Terra é um lugar inóspito, coberto de poluição, onde reina a
noite e nunca para de cair uma chuva ácida.

Metropolis e Blade Runner são filmes sobre o futuro e suas respectivas
narrativas se passam num tempo ainda por vir: Metropolis, na cidade imaginária

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homônima, em 2026, cerca de 100 anos após sua apresentação ao público, e Blade
Runner, na Los Angeles de 2019, 27 anos após o lançamento do filme em 1982.

Como em Metropolis, a distopia em Blade Runner é o pano de fundo da
narrativa, dando-lhe mais riqueza e profundidade. A sociedade de classes não é
mostrada explicitamente e nem o Estado opressor, mas ambos estão implícitos
nos diálogos no filme.

Nas películas, a cidade abandona o caráter de mero palco da ação, tornando-
se um componente preponderante da narrativa. Tanto em Metropolis quanto
em Blade Runner, a cidade reclama o status de protagonista e personagem
onipresente. Em ambas as produções, “toda a cenografia, arquitetura ou design
de produção suporta discursos suplementares inscritos em formas e estilos”
(SUPPIA, 2012, p. 336).

Convém lembrarmos que ambos são essencialmente filmes de estúdio, a
despeito de algumas locações no filme de Scott. Por consequência da própria
filmagem em estúdio e da relevância do décor, os dois filmes apresentam uma
atmosfera hermética, espaços bem delimitados e impregnados de sentido.

Metrópole pós-moderna

Alfredo Suppia (2002, 2012), na dissertação A metrópole replicante:
de Metropolis a Blade Runner
e no artigo Babel do futuro: por uma tradução da
architecture parlante de Metropolis e Blade Runner
, apresenta uma interessante
análise sobre o tema. O autor cita o crítico literário e teórico marxista Fredric
Jameson, acentuando que ele se refere “à metrópole pós-moderna como
uma cidade fragmentada, impossível de ser traduzida num mapa geográfico
perfeitamente organizado” (SUPPIA, 2012, p. 340). Nessa cidade, segundo o autor,

o indivíduo tem a noção fragmentada de sua localização e dos caminhos que deve tri-
lhar no intuito de chegar a determinado local. Contudo, a noção do todo lhe é impossí-
vel, dada a multiplicidade e a constante mutação da paisagem e do panorama urbanos,
o que acarreta uma espécie de deriva referencial. Esse sintoma deve ser relacionado,
num certo nível, aos processos de conturbação (SUPPIA, 2012, p. 340).

Ferreira Gullar, pontuando que ele “ilustra o gigantismo mutante e a
impossibilidade de uma totalidade sensível da metrópole pós-moderna” no lugar
chamado Ufu, descrito no livro Cidades inventadas (1977), em que a cidade é algo

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interminável e, quando e se é que ela termina, imediatamente liga-se a outra,
e mais outra, e mais outra, numa inesgotável paisagem urbana que remete,
também, ao mito grego do labirinto de Dédalo.

A metrópole futurista de Lang foi criada a partir de maquetes de edifícios e
de vias de rodagem suspensas, repletas de miniaturas de automóveis, de trens e
de aviões sobrevoando a paisagem. Esse cenário construído e movimentado pela
filmagem quadro-a-quadro ganhou nas telas uma atmosfera de monumentalidade
e verossimilhança graças ao processo Schufftan — trucagem feita com espelho e
iluminação para superpor, no momento da filmagem, imagens captadas em dois
sets diferentes —, que influenciaria significativamente o cinema a partir de então.

A cidade de Metropolis, que não só reclama o protagonismo como dá nome
ao filme, é obviamente uma cidade imaginária, muito embora tenha tido forte
inspiração na Nova Iorque concreta dos arranha-céus e ruas frenéticas. Foi numa
viagem que Fritz Lange e Erich Pommer fizeram a Nova Iorque. Por ocasião do
lançamento do filme Os Nibelungos: a morte de Siegfried nos Estados Unidos em
1924, o diretor alemão se encantou com a silhueta de Manhattan vista do convés
de sua embarcação.

Dessa forma, percebemos que a verticalidade monumental da metrópole
norte-americana foi decisiva na estilização visual da cidade futurista de Lang.
Durante os primeiros dois terços do século XX, Nova Iorque, mais que qualquer
outro local no planeta, representou as forças da modernidade e por isso foi
copiada e imitada em todas as artes.

Embora muitos autores apontem exaustivamente o teor Kitsch do enredo, é no âmbito
plástico-fotogênico que Metropolis deslumbra os sentidos, conforme já observara Luis
Buñuel em 1927. Quando da première de Metropolis, no UFA Palast de Berlim, Buñuel
escreveu em La Gaceta Literária sua impressão da obra de Fritz Lang, a qual lhe parecia
“dois filmes colados pela barriga” (SUPPIA, 2012, p. 337).

O diretor de cinema espanhol acentuou que, “se à história preferirmos o
fundo plástico-fotogênico do filme, Metropolis cumulará todos os nossos desejos
e maravilhar-nos-á como o mais maravilhoso livro de imagens que algum dia se
compôs, como uma arrebatadora sinfonia de movimento” (BUÑUEL apud SUPPIA,
2012, p. 337).

Em Metropolis, a cidade tem um papel preponderante. Lang joga com a
sobreposição de duas estéticas opostas para diferenciar as classes altas das

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baixas. Para a cidade alta, usa uma estética art déco como a que se via em Nova
Iorque da década de 1920. Para a cidade dos trabalhadores, utiliza uma estética
totalmente oposta com edifícios simples sem qualquer tipo de decoração, além
de pequenas janelas quadrangulares.

Em suma, Lang, com a estética criada para Metropolis, inaugurou o cinema da
megalópole na ficção científica, ou seja, da cidade gigantesca que é protagonista
onipresente da história e que, nesse caso, é usada para mostrar esse futuro
distópico com uma sociedade de classes.

Metropolis não foi apenas um dos primeiros filmes de ficção científica da
história do cinema, mas também o primeiro a incluir o tema da distopia como
pano de fundo para definir a ação, representada por meio da arquitetura. Também
se tornou um filme cult, exercendo uma notável influência no cinema.

Na ficção de Blade Runner, uma espécie de delírio envolve espectadores
por meio de recursos visuais e narrativos, entre eles a ubiquidade das formas
de controle: o  Voigt-Kampff, uma espécie de polígrafo de interrogação para
verificar se alguém é realmente humano; o Spinner, carro voador utilizado para
vigilância policial; e a inteligência artificial que percebe variações de humor, faz
reconhecimento facial e sugere práticas comportamentais perfiladas.

A metrópole de Blade Runner é  claustrofóbica, poluída e decadente. A
sociedade também orienta verticalmente (ricos no alto, pobres nas ruas) e a
paisagem urbana mais parece um mosaico multicultural, repleto de signos
publicitários e índices da ocupação oriental. Essa cidade imaginária

seria constantemente açoitada por uma espécie de chuva ácida, ruas congestionadas
e a onipresença dos mesmos arranha-céus góticos criados para o Metropolis de Fritz
Lang, este um filme-chave para a concepção visual de Blade Runner. Scott também
pretendeu adicionar questões sociais contemporâneas a seu filme mostrando uma Los
Angeles futurista povoada principalmente por asiáticos [...] A costa oeste dos Estados
Unidos apresenta-se quase como uma colônia oriental, dado o poder de penetração
das corporações japonesas na economia norte-americana (SUPPIA, 2002, p. 17 e 54).

A arquitetura da cidade cinematográfica também reflete um aprofundamento
das hierarquias sociais, em conformações urbanas nas quais os mais ricos vivem
em ambientes elevados, amplos, limpos e silenciosos, enquanto as classes mais
baixas disputam espaço nas ruas sujas e apinhadas, moram em apartamentos
cubiculares e estão sujeitas às milhares de luzes e sons dos anúncios publicitários
que lhes sequestram o olhar.

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Quanto ao tema da distopia, no filme ele é representado pelo urbanismo,
como em Metropolis, só que, nesse caso, não aparecem os dois estratos da
sociedade, mas sim apenas as classes mais baixas são mostradas, aquelas que
devem permanecer na Terra enquanto as classes mais altas vivem nas colônias
externas longe do planeta.

Suppia (2002, p. 34) percebe que os paralelos entre Metropolis e Blade
Runner
“são tão acentuados quanto suas particularidades. Ambos se utilizam
da cosmologia medieval para criar um universo hierárquico, com o paraíso
acima e o inferno abaixo; ambos tentam associar inovações tecnológicas a
questionamentos morais”.

Contudo, as cidades mostradas nos filmes de Lang e Scott configuram visões
singulares em torno do futuro das metrópoles. Em Metropolis, Lang apresenta um
projeto moderno de metrópole, síntese da modernidade industrial, no qual dois
universos antagônicos, o arcaico e o moderno, serão finalmente reconciliados pela
ação de um mediador. O filme antecipa o uso do vídeo como recurso tecnológico
e a vigilância eletrônica. Na Los Angeles de 1929, Scott faz, segundo Suppia um
diagnóstico pós-moderno da metrópole, na qual o arcaico e o moderno estão
amalgamados numa sociedade pós-industrial extremamente tecnicista, sobre a
qual paira irremediavelmente o estigma da ruína ou da deterioração.

Notemos que o filme de Ridley Scott apropria-se da verticalidade como metáfora da
estratificação e hierarquia sociais, bem como do conflito de classes, seguindo um
padrão inaugurado no Metropolis de Lang. Devemos observar também que, tanto em
Metropolis quanto em Blade Runner, a verticalidade assume o caráter de crítica social
ao mesmo tempo em que se refere a mitos antigos, narrativas bíblicas ou metarrelatos
de inspiração religiosa. O filme de Fritz Lang está fortemente impregnado do imaginá-
rio cristão, no qual constatamos referências explícitas ao “Céu” e à “Terra”, ao “Éden”
– transfigurado no Jardim Eterno dos Prazeres –, bem como ao mito de Adão e Eva,
representado pelos personagens Freder e Maria. Embora de forma diferenciada, Blade
Runner
retoma esse imaginário cristão em sua metrópole futurista, na qual o andróide
busca obstinadamente seu “Criador”, no intuito de obter a indeterminação sobre sua
mortalidade. Em ambos os filmes, os protagonistas – Freder em Metropolis, Deckard
em Blade Runner – percorrem trajetórias que podem ser comparadas à catábase órfi-
ca, a descida aos infernos e o retorno revelador (SUPPIA, 2012, p. 339-340).

Suppia salienta que, em Blade Runner, nas cenas em que criador e criatura
se encontram no topo da Tyrell Corporation, “observamos uma clara citação a um
misto de imaginário pagão e cristão no filme de Ridley Scott. O mito de Prometeu
e sua releitura cristã ditam a atmosfera da ‘sequência do parricídio’ e da ‘queda do
anjo portador da luz’” (SUPPIA, 2012, p. 343). O autor destaca:

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A Los Angeles high tech é uma referência bastante explícita à Babel mítica: a acirrada
diversidade cultural, a incomunicabilidade, a monumentalidade, o apogeu tecnológico,
húbris e ruína — todos esses elementos podem ser observados na megalópole de Ridley
Scott. Além disso, também vemos em Blade Runner um equivalente figurativo da Torre
de Babel no próprio cenário: a sede da Tyrell Corporation (SUPPIA, 2012, p. 343).

Segundo Ismail Xavier (2007), o mito de Babel em Metropolis significa bem
mais do que a simples referência à monumentalidade vertical da cidade. Trata-se
de uma parábola no seio de outra parábola, que ilustra em detalhes os termos de
uma analogia entre o futuro e o passado mítico.

Há um jogo de espelhos pelo qual a lenda de Babel forma uma versão reduzida do relato
maior que dá conta dos fatos em Metropolis, para que a analogia se faça uma quase
identidade, uma repetição que o filme trabalha de modo particular, solo para que a
mesma frase edificante arremate a pregação, aqui e no final do filme (XAVIER, 2007,
p. 22-23).

A comparação implícita à Torre de Babel que se percebe em Blade Runner é
menos evidente do que em Metropolis, “embora também se manifeste como um
subtexto. A Los Angeles de 2019 é a própria Babel pós-moderna, superpopulosa e
multifacetada cultural e idiomaticamente, haja vista o idioma sincrético praticado
pelos populares.

A Los Angeles futurista pode ser compreendida como uma revisão ou reedição da
Metropolis de Lang e seu projeto moderno; desta vez, sob o olhar fin-de-siècle, a cidade
do futuro é muito mais uma distopia noir pós-moderna, em que a linha de montagem, a
combustão e a energia elétrica cedem lugar às tecnologias da informação, informática
e engenharia genética. Na Los Angeles de Scott não há lugar para mobilizações
coletivas em larga escala, nem tampouco para otimismos. A metrópole cyberpunk é na
verdade um mosaico de citações infinitas, tornando-se, por sua vez, referência para
inúmeros filmes posteriores (SUPPIA, 2002, p. 42).

Isso se deve, de acordo com Suppia (2002, p. 24), à concepção de cidade
do futuro, “monumental, vertical e aglomerada, semelhante nos dois filmes. Em
Metropolis, boa parte da ação se passa nos subterrâneos; em Blade Runner, temos
a percepção do tempo prejudicada também pela noite e chuva constantes na Los
Angeles de Ridley Scott”.

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Curiosamente, Blade Runner descreve Los Angeles tendo como referente, em larga
medida, a cidade de Nova York — a horizontalidade da metrópole californiana, dos “seis
subúrbios em busca de uma cidade”, é substituída pela verticalidade de Manhattan e
adjacências, em conformidade com as alusões a hierarquia ou divisão social propostas
pelo filme. Ocorre que, assim como impressionara Fritz Lang, Manhattan deixou mar-
cas na metrópole futurista de Ridley Scott. [...] tanto Metropolis quanto Blade Runner
são o produto de um choque cultural: especificamente o impacto de Manhattan em um
europeu (SUPPIA, 2002, p. 43).

A estética e o imaginário urbano presentes no filme de Scott denunciam
forte influência de Metropolis, mas denotam uma proposta diferente: enquanto a
Metropolis de Lang se pauta na aceitação total de um ‘projeto moderno’ de cidade,
o qual teve sua quintessência identificada em Nova York, a Los Angeles de Blade
Runner opera uma desconstrução desse projeto sob a lógica do pastiche e o
estigma da deterioração.

O século XXI trouxe uma mudança na forma de entender a cidade, não porque
uma imagem urbana alternativa tenha sido formulada, mas porque o cotidiano —
ao colocar novos problemas — fez explodir uma concepção que há décadas se
assumia: enfrentar a metrópole, definindo os instrumentos de planejamento. A
realidade agora apresenta problemas não contemplados nessa perspectiva.

O mito da cidade do futuro mudou rapidamente: nos anos 1920, o sonho
temido, mas desejado, apontava para as opções do fordismo ou taylorismo, e isso
aparece no filme Metropolis de Fritz Lang, onde o mecanismo e o americanismo
são misturados como símbolos de fantasia de futuro numa cidade desconhecida e
sem nome para o espectador. Desde meados dos anos 1980, a premonição urbana
se identifica com o pesadelo que vemos em Blade Runner, uma cidade concreta
e bem definida — a Los Angeles de 2019 — onde a ruína de uma arquitetura ainda
não construída é assumida com perfeita indiferença tanto por quem a habita
como por um observador que a contempla. Lang nunca imaginou que o sonho
do futuro pudesse, anos depois, aceitar a situação de destruição oferecida pelo
filme de 1982.

Mas nenhum dos planejadores urbanos que em 1919 teorizaram sobre como
reconstruir as cidades após a Primeira Guerra Mundial poderiam suspeitar até
que ponto as imagens de destruição das cidades acabariam por se tornar parte
de nossso cotidiano, sendo então contempladas com absoluta indiferença.

É verdade que o sociologismo e o economicismo dos anos setenta do século
passado anunciavam catástrofes demográficas para o futuro próximo: o aumento
quase logarítmico da população nas concentrações urbanas, longe de assumir

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uma melhoria nas suas infraestruturas, significou o paulatino empobrecimento
de países e a consequente redução real dos orçamentos municipais, levando à
impossibilidade de fornecer equipamentos mínimos aos novos habitantes e de
renovar ou substituir os existentes já deteriorados pelo uso.

Se Londres demorou 130 anos para evoluir de um milhão de habitantes para
oito milhões, dois exemplos nos permitem entender os problemas dessa nova
realidade: o Laos, que em 1950 tinha apenas 290 mil habitantes, terá 24,4 milhões
em 2035, e Istambul, que passou de um milhão em 1950, atualmente tem água
racionada, falta de redes de esgoto, coleta de lixo e de transporte público.

Os presságios negativos focaram, durante anos, o terceiro e o quarto mundos,
supondo que as metrópoles do primeiro mundo continuariam a ter privilégios
implícitos em sua situação econômica. No entanto, problemas como degradação
do centro histórico, aparecimento de grandes bolsões de miséria, deterioração
dentro do núcleo central e uma nova relação territorial centro-periferia, somados
a uma crise social, amedrontam os ex-moradores e força sua expulsão para outras
áreas. Assim, Los Angeles, que tinha 1.620 habitantes em 1850, poderá chegar a
quase 18 milhões em 2050.

Imagens de degradação ou destruição, tanto nos grandes centros urbanos
do terceiro e do quarto mundos como nas grandes cidades ocidentais, estão cada
vez mais próximas e não são mais vistas como algo estranho ou surpreendente. A
nova cidade vai além da anedota de ser murada e fechada a visitantes estrangeiros:
quem a habita renuncia ao velho conceito de “cidadão” pertencente à polis, rejeita
a ideia de uma vida social em grupo em troca de um sistema que melhor permite
a defesa de sua privacidade.

O mito da cidade dos sonhos se desvanece pouco a pouco e, o que por
centenas de anos foram espaços míticos, como a torre de Babel, as pedras de
Stonenhenge, o templo de Herodes e o labirinto de Dédalo, dissolvem-se agora na
memória, esquecendo que um dia foram valorizados como espaços construídos.
E se for verdade que a cidade do terceiro milênio se define a partir da opção
metropolitana, não é menos verdade que agora, sem forma que a caracterize, a
cidade territorial se estrutura como um arquipélago de áreas isoladas umas das
outras, com culturas e objetivos muito diferentes.

Se por gerações houve a ideia de que havia uma correspondência exata entre
Estado, nação, território, país, língua e cultura (e, portanto, cidade), o esquema
agora foi quebrado e a expectativa que se apresenta é surpreendente, para dizer

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o mínimo. Assim, cabe ao cinema de ficção científica representar os desejos e
medos de humanos que a cada dia perdem sua humanidade e se confundem com
as máquinas criadas por eles mesmos.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BARROS, José D’Assunção. A cidade-cinema expressionista: uma análise das distopias urbanas
produzidas pelo cinema nas sete primeiras décadas do século XX. Questão, Porto Alegre, v. 17,
n. 1, p. 161-177, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

GUIMARÃES, João Vitor. O limite sempre em mente: a distopia na literatura e no cinema.
Centro Cultural São Paulo, 12 fev. 2019. Disponível em: ˂https://centrocultural.sp.gov.br/o-
limite-sempre-em-mente-a-distopia-na-literatura-e-no-cinema˃. Acesso em: 221 mar. 2024.

GULLAR, Ferreira. Cidades inventadas. Xilogravuras de Rubem Grilo. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.

ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995.

SUPPIA, Alfredo. A Babel do futuro: por uma tradução da architecture parlante de Metropolis e
Blade Runner
. Remate de Males, Campinas, v. 32, n. 2, p. 335-348, 2012.

SUPPIA, Alfredo. A metrópole replicante: de Metropolis a Blade Runner. Dissertação (Mestrado
em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas, Caminas, 2002.

TINDADE, Isabela Leite. Cidades imaginárias: arquitetura, cidade e cinema. ANPUH – XXII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.

XAVIER, Ismail. A alegoria langiana e o monumental: a figura de Babel em Metropolis. In:
CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thomé
(org.). História e cinema. São Paulo: Alameda, 2007. p. 15-38.

ARTIGOS

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LAS MANOS QUE HAN DE COMUNICAR EL MOVIMIENTO: PROBLEMÁTICAS EN TORNO
A LA MANO DE OBRA MANUFACTURERA EN EL RAMO DE APRENDIZAJE DE ARTES Y

OFICIOS DE LA HABANA. 1839-1849

AS MÃOS QUE DEVEM COMUNICAR O MOVIMENTO: PROBLEMAS QUE CERCAM A FORÇA
DE TRABALHO MANUFATUREIRA NO SETOR DE APRENDIZAGEM DE ARTES E OFÍCIOS EM

HAVANA. 1839-1849

THE HANDS THAT MUST COMMUNICATE MOVEMENT: PROBLEMS AROUND THE
MANUFACTURING WORKFORCE IN THE ARTS AND CRAFTS APPRENTICESHIP SECTOR IN

HAVANA. 1839-1849

Jesús Javier Mejias Díaz1

https://orcid.org/0000-0002-0602-1684

Recebido em: 10 de julho de 2024.
Aceito em: 28 de outubro de 2024.

Revisão final: 02 de novembro de 2024.
Aprovado em: 06 de março de 2025.

 https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21496

1  Licenciado en Historia por la Universidad de La Habana (2020). Máster en Estudios Interdiscipli-
narios sobre América Latina, el Caribe y Cuba por la Universidad de La Habana (2024). Investigador
del Departamento de Estudios Coloniales del Instituto de Historia de Cuba desde 2021. E-mail: je-
susjavier.mejias@gmail.com

RESUMEN: El ramo de aprendizaje de artes
y oficios de La Habana fungió como proveedor
de mano de obra para el sector manufacturero
en ascenso en la década de 1840. El ramo, por
sí mismo, fue una iniciativa de fomento de las
artes manuales y su funcionamiento inspiró
otras iniciativas de fomento laboral higienistas
en el contexto habanero. La Real Casa de
Beneficencia —en grado sumo— y la Real Cárcel
de La Habana fueron los espacios institucionales
por excelencia hasta donde se extendieron
la influencia del ramo de aprendizaje y sus
problemáticas. El control de la mano de obra
calificada fue decisivo en la década en que
aparecieron las primeras fábricas privadas en el
contexto cubano.

Palavras-chave: aprendizaje, artes y
oficios, Habana, mano de obra.

RESUMO: O ramo de aprendizagem de artes
e ofícios de Havana serviu como fornecedor
de mão-de-obra para o crescente setor
manufatureiro na década de 1840. O ramo,
por si só, foi uma iniciativa para promover as
artes manuais e seu funcionamento inspirou
outras iniciativas higienistas de promoção do
trabalho no contexto de Havana. A Real Casa de
Beneficência — no mais alto grau — e a Cadeia
Real de Havana foram os espaços institucionais
por excelência aos quais se estendeu a influência
do ramo do ensino e dos seus problemas. O
controle da mão de obra qualificada foi decisivo
na década em que surgiram as primeiras
fábricas privadas no contexto cubano.

Key words: aprendizagem, artes e ofícios,
Havana, força de trabalho.

ARTIGOS

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Introducción

El ramo de aprendizaje de artes y oficios de La Habana en la década de su
existencia (1839-1849) fue un proyecto de élites donde confluyeron los ideales
liberales del laissez faire con el fomento de las artes industriales. El ramo habanero
se insertó en el movimiento mundial de ideas, técnicas y formas de hacer que
conformaron la mundialización laboral capitalista decimonónica. En un país hasta
entonces centrado en la agricultura comercial, el ramo tuvo entre sus principales
promotores a los miembros de los grupos terratenientes agroexportadores,
quienes desde sus instituciones naturales como la Real Sociedad Económica de
La Habana y la Real Casa de Beneficencia buscaron controlar la mano de obra. El
control de la escasa mano de obra calificada permitiría a la élite azucarera habanera
graduar los sentidos del cambio económico y diversificar la matriz económica
sin perder hegemonía. Para ello logró la aprobación de las “Instrucciones para el
orden y progreso de la enseñanza pública en artes y oficios”2 el 12 de febrero de
1839. En la década que medió hasta su separación de la Sección de Industria y
Comercio de la Real Sociedad Económica habanera el 26 de noviembre de 1849

2  “Instrucciones para el orden y progreso de las artes y oficios”. Diario de La Habana, n. 126, en.-
-jun. de 1839. Sala Cubana “Antonio Bachiller Morales”, Biblioteca Nacional José Martí (B.N.J.M.).

ABSTRACT: Havana’s arts and crafts
apprenticeship branch served as a provider of
labor for the rising manufacturing sector in the
1840s. The branch, in itself, was an initiative
to promote the manual arts and its operation
inspired other hygienist labor promotion
initiatives in the Havana context. The Real Casa
de Beneficencia — to the highest degree — and
the Royal Jail of Havana were the institutional
spaces par excellence to which the influence
of the apprenticeship branch and its problems
extended. The control of skilled labor was
decisive in the decade in which the first private
factories appeared in the Cuban context.

Palavras-chave: apprenticeship, arts and
crafts, Havana, workforce.

ARTIGOS

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con la aprobación del “Reglamento para el aprendizaje de artes y oficios”3, esta
élite perfeccionó los mecanismos biopolíticos que mantuvieron su hegemonía
económica.

El ramo de aprendizaje de artes y oficios de La Habana ha carecido de estudios
por parte de la historiografía cubana y sobre Cuba constituyendo un perfecto
desconocido. La riqueza de problemáticas e interacciones emanadas entre los
sujetos sociales participantes en el ramo de aprendizaje y su lugar social no se
agota en este artículo; pero resulta pertinente para una comprensión cabal de
los inicios de la enseñanza técnica y profesional en Cuba, de los manufactureros
intermedios y del rol de la Sección de Industria de la Sociedad Económica habanera
en el fomento de la manufactura y el cambio de la ética laboral. El análisis que
este artículo pretende suscitar en torno a las estructuras y funcionamientos de
los micros, pequeños y medianos manufactureros habaneros ys u mano de obra
podría ayudar a desterrar la arcaica noción del discurso histórico sobre una Cuba
monoproductora y monoexportadora con una economía totalmente dominada
por el azúcar, que se aplica indiscriminadamente a todas las regiones, sectores y
períodos de la historia del archipiélago.

Como se ha señalado, la historiografía cubana y sobre Cuba ha adolecido de
estudios sobre el trabajo urbano en la primera mitad del siglo XIX. A pesar del uso
continuo de la “Memoria sobre la vagancia en la Isla de Cuba”, de José Antonio
Saco (1831) para abordar un sinnúmero de temáticas asociadas a la delincuencia
y al trabajo forzado, el ramo de aprendizaje, su rol histórico, sus mecanismos
y problemáticas parecen mantenerse en la sombra siendo el más importante
proyecto de fomento del artesanado llevado a cabo por la Real Sociedad Económica
de La Habana. El primero en hacer mención puntual y aportar información
básica sobre el aprendizaje de artes y oficios en el período estudiado fue Leví
Marrero en su libro Cuba: economía y sociedad (MARRERO, 1972). A partir de los
datos aportados por este autor décadas más tarde el tema vuelve a aflorar en
un artículo de Joan Casanovas Codina: “Los trabajadores urbanos en la Cuba del
siglo XIX y el surgimiento del abolicionismo popular en Cuba” (CASANOVAS, 1999).
Casanovas Codina se sirvió de un antecedente —que emplea como referencia;
pero no delinea— para sustentar sus apreciaciones sobre cómo el modelo

3  Gaceta de La Habana, n. 275, 27 de noviembre de 1849, p. 1. Sala Cubana “Antonio Bachiller
Morales”, B.N.J.M.

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colonial y laboral de las élites configuró el trabajo libre a partir de la década de
1860. Casanovas Codina es el único de los autores consultados con un enfoque
en la mano de obra, más que en las estructuras del poder. Doce años más tarde,
Enrique Sosa y Alejandrina Penabad, en sus tomos de síntesis sobre la Historia
de la Educación en Cuba
(SOSA; PENABAD, 2013) estudiaron el fenómeno del
aprendizaje de artes y oficios dentro de los inicios de la educación técnica. Sin
que sea su propósito un estudio completo del ramo de aprendizaje solo abarcan
el período de 1839 a 1844 de forma somera sin adentrarse en el andamiaje del
control o en el funcionamiento del ramo de aprendizaje. Sin embargo, trazan los
orígenes de la idea del manejo de artesanos, analizan algunos componentes del
discurso en torno a la utilidad de los oficios y develan los

vínculos de algunos de los prohombres de la Sección de Industria con los
grupos de poder. Por otra parte, la tesis doctoral de Oscar Andrés Piñera Hernández
“Las Diputaciones Patrióticas en Cuba (1803-1850)” (PIÑERA, 2009) al adentrarse
sobre el devenir de las diputaciones patrióticas de la Sociedad Económica de
La Habana se acerca a las lógicas institucionales y al funcionamiento de las
secciones de Industria y Comercio de las porciones occidental y central de la
Isla de Cuba. Aún sin ser epicentro del quehacer investigativo, Piñera aborda
el rol central del reglamento creador del ramo de aprendizaje para dotar de
contenido de trabajo a dichas secciones. De igual manera, Yoel Cordoví Núñez
con su libro En defensa del cuerpo. Dispositivos de control escolares en Cuba (1793-
1958)
(CORDOVÍ, 2022) dota de herramientas metodológicas adecuadas para las
particularidades de los estudios históricos sobre Cuba. Cordoví incorpora el
análisis estructural y discursivo en torno al higienismo en un contexto de larga
duración en los sistemas educativos. En este sentido realiza una aproximación
puntual a la cuestión del aprendizaje de artes y oficios dentro de su análisis global
apuntando las particularidades de los mecanismos de control educativo en las
realidades insulares.

Métodos

El artículo se enmarca —dentro de las perspectivas de la historia social—
en la encrucijada de la historia laboral y de la educación. Se propone un análisis
de estructuras e instituciones y su funcionamiento en relación con estudios

ARTIGOS

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de grupos de poder que permitieron dilucidar la forma en que se forjaron las
interacciones con los micros, pequeños y medianos manufactureros y entre
estos y sus trabajadores y aprendices. Para ello fue imprescindible realizar
análisis cualitativos sobre cómo definió el perfil social de los involucrados las
estrategias de resistencia, movilidad social y la adaptación ante la realidad del
taller y la manera en que los dispositivos de control afectaron a quienes estaban
destinados en última instancia: los trabajadores. Fue necesario apoyarse en
fuentes impresas como las “Memorias de la Sociedad Económica de la Habana”, el
Diario de La Habana y en los numerosos expedientes del fondo Gobierno Superior
Civil
del Archivo Nacional de Cuba para —por medio del método histórico lógico—
percibir las relaciones objeto/sujeto desde ángulos múltiples. Asimismo, el
paradigma marxista ha esclarecido el movimiento social en torno a las relaciones
de producción y las fuerzas productivas en el contexto insular. Para ello la
metodología marxista de vocación cultural de Thompson alumbró las formas
de representación y manifestación de los contenidos de clase (THOMPSON,
1989). Además, el estructuralismo de Foucault dotó de técnicas para entender
la intención amoldadora del poder y su conexión con los individuos sobre los
que ejerció su autoridad para identificar la transición en los mecanismos y
representaciones sociales (FOUCAULT, 2002).

La urdimbre con la Real Casa de Beneficencia

El ramo de aprendizaje de artes y oficios fue uno de los mecanismos
empleados por la élite para educar a la futura fuerza de trabajo en el nuevo
contrato social que avizoraba. El barrido del ramo de aprendizaje de la élite liberal
progresista que lo concibió, colocó —más que al grupo peninsular en ascenso— a
los artesanos de los talleres y fábricas ante la oportunidad fabulosa de explotar a
los aprendices hasta el límite de costo. Desdibujar la frontera estamental permitió
una avalancha exitosa de blancos pobres, inmigrantes y jóvenes que aseguraron
la transformación de los talleres más rentables en las primeras fábricas de
iniciativa privada en el territorio insular.

El ramo de aprendizaje de artes y oficios encontró en la Real Casa de
Beneficencia el portal de enlace con la necesaria reproducción de los sistemas
de referencia laborales de los niños desde edades tempranas. Junto a la Sociedad

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Económica de La Habana fue una de las instituciones controladas por la élite
liberal criolla con las competencias suficientes para asegurar la funcionalidad del
modelo. No es extraño, entonces, que encontremos unas evidentes connivencias
entrambas y la repetición de figuras en ambos marcos institucionales. Por la
necesidad de fomentar la industria en un contexto de auge y diversificación
económica, que parecía no tener límites en las décadas de 1820 a 1840, los
vocales de la Sociedad Económica dedicaron ingentes informes para la creación
y fomento de nuevos cultivos e industrias. El escollo fundamental se identificó
en la baja innovación producto de la ausencia de una política de formación de
personal cualificado en oficios industriales de forma que estuviese a disposición
de la élite. En este sentido, Pedro Auber fue explícito: la clave para equilibrar la
balanza comercial era la industria y esta requería de la formación de mano de
obra y de su contratación foránea. Definitivamente, no era la raza, ni el clima, ni
mucho menos la carencia de materias primas. Pero dadas las condiciones del país
reconocía que poco podría hacerse sin apoyo institucional porque “todos huyen
de los trabajos necesarios para armar una máquina, que no tanto se compone de
ruedas y palancas como de las manos que le han de comunicar el movimiento”
(AUBER, 1844, p. 39).

El largo informe de Pedro Auber para la introducción de la industria textil se
adentra en una de las preocupaciones fundamentales de la Sección de Industria
y Comercio: la ausencia de un clima adecuado para los negocios industriales
por la inexistencia de leyes sobre patentes —llamados privilegios de invención—
ni mecanismo para la circulación del know how. Esta condición estructural
de la economía colonial cubana sumada a los rezagos precapitalistas ponía en
desventaja a la industria local frente a la competencia foránea. La Real Casa
de Beneficencia fue vista como el entorno natural para el fomento de un taller
textil porque al tratarse de niños sin tutela parental o provenientes de entornos
vulnerables presentaban menor conflictividad para ser empleados como ensayo.
Los pupilos, además, podían ser sometidos con más facilidad al adoctrinamiento
necesario para hacerles entender que debían remunerar “á la sociedad de los
cuidados que tomó de su infancia” (Auber, 1844, pp. 39-41). Auber propuso la
creación en dicha institución de una cátedra de matemática y física aplicada a la
maquinaria de forma que el conservatorio de artes y oficios que funcionaría en
las paredes de dicha institución fungiese como “plantel de artistas que despues
propagarian el gusto á la industria por toda la Isla” (Auber, 1844, p. 41). Esto es,

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usar la Real Casa de Beneficencia y el conservatorio como cabeza de puente de
la nueva ética laboral y como centro proveedor de mano de obra para la industria.
A su vez, formuló un modelo industrial basado en la pequeña propiedad y el taller
domiciliar o de pequeño porte de forma que la familia ejerciese el rol de vigilancia
y formación en el nuevo ideal de trabajo.

Precisamente, en la década de los 1840 emergieron en La Habana las primeras
fábricas con su visión centralizada y concatenada del proceso productivo. La
primera construcción fabril ad hoc en una institución pública fue la fábrica de
fósforos dirigida por Fernando Balmas y financiada por el marqués de Esteva de
Las Delicias —José Esteva y Grops— en septiembre de 1841. El trato de edificación
y operación entre la Real Casa de Beneficencia y el señor Balmas fue arreglado
—en calidad de inspector de la institución benéfica— por el marqués. No deja de
ser curioso que la fábrica haya sido construida con la finalidad de asegurar un
establecimiento de aprendizaje de artes y oficios en los predios de una institución
dependiente de la Sociedad Económica habanera. El trato daba a Balmas la tercera
parte de las ganancias líquidas y que la Real Casa de Beneficencia corriese con los
gastos de construcción y operación a cambio de que en el plazo de 4 años dejase
a 4 niños instruidos en el proceso productivo de los fósforos. El marqués puso el
capital de riesgo en caso de que los primeros intentos de operación resultasen
infructuosos. La fábrica y el contrato siguieron las directrices planteadas por
Pedro Auber en 1840.4 Esta fue construida al costado del nuevo departamento de
niños; pero separada de este y del resto de la edificación debido a la volatilidad del
material. La nueva fábrica se insertó en el programa de ampliación impulsado por
José Esteva y Grops desde septiembre de 1841. En el informe anual presentado
por la Junta de la Real Casa de Beneficencia en diciembre de 1841 a la Sociedad
Económica por su secretario Ramón Medina y Rodrigo se esbozó la estructura
esencialmente capitalista e industrial de la nueva fábrica de fósforos donde 14
niños trabajaban “en hacer cerillos, en poner a este el fósforo y colocarlos en sus
cajitas, ocupándose, asimismo, 11 niñas en formar estas bajo el cuidado de Da.
Ana de Ríos, y para lo cual se ha dedicado un salón interior de la casa” (Memorias
de la Sociedad Económica de La Habana
, Tomo XI, 1842, p. 192). Se trata de una
de las más tempranas evidencias de trabajo fabril femenino en Cuba y muestra

4  Para una mayor comprensión de la riqueza del plan de industrialización propuesto por Pedro Auber,
consúltese: (Auber, 1844).

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los inicios de la división sexual del trabajo en entornos de este tipo. La fábrica
heredó del aprendizaje la segregación espacial, racial y sexual de los oficios, así
como la especialización productiva sexualmente condicionada.5 Asimismo, saca
a colación la cruda realidad de que el capitalismo insular no azucarero se gestó
sobre el trabajo infantil y adolescente, que es la esencia del ramo de aprendizaje
más allá de sus intenciones formativas y de fomento industrial. El papel activo
del señor marqués en la consecución del trato, la celeridad de la construcción
en una institución siempre carente de capitales y su avidez consuetudinaria
por hacer negocios a base de la explotación de la mano de obra sin importar su
raza o carácter permite conjeturar —aún sin pruebas sobre el papel— que resultó
beneficioso a sus intereses a mediano plazo.

Sinergias suministradoras y entropías industriales: el ramo y el sector secundario

Por otra parte, la industria tabaquera—paradigma industrial urbano— con
su compleja realidad de la existencia de talleres sin estar inscritos ni poseer
licencia, familias de torcedores que no poseían taller y personas que elaboraban
cigarros en cualquier espacio sin ser su ocupación exclusiva como los porteros o
los soldados acuartelados alumbró de forma constante y definitiva el surgimiento
de las fábricas en los albores del capitalismo en Cuba. La Habana fue la ciudad
del tabaco a lo largo del siglo XIX ya que el hábito de consumirlo en forma de
cigarro y —más tarde— de cigarrillo abarató la inversión inicial para montar un
taller. Un taller de tabaquería no requirió de inversión en herramientas ni grandes
espacios en la primera mitad del siglo XIX, solo de la pericia del trabajador. Luego
del fin del estanco tabaquero en 1817 ocurrió una rápida transición desde el
Verlag System hacia el taller de tabaquería aunque ambos sistemas convivieron
con el taller doméstico hasta mediados de la centuria (SANZ, 2018). Acorde con
el Cuadro Estadístico de 1846, en ese año se registraron 357 tabaquerías en la
ciudad, que empleaban 3558 hombres. Las tabaquerías emplearon el 11% de la
población masculina laboralmente activa y fueron, por mucho, el establecimiento
estadísticamente más frecuente (Cuadro estadístico de la Siempre Fiel Isla de
Cuba, correspondiente al año de 1846 formado bajo dirección y protección

5  Para entender las dimensiones y estándares industriales seguidos para la construcción del local fa-
bril, véase: Memorias de la Sociedad Económica de La Habana, Tomo XI, 1842, p. 192).

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del Escmo. Sr. Gobernador y Capitán General Don Leopoldo O’Donnell, por una
comisión de oficiales y empleados particulares, 1847, pp. 57-58). Las primeras
fábricas de tabaco —surgidas en el calor de los años 1840— se mantuvieron
alejadas del ramo de aprendizaje por ser este el espacio del micro, pequeño y
mediano productor tabaquero. Por tanto, no debe sorprender la total ausencia
entre la documentación relativa al ramo de aprendizaje de los nombres de los
primeros industriales tabaqueros y sus fábricas: Jaime Partagás en 1844, Bremen
Herman y August Uppman ese propio año y Ramón Allones en 1845 (SANZ, 2018).

Otros ejemplos de modernizaciones o construcciones ab nihilo fuera de las
dos principales producciones del archipiélago fueron la tenería de Josep Xifré y
Casas que en la década de 1840 alcanzó su cénit —aunque databa de inicios del
siglo—; la Litografía del Gobierno y de la Real Sociedad consolidada en 1846, la cual
tuvo activa participación dentro del ramo de aprendizaje por su propia naturaleza
institucional; y la fábrica a vapor de velas esteáricas “La Estrella Cubana”
finalizada en 1847 en El Cerro (Memoria dirigida al conde de Alcoy por la junta
nombrada para calificar los productos de la industria cubana presentados en
la exposición pública de 1847
, 1848). El nuevo sector manufacturero en ascenso
rehuyó del ramo de aprendizaje para evitar la inspección de los representantes
de la élite azucarera que, sin embargo, logró asir al grupo económicamente más
débil al proveer la añorada mano de obra casi servil. Los grandes productores
se mantuvieron al margen de la iniciativa en un capítulo más del contrapunteo
insular entre dos proyectos distintos para la economía cubana.

En la década de 1840 los omnipresentes talleres de tabaquería marcaron
el ritmo y las formas en las que la transición hacia el capitalismo ocurrió en la
actividad industrial citadina. Los propietarios de tabaquerías establecidas fueron
los principales beneficiarios del ramo de aprendizaje acaparando la mayoría de
los aprendices escriturados. Mientras la demanda en ascenso jalonaba la oferta
con un crecimiento quinquenal de 63.3% entre 1842 y 1847, la mano de obra
calificada disponible era escasa y cara (SANZ, 2018). Una tabaquería promedio
en 1847 dedicaba el 37 % de sus ganancias al pago de los salarios (Memorias de
la Sociedad Económica de La Habana
, Segunda Serie, Tomo V, julio-diciembre

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de 1848, pp. 224-228, 377-380).6 El reglamento del ramo de aprendizaje apuntó a
los artesanos con talleres establecidos y solo excepcionalmente permitieron los
vocales la entrega de aprendices a menestrales sin tienda o taller. Idealmente,
el aprendiz recibiría la enseñanza directamente de su maestro. La praxis parece
señalar que los maestros beneficiarios eran dueños de talleres de pequeño
porte de alrededor de 10 trabajadores. En las estadísticas industriales los
aprendices conformaban una fracción mínima del total de empleados; sin
embargo, los expedientes indican que pudieron llegar a ser la mayoría o el total
de los trabajadores en algunos talleres de tabaquería. Es muy probable que las
estadísticas estuvieran afectadas por la práctica estudiada en el capítulo anterior
de subdeclarar el número de aprendices para excluir a los no inscritos evitando
así multas y la obligación de escriturarlos.

Es imposible abordar las tipologías del taller sin delinear los caracteres
fundamentales de la mano de obra en ellos empleada. Se puede concluir que los
nuevos trabajadores debían ser pacientes, laboriosos, moderados y religiosos.
Asimismo, las tecnologías aplicadas por el poder sobre los cuerpos adolescentes
convirtieron al taller en un espacio para la observancia del lugar social y al
reglamento en un vehículo de vigilancia que los aprendices se obligaban a conocer
como estrategia de supervivencia (ZAPATA, 2016, p. 154). Las Instrucciones
reglaron la estructura normativa de forma que permeó la vida cotidiana de los
aprendices haciéndoles asimilar las jerarquías sociales que instrumentaron
la supervisión sobre sus cuerpos. Se trató de una arquitectura de dominación
que rigió el transcurso temporal del aprendizaje de forma que se uniesen días y
noches al fragor del trabajo.

Como hemos apuntado más allá del reino del dulce en la era industrial los
artesanos propietarios de talleres o de fábricas se vieron ante la escasez relativa
del trabajo calificado. La reina del dulzor acaparaba para sí la mayor parte de
los brazos. El problema fundamental era que estos brazos eran esclavos por
mayoría abrumadora. Por eso, hasta la década de 1840 los oficios manuales
estuvieron dominados por los sectores negros libres. La jerarquía de valores en

6  Los datos han sido calculados con los censos industriales disponibles de otras partes de la Isla,
puesto que no están disponibles para la ciudad de La Habana. Sin embargo, localidades tan dispares
económica, geográfica y demográficamente como Nuevitas y Cienfuegos se acercan a una misma
cifra promedio. Por esto han sido asumidos para la ciudad de La Habana bajo el presupuesto de que
el tabaco respondió a una cotización de mercado internacional y, por lo tanto, el costo de producción
debió rondar cifras similares en todo el archipiélago.

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sociedades esclavistas situó al trabajo manual y al ejercicio físico dentro de la
escala axiológica de lo correspondiente al sujeto esclavizado. La degradación
a que se sometía al esclavizado actuaba inconscientemente sobre la psiquis
colectiva para rechazar de plano cualquier empleo asociado a la esclavitud. Los
pobres, sin importar su raza, respondieron a esta racialización estamental del
trabajo Blancos, negros, mulatos y esclavos desempeñaron trabajos delimitados.
Incluso, un grupo racializado ejerció tradicionalmente una labor específica dentro
de un sector productivo determinado. Por ejemplo, mientras los jornaleros
del puerto fueron tradicionalmente negros, los sastres fueron mulatos. Sin
embargo, los nuevos aires higienistas provenientes de Europa pusieron en jaque
esta visión de la racialización del trabajo. El higienismo racista criollo reforzó el
argumento de las élites económicas protocapitalistas de introducir brazos libres.
El análisis comparativo de Juan Pérez de la Riva sobre las dinámicas salariales
en los operarios urbanos arroja cierta paridad adquisitiva con sus homónimos
europeos e incluso, un mejor ingreso. Estos altos salarios entre los operarios
urbanos se asentaron sobre la escasez relativa de personal calificado. Sin
embargo, los salarios urbanos apenas doblaban los del campo. No obstante, los
grupos azucareros habaneros pretendieron inundar el mercado de trabajo de
mano de obra para hundir los salarios. Aunque los lamentos de los terratenientes
esclavistas no son suficientemente ensordecedores para ocultar el alto nivel
de rentabilidad que obtuvieron, la modernización técnica acarreaba costes
privativos. Ante la imposibilidad de que la inundación fuese con esclavizados por
las leyes de represión de la trata, a partir de la década de 1840 se comenzó a gestar
una ética de trabajo con las mismas lógicas del trabajo forzado para asegurar
que la emigración blanca fuese útil a la maquinaria de enriquecimiento de la élite
(PÉREZ DE LA RIVA, abril-junio, 1970).

El encarecimiento relativo de la mano de obra obligó a los empresarios y
artesanos del sector secundario a buscar múltiples alternativas. En esta década
de 1840 comenzó el tráfico de yucatecos para emplearse en las plantaciones
comerciales de Occidente. El particular es especialmente ilustrativo de la
transversalidad del sistema y de la adaptación de sus lógicas de explotación
y supervivencia inherentes a la sociedad colonial en la era de la plantación
esclavista. El yucateco Pedro Zapata elevó una queja al Gobierno Superior Civil en
16 de agosto de 1848 debido al maltrato que recibía de su maestro Ramón Cabrera.
Pedro fue escriturado por cinco años a su pedido para aprender la albañilería —

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de cuyos principios básicos se instruyó en su Yucatán natal. El aprendiz denunció
que habiendo transcurrido 6 meses de vejaciones y maltratos por el maestro y su
hermano quienes le daban “palos y bofetadas sin motivo para ello” y le privaban de
la alimentación mandándole a hacer diligencias fuera de la casa a la hora dedicada
a comer “solo con el objeto de dejarlo sin ella” deseaba cambiar de maestro
para seguir perfeccionando sus conocimientos o que se dejase sin efecto la
escritura para ganarse la subsistencia donde mejor le acomodase. El informe de
la Sección de Industria planteó que la queja era exagerada; pero que a razón del
disgusto entre las partes era admisible el cambio de tutela. El 15 de septiembre el
presidente de la Sección Antonio María Muñoz sugirió la rescisión de la contrata
al Gobernador puesto que Zapata era mayor de 20 años. El 20 de septiembre del
propio mes la superior autoridad determinó que se le buscase otro maestro.7
Esa misma clase de crueldad debió haber empujado a huir hacia Guanabacoa al
también aprendiz yucateco Faustino Chanx el 9 de noviembre del propio año.8
La crueldad, el sadismo y el descarte se encuentran en las intersecciones de los
proyectos de control y fomento de la mano de obra auspiciados por los grupos
propietarios habaneros en pos de la eficiencia productiva en la primera mitad del
siglo XIX. En cierta paráfrasis al colonialismo británico la Sección de Industria
sugirió sobre Zapata a la máxima autoridad que un aprendiz humanizado era un
aprendiz inservible.

Por otra parte, los emigrados peninsulares se asociaron con agentes y
accionistas de ambos lados del Atlántico para atraer mano de obra contratada
europea. La mayor parte de las veces estos hombres eran contratados en las
provincias y regiones de las cuales era oriundo el dueño del negocio. Esta contrata
pudo ser formal o informal basándose en estos últimos casos en la agencia familiar
o social. Aunque estos convenios aseguraban al contratado ciertas seguridades
—máxime si se trataba de un súbdito español— a partir de la entrada en vigor de
las escrituras de la Sección de Industria y Comercio de La Habana los términos
de contratación discordaron. Al menos en el caso habanero hubo un intento de
parte de los sectores intermedios comerciales y manufactureros de concordar
ambas clases de contrata para no desincentivar a los aprendices y no colocar a

7  Expediente sobre escriturar con otro maestro al aprendiz Pedro Zapata, 1848. Archivo Nacio-
nal de Cuba (A.N.C.), Gobierno Superior Civil (G.S.C.), legajo. 1052, expediente. 37253.
8  Expediente sobre remitir á D. José Miguel Espinosa el indio yucateco q. ha sido remitido á la Sección de Indus-
trias
, 1848. A.N.C., G.S.C., leg. 1052, exp. 37263.

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los dueños de las empresas de contratación trasatlánticas en desventaja debido
a los amparos y garantías ofrecidos por las escrituras de la Sociedad Económica.

Ante los intereses dañados y el temor a sufrir el peso de la ley el señor José
María Regalado el 21 de marzo de 1848 solicitó al Gobernador Superior Civil evaluar
si las contratas de aprendizaje celebradas sin la anuencia de las autoridades de
dicho ramo eran suficientes para ser admitidas ante la Sección de Industria o si era
necesario “un asiento especial”. Los aprendices de tabaquero de su establecimiento
se negaron a firmar las condiciones de escrituración impuestas por la Sección de
Industria debido a la desventaja que ofrecían en relación a aquellas que habían
signado en Guipúzcoa. Usando su minoría de edad como excusa adujeron que sus
padres habían autorizado el contrato con Regalado y solo ellos podrían mutarlo. El
señor Regalado se encontró ante un conflicto de intereses institucionales donde
el contrato guipuzcoano era legal y la escrituración habanera obligatoria. El 22
de marzo un informe desde la dirección de la Sociedad Económica adujo que el
pedido de Regalado implicaba un peligroso precedente que mermaría el poder
interventor de la Sección y de los inspectores que ejerciesen como curadores
de los menores. El 31 de marzo otro informe de la Sección de Industria declaró
que la única diferencia entrambos contratos era que en el formado por Regalado
se descontaba el tiempo de enfermedad del término total de la contratación,
mientras que en las escrituras de aprendizaje de la Sección de Industria esto
solo ocurría en caso de que se tratase de un padecimiento crónico o cuya cura
requiriese una larga convalecencia. En el propio informe los señores vocales
instaron al Gobierno a incitar al contratista a realizar el acto de escrituración
desconociendo las favorables condiciones económicas para los aprendices que
implicaba el contrato con Regalado y los mecanismos colectivos de reivindicación
de derechos de los contratados guipuzcoanos. Efectivamente, el propio asesor
del Gobierno Superior Civil señaló que Regalado se comprometió a dar a sus
aprendices un sueldo luego de que cada uno hiciese unos 300 cigarros diarios
o a quien los hiciera “dejar a su favor el trabajo de los domingos por la mañana” y
a abonarles como es costumbre el exceso que hubiese de aquel número. Por su
parte las escrituras de la Sección de Industria negaban el derecho a jornal. El 1º
de abril el caso pasó a consulta del alcalde mayor Ramón Padilla, quien opinó que
los contratos celebrados en la Península para traer aprendices a Cuba eran de
entero cumplimiento siendo indiferente en qué orilla del Atlántico se celebraran.
Recomendó en estos casos que la Sección de Industria solo diese el visto bueno y

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crease un asiento especial. Toda esta vulneración a los términos impuestos por la
Sociedad Económica se justificó bajo la necesidad de fomentar la “introducción
de brazos que tanta falta hacen a este país”. La resolución final del Gobierno,
fechada en 7 de abril, fue vulnerar el reglamento y las prerrogativas de la Sección
haciendo entender que debía ser respetada la contrata celebrada en Guipúzcoa
por la sociedad de Izaguirre, Regalado y Chinchurreta. Se encomendaba seguir las
recomendaciones de Padilla. En medio de la reforma programada y el programa
metropolitano de racionalización administrativa que desmanteló las instituciones
de la élite criolla, las autoridades coloniales se complacieron en crear precedentes
con el cual lisonjear a los contratistas de mano de obra europea. Las lógicas por
las que se siguió la consulta del alcalde mayor resultan burlescas porque en la
práctica desposeyeron a los aprendices contratados en el extranjero del derecho
al descanso en caso de enfermedad y de una cobertura de salud garantizada por
el empleador. Esto era importante especialmente para el recién llegado dado
que el proceso de adaptación al clima insular podía resultar complejo y peligroso.
No debe soslayarse la acción pionera de resistencia colectiva de los aprendices
tabaqueros en defensa de sus intereses grupales ni el carácter esencialmente
capitalista de los contratistas, quienes ponderaron el aumento de la producción
por encima de cualquier noción estamental o moralista. Ejemplo claro de ello son
el pago a destajo a partir de las 300 ruedas de cigarros producidas diariamente y
la no interrupción del ciclo productivo por el festivo religioso dominical como era
costumbre entre los aprendices escriturados por la Sección de Industria.9

Los presos útiles

La prisión en el siglo XIX alcanzó el estatus privilegiado de panacea de la
naturaleza humana. Por tanto, la sociedad colonial cubana la empleó como
epicentro de la modernización del control sobre el cuerpo y el tejido social.
Las prisiones fueron frecuentemente un elemento común del funcionamiento
institucional intracolonial. En el caso cubano también podemos encontrarlas
bajo la modalidad de depósitos para esclavos o mujeres separadas y, a partir

9  Expediente promovido por D. José Ma. Regalado sobre la escritura que celebró en Guipúzcoa
con varios aprendices
, 1848. A.N.C., G.S.C., leg. 1052, exp. 37242.

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de 1850, con el nombre de penitenciaría para los aprendices de artes y oficios.
Como elemento vertebrador del orden la prisión decimonónica pretendió junto
a las iniciativas de fomento como el ramo de aprendizaje crear individuos útiles.
Por eso, el trabajo carcelario era común. Perseguía el doble objetivo de sustentar
la institución y de dotar al individuo de un oficio útil a la maquinaria capitalista
donde todos debían ejercer una función económicamente activa.

A pesar de que la cárcel dependía del ayuntamiento, el sistema de trabajo
usado en la contratación carcelaria en la década de 1840 estaba formalmente
inspirado en las Instrucciones de la Sección de Industria habanera en aspectos
como el aprendizaje de los oficios y la creación de un capital pecuniario producto
del trabajo del aprendiz. El presidio tuvo características sui géneris propias de las
concepciones del trabajo forzado. A la cárcel iban a parar con frecuencia muchos
aprendices a la espera de resolución de su caso ya fuese por abuso de los maestros,
por haber cometido una falta o por considerárseles vagos. Esta institución
también se convirtió en semillero para muchos jóvenes comprendidos entre 12
y 17 años que no podían demostrar estar estudiando o trabajando activamente y
que habían cometido faltas leves. Para aquellos condenados a una estancia más
prolongada el aprendizaje de un oficio resultó una oportunidad y una obligación.
Para hacerse una idea de la importancia que lograron a finales de la década de
1840 los talleres de la cárcel basta conocer que en 1846 ingresaron 2535 pesos,
7 reales con 3 maravedíes a los fondos consistoriales (La cárcel pública de La
Habana en 1847
, 1847).

Efectivamente, las miras de la Real Sociedad Económica de La Habana se
extendieron hasta el penal público como narra la visita realizada por un amigo en
1847 publicada como informe en las Memorias bajo el nombre “La cárcel pública
de La Habana”. El centro de la visita fue inspeccionar la nueva función higienista,
panóptica y utilitaria de la cárcel, cuyos talleres guiaron al visitante por el recinto.
En primer lugar se abordaron los talleres masculinos: el de tabaquería que
empleaba un total de 63 reclusos de los cuales 25 eran aprendices; seguidamente
el de cigarrillos que empleaba 26 hombres blancos y 22 aprendices; el de sastrería
con 9 operarios y 5 aprendices; el de zapatería con 10 oficiales y 6 aprendices; el
de carpintería con 6 empleados y, finalmente, el de albañilería con 8. En segundo
lugar, los talleres femeninos separados estrictamente de los masculinos se
hallaban segregados racial y espacialmente. Las 8 presas blancas constituyeron
un taller de costura regido por una presidenta, mientras las 12 mujeres negras

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organizadas de la misma manera se dedicaban a lavar y planchar la ropa de los
presos. Los talleres poseían cierta integración económica: por ejemplo, el de
carpintería fabricaba las cajas para envasar tabacos y cigarros como principales
producciones. A pesar de la abundancia de obra los empleados solo recibían una
“módica compensación”. Los talleres y los empleados de ambos sexos hallados en
el mayor orden, limpieza y aseo auguraban la desaparición del crimen mediante el
trabajo para sosiego del orden social, de la propiedad y las costumbres. El narrador
exclamaba que no podría distinguir entre los reos y los honestos operarios de
un taller gracias al efecto mágico del trabajo “medio efectivo de corrección,
borrando hasta las huellas de lo pasado y abriendo un porvenir tan saludable
como honroso”. Sin embargo, no todos los presos podían dar la misma imagen. El
color de la piel determinaba el grado de enmienda. Al hablar de un joven aprendiz
de tabaquero de 14 años dedicado al torcido, condenado por fratricidio a 10 años
de prisión, relata el citado informe:

…este mismo criminal imberbe, en presencia nuestra, con su blanca tez, sus rubios
cabellos, su boca llena de sonrisa y sus ojos expresivos aunque apacibles, era á nuestra
vista y á la de cualquier hombre el mas penetrante y escrutador, la imágen de la inocen-
cia y el modelo de la conformidad en el trabajo, que por otra parte desempeñaba con
suma agilidad y contento (La cárcel pública de La Habana en 1847, 1847, p.58).

Gracias al trabajo después de cumplida la condena el joven se reintegraría
a la sociedad —perdonado por Dios y los hombres— diestro “en un ejercicio útil y
honroso, y con un pequeño capital, que hoy se le reserva paulatinamente á medida
que lo gana en sus tareas” (La cárcel pública de La Habana en 1847, 1847, p.58).

Los dueños de establecimientos industriales de La Habana buscaron
expandir las condiciones del ramo de aprendizaje de artes y oficios a la cárcel
beneficiándose de la mano de obra barata sujeta a un estricto control. Juan Pérez
Ordaz —dueño de la fábrica de tabacos “La Norma”— que buscó extender hasta los
25 años la vigilancia de la Sección de Industria sobre los jóvenes aprendices y
endurecer las condiciones del aprendizaje en 1844; en marzo de 1846 se adjudicó
un contrato en el taller de cigarrería de la Real Cárcel para que se elaborasen 1437
tareas de cigarros de papel, compuesta cada una de 4900 cigarros al precio de
11 reales sencillos, de los cuales se deduciría apenas un real por tarea asignada al
preso que se dedicase al corte del papel. Cada tarea requería 14 pliegos de papel
cortadas cada una al no. 16 de cigarro largo. Los pliegos serían conducidos por
Ordaz a la cárcel y una vez elaborados los cigarros, debían trasladarlos por su

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cuenta a su fábrica. En caso de que cada tarea no reuniese los 4900 cigarros
calculados el faltante sería descontado del valor de la tarea a razón de 4 cajillas por
real sencillo. Cada cajilla debía contener 30 cigarrillos. En caso de irregularidad
en la elaboración el trabajador respondería con el reintegro de la tarea, o sea,
los 11 reales sencillos. El contrato dejaba claro cómo debía confeccionarse el
cigarro y cuáles eran las responsabilidades del trabajador carcelario. Se trató
de una forma abusiva de explotación pues 1437 tareas de cigarros equivalían a 7
041 300 cigarros pagados por valor de 1975.87 pesos fuertes, de ellos 187.5 iban
a la administración carcelaria y los 1788.37 restantes a los trabajadores. Aunque
pueda parecer un número fabuloso el total devengado debía dividirse entre los 48
empleados del taller para cumplir con los términos del contrato que rondaba los 3
meses de duración.10 Si bien a cada operario corresponderían 37.25 pesos fuertes
por concepto salarial, el informe del síndico fechado el propio año citado en “La
cárcel pública de La Habana” declaró que se destinaban aproximadamente 4.50
reales diarios a cada uno por concepto de trabajo o 3.93 pesos fuertes semanales
como promedio (La cárcel pública de La Habana en 1847, 1847, p.58).

Los fabricantes habaneros pugnaron por la ventaja ofrecida por los talleres
de la cárcel en un contexto de amplia especulación en torno al tabaco en rama y de
hundimiento de precios de la hoja elaborada por superabundancia productiva. El
17 de junio de 1846 el propio Ordaz proponía un nuevo contrato para la elaboración
de 2000 tareas de cigarrillos de papel al precio de 8 reales sencillos cada una.
La rebaja en el pago no satisfizo al síndico procurador general de los talleres de
la cárcel Fernando de Peralta y Torrontegui, quien propuso que se convocase
licitación pública por 8 días para quienes mejoraran los términos de Ordaz. Ordaz
justificó la rebaja del pago porque no se requería que se envolviera el cigarro, pues
este se guardaría en ruedas una vez el precio aumentase lo suficiente como para
asegurar las ganancias. La casa tabaquera “García”, propiedad de Lucía Lozano,
mejoró el precio a 10 reales sencillos y propuso sufragar el mantenimiento del
establecimiento por un año. La respuesta de Ordaz fue elevar el precio de las
tareas a 10 reales y medios. Alejandro Patricio Díaz —apoderado de la dueña de la
casa comercializadora “García”— propuso por el mismo precio una contratación
de dos años de duración. Las casas tabaqueras funcionaron como centros de

10  Expediente sobre la contrata de cigarros de papel, para los talleres de la Cárcel, 1846. A.N.C.,
G.S.C., leg. 12, No orden. 584.

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producción, logística y comercialización del tabaco en distintos formatos. Al
decir del síndico se trataba de la más famosa de su tipo en Cuba y ultramar “por
la bondad de sus cigarros”. La pugna sirvió como comprobante de la rentabilidad
de la mano de obra recluida y tuvo un carácter eminentemente capitalista. Por
supuesto, la fábrica de Juan Pérez Ordaz no pudo responder a esta propuesta de
un establecimiento comercial con amplia presencia en el mercado.11

El contrato establecido por la casa “García” el 30 de junio de 1846 contempló
un grupo de preceptos propiamente higienistas como el requisito de que los
trabajadores del taller de la cárcel debían estar aseados. Asimismo, se regló el
tiempo de trabajo y de pago minuciosamente. La paga se haría semanalmente
cada domingo de 10 a 12 del día. Se aumentó la complejidad de la tarea pues
cada tarea debía componerse de 15 cuadernos de cigarro corto, picado entrefino
o grueso. Las tareas debían entregarse en ruedas amarradas por cintas que
proporcionaría el contratista. Finalmente, no se permitió la elaboración de otros
cigarros en los talleres de la cárcel asegurando el monopolio de la mano de obra.
Tampoco se permitiría a los cigarreros llevar fuera la chupa del tabaco y estaban
obligados a fumar dentro del recinto del taller. El proceso productivo quedaba
sumamente delineado, por ejemplo: el cigarrero no podía mezclar en una tarea
cigarros realizados por otros, cada una debía estar separada de forma que el
administrador pudiese determinar cuánto había de pagarle a cada individuo.
De igual manera, el contratista determinaría cómo se realizaría el aprendizaje
del oficio de tabaquería en la clase establecida para ello en el taller. El papel y
picadura de rezago servirían como materiales para esta clase. No se permitiría
ingresar al taller a aquellos aprendices incapaces de replicar el modelo usado
para el control de calidad. Además, se cargó al cigarrero con el error sobre el mal
trabajo, que debía abonar a precios corrientes fijados en presencia del inspector
de talleres correspondiente. El contratista proporcionaría para determinar dichos
errores un modelo para el control de la calidad del cigarro elaborado. Se fijaría
separadamente el precio del papel y el de la picadura sin perjuicio de disponer
cualquier otra corrección.12

11  Expediente sobre la contrata de elaboración de cigarros en el taller de la Cárcel de la Ciu-
dad
, 1846. A.N.C., G.S.C., leg. 12, No orden. 584.
12  Expediente sobre la contrata de elaboración de cigarros en el taller de la Cárcel de la Ciu-
dad
, 1846. A.N.C., G.S.C., leg. 12, exp. 617.

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Esta pugna resulta útil al permitir observar los salarios promedio de los
tabaqueros de la época, la capacidad de contratación, el alcance de las tabaquerías,
así como los pasos del proceso productivo de los cigarros y las condiciones de
aprendizaje. Aunque mucho se ha discursado dentro de esta investigación sobre el
aprendizaje de artes y oficios, lo cierto es que hasta el momento no ha sido posible
exponer la forma en que ocurría la enseñanza. La cárcel fungió como una especie
de sistema putting out en un contexto de volatilidad de los precios. Esta suerte de
ramificación de la fabricación permitió el abaratamiento del coste de producción
a partir de los salarios. Como se ha podido comprobar los talleres de la cárcel
desempeñaban el grueso de la elaboración, mientras que la mano de obra de la
fábrica de tabaco quedó reducida a una fase de dicho proceso: el empaquetado.
Esta fase era decisiva para mantener el estándar de calidad y asegurar el branding.
Aunque aparentemente una táctica para capear la crisis económica por parte de
los sectores productores intermedios, los grandes productores lo usaron como
mecanismo para el aumento del volumen de producción en un contexto de fuerte
carga fiscal y alta competitividad.

De igual manera, ocurrió con otras industrias como la de calzado. El 14 de
noviembre de 1849 los inspectores de talleres de la cárcel Fernando de Peralta,
Manuel Francisco Antonio O’Reilly y Calvo de la Puerta —tercer conde de O’Reilly—
y Vicente González Larrinaga —regidor síndico interino— elevaron un informe
aprobatorio de la contratación del taller de zapatería por Severo Portas —dueño
de dos peleterías. El contrato con Portas fijó los mismos precios a que usualmente
se pagaban los trabajos del arte en la ciudad. La contratación durante un año
emplearía a todos los presos que supiesen el oficio de zapateros. La contratación
clasificaba el pago de los trabajos según el material, el sexo y la edad a que se
orientaba el calzado como puede observarse en el anexo no. 5. El contratista
pagó entre 1.12 y 9 pesos fuertes por unidad acorde a los parámetros anteriores.
El salario de un zapatero fue el año anterior de 2.53 pesos fuertes semanales a
razón de 2 reales diarios. Al igual que lo estipulado en el ramo de aprendizaje, los
jóvenes presos serían enseñados sin estipendio alguno. El contratista proveería
la materia prima para la confección del zapato, no así para el ribete. Los presos
debían invertir de sus salarios en reponer la aguja y el hilo. Para los ribetes se
estableció un precio separado según las clases que iba de 1 a 1.30 pesos. Como
ha podido observarse los contratos incluían a los jóvenes aprendices en términos
similares a los establecidos por la Sección de Industria con respecto a salarios.

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El contrato era un negocio redondo —ilustrativo de las condiciones de trabajo
de los zapateros en la ciudad— puesto que el contratista deducía del trabajo
del empleado los enseres y cualquier merma en la calidad. En términos reales
esto implicó una disminución del coste de la mano de obra y del precio final del
producto, que así aseguraba la competitividad.13

Conclusiones

El andamiaje institucional diseñado desde el poder permitió a la élite criolla
—desde la Sección de Industria y Comercio de la Real Sociedad Económica
de Amigos del País de La Habana— orquestar un plan de fomento de las artes
manuales que adhiriese los grupos manufactureros intermedios en los albores
de la primera industrialización en Cuba a su programa de cambio económico. El
control sobre la mano de obra calificada persiguió usarla como moneda de cambio
para garantizar las lealtades de los sectores intermedios blancos. A la vez que se
sacaba a la esclavitud de la palestra pública se reproducía su modelo laboral en el
nuevo trabajador blanco en formación.

Se puede afirmar que el discurso del poder apuntó hacia un disciplinamiento
social en completa sinergia con el higienismo en boga. Este discurso plagado de
racismo y moralismo resignificó los sentidos del trabajo en el ámbito urbano en
busca de lo que los prohombres habaneros llamaron ciudadanos útiles. Por demás,
el ramo de aprendizaje — como un sistema de aprendizaje que sirvió de enlace
con las escuelas de oficio— constituyó la alternativa de los pequeños y medianos
manufactureros para proveerse de mano de obra casi servil. En este sentido, el
nacimiento de las manufacturas modernas en Cuba a la vez que se insertó en
las lógicas de la mundialización capitalista sustituyó al trabajador esclavo por el
libre sin que en términos de respeto real por la dignidad y los derechos de las
personas trabajadoras hubiese un cambio significativo. En un país de esclavitud
con fortunas amasadas sobre el sufrimiento de los sujetos esclavizados solo se
cambiaba al trabajador sin variar el patrón, ni su mentalidad de amo.

En términos prácticos, el ramo de aprendizaje fue una ambiciosa idea inserta
en una sociedad reconfigurada; pero incapaz de soltar el lastre de la tradición. A

13  Expediente sobre la contrata de zapateria de los talleres de la Carcel, 1849. A.N.C., G.S.C.,
leg. 26, No orden.1709.

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pesar de ser una aspiración de la Cuba soñada por los liberales criollos, el ramo
fue útil a las autoridades políticas y a las nuevas élites económicas que a la vez
que impulsaban la incorporación de la mano de obra blanca desplazaron a los
propietarios intermedios negros de los oficios que tradicionalmente detentaron.
Esta nueva realidad formuló un inmovilismo social relativo fundado en un
trabajador explotado bajo los mismos parámetros de la esclavitud. En la mayoría
de los casos los aprendices graduados de oficiales rara vez lograron crear nuevos
establecimientos; por el contrario, engrosaron las filas de los empleados en
talleres y fábricas. Para muchos patrones los aprendices no eran empleados
o pupilos; si no propiedades. De esta manera, las líneas del sexo y de la raza
crearon nuevos contextos de discriminación que fungieron como fardas para una
explotación abusiva e intensiva sustentada en la racialización del trabajo.

Los contratos de la Real Cárcel, aunque realizados por una institución
distinta al ramo de aprendizaje son un interesante muestrario del espíritu de
la época en torno al trabajo urbano libre y al higienismo social acompañante.
Sin dudas alguna, más allá de la influencia como modelo que en el entramado
administrativo alcanzó el ramo de aprendizaje, los contratos de la cárcel proveen
de un muestrario en el funcionamiento económico real de los micro, pequeños y
medianos talleres habaneros de mediados del siglo XIX. Aunque en condiciones
más ventajosas para el contratista, los precios, la organización del trabajo y el
aprendizaje de los oficios se muestran constantemente a imagen de aquel que
ocurría en condiciones de trabajo no encarcelado. Además, mucho más tardío, el
sistema de contratación de reclusos es indiscutiblemente una rama de la visión
higienista habanera anidada en el seno de la Sección de Industria. El sistema de
la cárcel— regido por el ayuntamiento mayoritariamente criollo y conservador—
mantuvo la necesidad —propia de las concepciones capitalistas y liberales
decimonónicas— de crear ciudadanos útiles. En este sentido es un interesante
muestrario de la modernización de la ética de trabajo y del tejido productivo en
Cuba.

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QUILOMBOS NO BRASIL IMPERIAL: UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA SOBRE
RESISTÊNCIA E LUTAS SOCIAIS

QUILOMBOS IN IMPERIAL BRAZIL: A HISTORIOGRAPHICAL ANALYSIS OF
RESISTANCE AND SOCIAL STRUGGLES

César Henrique de Queiroz Porto1

https://orcid.org/0000-0003-4744-148X
http://lattes.cnpq.br/5291819504978006

Luiz Gustavo Soares Silva2

https://orcid.org/0000-0001-8701-8227
http://lattes.cnpq.br/8091058326735807

Anna Flávia Rodrigues Dias3

https://orcid.org/0009-0002-3183-3198
http://lattes.cnpq.br/3419147541090833

Recebido em: 16 de agosto de 2024.
Aceito em: 10 de janeiro de 2025.

Revisão em: 14 de janeiro de 2025.
Aprovado em: 06 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.21726

1  Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Mestre em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Graduado e Especialista em História pela Universida-
de Estadual de Montes Claros - Unimontes. Professor efetivo da Unimontes nas áreas de História Mo-
derna e Contemporânea. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História - PPGH/
Unimontes (Mestrado). E-mail: cesarqueirozporto@gmail.com
2  Licenciado e Mestre em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). É pro-
fessor no Departamento de História da Unimontes, acadêmico de Jornalismo pela Faculdade Anhan-
guera e responsável pela organização do podcast “Panorama Oriental”, voltado para a divulgação
de estudos sobre História do Tempo Presente e questões culturais e geopolíticas do Oriente Médio.
E-mail: luiz.soares@unimontes.br
3  Graduanda em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), com foco em
questões raciais e quilombolas. Desde maio de 2022, é professora voluntária no Cursinho Popular
Darcy Ribeiro, vinculado à Rede Emancipa. Atualmente, pesquisa a presença e o impacto das comu-
nidades quilombolas no Norte de Minas Gerais. E-mail: filhadeyeshua12.2@gmail.com

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Introdução

Este artigo propõe analisar os quilombos remanescentes durante o
período imperial brasileiro, com o objetivo de investigar as representações
historiográficas sobre esses espaços de resistência e suas interações com o
governo imperial. A pesquisa busca dialogar com a bibliografia que interpreta os
processos históricos dos povos africanos e afro-brasileiros no Brasil, com foco
na resistência da negritude, expressa por meio de suas organizações e relações
sociais.

Nesse sentido, ao estudarmos sobre negritude, é necessário, um certo
cuidado. Não devemos reduzir os anos de escravidão negra a um único tom,
como se os corpos negros fossem apenas símbolos da violência que sofreram.
Pesquisas e estudos, cada vez mais recorrentes, vem apontando, que se existiu
a escravidão e a suas diversas formas de opressão, também houve formas
de resistência. Essa atenção teórica e conceitual é importante para se evitar
os perigos de uma “história única” (ADICHIE, 2019). Afinal, temos registros de
resistências culturais, religiosas e de diversas outras tentativas de reivindicação
por parte destes indivíduos.

RESUMEN: Este artigo realiza uma
análise historiográfica sobre os quilombos
remanescentes no período imperial brasileiro,
investigando suas representações enquanto
espaços de resistência e suas interações com
o governo. A pesquisa dialoga com estudos
que abordam os processos históricos dos
povos africanos e afro-brasileiros, destacando
as formas de resistência da negritude por
meio de suas organizações e relações sociais.
Enfatiza-se a participação dos quilombos em
revoltas regenciais, como a Balaiada, exemplo
significativo da luta por liberdade e direitos.
Assim, o trabalho contribui para refletir sobre a
relevância histórica desses territórios enquanto
manifestações coletivas de resistência,
ressaltando sua permanência como símbolo de
luta até os dias atuais. Embora introdutório, o
estudo estabelece fundamentos para discussões
mais aprofundadas sobre a trajetória quilombola
no Brasil imperial e sua importância no contexto
das resistências afro-brasileiras.

Palavras-chave: quilombos, resistência,
historiografia, negritude.

RESUMO: This article carries out a
historiographical analysis of the remaining
quilombos in the Brazilian imperial period,
investigating their representations as spaces
of resistance and their interactions with the
government. The research dialogues with
studies that address the historical processes of
African and Afro-Brazilian peoples, highlighting
the forms of resistance of black people through
their organizations and social relations. It
emphasizes the participation of quilombos
in regency revolts, such as the Balaiada, a
significant example of the struggle for freedom
and rights. Thus, the work contributes to
reflecting on the historical relevance of these
territories as collective manifestations of
resistance, highlighting their permanence
as a symbol of struggle to this day. Although
introductory, the study lays the foundations for
more in-depth discussions on the quilombola
trajectory in imperial Brazil and its importance
in the context of Afro-Brazilian resistance.

Key words: quilombos, resistance,
historiography, negritude.

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Em vista disso, como enunciou o líder quilombola brasileiro, Antônio Bispo
“[...] embora pertencendo a mesma espécie, a humana, precisamos dialogar
profundamente com os conceitos de cor, raça, etnia, colonização, e contra
colonização” (BISPO, 2015, p.26). Pois, o que é ser negro foi historicamente
estruturado. Construindo-se a mentalidade de que esse, geralmente, era um
ser marginal, desprovido de capacidades mentais elevadas e biologicamente
adaptado para o trabalho pesado. Evidenciando que não há como falar das
expressividades dos quilombos, sem debater com os conceitos de raça e
colonização.

Neste trabalho, ao propormos um estudo dos quilombos com foco no período
imperial brasileiro, buscamos realizar uma análise que leve em conta as disputas
narrativas presentes na historiografia, além de discutir conceitos e algumas
abordagens analíticas. A pesquisa contribuirá para este campo na medida em
que trata do assunto sobre o prisma da descolonização. De acordo com Frantz
Fanon:

A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um progra-
ma de desordem absoluta. [...] A descolonização, sabemo-la, é um processo histórico,
isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna
transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movi-
mento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. […] A descolonização jamais passa
despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma es-
pectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de
modo quase grandioso pela roda viva da história. [...] Há perante a descolonização a
exigência de um reexame integral do sistema colonial. [...] É por isto que, no plano da
descrição, toda descolonização é um triunfo. (FANON, 1968, p. 26-27)

Sendo assim, descolonizar a produção científica é “dar voz” a versão dos
escravizados, para além dos argumentos dos senhores de escravos. É levar o
olhar, para os elementos culturais trazidos e preservados pelos negros, bem
como, analisar o como se davam suas relações, suas crenças e as demasiadas
formas de resistir, desde a luta, a fuga, a assimilação forçada, até a morte, para
fugir do banzo4. Essa concepção permite mostrar outros protagonistas sociais

4  Nos dicionários oficiais de língua portuguesa, os ditos dicionários brancos, o banzo é definido
como saudade da África, ou como forma de adjetivação de pessoa triste, pensativa, atônita, pasmada,
melancólica. A melancolia parece ser a definição que solapa muitos desses dicionários. É uma asso-
ciação apriorística com o banzo, que é visto como a melancolia negra. Freud no texto “Melancolia
e Luto”, diz que ela se caracteriza por um desânimo abissal, doloroso, uma suspensão do interesse
pelo mundo, além da perda da capacidade de amar. O banzo é mais que isso, conflui em si todas essas
palavras em português que remete a um estado de desassossego na alma, convulsionadas por uma
exterioridade de terror, morte, escravidão e tortura. É a síntese profunda de uma existência moída em
dor por uma estrutura social, política e econômica aterrorizadora (NUNES, 2017).

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na área de saber da História, lugar que, durante muito tempo lhes foi negado.
Estudar através da ótica descolonial, é avançar, para além da História descritiva
e relatada, é dialogar com a vivência real, com o significar dos fatos, a semiótica
das palavras e a sinergia que a negritude ecoa a tanto tempo no solo brasileiro.
É debater historicamente as construções ainda vigentes, contrapor conceitos e
conceituar novos olhares e com respeito, compreender o que foi resistir em meio
a tanta atrocidade.

Ao se pensar em negritude neste trabalho, abrange-se a perspectiva dessa
como sinônimo da união dos negros, na qual, diante de uma trajetória histórica
marcada por opressões, em um sistema que os subjugava e os desapropriava
de si e dos seus, retomar a consciência sobre si e reunir forças para não perder
sua própria história é a negritude. Quando o escravizado tentava sobreviver sem
perder sua ancestralidade, ele traçava a negritude; quando os escravos fugidos
formavam os quilombos, e quando, pós-escravidão, tiveram que mutuamente
dar forças uns aos outros para se reconstruírem, ali se formava e disseminava
a negritude, a mesma que hoje faz com que negros e negras se fortaleçam,
construam redes de afeto e comunicação, e estejam juntos em cada reivindicação.
Essa perspectiva dialoga com a semântica de negritude proposta pelo autor
Kabengele Munanga:

Ver-se-á então afirmada a legitimidade histórica da “negritude”: reação racial negra
contra uma agressão racial branca, uma legítima defesa, a negritude se transforma
num movimento antirracista, num movimento ideológico-político para a libertação
dos negros do sistema colonial e do racismo praticado contra ele na sua “diáspora”.
(MUNANGA, 1990, p.112)

Sendo assim, pensar em negritude é pensar nos quilombos, nos terreiros,
na preservação da capoeira; é perceber os significados das rodas de samba,
dos bailes funk, das batalhas de rap, dos grupos de estudo e das organizações
políticas, como o Movimento Negro Unificado5 (MNU). Nesta pesquisa, porém,
destacamos o estudo e a compreensão acerca dos quilombos e sua trajetória de
luta.

5  O Movimento Negro Unificado (MNU) é uma organização pioneira na luta do Povo Negro no Bra-
sil. Fundada no dia 18 de junho de 1978, e lançada publicamente no dia 7 de julho, deste mesmo ano,
em evento nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em pleno regime militar. O ato represen-
tou um marco referencial histórico na luta contra a discriminação racial no país.

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Metodologia

Para tanto, realizamos uma revisão de literatura com o propósito de investigar
e analisar a visão corrente sobre o período imperial brasileiro, com foco na
representação dos quilombos e dos escravizados. Obras como “Os Quilombos e a
Rebelião Negra” de Clóvis Moura (1983) e “Brasil: Uma Biografia” de Lilia Schwarcz
e Heloisa Starling (2015), além de alguns outros artigos científicos, á exemplo,
“Negritude Afro-Brasileira: Perspectivas e Dificuldades” de Kabengele Munanga
(1990), “Racismo no Brasil: Teorias Raciais e as Heranças da Escravização no
Brasil” por Leonardo Barros (2022).

Sendo nosso intuito, questionar a ideia de passividade e incapacidade
atribuída aos escravizados, ao mesmo tempo em que se busca legitimar as
significações que os quilombos mantêm até os dias de hoje, contribuindo para
uma compreensão mais crítica e enriquecedora da história e das heranças
culturais afro-brasileiras, que embasam a formação do Brasil.

Historiografia, racismo e resistência no Período Imperial

Entre as linhas da historiografia, é possível explorar as diversas
interpretações que permeiam os estudos de cada século, período e ano. Ao
abordar o período imperial brasileiro (1822-1889), essa análise se torna ainda
mais relevante, especialmente quando tratamos de temas complexos como a
escravidão e o racismo. Por exemplo, desde os primórdios da historiografia no
Brasil, com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em
1838 e as pesquisas de Carl Friedrich Philipp von Martius, seguidas pelos estudos
de Francisco Adolfo de Varnhagen em 1850 (REIS, 2002), observamos a formação
de uma mentalidade e uma concepção que se mostravam hostis tanto em relação
aos indígenas quanto aos homens e mulheres de cor.

Como expôs José Carlos Reis:

O que o Brasil não quer ser? A resposta das elites: o Brasil não queria ser indígena, ne-
gro, republicano, latino-americano e não católico. O que significa dizer: O Brasil queria
continuar a ser português. [...] A diferença é que a coroa não é mais exterior, mas inte-
rior. E é português ainda. (REIS, 2007, p.27)

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Assim, o ideal do “branco bom” e o “negro ruim”, arrastou-se desde a
colonização e estruturou-se através e a partir da independência, sendo a
construção da identidade brasileira, fomentada nesse período, durante o primeiro
e segundo reinado, tendo a consagração dos símbolos e significados, em relação
ao branco, ao católico, aos portugueses e ao latifúndio. De tal modo, em soma
com a disseminação do darwinismo social6, as eminências racistas se enraízam
na construção do que é ser brasileiro e fez como que a escravidão no Brasil
perdurasse por 388 anos. Concordantemente com Neusa Souza, “a sociedade
escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça,
demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação
com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e a posição social inferior”
(SOUZA, 2021, p.48).

Dessa forma, foi estruturada a ideia de inferioridade racial dos negros,
colocando-os em posições de submissão e exploração. A historiografia, em
inúmeras tentativas, teve de se reinventar para justificar, histórica, social e
culturalmente, que o Brasil era mais branco e mestiço do que negro. De acordo
com as teorias racistas do século XIX, acreditava-se que o país não avançaria
devido à presença dos negros, razão pela qual a justificativa do branqueamento
da população tornou-se uma política de Estado.

Nos anos finais do período imperial, a partir de 1838, e com o início da Primeira
República em 1889, colocou-se ainda mais em evidência o dilema de como
lidar com a massiva quantidade de negros escravizados e posteriormente ex-
escravizados em um país que, como exposto, não queria que os negros fizessem
parte de sua marca identitária. Nesse contexto, pode-se considerar as políticas
de imigração, que começaram a ser implementadas a partir de 1840, como uma
tentativa de construir noções de um Brasil evoluído e branco, alinhadas com os
ideais que vigoravam no período imperial.

Assim, a disputa pela identidade brasileira foi, e ainda é, palco de muita
discussão. Dentre esses debates, há os que excluíram por completo o negro e o
indígena da história; já outros que os trouxeram, mas de forma docilizada. A ótica
desses debates postos, opõem-se a linha proposta nesse artigo, em que, destaca-

6  O Darwinismo social é uma ideologia que busca justificar a noção de superioridade racial e a seg-
mentação da sociedade em subgrupos com características distintas, promovendo a eugenia e a ideia
de aprimoramento da raça. Essa corrente foi inspirada na teoria da evolução de Darwin, sustentando
que apenas os mais fortes estariam em condições de sobreviver. (FRANÇA; SILVA, 2024).

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se as narrativas que tentam expressar uma visão descolonial, compreendendo as
resistências dos negros e indígenas no Brasil.

A escalada dessa construção da identidade brasileira se intensificou e se
fortaleceu ainda mais com a promulgação da República em 1889, que herdou as
disputas dos discursos de nação semeados desde a independência do Brasil em
1822, como se pode perceber em Varnhagen (1850 apud REIS, 2002).

Entretanto, se a historiografia inclui pesquisas como a de Varnhagen (1850
apud REIS, 2002), que não destacavam ou abordavam de maneira significativa
a resistência dos escravizados, há também historiadoras como Schwarcz e
Starling, que demonstram que, durante a escravidão, os escravizados “reagiram
ao cotidiano violento também de forma violenta, sendo frequentes as fugas,
individuais e em massa, os assassinatos de feitores e senhores, e as insurreições
organizadas” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 98).

Essa afirmação posta pelas autoras, abre espaço para se questionar os
discursos histórico vigentes. Pois, pensar em narrativas históricas, é compreender
os moldes que se operaram a consciência e as noções de país. De um lado, há
a perspectiva que considera a escravidão no Brasil como um fenômeno ameno
e, de certa forma, romantizado, sugerindo a existência de uma democracia
racial, conforme proposto por Gilberto Freyre (1987). Há também a análise do
determinismo racial, defendido por Nina Rodrigues (1894). Assim como, um autor
que dialoga com esse período, mesclando uma certa romantização, com uma
ênfase no protagonismo dos negros em uma relação complexa e interligada com
brancos e indígenas, é o Capistrano de Abreu (1998). Em sua obra “Capítulos de
História Colonial”, ele destaca que:

O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio sorumbático.
As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas
feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontram aprecia-
dores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno dos negros,
purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito de Antonil.
(ABREU, 1998, p. 30)

É importante destacar que esse trecho reflete uma tendência a enfatizar
a aceitação da cultura negra e o fascínio pelas mulatas. No entanto, essa
perspectiva não condena a escravidão; ao contrário, analisa o contexto histórico
e reconhece o negro como parte integrante da sociedade brasileira, assim como
o mestiço. Contudo, essa análise não aborda de maneira crítica as violências e

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as injustiças que esses grupos enfrentaram. Além disso, em soma com a tese
da democracia racial (FREYRE, 1987), engendrou-se no Brasil, a legitimação
teórica de dominação dos brancos sobre os negros, com a manutenção dos seus
privilégios e o apagamento das verdadeiras faces do racismo.

Destarte, há uma outra perspectiva, que ao afirmar que houve escravidão,
pontua que ela era violenta e desumana, abordando também, que havia
manifestações violentas por parte dos escravizados, como aborda a Suely Robles
(2007) no texto a “Escravidão Negra em Debate”, trazendo autores como Florestan
Fernandes7, Fernando Henrique Cardoso8, Otávio Ianni9, e Clóvis Moura10. Diante
da perspectiva desses autores, a escravidão foi perpassada pelas violências
acometidas aos negros, mas que também, esses, respondiam com violência,
quando possível.

Uma das formas de resistência nesse período, que em algumas ocasiões
se manifestou por meio de “violências”, foram os quilombos. Segundo Schwarcz
e Starling (2015, p. 98), “a resistência escrava deu origem a mucambos11 ou
quilombos12 guerreiros, surgidos na América portuguesa a partir do século XVI.”
O temor em relação aos quilombos começou com seu surgimento durante o
período colonial e perdurou ao longo de todo o império, como afirmam Petrônio
Domingues e Flávio Gomes:

7  FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Contracorrente, 2021.
8  CARDOSO, Fernando. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: O negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
9  IANNI, Octavio. Escravidão e Racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.
10  MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
11  A palavra “mucambo” significa “esconderijo”; já “quilombo” foi o termo utilizado em algumas
regiões do continente africano, especialmente em Angola, para caracterizar um tipo de acampamento
fortificado e militarizado, composto de guerreiros que passavam por rituais de iniciação, adotavam
uma dura disciplina. O uso de “quilombo” para designar agrupamentos de cativos fugidos se generali-
zou depois de Palmares e a palavra foi mais empregada no século XVIII (SCHWARCZ; STARLING,
2015, p.98.)
12  Quilombo era “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda
que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”, segundo reposta do Rei de Portugal
a consulta do Conselho Ultramarino datada de 2 de dezembro de 1740 (MOURA, 1981, p.16).

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No campo da história – do passado e do presente – várias questões foram colocadas.
Uma das primeiras: onde existiram os quilombos no Brasil –além de Palmares que todo
mundo já ouviu falar? Considerando a vastidão das experiências históricas – no tempo
e espaço–talvez fosse melhor perguntar onde não houve quilombos. A escravidão – in-
dígena e africana – pontilhou toda a América Portuguesa e depois o Império brasilei-
ro. Como a legislação colonial e depois a imperial definiu os quilombos? Com algumas
especificidades regionais, os quilombos foram definidos como agrupamentos de 2 a
3 negros fugidos. Qual seja, não eram definidos exclusivamente pelo número de ha-
bitantes (tipo mais de 10, 50 ou 100 por exemplo) ou por uma organização social. Era,
portanto, uma definição bem flexível em termos das experiências históricas. (DOMIN-
GUES; GOMES, 2013, p.3)

Assim, por meio da promulgação de leis e da disseminação de notícias,
foi-se construindo uma lógica de temor em relação aos quilombos, que eram
frequentemente criminalizados por serem, em muitos casos, refúgios de cativos
fugitivos. As pesquisas de Clóvis Moura representaram um avanço significativo
na historiografia ao abordar o estudo da “rebeldia negra” em suas dimensões
políticas e sociais. Segundo Moura, a resistência manifestada por meio dos
quilombos foi um fator determinante que culminou na abolição da escravatura.
Nas palavras do próprio autor,

É que essa “rebeldia negra” antecede em muito o movimento abolicionista. Enquanto
a primeira desde o século XVII já se consubstanciava em fato histórico tão relevante
como a República de Palmares, o movimento abolicionista somente se manifestará,
organizada e politicamente, quando o sistema escravista entra em sua crise
irrecuperável do final do século XIX. É exatamente a este movimento tardio que se
deseja dar o mérito da Abolição. Ao contrário. Se méritos devem ser computados de-
verão ser creditados a rebeldia negra [...]. (MOURA, 1981, p.81.)

De tal modo, o negro buscou se movimentar em meio à estrutura racista,
seja por meio de fugas, enfrentando a morte, lidando com abortos, buscando
a assimilação ou participando de revoltas. Como na revolta dos Malês11 e na
Balaiada13.

A respeito da Balaiada14, Iamara Viana e Flávio Gomes trazem que:

13  “Os Malês protagonizaram a maior das rebeliões escravas ocorridas na Bahia, e quiçá no Brasil,
mas também a última. Esses rebeldes realizaram o levante de 1835 como uma rebelião escrava. No
entanto, ele foi igualmente uma luta religiosa e étnica [...]” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.257).
14  A Balaiada, liderada por cafuzos e caboclos, gerou medo de uma “guerra racial” entre os brancos
no Maranhão. Apesar do apoio de alguns brancos e tentativas de alianças liberais, a acusação per-
sistiu devido à destruição de fazendas e às perseguições dos líderes cabanos (ASSUNÇÃO, 2022).

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Um exemplo ainda pouco explorado é o de Cosme Bento das Chagas, ex-escravo que
comandou a maior revolta popular camponesa no Brasil Imperial, a Balaiada, no Ma-
ranhão, entre 1838 e 1841. Consta que nasceu escravo no alvorecer do século XIX, na
capitania do Ceará, em Sobral. Havia ali também uma conhecida irmandade negra de
Nossa Senhora do Rosário, que já tentava organizar escravizados para obter a alforria e
a escolarização dos libertos e de seus filhos. Cosme vai conquistar sua alforria no final
da década de 1820. Como liberto, ele migra para a então província do Maranhão, sendo
preso e depois se refugiando nos quilombos que existiam em várias partes daquela
província. As repercussões da revolta Balaiada chegam até os vários quilombos, fazen-
do aumentar a movimentação entre eles. Escapando da cadeia em São Luís, Cosme vai
engrossar as fileiras rebeldes, logo se tornando uma liderança. Muitas vezes chamado
de “Dom Cosme Bento das Chagas, Tutor e Imperador da Liberdade Bem-Te-Vi”, Cosme
comanda tropas de mais de três mil quilombolas, que estavam instalados no conhecido
quilombo em Lagoa Amarela, nas margens do rio Itapecuru. (VIANA; GOMES, 2020, p.6)

Nesse sentido, revoltas com a dos Malês e a Balaiada e as duras repressões
que elas tiveram, consagra o medo da branquitude ao homem de “cor”. Tanto
que, como registra Moura (1981), na medida em que a Balaiada foi reprimida, a
ala conciliadora e pequeno-burguesa que se somava no movimento, durante
as reivindicações, aproveitaram-se da massa quilombola, mas sem nunca os
considerar ativos politicamente e ao serem retidos, eles fizeram um acordo para
se salvarem e permitem que os negros fossem sacrificados e responsabilizados,
em sua maioria.

Em consonância, João José Reis traz em sua obra “Rebelião Escrava no Brasil:
a história do levante dos malês em 1835” (2003), que por a revolta dos Malês ser
composta majoritariamente por africanos, de várias etnias, assustou a província
baiana, pois mostrava a força e a vívida presença da herança africana resistente,
apesar das várias tentativas de apagamento engendradas pela colonização.

Esse medo, conforme aponta Célia Azevedo (2006), permeou e ecoou até
mesmo nas discussões sobre o trabalho livre, especialmente no período pós-
abolição. Sua origem remonta a um tempo anterior à imigração sancionada, que
buscava trazer pessoas brancas para o Brasil, e antecede até mesmo a existência
dos quilombos. Esse temor surgiu desde a chegada dos negros ao país, refletindo
o receio de que esses indivíduos pudessem se mostrar superiores, mais
inteligentes e capazes. Por essa razão, era necessário que fossem acorrentados,
submetidos a castigos e levados a viver em condições precárias, de modo a
impedir que tivessem a oportunidade de superar os brancos.

Consequentemente, as revoltas que contavam com a presença massiva de
negros, especialmente aqueles provenientes de quilombos, representavam uma
ameaça à estrutura vigente, gerando o temor de uma ruptura da exploração e

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da ascensão dos negros. Além disso, esse medo constante em relação aos
negros está intimamente ligado ao haitianismo15. Consoante Luã Carvalho (2020),
existe o receio de que o “homem de cor” vença e rompa sistematicamente com
a organização socioeconômica estabelecida, assim como ocorreu no Haiti, onde
proclamaram uma revolução e desafiaram os senhores.

Por isso, a trajetória dos quilombos no Brasil é de grande importância,
especialmente ao se considerar os quilombos que resistem até os dias atuais.
Esses espaços carregam consigo uma disputa histórica, envolvendo narrativas
e significações diversas. Assim como existe um debate sobre o significado de
quilombo, o conceito de raça e a categoria de nação, também se impõe a reflexão
sobre qual identidade se constrói no Brasil e em relação ao seu povo.

Como mencionamos anteriormente, existe uma historiografia que debate
a lógica da escravidão, as hierarquias sociais e a identidade do Brasil. Essas
narrativas foram predominantemente moldadas por aqueles que contaram a
história, especialmente durante o período imperial, financiada pela monarquia,
e marcada por apagamentos, silenciamentos e romantizações. Portanto,
desenvolver uma historiografia que ilumine a história dos negros, suas ações e suas
construções, como fizeram pesquisadores como Florestan Fernandes e Clóvis
Moura, reivindica uma narrativa histórica sob uma perspectiva revolucionária,
alinhada ao que se defende atualmente no âmbito descolonial.

Correlacionando esta pesquisa com a de Frantz Fanon, “é preciso
procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de
sociabilidade” (1980, p. 40). Estudar o período imperial é perceber que, mesmo
após a independência do Brasil, essa se concretizou para um povo e uma classe
específicos, enquanto os demais foram relegados ao esquecimento nas linhas
da história. Compreender as revoltas, como a Balaiada e a dos Malês, e os
enfrentamentos que ocorreram em relação a elas, é reconhecer que a abolição
não se deu por vontade do império e da elite, mas foi resultado de um saturamento

15  As repercussões da insurreição escrava que serviu de estopim para a Revolução no Haiti es-
palharam-se rapidamente pelo Ocidente. Convém salientar, como bem explanado nos estudos de
Michel-Rolph Trouillot (2016), que houve uma tentativa de silenciar os eventos protagonizados por
homens e mulheres de cor. Esse silenciamento é também fruto da tentativa das camadas dirigentes de
ocultar acontecimentos que lhes poderiam ser prejudiciais. O conhecimento sobre uma insurreição
escrava bem-sucedida poderia, e causava, alvoroço entre os setores escravizados de todas as colônias
das Índias Ocidentais. O controle das informações circulantes relacionadas à Revolução Haitiana foi
rigoroso até pelo menos meados do século XIX (CARVALHO, 2020, p.790).

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socioeconômico e de pressões sociopolíticas provenientes de diversas frentes16,
fruto das ações dos escravizados, ex-escravos e quilombos que resistiram
durante tantos anos, tanto nas matas quanto nos centros urbanos, em suas
tentativas de lutar e permanecer vivos.

A vinda dos negros ao Brasil foi sistematicamente planejada para funcionar
como um mecanismo de exploração e opressão racial. Assim, a resistência e
a sobrevivência desses indivíduos até os dias de hoje constituem uma afronta
revolucionária a um sistema que buscou sua destruição. Valorizar e historicizar
a luta quilombola é, além de um reconhecimento ancestral, um enriquecimento
social e acadêmico, uma vez que se torna urgente a ampliação de pesquisas
“racializadas” e questionadoras. A História, enquanto ciência, deve estar
relacionada a “gente”, e “gente” é, por sua natureza, plural.

É importante ressaltar que os negros contribuíram significativamente para
a formação do Brasil, influenciando aspectos como a linguagem, a culinária, a
moda, a religião, as festividades, a arte e a música. A negritude, portanto, vai
além da violência e da resistência; ela também é sinônimo de sutileza, beleza,
família e realeza.

Considerações finais

Compreende-se, assim, que a importância de se estudar os quilombos está
intrinsecamente ligada à construção da consciência racial, conforme aspira o
MNU. Nesse sentido, como destaca o Movimento Negro, os conceitos de quilombo
e resistência são fundamentais para a construção de uma revisão crítica da
historiografia oficial. Esses conceitos podem ser utilizados para enriquecer as
análises teóricas que visam fundamentar uma “nova” História do Brasil, conforme
apontado pelo autor Marcos Cardoso (2002).

Quando olhamos para o período imperial, podemos observar as contradições
que ocorreram na construção da identidade do Brasil, a qual foi marcada por
disputas de narrativas e por um significativo apagamento. É necessário trazer
à tona, por meio da historiografia, os debates acerca dessa temática, uma vez
que é a escrita da História que guarda os acontecimentos, registra as narrativas
e memoriza as significações. Questionar essa historiografia conservadora

16  Como, por exemplo, a exigência dos ingleses.

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é fundamental, pois, para a construção de uma consciência racial e de uma
consciência histórica verdadeiramente transformadora, é sem dúvida importante
colocar em discussão os erros, as controvérsias, os equívocos, mas também os
acertos, para que assim avancemos como país e como produtores de pesquisa.

Reforçando, conforme Marcos Cardoso (2002), a verdadeira consciência
negra é um futuro com dignidade, que respeita a ancestralidade e reafirma as
identidades. Para construir uma história múltipla, é importante, por exemplo,
ao se estudar e falar do período imperial, não centralizar a História apenas na
monarquia e em suas sucessivas ações, mas ir além, abordando as experiências
das pessoas comuns e a História que vem de baixo. Em uma realidade em que
os quilombos e comunidades tradicionais continuam a ser perseguidos, lutando
diariamente pelo direito a seus territórios, que permanecem ameaçados, é
pertinente considerar a afirmação de Antônio Bispo:

Só que hoje, os colonizadores, ao invés de se denominarem Império Ultramarino, de-
nominam a sua organização de Estado Democrático de Direito e não apenas queimam,
mas também inundam, implodem, trituram, soterram, reviram com suas máquinas de
terraplanagem tudo aquilo que é fundamental para a existência dessas comunidades,
ou seja, os nossos territórios e todos os símbolos e significados e significações dos
nossos modos de vida (SANTOS, 2015, p.76.)

Em suma, para ressignificar a História, que durante muito tempo foi aliada
ao poder vigente e às narrativas dos “grandes homens”, é indubitavelmente
importante que a História evidencie seu papel social nas transformações sociais
e políticas, assim como a responsabilidade que ela possui na construção da
legitimação dos direitos dos quilombos, que têm sido criminalizados e perseguidos
desde seu surgimento, por meio de atribuições legais. Hoje, por meio dos meios
legais, é urgente a reivindicação dos direitos dos territórios tradicionais, para
que possam manter suas terras e preservar suas tradições. Isso visa confrontar
o racismo institucionalizado e, na prática, contrabalançar a resistência que a
negritude carrega há mais de 500 anos de História no Brasil, de modo que os
afro-brasileiros possam viver com dignidade, em igualdade e liberdade.

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ARTIGOS

264 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

ESTUDANTES INDÍGENAS NO INSTITUTO FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL,
CAMPUS AQUIDAUANA: UM ESTUDO DE CASO1

INDIGENOUS STUDENTS AT THE FEDERAL INSTITUTE OF MATO GROSSO DO SUL,
AQUIDUANA CAMPUS: A CASE STUDY

Janete Andrade de Lima2

https://orcid.org/0009-0005-1170-2168
http://lattes.cnpq.br/2823173378853480

Vera Lucia Ferreira Vargas3

https://orcid.org/0000-0001-8422-6602
http://lattes.cnpq.br/3469567030641868

Recebido em: 31 de maio de 2024.
Revisão Final: 06 de março de 2025.
Aprovado em: 07 de março de 2025.

https://doi.org10.46401/ardh.2024.v16.21270

1  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2  Mestra em Estudos Culturais pelo PPGCult/CPAQ/UFMS. Pedagoga do Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS). Membro do Núcleo de Estudos Afro-bra-
sileiros e Indígenas (NEABI). E-mail: janete.lima@ifms.edu.br
3  Possui graduação em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) (1997),
mestrado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) (2003) e doutorado pela Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF) (2011). Atualmente, é professora de História da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, no Campus de Aquidauana e professora do corpo permanente do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais (PPGCult/UFMS/CPAQ). E-mail: veraterena@
gmail.com

ARTIGOS

265 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Introdução
Os povos indígenas não estão no fim da história,

senão no início de um futuro diferente.
Bartolomeu Meliá

Indígenas brasileiros têm ocupado distintos espaços, incluindo aqueles
que, historicamente, o foram apenas por pessoas não indígenas. Os espaços de
produção acadêmica integram esses territórios dos quais indígenas e negros
foram alijados e, apenas recentemente, ocupados de forma sistemática. Neste
artigo buscaremos compreender justamente a presença de estudantes indígenas
no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul no município de Aquidauana, localidade
que comporta uma população de cerca de nove mil indígenas, em sua maioria do
povo Terena.

O processo de educação indígena no Brasil não é recente e, desde a
colonização, esteve vinculado à catequese e à disponibilização de mão-de-

RESUMO: Este artigo aborda o ingresso
de estudantes indígenas nos cursos de Ensino
Médio Integrado de Edificações e Informática do
campus de Aquidauana do Instituto Federal de
Mato Grosso do Sul, com destaque às questões
de permanência e evasão escolar deste público.
Secundariamente, considerando o mapeamento
da origem destes estudantes, tanto das terras
indígenas, quanto dos bairros das cidades de
Aquidauana, Anastácio e Miranda, observam-
se as dificuldades socioeconômicas e de
deslocamentos como percalços importantes
enfrentados pelos estudantes indígenas. Por
fim, a noção de interculturalidade crítica é
abordada com vistas a apontar possibilidades
de observação, diálogo e permanência para
o aprimoramento das políticas afirmativas
no atendimento a este público nos cursos do
Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, campus
de Aquidauana. A metodologia escolhida é
aquela do estudo de caso, uma investigação em
que fenômeno e contexto quase se mimetizam
em situações da “vida real” (YIN, 2005).

Palavras-chave: estudantes indígenas,
IFMS/Aquidauana, interculturalidade.

ABSTRACT: O This article addresses the
entry of indigenous students into the Integrated
High School Building and IT courses at the
Aquidauana campus of the Federal Institute
of Mato Grosso do Sul, with emphasis on the
issues of permanence and school dropout
for this group. Secondarily, considering the
mapping of the origin of these students, both
from indigenous lands and from neighborhoods
in the cities of Aquidauana, Anastácio and
Miranda, socioeconomic and travel difficulties
are observed as important setbacks faced
by indigenous students. Finally, the notion of
critical interculturality is approached with a
view to suggesting observations, dialogue and
permanence to improve affirmative policies in
serving this public in courses at the Federal
Institute of Mato Grosso do Sul, Aquidauana
campus. The methodology chosen is that
of the case study, an investigation in which
characteristics and context almost mimic “real
life” situations (YIN, 2005).

Key words: indigenous students, IFMS
Aquidauana, interculturality.

ARTIGOS

266 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

obra para as inúmeras atividades laborais na colônia e subsequentemente a ela.
A princípio, a educação dos povos indígenas esteve atrelada à Igreja, uma das
formas que os colonizadores europeus estabeleceram para tentar garantir a
obediência e conduzi-los ao processo de civilização por eles determinado, o qual
consistia na manutenção da exploração da mão-de-obra indígena nas colônias
espanholas na América.

O fato é que já desde o começo da América, os futuros europeus associaram o
trabalho não pago ou não-assalariado com as raças dominadas, porque eram raças
inferiores O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi
causado principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os
conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram usados como
mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer (QUIJANO, 2005, p. 120)

Sob essas condições, os europeus conduziram o processo de colonização
e imposição de um modelo civilizatório nas Américas. Quijano ainda afirma que,
como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou,
sob sua hegemonia, o domínio de todas as formas de controle da subjetividade,
da cultura e, em especial, do conhecimento e da produção do conhecimento
(QUIJANO, 2005, p. 121).

Os que se intitularam colonizadores não consideraram que os povos
indígenas, anteriormente e ao longo de suas histórias de contatos com os não
indígenas, também produziram alternativas próprias, que foram ignoradas pelos
europeus, desqualificando suas ações quando negociaram, se apropriaram,
ressignificaram, enfrentaram, aliaram-se aos diferentes grupos, de acordo com
o que lhes era possível e favorável. Esse processo perdurou por séculos e suas
consequências ainda hoje estão presentes em nossa sociedade, configuradas
nas mais diferentes formas de preconceitos aos povos indígenas e os povos
escravizados oriundos do continente africano.

Porém, assim como os preconceitos e demais estereótipos sobre eles
chegaram ao século XXI, as suas lutas e reivindicações por direitos também
permaneceram. Não é mais possível ignorá-los completamente, uma vez que estão
inseridos em diferentes setores da sociedade, permaneceram e permanecem se
identificando como indígenas e sendo reconhecidos como tais. Mato Grosso do
Sul tem uma população indígena de cerca de cento e dezesseis mil pessoas, a
terceira maior dos estados que compõe o Brasil. Podemos afirmar, assim, que
se trata de um território de forte presença indígena no qual, entretanto, essa

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267 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

parcela da população ainda enfrenta as mazelas de uma estrutura racista na
qual permanecem realizando diferentes enfretamentos para a garantia de seus
direitos junto ao Estado brasileiro.

No campo educacional, a educação de indígenas esteve atrelada ao
próprio processo de colonização, o que lhe legou o seu caráter catequizador e
cristianizador. Por outro lado, desde os anos 1970 a educação escolar indígena
passou a ser discutida em outros termos e, a partir da Constituição Federal de
1988, apelidada de “Constituição Cidadã”, e das ações dos movimentos indígenas
contemporâneos, ela se tornou uma política de Estado. Uma questão distinta,
entretanto, é a reflexão sobre a presença de alunos e alunas indígenas nas escolas
urbanas, um contexto no qual são, em geral, minoritários e passam a enfrentar
outras dificuldades.

Observa-se o crescente número de indígenas que buscam o acesso às
escolas fora de suas aldeias, como a busca pela inserção aos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia, instituições recentes, criadas a partir da Lei
11.892 de 29 de dezembro de 2008, instituições estas integradas à Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criadas sobre uma perspectiva
de formação integral e com uma proposta de verticalização a partir da educação
básica aos cursos de pós-graduação. A Rede Federal trabalha com formação
inicial e continuada de educação profissional, ensino técnico integrado ao ensino
médio, cursos concomitantes, subsequentes e integrados à educação de jovens
e adultos, cursos superiores de licenciatura para formação de professores,
tecnólogos e pós-graduação, bem como pesquisa e extensão.

A busca dos indígenas para ingressarem nos Institutos Federais no Brasil
pode ser percebida pelos trabalhos que abordam essa temática. Alguns deles,
como de Lemos (2015), analisam o sistema de reserva de vagas estabelecido
pela Lei n. 12.711/2012 para os povos indígenas nas universidades e nos institutos
técnicos federais, no conjunto das políticas afirmativas voltadas para eles diante
das reivindicações no movimento indígena brasileiro. As pesquisas de Mülling,
(2018) e Mülling, Santos (2019) evidenciam a busca dos Kaingang, no Rio Grande
do Sul, para integrarem o Instituto Federal do Grande do Sul/IFRS e no Instituto
Federal Farroupilha/IFFAR.

O presente texto tem centralidade na análise corresponde às formas de
acesso e permanência dos estudantes indígenas que têm buscado pela Educação
Profissional na Rede Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Aquidauana.

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268 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Realizamos, inicialmente, o levantamento das matrículas dos estudantes
indígenas no campus de Aquidauana, por meio do Questionário Socioeconômico
do IFMS, que compõem o banco de dados da instituição. Esse mapeamento
apresentou a proximidade dos estudantes indígenas das Terras Indígenas dos
municípios vizinhos em relação ao IFMS, Aquidauana, fator a ser considerado
para compreendermos as condições de deslocamento e permanência nos cursos
do IF.

Portanto, para este estudo utilizamos a metodologia do estudo de caso,
definida por Yin (2005) como uma estratégia de pesquisa que se concentra na
compreensão profunda de um fenômeno em seu contexto real. Essa abordagem
é especialmente valiosa quando o fenômeno não pode ser isolado de seu
contexto, o que implica que o estudo deve ser realizado no ambiente natural em
que ele ocorre. Os estudos de caso podem ser divididos em três tipos principais:
exploratório, descritivo e explicativo. O estudo de caso exploratório é utilizado
para identificar questões iniciais e hipóteses, sendo comum no início de uma
investigação. Já o estudo descritivo visa descrever um fenômeno ou um contexto
de maneira detalhada, permitindo uma visão profunda e abrangente da situação
investigada. Por fim, o estudo explicativo busca investigar relações causais
entre os fenômenos, estabelecendo explicações sobre o que está acontecendo
e por que isso ocorre. No caso em tela, recorreremos à perspectiva do estudo de
caso descritivo para compreender as vicissitudes e desafios enfrentadas pelos
estudantes indígenas no IFMS, campus de Aquidauana.

A experiência do Campus Aquidauana do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul

Aquidauana é um município com aproximadamente 46.803 mil habitantes
(IBGE, 2022) e possui, em seu território, as terras indígenas Limão Verde e a
Taunay Ipegue, com a presença majoritariamente Terena. Existem processos
de retomada de terras na região e isso tem causado conflitos com produtores
rurais. As atividades relacionadas à agropecuária são a base da economia do
município. O campus IFMS/Aquidauana é urbano, porém afastado do centro
da cidade, o que acaba dificultando o deslocamento dos estudantes; muitos
acabam ficando o período integral para poderem aproveitar os atendimentos
ofertados pelos docentes como monitorias e projetos, uma vez que os benefícios

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proporcionados pela assistência estudantil são importantes para ajudá-los em
relação à alimentação e/ou transporte. Para os estudantes indígenas que residem
em terras indígenas, o acesso ao Instituto Federal é ainda mais complexo por não
haver transporte para o deslocamento das aldeias até a cidade, assim, muitas
vezes sentem-se forçados a se mudarem para a cidade, sejam casas de amigos,
de parentes ou mesmo alugadas.

São ofertados cursos de Formação Inicial Continuada/FIC; Ensino médio
integrado (Edificações e Informática); Educação de Jovens e adultos – PROEJA
(técnico em Administração e técnico em Edificações); Subsequentes (Desenho
da construção civil, Edificações, Informática e Informática para Internet);
EAD; Graduação (Bacharelado em Engenharia Civil, Tecnologia em Redes
de Computadores e Tecnologia Sistemas para Internet) Pós-graduação lato
sensu - Especialização em Docência para a Educação Profissional, Científica e
Tecnológica. Atualmente são cerca de 500 estudantes matriculados nos cursos
de Ensino Médio Integrado em Edificações e/ou em Informática.

O ingresso nos cursos de Ensino Médio Integrado ocorre por meio de um
exame de seleção, em que o candidato se inscreve pelo próprio site do IFMS. Os
campi possuem atendimento para aqueles candidatos que não possuem acesso
à internet ou tenham dificuldade em acessar a página para inscrição. Realiza-se
uma prova com duração de quatro horas, composta das seguintes áreas: Língua
Portuguesa, Matemática e Conhecimentos Gerais. Atualmente o campus de
Aquidauana oferta 2 turmas de 40 estudantes para Edificações e 2 turmas de
40 estudantes para Informática e, em concordância com a Lei de cotas nº 12.711,
de 201,2 são destinados 50% das vagas aos beneficiários de uma das opções
de Ação Afirmativa (cotas). Na matrícula, os candidatos beneficiários da ação
afirmativa (cotas) para a pessoa indígena deverão apresentar um dos seguintes
documentos: Registro Administrativo de Nascimento Indígena - Rani, certidão
de nascimento indígena ou declaração de pertencimento à etnia assinada por
uma liderança indígena da respectiva etnia (IFMS, 2022).

O IFMS dispõe de uma Política Institucional de Acesso, Permanência e Êxito
para todos os estudantes, regulamentada pela Resolução nº 10, de 10 de fevereiro
de 2022, que objetiva, principalmente: elevar os índices de permanência e êxito
dos estudantes; diagnosticar as principais causas da retenção e evasão para
propor ações que reduzam esse índice; buscar as ações realizadas por outros
campi e compartilhar com os demais; propor ações educacionais inclusivas

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270 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

para que reduzam os efeitos das desigualdades sociais e regionais; sugerir
intervenções para aumentar a quantidade de estudantes aprovados e propor a
interação dos estudantes com as ações de extensão, pesquisa e inovação. Dessa
forma, almeja-se o aumento da permanência e êxito, visando ao desenvolvimento
integral dos estudantes. Também conta com o Programa de Acompanhamento de
Egressos (Pace) para planejar, implementar e orientar ações de acompanhamento
e monitoramento dos egressos do IFMS (IFMS, 2018).

Ao trazer esses dados das Políticas de ações afirmativas do IFMS, remete-
nos ao que Pacheco diz sobre Institutos Federais como rede social - essa rede
acontece a partir das relações sociais, do contato entre as culturas, à absorção
de novos elementos, objetivando sua renovação permanente (Pacheco, 2011, p.
22). A pesquisa científica, dentro do IF, tem uma correlação com a extensão,
contribuindo com o convívio social e a construção de uma nova consciência para
as populações que foram, ao longo dos anos, marginalizadas.

Por isso, ressaltamos a importância de oferecer, abrir espaços para que
ocorram as trocas, as falas, para que de fato aconteça o processo de inclusão
desses povos historicamente marginalizados. No processo de inclusão ou
exclusão, estão sendo produzidas as identidades sociais, de acordo com o
Documento Base da Educação Profissional:

[...] a construção e a atualização de projetos pedagógicos, as condições e o tamanho
da oferta dos cursos são aspectos para os quais muito têm a contribuir os movimentos
sociais, a exemplo do que se tem reivindicado e avançado no âmbito do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e das comunidades indígenas, que identificam o ensi-
no médio integrado como uma necessidade coerente com sua realidade. (MEC, 2007,
p. 32)

Salienta-se que os movimentos sociais são articuladores fundamentais
no planejamento e desenvolvimento sobre a educação profissional pelas
experiências no campo de atuação. Acreditamos que investir em debates e
discussões, incluindo os povos indígenas e suas especificidades, quanto ao
próprio processo de aprendizagem, sua cultura e suas lutas se faz necessário
para suprir a defasagem de conhecimento sobre os povos indígenas que ainda
existe para muitos docentes e para os próprios estudantes não indígenas.

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Matrículas dos estudantes indígenas no IFMS - campus Aquidauana (2014 a 2022)

Iniciamos o levantamento dos dados referentes ao ingresso de indígenas no
Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS) em virtude da proximidade dessa
instituição com os territórios indígenas da região e daqueles que vivem fora de
seus territórios, nas cidades, como consta no mapa a seguir:

Figura 1 – Mapeamento da área de abrangência do IFMS - Campus Aquidauana aos estudantes indígenas

Fonte: FERREIRA, Ednilson M., SEBB/ CPAQ, 2023.

O mapa apresenta diferentes escalas com vistas a evidenciar: a) a localização
das Terras Indígenas e das cidades das quais são oriundos os estudantes indígenas
do campus de Aquidauana do IFMS, b) a localização dos estudantes indígenas nas

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272 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

cidades de Aquidauana e Anastácio (conurbadas).
Com isso, visamos expressar imageticamente a abrangência do IF, bem

como as distâncias percorridas pelos alunos indígenas para estudarem. Ao
lado, destacamos especificamente a distância entre Terras Indígenas e cidades
circunvizinhas em relação à Aquidauana e, consequentemente, ao IFMS.

Como podemos observar no mapa, os estudantes indígenas do IFMS,
campus de Aquidauana são oriundos da Terra Indígena Limão Verde, da Terra
Indígena Taunay Ipegue, ambas no município de Aquidauana, da aldeia Aldeinha,
no município de Anastácio, da Terra Indígena Pílad Rebuá em Miranda, além dos
bairros de Anastácio, Aquidauana, Miranda e Nioaque. Para demonstrar, inserimos
pontos no mapa considerando o levantamento realizado desde 2014 até 2022.

No curso de Informática encontramos: 1 estudante da Terra Indígena Pílad
Rebuá da Aldeia Passarinho; 4 estudantes da Terra Indígena Limão Verde, sendo
2 da Aldeia Limão Verde, 1 da Aldeia Buritizinho, 2 da Aldeia Córrego Seco;
9 estudantes indígenas da Terra Indígena Taunay Ipegue, sendo 3 da Aldeia
Bananal, 1 da Aldeia Lagoinha, 4 da Aldeia Água Branca e 1 da Aldeia Colônia Nova;
1 estudante da Aldeia Aldeinha, em Anastácio; 1 estudante no Distrito de Taunay.

No curso de Edificações: 4 estudantes da Terra Indígena Limão Verde, sendo
3 da aldeia Limão Verde e 1 da aldeia Córrego Seco; 6 estudantes indígenas da
Terra Indígena Taunay Ipegue, sendo 3 da aldeia Água Branca e 3 da aldeia Colônia
Nova; 5 estudantes indígenas do Distrito de Taunay.

Em relação aos estudantes indígenas que vivem na cidade de Anastácio,
os bairros e vilas de onde se originam são: Vila Umbelina, Assuí, Centro, Jardim
Progresso, Bem-te-Vi, Vila Flor, Jardim Campanário, Jardim Moura, Cristo
Rei, Altos da Cidade, Santa Maria e Novo Horizonte. Já aqueles que moram em
Aquidauana: Bairro da Serraria, Bairro Alto, Nova Aquidauana, Santa Terezinha,
Dona Nenê, São Pedro, Guanandi, Centro, Vila Trindade, Exposição, Cidade Nova,
São Francisco. Já aqueles residentes em Miranda, são provenientes de: Jardim
Carandá e Baiazinha; no município de Nioaque, do bairro São Miguel.

A maior parte dos bairros citados se encontra nas periferias das cidades, o
que implica não apenas em considerar o perfil socioeconômico destes alunos,
mas também o próprio deslocamento dentro do município e intermunicipal, haja
vista que não há em Anastácio e Aquidauana transporte urbano/interurbano, bem
como o deslocamento das cidades de Nioaque e Miranda e das Terras Indígenas.

Para identificação dos estudantes indígenas, tivemos acesso ao Sistema

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Acadêmico do IFMS e ao Questionário Socioeconômico (QSE). Com esses
recursos, fizemos a busca no sistema por turma para verificarmos a situação de
matrícula; posteriormente, fizemos contato com os estudantes com a situação
de matrícula “em curso” por telefone. Aqueles, com os quais não obtivemos êxito
por esse meio, contactamos pessoalmente no próprio campus do IFMS.

Do levantamento realizado, os dados foram extraídos para a pesquisa do
questionário socioeconômico referentes às matrículas de estudantes indígenas
nos cursos técnicos de nível médio IFMS/AQ nos anos de 2014 a 2022. Detectamos
81 estudantes que se reconheceram como indígenas.

• No ano de 2014, ingressaram 4 estudantes indígenas no curso de
Informática, evadiram 3 e consta 1 como “Integralizado em fase
escolar” significando que o estudante não finalizou qualquer outro
requisito de integralização do curso previsto no respectivo Projeto
Pedagógico (IFMS, 2019); ou seja, concluiu todas as disciplinas, mas
não realizou o estágio obrigatório ou o TCC.

• Em 2015, ingressaram 2 no curso de Informática e 1 no curso de
Edificações, dos quais 1 evadiu do curso de Informática e os outros
2 se tornaram egressos.

• No ano de 2016, ingressaram 8 na Informática e 1 na Edificações;
somente 2 concluíram o curso de Informática, o restante evadiu.

• Em 2017, ingressaram 4 estudantes indígenas na Informática, apenas
1 concluiu.

• No ano de 2018, ingressaram 6 estudantes indígenas na Informática
e 8 na Edificações, concluintes em Informática 4 e em Edificações,
2.

• Em 2019, entraram 5 em Informática e 7 em Edificações; desses
estudantes indígenas, 3 de Informática e 2 de Edificações concluíram.

• Em 2020, ingressaram em Informática 9 estudantes indígenas e 9 em
Edificações; estavam em curso 6 de Informática e 7 de Edificações.

• Em 2021, ingressaram 4 em Informática e 2 em Edificações; evadiram
2 de Informática.

• Em 2022, ingressaram 6 em Informática e 5 em Edificações, evadindo
1 de Informática e 1 de Edificações.

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Os estudantes que constam no ano de 2020 na situação “em curso”, apenas
pagando dependência em unidades curriculares, apenas um está na situação
“trancado”, sete destes são aldeados e dos que constam nos anos de 2021 e 2022,
apenas 1 estudante não possui dependência em unidade curricular.

Dos estudantes que evadiram, desde o ano de 2014, doze eram aldeados;
portanto, dos estudantes que permanecem em curso, apenas 11 são aldeados, os
outros 16 residem na zona urbana da cidade de Aquidauana. As aldeias atendidas
são: Limão Verde, Colônia Nova, Água Branca e o distrito de Taunay, todas
localizadas no município de Aquidauana e aldeia Cachoeirinha no município de
Miranda.

Até a data do levantamento da pesquisa, no Instituto Federal de Mato Grosso
do Sul, campus de Aquidauana, havia, em média, 500 estudantes matriculados
nos cursos do Ensino Médio Integrado. Verificamos que, entre eles, estavam 27
estudantes indígenas “em curso”, ou seja, matriculados nos cursos de Ensino
Médio Integrado de Edificações e Informática.

A presença dos estudantes indígenas na Rede Federal de Educação
Profissional é recente devido à expansão dos Institutos Federais e à implementação
da lei nº 12.711, de 2012. Instaurada a referida Lei, os Institutos Federais iniciam
os editais de ingresso por cotas para estudantes pretos, pardos e indígenas;
consequentemente, no processo seletivo de 2013, adota-se a referida lei. Convém
observar que a presença dos estudantes indígenas no campus de Aquidauana
existe desde a sua implantação, em 2010; porém, o registro do questionário
socioeconômico (QSE) não era obrigatório, como bem destaca Garcia (2021),

O Sistema do Questionário Socioeconômico do IFMS (QSE/IFMS) foi criado em 2014. Nos
primeiros anos de implantação do sistema, os estudantes eram convidados a preencher
o questionário durante o período letivo. O convite era realizado pelas assistentes
sociais do IFMS, que dependiam da colaboração dos professores em ceder pelo menos
uma hora-aula, por turma, para orientação e acompanhamento dos estudantes no
preenchimento do QSE. A partir de 2018, as matrículas foram vinculadas à condição
obrigatória do preenchimento do Questionário Socioeconômico, sendo assim, a ação
tornou-se mais efetiva, ampliando o número de questionários respondidos. (GARCIA,
2021, p.128)

Conseguimos os registros a partir do ano de 2014, ano em que o questionário
socioeconômico passou a ser adotado no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul;
no entanto, o seu preenchimento tornou-se obrigatório apenas a partir de 2018.
Importante lembrarmos que o ano de ingresso dos alunos regulares nos cursos

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técnicos integrados de ensino médio, cuja duração era de 3 anos e meio, ocorreu
em 2011.

A presença de estudantes indígenas no campus Aquidauana

Entendemos que o ambiente escolar é um dos vários locais de representação
e formação dos sujeitos; portanto, faz-se necessária a compreensão desse
espaço como lugar de diferentes pessoas, com seus costumes e culturas
diferenciadas uns dos outros. Assim, Walsh (2005) afirma que, por ser a educação
a base da formação humana e também instrumento para prosseguimento,
desenvolvimento, crescimento e libertação da sociedade, é um dos contextos
mais importantes para desenvolver e promover a interculturalidade.

A interculturalidade por sua vez, busca entender como os povos, em contato
com outros, conseguem se apropriar de um espaço pluricultural e como cada
povo vai absorver de maneira diferente esse contato. Para Baniwa (2011),

(...) a interculturalidade pressupõe compreender e considerar os povos indígenas como
referências sociopolíticas com certa autonomia e flexibilidade, enquanto sujeitos
coletivos de direitos e civilizações milenares que não são nem melhores nem piores
que as demais civilizações humanas. São apenas diferentes. (Baniwa, 2011, p. 209)

Por outro lado, o conceito de interculturalidade crítica, sustentado por
Walsh (2005), surgiu a partir das próprias demandas indicadas pelos movimentos
indígenas e afrodescendentes, diferindo-se do multiculturalismo neoliberal e da
interculturalidade funcional. A interculturalidade não é apenas o contato entre
culturas, mas é também uma reciprocidade em condições de igualdade e precisa
ser percebida como um percurso permanente de comunicação, relacionamento
e aprendizado entre grupos e conhecimentos diferentes, com o objetivo de
estimular e construir o respectivo respeito acima das diferenças culturais e
sociais. É preciso pensar a interculturalidade a partir de um projeto contra
hegemônico, havendo a possibilidade de diálogo entre todas as culturas visando
à construção de uma sociedade diferente, uma sociedade outra.

Torna-se relevante ainda considerar a percepção indígena sobre a
interculturalidade, conforme aponta Baniwa (2011):

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na perspectiva das comunidades indígenas, a escola indígena intercultural deve aju-
dar na compreensão da lógica de pensamento e funcionamento da sociedade moder-
na envolvente. Isso porque os povos indígenas entendem que a sua derrota parcial no
processo colonial foi resultado fundamentalmente pelo não conhecimento dos modus
operandi dos conquistadores. Assim, para a defesa de suas culturas, de seus conhe-
cimentos e de seus direitos na atualidade os povos indígenas necessitam dominar ao
máximo possível os modus operandi dos colonizadores. Assim, dominar os conheci-
mentos dos brancos (Baniwa, 2011, p. 13)

Pensando neste espaço pluricultural, podemos trazer à discussão o novo
modelo de Educação Profissional que se difere do que foi a Localização de
trabalhadores do SPI que tinha, como único intuito, a formação de mão de obra.
O novo formato de Educação Profissional visa a uma formação de indivíduos em
que eles sejam protagonistas de transformações, por meio dos pilares ensino,
pesquisa e extensão, no meio em que estão inseridos.

Amado (2017) esclarece que, para o pesquisador indígena, a única razão pela qual sai da
aldeia para ingressar na Academia é apropriar-se dos conhecimentos científicos e, de alguma
forma, usá-los em favor do seu povo. Há também o resgate de sua história de vida na qual se
faz uma aliança entre a ciência e o conhecimento tradicional para obter um reconhecimento
de direitos, principalmente o direito aos territórios ocupados.

Os estudantes que buscam se matricular no IFMS relatam que a saída da aldeia ocorre
pelo direito ao ensino de qualidade disponibilizado, oferecendo oportunidade de uma melhor
formação para o ingresso nas universidades ou aquisição de uma formação técnica. Com
a implantação e interiorização dos Institutos Federais, ficou mais acessível para que os
estudantes indígenas pudessem optar (ou terem a opção) pela preferência de cursos técnicos.

Conforme Mülling (2018, p. 49), “Essa busca pela escolarização e tecnologia distingue-se
de um discurso pelo desenvolvimentismo, à medida que afirma o interesse em instrumentalizar-
se para manter as condições de autonomia de seus processos próprios de existência […]”. Por
essa razão, os indígenas não querem trocar ou mudar seus costumes, mas incluir a tecnologia
ocidental aos seus modos de sobrevivência, “incorporá-la como meio de expansão das
possibilidades de sobrevivência”. (Mülling, 2018, p. 49)

Embora as bases conceituais da Educação Profissional e Tecnológica do século XXI
tenham superado os limites do tecnicismo, exibindo um novo cenário como de formação
unilateral e politécnica como recurso para uma educação plural e cidadã, não podemos
esquecer que, no Brasil, as instituições escolares foram construídas sob um viés colonialista.
(Estevão, 2021)

Walsh (2005) expõe que, para ocorrer um embate nos estudantes e na
sociedade, a interculturalidade deve partir da própria experiência dos estudantes
com sua realidade sociocultural, incluindo-se os conflitos sociais e culturais que
sofrem. desenvolvendo conhecimentos das diversas identidades, assumindo

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compromisso de construir uma relação amigável com essas diversidades.
Pensando nessa realidade sociocultural em que os estudantes vivem e em

suas experiências dentro do campus, realizamos um questionário com o objetivo
de entendermos quais sujeitos mobilizadores para o ingresso no campus, a
escolha do curso, utiliza dos recursos que existem no IF, tanto financeiro quanto
pedagógico para seu desempenho escolar. Dos 27 estudantes “em curso”, dos
dois cursos de Ensino Médio Integrado - Edificações e Informática, apenas 9
aceitaram participar. Quando questionados sobre o motivo pelo qual escolheram
o IFMS, eles mencionam a qualidade de ensino, a melhor infraestrutura dentre as
escolas da região e sobre o sonho de estudar no IF. Observa-se que não foi uma
escolha feita aleatoriamente, buscaram a instituição porque acreditaram que
seria o melhor para eles em questão de qualidade do ensino, em busca de novos
aprendizados; não citam se para essa escolha houve influência dos pais ou de
colegas das comunidades que já tiveram experiência em estudar no IFMS.

Considerações finais

Considerando as dificuldades e desafios encontrados pelos estudantes
indígenas nos cursos de Ensino Médio Integrado de Edificações e Informática
do campus de Aquidauana do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul,
torna-se evidente que a implementação de uma educação a perspectiva da
interculturalidade crítica proposta por Walsh (2005) necessita estar alinhada ao
acompanhamento das políticas públicas de ação afirmativa para a superação das
desigualdades e a promoção da equidade.

Foram colhidos dados dos vinte e sete estudantes indígenas matriculados
no IFMS, campus Aquidauana, e consideradas as assertivas dos nove estudantes
que responderam ao questionário e destacaram a ausência de transporte,
questões relativas à moradia e à alimentação, como algumas das dificuldades
para acessarem e permanecerem no IFMS. Por tais razões, comumente não
conseguem participar das atividades que são oferecidas no contraturno,
relembrando que o campus do IFMS fica distante do centro de uma cidade na
qual não há transporte coletivo.

A problemática da moradia também se configura como fator determinante
para a permanência ou a evasão dos estudantes do campus, uma vez que esses

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estudantes se deslocam de suas comunidades e aldeias para a cidade, espaço
no qual passa a viver em condições por vezes precárias e distante do suporte de
famílias e amigos. Os estudantes indígenas que moram nas aldeias possuem um
ônibus que os trazem no período vespertino e, aqueles que moram na cidade, têm
transporte disponibilizado pela prefeitura, mas que circula apenas em um período.
Os estudantes matriculados no período da manhã vêm para a cidade morar com
parentes ou alugam quitinetes e, para isso, precisam arcar com as despesas de
aluguel, água, luz e outros gastos. Muitas vezes, assumem todas as despesas,
mesmo sem condições financeiras para isso, já que a família, comumente, não
possui recursos para mantê-los na cidade. Esse quadro não retrata a realidade
de todos os estudantes indígenas, mas sim, da maioria deles.

Foi possível identificar as terras indígenas das quais são oriundos os
estudantes indígenas, assim como os bairros onde moram nas cidades de
Aquidauana, Anastácio, Miranda e Nioaque. Embora saiam de suas aldeias para
estudarem, essa realidade nem sempre se concretiza, devido à falta de condições
financeiras para se manterem nas cidades e no IFMS.

Verificamos essas e outras dificuldades nos diálogos com os estudantes, o
que se torna empecilho para a permanência sua na instituição. Faz-se necessário
um acolhimento e acompanhamento mais próximo dos estudantes indígenas,
estabelecer políticas de acesso e de permanência deles na instituição, assim como
proporcionar condições (ainda que seja em forma de curso de aprimoramento) aos
funcionários que atendem esses estudantes, para que promovam adequadamente
ações de acompanhamento das políticas que permitam a efetiva permanência
desses estudantes no IFMS, campus de Aquidauana.

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280 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

QUALIDADE PARA QUEM? NEOLIBERALISMO E A CONSTRUÇÃO DA RETÓRICA SOBRE A
QUALIDADE DA EDUCAÇÃO BÁSICA

QUALITY FOR WHOM? NEOLIBERALISM AND THE CONSTRUCTION OF RHETORIC ON THE
QUALITY OF BASIC EDUCATION

Carmem Lúcia Sussel Mariano1

https://orcid.org/0000-0003-4301-0869
http://lattes.cnpq.br/6604877443132931


Aguinaldo Rodrigues Gomes2

https://orcid.org/0000-0002-2398-8088
http://lattes.cnpq.br/3408519048864585

Recebido em: 15 de janeiro de 2025.
Revisão final: 10 de março de 2025.

Aprovado em: 16 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22648

1  Doutora em Psicologia Social pela PUC/São Paulo. Professora na Universidade Federal de Ron-
donópolis no curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Pós-doutorado em
Estudos Culturais pela UFMS. É co-líder do grupo de pesquisa Infância, Juventude e Cultura Con-
temporânea (UFMT). E-mail: sussel@uol.com.br
2  Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul (UFMS). Docente do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Culturais (PPGcult)/UFMS) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal de Rondonópolis (PPGEdu/UFMT). E-mail: aguinaldorod@gmail.com

RESUMO: O artigo, a partir de levantamento
bibliográfico, problematiza a noção de qualidade
da educação que vem sendo amplamente
difundida nas reformas educacionais de caráter
neoliberal a partir da década de 1990. Conclui-
se que a bandeira da “educação de qualidade
para todos” foi uma das portas de entrada para
a emergência da racionalidade empresarial no
âmbito da educação pública e tem operado
para a destruição da educação básica em sua
dimensão pública e democrática.

Palavras-chave: reforma empresarial
da educação, empresariamento da educação,
neoliberalismo escolar, direito à educação.

ABSTRACT: The article, based on a
bibliographical survey, problematizes the notion
of educational quality that has been widely
disseminated in neoliberal educational reforms
since the 1990s. It concludes that the banner
of “quality education for all” was one of the
gateways to the emergence of entrepreneurial
rationality in public education and has operated
to destroy basic education in its public and
democratic dimension.

Key words: business reform of education,
businessization of education, discourses on the
quality of education, school neoliberalism, right
to education.

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Introdução

Neste artigo, discutimos o avanço das reformas educacionais neoliberais
a partir da década de 1990, que introduziram a qualidade da educação como
um argumento mobilizador para intervir nas escolas. A metodologia adotada
com base no estudo de Gomes e Monteiro (2023) é de caráter qualitativo e
bibliográfico, com ênfase na análise crítica da noção de qualidade da educação
em contextos influenciados pelo neoliberalismo. O levantamento foi conduzido
por meio de uma revisão de literatura, utilizando a plataforma Google Scholar, que
oferece acesso a uma ampla base de dados, incluindo periódicos acadêmicos,
teses, dissertações, conferências e outras fontes relevantes para o tema. A
seleção dos trabalhos seguiu critérios específicos de relevância, com o uso de
palavras-chave como “educação neoliberal na lógica do mercado” e “atendimento
educação neoliberal na lógica do mercado”. Inicialmente, essas palavras-chave
geraram muitos resultados, mas os autores restringiram a busca para identificar
as publicações mais pertinentes ao tema central do estudo, especialmente
aquelas que abordam a relação entre a educação neoliberal e a noção de
qualidade educacional. O critério de inclusão também levou em consideração a
relevância das publicações para o contexto brasileiro, descartando fontes que
não estivessem alinhadas com as problemáticas locais ou que estivessem em
idiomas distintos do português. Durante a análise, foi realizada uma abordagem
crítica, especialmente sobre os textos que discutem a “crise educacional” e as
soluções propostas dentro da lógica neoliberal.

É importante destacar que a mineração de dados, embora não seja um
processo trivial, foi uma habilidade fundamental no levantamento e análise dos
padrões encontrados nas publicações selecionadas. A mineração de dados
consiste na habilidade de identificar padrões válidos, novos, potencialmente
úteis e compreensíveis nos dados. Isso envolveu o uso de métodos estatísticos,
ferramentas de visualização e técnicas de inteligência artificial para identificar
tendências e padrões na literatura revisada.

Os autores identificaram um tripé discursivo recorrente na literatura
analisada, composto por: (a) a naturalização da lógica mercantil e empresarial na
política educacional, (b) a vinculação da qualidade da educação ao desempenho
dos estudantes em testes padronizados de larga escala, e (c) a defesa da
privatização da educação, com a proposição de parcerias público-privadas como

ARTIGOS

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soluções mais eficazes.
Testemunhamos o avanço de movimentos em torno de reformas educacionais

orientadas por políticas neoliberais, mais intensamente a partir da década de
1990, que vêm forjando um novo léxico para a abordagem das questões sociais e
que têm alocado na problemática da qualidade da educação um mote mobilizador
para intervir na escola (Mordente, 2023; Freitas, 2018; Gentili 2016; Silva, 2015;
Enguita, 2015). Bandeiras como a “educação de qualidade para todos”, “primeiro
o básico”, “direitos de aprendizagem” são empregadas por tais movimentos como
promessa de acesso de todas as crianças e jovens à cidadania e à igualdade social,
subsidiando, inclusive, as “bases nacionais comuns curriculares” que emergem
no interior de um movimento global de reforma da educação (Silva, 2023; Costa,
2020; Freitas, 2018, 2016, 2012; Costola; Borghi, 2018).

Afinal, quem discordaria que é preciso melhorar a qualidade da educação
básica? Quem não se mobilizaria na defesa de “educação de qualidade para todos”?
Quem divergiria que “os direitos da criança têm que vir primeiro”? Não se trata de
questionar que a qualidade da educação deve ser uma meta educacional, mas
sim buscar entender a partir de quais perspectivas e quais interesses emerge a
problemática da qualidade da educação.

Por exemplo, no cenário brasileiro, o modelo educacional da cidade de
Sobral, no Ceará, é amplamente considerado como um caso evidente de gestão
educacional e de qualidade de educação devido aos seus expressivos resultados
no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Cabe lembrar que o
prestígio angariado pelo “Modelo Sobral” rendeu a Camilo Santana, ex-governador
do Ceará, o posto de Ministro da Educação em 2023.

Segundo Giuliana Mordente (2023, p. 72), o “Modelo Sobral” é reconhecido
“pelas parcerias em suas políticas educacionais com organizações empresariais,
principalmente no que diz respeito à formação de professores e à produção de
materiais. O foco da educação sobralense se concentra em avaliações externas
e no treinamento para testes”. Tal modelo é visto com grande entusiasmo pelo
Banco Mundial, conforme expresso em matéria no Word Bank Blogs, de 2020,
sob o título: “Não há mágica: a fórmula para o sucesso do Ceará e de Sobral para
reduzir a pobreza de aprendizagem”3, a qual dissemina o “Modelo Sobral” como

3  https://blogs.worldbank.org/pt/education/nao-ha-magica-formula-para-o-sucesso-do-ceara-e-de-
-sobral-para-reduzir-pobreza-de

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uma “receita” óbvia para atingir uma educação de qualidade no país e no mundo
e que possuiu “um sistema robusto e confiável de monitoramento e avaliação”4.

O “Modelo Sobral” e a rede de forças que o sustentam, da qual o Banco
Mundial faz parte, fornecem pistas sobre um “fundo discursivo comum” (Lahire,
2005) composto por chavões reproduzidos pelos mais diversos setores, desde a
mídia, organismos internacionais, organizações não governamentais, academia,
empresários, famílias, governos, que apelam por uma “educação de qualidade para
todos”. Conforme sugere Lahire (2005), é necessário “desevidenciar” discursos
não problematizados e, neste artigo, a partir de levantamento bibliográfico,
analisamos a emergência de uma retórica específica sobre a problemática da
qualidade da educação básica e as mobilizações discursivo-ideológicas nela
envolvidas.

Para tanto, o artigo está organizado em três partes, além desta introdução.
Na primeira parte, são trazidas as mobilizações de sentido operadas em torno da
questão da qualidade da educação que buscaram impor a presença de valores e
práticas da lógica mercantil e empresarial no campo da política educacional. Na
segunda parte, é discutido sobre a difusão da noção de qualidade da educação
atrelada à mensuração e comparação de resultados educacionais que gera a
atribuição dos testes padronizados de larga escala como o principal indicador
de qualidade, além atuar para a responsabilização individual dos estudantes,
dos professores e da unidade escolar. Na terceira parte, é abordado sobre a
retórica da qualidade da educação como um dispositivo para a privatização da
educação, abrindo caminho para as parcerias com grupos empresariais e com
organizações do terceiro setor, induzindo ao afastamento do poder público da
gestão da educação.

4  Segundo Giuliana Mordente (2023, p. 72), “como o IDEB é considerado o maior índice de qualida-
de da educação pública, a manipulação de seus resultados e informações tem sido praticada de modo a
se obter vantagens políticas e eleitorais. Em 2015, a aprovação de Sobral correspondeu a reprovações
zero, o que seria algo impossível”.

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Neoliberalismo escolar e a emergência da retórica da qualidade na educação como um critério
mercantil

Para além da esfera econômica, política e jurídica, o processo de construção
da hegemonia do neoliberalismo se dá por uma série de estratégias culturais, de
produção e manipulação de sentidos na vida cotidiana, se configurando, como
uma racionalidade do capital transformada em lei social geral (Fisher, 2020;
Laval, 2019; Gentili, 2016). Tal racionalidade é uma forma de governabilidade
que atua em todas as esferas da vida social e diversas dimensões da vida são
reduzidas a valores mercantis e sujeitadas à lógica de valorização do capital,
responsabilidade individual e empreendedorismo, de modo que “a liberdade
individual e empresarial, a propriedade privada e a competição se apresentam
como princípios organizadores da sociedade”, produzindo uma “modulação
subjetiva” orientada para processos de individualização, busca pelo sucesso
individual, produtividade, competitividade e consumo (Mordente, 2023, p. 24).

O neoliberalismo, em sua pretensão hegemônica e totalizante, atua por meio
de vários dispositivos, sendo o plano discursivo, ou seja, a dimensão simbólica da
vida social, uma das estratégias para a produção e manutenção de uma dinâmica
cultural favorável ao capitalismo e seus valores. Por meio de estratégias de
construção simbólica, o que está em jogo é a naturalização do capitalismo como
a única realidade possível, processo que Mark Fisher (2020) nominou de “realismo
capitalista”, assentado no estabelecimento de categorias, noções e termos
próprios (Silva, 1994). Evidentemente, o neoliberalismo depende amplamente da
ideologia, aqui entendida na acepção crítica do termo, tal qual a conceituação de
John Thompson (2011), como o sentido a serviço da dominação.

No plano discursivo-ideológico o neoliberalismo vai atuando incisivamente
na dinâmica cultural e consegue naturalizar o deveria ser visto como contradição,
tal como a construção do consenso chave de que todas as instâncias e instituições
da vida humana devem ser tratadas como empresas, fenômeno que Mark Fisher
(2020, p. 34) nominou de ontologia empresarial: “ao longo dos últimos trinta anos,
o realismo capitalista implantou com sucesso uma ‘ontologia empresarial’ na
qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo saúde e educação,
deve ser administrado como uma empresa”. Foi se tornando consensual que
processos gerencialistas, próprios do mundo da produção e mercantilização,

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não só podem como devem ser aplicados ao mundo da educação. Não por acaso,
num movimento quase uníssono, assistimos a um conjunto de movimentações
político-pedagógicas, mais intensamente a partir dos anos 1990, orientadas por
organismos internacionais e bancos de financiamento, que apelam por reformas
no campo educacional cuja mobilização discursivo-ideológica busca impor
a presença de valores e práticas da lógica empresarial no campo da política
educacional.

Nesse movimento, tem sido identificada uma retórica específica produzida
pelo pensamento neoliberal para o campo educacional e para as “questões
sociais”, na qual são elaborados uma série de diagnósticos sobre a chamada crise
educacional, seguidos de propostas (cartilhas), para orientar uma densa reforma
do sistema escolar nas sociedades contemporâneas (Silva, 2015; Gentili, 2015;
Freitas, 2018. Laval, 2019; Santos; Nagase; Costa, 2022; Mordente, 2023).

Uma dessas retóricas foi erigida em torno da questão da qualidade da
educação
básica. Na visão neoliberal, o sistema público de ensino enfrentaria
uma profunda crise de eficiência, eficácia e produtividade, enquadrada como
decorrente do processo de expansão desordenada do sistema educacional
durante a segunda metade do século passado. O modo acelerado como ocorreu
expansão, sem uma distribuição eficiente dos serviços oferecidos, teria gerado
“fundamentalmente uma crise de qualidade decorrente da improdutividade que
caracteriza as práticas pedagógicas e a gestão administrativa da grande maioria
dos estabelecimentos escolares” (Gentili, 1996, p. 13, grifo nosso).

Dessa perspectiva, a baixa qualidade educacional seria decorrente de
uma crise gerencial, ou seja, da suposta ineficiência da escola somada à
incompetência dos professores, fazendo coro ao ideário neoliberal de que o
Estado é estruturalmente ineficiente. A partir deste diagnóstico, foi construído
um argumento retórico pelas tecnocracias neoliberais, conforme sintetizado por
Pablo Gentili (1996, p. 13):

[...] atualmente, inclusive nos países mais pobres, não faltam escolas, faltam escolas
melhores; não faltam professores, faltam professores mais qualificados; não faltam
recursos para financiar as políticas educacionais, ao contrário, falta uma melhor dis-
tribuição dos recursos existentes.

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Enfim, um discurso que desloca o olhar da questão do financiamento do ensino
público e apela para uma crise de qualidade da educação causada unicamente
pela má administração do sistema público, por uma incompetência gerencial,
cujo remédio, na visão neoliberal, seria a introdução no sistema educacional de
mecanismos que regulem a eficiência, a produtividade e a eficácia, ou seja, que
façam gestão na qualidade dos serviços educacionais. Afinal, nessa lógica, “se os
sistemas de Total Quality Control (TQC) têm demostrado um êxito comprovado no
mundo dos negócios, deverão produzir os mesmos efeitos produtivos no campo
educacional” (Gentili, 1996, p. 09, grifos no original).

É nesse enquadramento de crise educacional que, conforme aponta Enguita
(2015), a questão da qualidade da educação emerge como um mote, uma palavra
de ordem mobilizadora para pensar a escola, angariando uma centralidade, a
ponto de substituir a problemática da igualdade e da igualdade de oportunidades
que eram, até então, as principais bandeiras da área.

O conceito de qualidade que passa a então ser adotado no campo educacional
veio emprestado, transposto do mundo da produção empresarial. Para evidenciar
a quão disparatada é essa transposição, Gentili (2015) sistematizou as dimensões
que definem os critérios de qualidade no mundo da produção de mercadorias, as
quais seguem descritas de modo sintético:

a) a qualidade é um tema clássico do mundo empresarial, com destaque para a
noção tayloriana de “inspeção”, que prenunciava o que posteriormente seria de-
nominado “controle de qualidade”;
b) a qualidade emerge como uma nova estratégia competitiva ante um mercado
cada vez mais diversificado e diferenciado;
c) a qualidade é um elemento que contribui para otimizar a acumulação de capi-
tal, compondo a trilogia qualidade-produtividade-rentabilidade;
d) a busca da qualidade supõe uma organização do processo produtivo que con-
duz a um tipo específico de controle, pautado no disciplinamento dos operários;
e) a qualidade é mensurável e tem um custo, ou seja, para que a qualidade seja
reconhecida no mundo dos negócios, esta deve ser mensurável e quantificável,
sendo as normas internacionais de qualidade o exemplo da função simbólica que

ARTIGOS

287 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

os prêmios de qualidade vêm, de modo crescente, sendo difundidos.
Atendendo a uma lógica de submissão à ontologia empresarial, estas

dimensões que demarcam os critérios de qualidade no mundo dos negócios
foram transpostas, sem mediações, para a área educacional, assumindo
majoritariamente os conteúdos que este debate possui no campo produtivo-
empresarial (Gentili, 2015).

Numa dimensão política, Gentili assinala que esta transposição foi possível
por duas questões: a) na América Latina o discurso da qualidade no campo
educacional emergiu, no final da década de 1980, como contraposição ao
discurso da democratização do ensino; b) esse silenciamento do discurso da
democratização no campo educacional abriu caminho para a lógica produtivo-
eficientista que foram tomando os discursos sobre qualidade da educação.
Portanto, no âmbito das relações de poder e dominação, esta nova retórica sobre
a qualidade da educação não se reduz a uma disputa terminológica, estando a
serviço de uma ordem conservadora das desigualdades sociais (Gentili, 2015).
Desse modo,

[...] para ser possível a mercantilização do conceito de qualidade foi necessário – pri-
meiro – eliminar da agenda política as demandas democratizadoras que em seguida
aos períodos pós-ditatoriais começaram a generalizar-se na região [...]. Uma vez “eli-
minado” o problema da democratização, pode instalar-se o discurso hegemônico da
qualidade. Este encontrou um cenário arrasado onde seu conteúdo antidemocrático,
implícito em sua concepção mercantil, não sofreu maiores resistências. A retórica da
qualidade se impôs rapidamente como senso comum nas burocracias, entre os inte-
lectuais e – mais dramaticamente – em um número nada desprezível daqueles que so-
freram e sofrem as consequências do êxito destas políticas conservadoras: os profes-
sores, os pais e os alunos (Gentili, 2015, p. 116, grifo no original).

Enguita (2015, p. 98) salienta que a problemática da qualidade sempre foi
uma preocupação presente no cenário da educação e do ensino, mas nunca
antes havia atingido este patamar de centralidade. Inicialmente, explica o
autor, o conceito de qualidade na educação estava atrelado tão somente com
o aporte da dotação em recursos humanos e materiais dos sistemas escolares
ou suas partes componentes: “proporção do produto interno bruto ou do gasto
público dedicado à educação, custo por aluno, número de alunos por professor,
duração da formação ou nível salarial dos professores”. Portanto, esse enfoque
correspondia a um modo de medir a qualidade de uma política pública tomando
por critério que “mais custo ou mais recursos, materiais ou humanos, por usuários

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era igual a maior qualidade”. Posteriormente, houve um reenquadramento em
que o foco da qualidade se deslocou dos recursos destinados para a “eficácia do
processo de conseguir o máximo resultado com o mínimo custo”. Essa versão
de qualidade já não é pertinente à logica dos serviços públicos, mas sim à da
produção empresarial privada. Mais recentemente, o conceito de qualidade passa
ser associado também à lógica da competição no mercado (Enguita, 2015, p. 98).

Hoje em dia [a qualidade] se identifica antes com os resultados obtidos pelos escolares,
qualquer que seja a forma de medi-los: taxas de retenção, taxas de promoção, egressos
dos cursos superiores, comparações internacionais do rendimento escolar, etc. Esta é
a lógica da competição no mercado (Enguita, 2015, p. 98).

Portanto, conforme salienta Gentili (2015), foi construída uma retórica
específica em torno da problemática da qualidade na educação, com caráter
mercantil, passando a legitimar o discurso de que é necessário ajustar a educação
à lógica do mercado, que pressupõe três premissas:

a. que a educação (nas atuais condições) não responde às demandas e às exi-
gências do mercado;

b. que a educação (em condições ideais de desenvolvimento) deve responder e
ajustar-se a elas;

c. que certos instrumentos (científicos) de medição nos permitem indagar acer-
ca do grau de ajuste educação-mercado e propor os mecanismos corretivos
apropriados (Gentili, 2015, p. 156).

O autor assinala que a premissa “c” remete à presunção de que o caráter
mensurável da qualidade é o indicador que pode determinar o “grau de eficiência”
do sistema educacional, sendo a sua dimensão de valor relacionada à capacidade
de atender às demandas do mercado. Desse modo,

A noção de eficiência – tomada aqui, sem nuances, do campo produtivo – remete a dois
conceitos que estão associados: competitividade e êxito. Em outras palavras: um sis-
tema educacional X é “eficiente” se é “competitivo” e se garante o alcance de uma série
de “êxitos” de caráter mensurável (Gentili, 2015, p. 156, grifos no original).

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Assim, a educação se subordina à ideia de “rentabilidade”, pré-requisito
básico que define a natureza daquilo que é fabricado para a troca mercadológica:

Não se deve estranhar então que – no contexto de tais interpretações – toda referência
à educação se tinja de um nada dissimulado valor mercantil, estabelecendo-se uma
correlação direta entre este valor e a noção de qualidade, isto é, a um maior valor
mercantil, maior qualidade do “produto educação”.
Em outras palavras, quanto maior
é a capacidade de intercâmbio que o “produto educação” possuir no mercado, mais
se faz merecedor do qualificativo “produto de qualidade”. A partir da perspectiva
desta nova retórica, somente é de qualidade aquele produto educativo que possui,
como precondição, a capacidade de adaptar-se às demandas do mercado, atuando
competitivamente neste (Gentili, 2015, p. 157, grifos no original).

Portanto, Gentili (2015, p. 158) evidencia a pretensão política que ancora a
retórica da qualidade no campo educacional, qual seja, a de “subordinar a educação
ao mercado, convertendo-a em mais um instrumento da complexa maquinaria de
dualização e polarização social que caracteriza o projeto neoconservador”. Para
sustentar este argumento, o autor retoma as asserções de Enguita:

A insistência na “excelência” e na “qualidade” simboliza o passo de preocupar-se com
a educação da maioria a fazê-lo com a educação da minoria. A ideia de “excelência”
trata de mobilizar a competitividade entre as escolas e entre os alunos, organizando a
educação como um campo de provas cujo objetivo principal é a seleção dos melhores
[...]. A ideia de busca da excelência parte, explícita ou implicitamente, da aceitação
da imagem de uma sociedade dual. Para a maioria, para os que ocuparão os postos de
baixa qualificação, sem espaço para a iniciativa nem capacidade de decisão, qualquer
educação serve. Para a minoria, para os que se sobressaem [...] para os que tomarão
as decisões pelos demais, deve haver uma educação também “excelente” (Enguita,
1990, apud Gentili, 2015, p. 158-159, grifos no original).


É nesse conjunto de argumentações que Gentili (2015, p. 159) sustenta que
o abandono dos discursos sobre a democratização no campo da educação e a
emergência da retórica da qualidade na educação são duas faces que revelam a
imposição de uma lógica de subordinação mercantil na educação pública, que é,
também, um projeto político conservador, de manutenção do status quo desigual,
e “somente neste contexto é possível compreender o discurso da qualidade como
nova retórica conservadora no campo educacional”.

Portanto, o discurso da qualidade foi utilizado para servir a interesses do
mercado, usando o campo educacional de modo instrumental. A participação
ativa do empresariado no bojo das esferas política e educacional do Brasil,

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sempre mirando seus interesses mais imediatos, foi apreendida na análise de
Vânia Andrade e Maria Carolina Motta sobre o empresariamento da educação
(2022)5. Assim, na virada para os anos 1990, Collor e mais vigorosamente
Fernando Henrique Cardoso (1994), empenharam esforços em alinhar o Brasil aos
padrões neoliberais privilegiando a abertura de mercado com massiva entrada
de capital estrangeiro, além de “privatizações e desnacionalizações de empresas
importantes, flexibilizações, desregulamentações, conservação do superávit
primário, canonização do pagamento dos juros da dívida pública, flutuação
cambial, e outros” (Andrade; Motta, 2022, p.10). Nesse cenário,

Garantir qualidade da educação para todos, ou a oportunidade de aumentar as chances
de vender a força de trabalho no mercado, de modo eficiente e produtivo, perpassaria
conferir ao alunado as competências estritamente requeridas pelas ocupações dis-
poníveis. Nesse sentido, as modalidades supracitadas seriam economicamente mais
produtivas, pois ofereceriam uma formação menos dispendiosa e, ao mesmo tempo,
suficiente para formar forças de trabalho vendáveis naquela realidade. Como discorre
Leher (2010), inúmeras foram as medidas implementadas pelo MEC de FHC que frontal-
mente objetivavam a garantia da equidade e da qualidade educacional via empregabili-
dade e, dorsalmente, sob a égide da lógica do Banco Mundial, formavam uma educação
minimalista, interessada, particularista e mercadorizada (Andrade, 2020, p. 219, grifo
nosso).

Freitas (2014) elucida que, na medida em que novas formas de organização
do trabalho produtivo dependem da produção de uma força laborativa que
detenha apenas os conhecimentos básicos para serem lançados no mercado,
para aumentar a oferta de mão obra “qualificada” e frear o aumento da média
salarial: “sem educação ‘de qualidade’ não se amplia o número de formandos e
com poucos formandos o salário médio sobe ao invés de descer. Lei da oferta e
procura”. E a educação dita de qualidade para o empresariado se atém a: “saber,
ler, escrever, contar e algumas competências mais que estão sendo esperadas
na porta da fábrica, medidas em um teste padronizado” (Freitas, 2014, p. 50).

É neste quadro que o discurso da educação de qualidade vem acompanhado
do discurso do direito à aprendizagem, ambos abraçados por organizações do
terceiro setor mobilizadas na “causa da infância” (tais como Instituto Airton Sena,

5  Andrade e Motta (2022) salientam que, no contexto brasileiro, a classe dominante disputa um pro-
jeto pedagógico hegemônico desde 1930, defendendo uma educação pautada pelas necessidades do
mercado industrial. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), criada na década de 1930, explici-
tava a movimentação de parcela da burguesia industrial no sentido de planejar suas diretrizes, a fim de
“formar os homens que o Brasil necessita” (Rodrigues, 1998; 2007 citado por Andrade; Motta, 2022).

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291 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Fundação Lemann, Fundação Itaú Social, Instituto Natura, etc), organismos
multilaterais, Banco Mundial, movimento Todos pela Educação, cujo modus
operandi
é sintetizado por Freitas (2014, p. 53):

[...] provocam o sentimento de que a educação está em crise e que o direito à
aprendizagem está em jogo como forma de sensibilizar a população, através da mídia,
para suas soluções miraculosas; centram a concepção da qualidade da educação nas
notas altas, estabelecendo uma identidade entre notas altas (às vezes em um ou duas
disciplinas que mais lhe interessam) e qualidade da educação, reduzem a formação da
juventude à ideia de direito à aprendizagem, estreitando a concepção de educação e
reduzindo-a à aprendizagem no interior da escola.

Portanto, a ênfase é colocada no “direito de aprender” e não no “direito de
ser educado” (Freitas, 2018), o qual é muito mais amplo, e o tão proclamado e
defendido direito à educação é transmutado em direito à aprendizagem, que se
limita ao básico: leitura e matemática (Freitas, 2014).

Assim, fica explícito que a reivindicada qualidade da educação é, na
verdade, “controle de qualidade”, entendida como avaliação da aprendizagem de
áreas consideradas básicas. Neste particular, cabe destacar o contexto sócio-
histórico trazido por Pina (2016) sobre a emergência das proposições em torno
do “direito à aprendizagem”, que partiu da atuação de organismos internacionais
na década de 1990, no cenário dos ajustes estruturais propostos pelo Banco
Mundial, e passaram a priorizar a atuação na educação escolar. Assim, um marco
para a reforma da educação escolar das massas ocorreu em 1990, quando na
Conferência Mundial sobre Educação para Todos, ocorrida em Jomtien, o Banco
Mundial, juntamente com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), divulgaram a
“nova agenda para a educação básica”. Nesse evento, foi aprovada a Declaração
Mundial sobre Educação para Todos e, conforme Pina (2016, p. 130), trata-se de
um “documento que aprofunda as intenções, por parte de seus financiadores e
planejadores, de implementar uma contrarreforma no campo educacional sobre
as bases de um novo projeto de formação humana”.

Na análise do autor, três elementos desse documento formaram a base para
a contrarreforma da educação escolar no Brasil. O primeiro deles diz respeito
à “defesa da satisfação das ‘necessidades básicas de aprendizagem’, que visa
reduzir a educação básica a uma preparação para aqueles que vão realizar, em

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sua vida, apenas o ‘trabalho simples’ (MELO, 2003)” (Pina, 2016, p. 130).
O segundo elemento se atém à ênfase em avaliar os resultados da política

educacional para o controle da “qualidade”. Para tanto, através do lema
“concentrar a atenção na aprendizagem”, a UNESCO passa a defender “a ênfase
na aquisição e nos ‘resultados efetivos’ da aprendizagem, razão pela qual sugere
que os programas educacionais devem definir os níveis de conhecimento a serem
alcançados e, ainda, criar sistemas de avaliação para aferir o desempenho dos
estudantes” (Pina, 2016, p. 131, destaque no original).

O terceiro elemento em relação ao teor da Declaração corresponde ao
enfoque para “fortalecer alianças”. Segundo o autor,

Tal como propõe o neoliberalismo da terceira via, a UNESCO considera que o provimento
da educação básica é uma tarefa que transcende a capacidade do aparelho de Estado
e, portanto, deveria ser oferecida por meio das chamadas “parcerias”. Daí o incentivo
à participação de ONGs, organismos empresariais, famílias, comunidades, dentre
outros atores que deveriam contribuir para a construção de uma suposta “educação de
qualidade para todos” (Pina, 2016, p. 131, destaques no original).

Portanto, com a participação de organismos multilaterais, uma retórica
específica sobre a qualidade da educação básica foi construída, com caráter
mercantil, reduzida à ideia de aprendizagem de disciplinas básicas, atrelada
à mensuração de resultados por meio de testes de larga escala (controle de
qualidade) e que só poderia ser alcançada por meio de parcerias.

A noção de qualidade da educação atrelada ao desempenho nos testes padronizados de larga
escala

As provas padronizadas para medir o desempenho cognitivo dos estudantes
são vistas com um dos métodos mais confiáveis para o “controle de qualidade” da
educação ofertada pelas escolas, ou seja, é por meio das avaliações de larga escala,
que se poderia aferir o grau da qualidade ofertada por uma instituição escolar e
pelo sistema escolar, perspectiva que é impulsionada por agências internacionais
como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
organismo internacional que centraliza o controle das políticas educacionais
no mundo, com o apoio da UNESCO, de bancos de financiamento, tal como o
Banco Mundial, de fundações e de interesses empresariais. As avaliações do

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293 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA)6, controlado pela
OCDE, são pautadas em indicadores sobre os sistemas educacionais, avaliando
o desempenho dos estudantes nas “disciplinas básicas” de leitura, matemática
e ciências (Freitas, 2018; Mordente, 2023). Desse modo, “essa agência submete
governos do mundo inteiro a partir de seus próprios instrumentos e o ‘padrão
PISA’ torna-se a referência de educação de ‘qualidade’ para as políticas nacionais
(Freitas, 2014a)” (Mordente, 2023, p. 76).

Nessa esteira, no âmbito das políticas federais, é notória a ênfase nas
avaliações de larga escala, resultando na propagação dos sistemas de avaliação
externa, e a variedade de programas e testes dos quais o Brasil participa além do
PISA: Prova Brasil e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM)7 (Oliveira, 2015, p. 635). Para além das instâncias governamentais,
já se consolidou no imaginário social que resultados elevados dos estudantes
nessas avaliações seria o indicador inequívoco de uma educação de qualidade. O
IDEB tem sido largamente empregado como o principal parâmetro de “qualidade”
da educação ofertada pelos municípios e escolas.

No plano discursivo, dados numéricos e pesquisas baseadas em evidências
de resultados geralmente são apresentados como argumentos incontestáveis
e suficientes para a tomada de decisões, facilitando que as discussões na área
educacional passassem a ser focalizadas “quase que quase exclusivamente na
mensuração e na comparação de resultados educacionais” (Biesta, 2012, p. 808).
A mídia geralmente é ávida para utilizar dados numéricos, especialmente cifras
bombásticas e dados de ranqueamento, com o intuito de concitar a atenção da
sociedade para a gravidade ou urgência de uma questão. Assim, dados do IDEB
ou a posição do Brasil no ranking de avaliação do Pisa são difundidos na mídia
como se fossem indicadores inequívocos da qualidade da educação ofertada
pelas escolas públicas.

Dalila Oliveira (2015, p. 636), ao analisar o modelo da Nova Gestão Pública
(NPG) que vem sendo adotado na gestão pública brasileira, sobretudo a partir dos
anos 1990, assinala que “a avaliação da aprendizagem, de políticas, programas e
ações tem sido defendida pela NPG como elemento central para a promoção e

6  Programme for International Student Assessment.
7  Para o Ensino Superior, tem o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) que inte-
gra o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES).

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294 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

garantia da educação de qualidade”, alocando na avaliação um de seus principais
mecanismos de regulação que, em tese, seria capaz de monitorar a pretendida
eficiência da educação, tomada como sinônimo de qualidade. Para a autora, essa
lógica “eficientista” de mensuração pautada nos sistemas de avaliação em larga
escala, elaborados por especialistas exteriores ao contexto escolar, pautados na
“indiscutível” racionalidade administrativa, acaba colocando “a técnica no lugar
da política e a eficiência no lugar da ampliação do bem-estar como um direito”,
assim como “esses governos miram o melhor desempenho, baseado no mérito
alcançado a partir de suposta igualdade de condições, como critério de justiça”
(Oliveira, 2015, p. 641-642).

No modelo da NPG, o argumento utilizado é o de que a avaliação é necessária
para se ter um indicador de qualidade de ensino que pudesse ser “apropriado
pela sociedade, a fim de permitir a mobilização dos diferentes agentes escolares
para que as práticas sejam ajustadas com o objetivo de melhorar os resultados”,
o que redunda em políticas de responsabilização que, por seu turno, “resultam
em grande irresponsabilidade social, pois são incapazes de prever os riscos que
impõem as gerações que se escolarizam e insensíveis com os que não conseguem
responder aos critérios estabelecidos” (Oliveira, 2015, p. 640-641).

Essa noção de qualidade atrelada aos testes padronizados em larga escala
tem efeitos nefastos sobre a dinâmica educacional, pois gera uma produção de
processos de responsabilização individual dos estudantes, dos professores e da
unidade escolar ante os resultados das avaliações de larga escala, obnubilando
os aspectos mais amplos e estruturais que influenciam o desempenho dos
estudantes (Mordente, 2023; Oliveira, 2015; Freitas, 2014), ou seja, “não leva em
consideração as desigualdades internas ao sistema que é muitas vezes resultante
de outras variáveis que não são escolares [...] o que resulta numa política injusta
com os mais necessitados” (Oliveira, 2015, p. 641). Assim, produz um cenário em
que

[...] causas sociais são camufladas em causas escolares via avaliações de larga esca-
la baseadas em testes. A sociedade menos avisada, pelo menos a princípio, acredita.
Há quem proponha que placas com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) devem ser levantadas nas portas das escolas para denunciar a falta de qualidade
e a identificação dos culpados: os professores (Freitas, 2014, p. 54).

Vale lembrar ainda que no artigo “Qualidade Negociada: Avaliação e Contra-
Regulação na Escola Pública”
, Luiz Carlos de Freitas (2005) apresenta o conceito de

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295 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

“qualidade negociada”, originado do estudo de Anna Bondioli (2004), que defende
uma abordagem participativa e processual para definir a qualidade educacional.
De acordo com Freitas, a qualidade não deve ser vista como um valor absoluto
ou imposto de forma verticalizada, como é comum nas políticas neoliberais. Em
vez disso, ela é um processo de negociação entre os diversos atores envolvidos
na educação (escolas, gestores e comunidade), buscando consenso sobre os
valores e objetivos da rede educativa.

Os indicadores de qualidade, para Bondioli e Freitas, não são normas
externas, mas sim construções sociais compartilhadas pelos participantes,
que refletem as realidades e as necessidades locais das escolas. O projeto
pedagógico, dentro dessa perspectiva, é entendido como um “pacto” que envolve
compromissos mútuos, sendo responsabilidade tanto da escola quanto dos
gestores públicos. Assim, a qualidade negociada é vista como uma construção
local que leva em consideração o contexto específico de cada escola, sem
renunciar à responsabilidade coletiva e das condições impostas pelas políticas
públicas centrais.

Essa responsabilização, decorrente do fenômeno de accountability, gera
inúmeras pressões sobre o sistema escolar, tais como descritas por Freitas
(2014): estreitamento curricular; competição entre profissionais; pressão sobre
o desempenho dos alunos e preparação para os testes; fraudes; aumento da
segregação socioeconômica no território e dentro da escola; precarização da
formação do professor; destruição moral do professor e do aluno.

Nessa esteira, na medida em que a elevação da nota da escola nas avaliações
de larga escala foi estabelecida como indicador de qualidade, temos uma
ocultação do debate sobre as finalidades educativas e, “em seu lugar, o aumento
das pontuações nos testes tornou-se um fim em si mesmo” (Emery, 2005, citado
por Freitas, 2018, p. 82). Biesta (2012, p. 822) ao apresentar as três principais
funções da educação – qualificação, socialização e subjetivação – alerta que
“questões sobre os objetivos e fins da educação parecem ter desaparecido do
nosso horizonte” e, para não corrermos o risco de as estatísticas e os rankings
tomarem decisões por nós sobre o que é uma boa educação, é fundamental
perguntar: para que e para quem serve a educação? Isto porque o julgamento do
que é educacionalmente desejável é uma questão de valores e “em sociedades
democráticas, deveria haver uma discussão constante sobre os propósitos da
educação” (Biesta, 2012, p. 817). 

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296 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

A retórica da qualidade como dispositivo para a privatização da educação

A lógica eficientista e mercantil da retórica sobre qualidade da educação é
sustentada também no discurso de que a inciativa privada seria mais eficiente
para gerar melhores resultados com diminuição de gastos. A perspectiva do Banco
Mundial de que para o enfrentamento da problemática da qualidade da educação
básica “caberia aos empresários ‘auxiliar’ as escolas e a aparelhagem estatal de
modo que pudessem implementar mudanças para ‘melhorar’ seus resultados
com acompanhamento de uma redução de custos”, foi difundida, desde o início
da década de 1990, pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social (IE) (Pina, 2016, p. 153).

Na medida em que o próprio “modelo empresarial escolar tem se apresentado
como a grande referência a ser almejada” (Mordente, 2023, p. 36), em nome de
uma maior qualidade da educação com redução de custos, o que vemos é uma
vertiginosa ampliação da presença do setor privado, a partir de meados dos anos
1990, via incidência de organizações, conglomerados e empresas privadas que
atuam na educação pública por meio de uma variedade de serviços, que inclui
sistemas de ensino, confecção e comercialização de apostilas, livros didáticos,
plataformas de ensino à distância, formações docente, preparação para os testes
padronizados, etc. (Adrião, 2022; 2018; Andrade; Motta, 2022; Silveira; Adrião,
2023; Mordente, 2023). Assim, trata-se de uma “privatização por dentro” numa
lógica que envolve processos pelos quais a educação pública brasileira, entendida
como aquela financiada e gerida pelo poder público, tem sido subordinada formal
e concretamente aos interesses do setor privado lucrativo ou não (Adrião, 2022),
a partir do estabelecimento de “parcerias”:

Em função da diversidade dos grupos privados, que atuam e incidem sobre a esfera da
educação pública e privada, e de seus interesses particulares ou estratégicos, a priva-
tização da educação básica não se apresenta de uma única forma. Manifesta-se via o
estabelecimento de “parcerias público-privadas”, via a transferência da gestão educa-
tiva para organizações privadas, a contratação de assessorias e similares, o aumento
da oferta educativa por escolas privadas ou ainda pela centralização da produção de
insumos e orientações curriculares em corporações ou organizações privadas (Adrião,
2022, p. 70, grifo no original).

Considerando a conjuntura global de indução da educação para o campo

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297 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

dos negócios, a partir de um mapeamento da revisão da literatura nacional e
internacional sobre a privatização da educação, Thereza Adrião (2018, p. 10)
identificou que as estratégias de privatização da educação obrigatória “ancoram-
se no subsídio público, de modo que parcelas cada vez maiores desses fundos
são transferidas para diferentes segmentos privados”. Ou seja, a retórica sobre
a qualidade da educação induz ao afastamento do governo da gestão educação,
mas não do seu financiamento (Freitas, 2014).

O quadro abaixo sintetiza as formas de privatização da educação identificadas
nas produções mapeadas por Adrião (2018, 2022) as quais foram tipificadas em
três dimensões da política educativa:

a) pelo aprofundamento da privatização da oferta educacional, por meio da
ampliação de políticas de escolha e formas de subsídio público a provedores
privados;

b) pela transferência da gestão educação pública para o setor privado,
corporativo ou não;

c) pela transferência da elaboração e operacionalização de currículos e
insumos curriculares para corporações privadas ou setores não lucrativos.

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298 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Quadro 1 — Matriz das dimensões e formas recentes da privatização da Educação Básica a partir de
mapeamento da literatura - 1990-2014

DA OFERTA EDUCACIO-
NAL

DA GESTÃO DA EDUCAÇÃO
PÚBLICA DO CURRÍCULO

Financiamento público a
organizações privadas:
Subsídio à oferta por meio de
Convênios/contratos/termos
de parcerias entre governos e
organizações privadas;

Subsídio à demanda por meio
de incentivos fiscais

Oferta privada:
Escolas privadas com fins de
lucro;

Tutorias;
Aulas particulares

Incentivos à escolha
parental
(subsídio
à oferta)
Escolas privadas conveniadas
ou sob contrato custeadas por
aluno matriculado com fundos
públicos (Charter school);
Bolsas de estudo/ Voucher/
créditos educativos;
Educação domiciliar.

Privatização da gestão
escolar:
Transferência da gestão
escolar para Organizações
com fins de lucro;
Transferência da gestão
escolar para Organizações
sem fins de lucro;
Transferência da gestão
escolar para cooperativas de
trabalhadores e de pais

Privatização da gestão
educacional pública:

Transferência
da gestão do sistema
educacional para
organizações lucrativas por
meio de PPPs;
Transferência da gestão
do sistema educacional
para organizações sem fins
de lucro.

Compra ou adoção
pelo poder público
de desenhos
curriculares
elaborados pelo
setor privado;

Compra ou adoção
pelo poder público
de tecnologias
educacionais
e
demais insumos
curriculares
desenvolvidos pelo
setor privado;

Compra ou adoção
pelo poder público de
Sistemas privados de
ensino
(SPE).

Fonte: Adrião (2018, p. 11).


A pesquisadora assinala que é na dimensão do currículo que a atuação
de corporações e organizações privadas a elas associadas se apresenta
mais incisivamente. Esta dimensão, “se refere à transferência para o setor
privado, lucrativo ou não lucrativo, da responsabilidade sobre a elaboração
e implementação dos currículos escolares e das ferramentas e insumos
necessários para sua realização” (2022, p. 95). Assim, por meio da construção
de uma imagem autorefenciada de qualidade, corporações e organizações
privadas comercializam “sistemas privados de ensino, plataformas e conteúdos
digitais, vendendo ou oferecendo assessorias concebidas por grupos privados,
[...] concentraram a produção e distribuição insumos curriculares e disputam
os fundos públicos” (Silveira; Adrião, 2023, p. 153). Ante este cenário, Adrião
(2018, p. 20) alerta que a gravidade disso reside no fato que estamos diante “da

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transferência para o setor privado da definição do que ensinar, do como ensinar e
do quando ensinar, além dos processos de verificação da aprendizagem, ou seja,
da definição dos desenhos curriculares”.

Dentre os vários tipos de organizações privadas que logram ter incidência
no currículo, Adrião chama a atenção para o caso da atuação da Fundação
Lemann:

Destaque para o crescimento da incidência de organizações privadas como a Funda-
ção Lemann (FL), por meio de distintos programas de assessoramento a redes públi-
cas visando mudanças na gestão e nos currículos adotados. Consideramos seu mo-
dus operandi
que associa grande capilaridade junto às redes públicas - por meio da
oferta de assessorias, oferta de plataformas, conteúdos digitais e variados insumos
curriculares; pagamentos de bolsas etc.- paralelamente a investimentos por parte do
segmento empresarial do Grupo Lemann em startups e no mercado de escolas priva-
das propriamente dito como prática que mais se aproxima do perfil dos filantropos de
risco/ filantrocapitalistas (Adrião, 2022, p. 107, grifos no original).

Portanto, a retórica da qualidade da educação tem direcionado e subordinado
a educação básica brasileira a interesses do setor privado, em especial do
corporativo ou de segmentos a este associado (Adrião, 2022).

Ortega e Militão (2020), também, criticam a intervenção privada nas escolas,
intensificada a partir do golpe de 2016 e a falsa ideia de “liberdade de escolha”, que
visa flexibilizar o currículo do ensino médio. Eles argumentam que, na prática, essa
liberdade é limitada, uma vez que as opções oferecidas são restritas e voltadas
para a formação voltada ao mercado de trabalho. Isso precariza a educação e
cria uma geração de trabalhadores com poucas perspectivas de ascensão social
e profissional. Assim, a reforma do ensino médio, ao priorizar a eficiência e a
competitividade, compromete a qualidade e a equidade educacional.

Considerações finais

A partir da literatura consultada, identificamos uma mobilização discursivo-
ideológica do campo neoliberal para conferir um determinado enquadramento
sobre a “crise educacional” e as respectivas “soluções”, fazendo emergir uma
retórica específica sobre a problemática da qualidade da educação que se assenta
em um tripé discursivo: a naturalização da presença de valores e práticas da
lógica mercantil e empresarial no campo da política educacional; a naturalização
da noção de qualidade da educação atrelada ao desempenho de estudantes em

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testes padronizados de larga escala, gerando processos de responsabilização
individual; a naturalização de que a inciativa privada seria mais eficiente para
gerar melhores resultados com diminuição de gastos, dando relevo as iniciativas
de parcerias, induzindo ao afastamento do poder público da gestão da educação
e abrindo campo para processos de privatização da educação. Portanto, a
bandeira da “educação de qualidade para todos” foi uma das portas de entrada
para a emergência, a partir da década de 1990, da racionalidade empresarial e
mercantil no âmbito da educação pública, resultando em uma nova retórica
conservadora do status quo no campo educacional.

A retórica conservadora disseminada na construção da problemática da
qualidade da educação além de possibilitar que o conceito de qualidade fosse
transposto do universo mercantil para o campo educacional, a fim de atender aos
interesses da produção de mão de obra, também abriu caminho para o crescimento
do empresariado educacional que passou a oferecer produtos, serviços e sua
“expertise” para “salvar” a educação brasileira. Resta notório que todo o empenho
discursivo na construção da problemática da qualidade da educação resulta na
operação em que o empresariado e suas forças aliadas delinearam um problema
social para o qual eles mesmos se apresentam como provedores da solução.

A partir dos argumentos de MEN BENATTI, KAZUKO TERUYA E FRANCISCO
(2023), podemos observar os impactos negativos da educação sob a ótica neoliberal
e capitalista. Pedagogicamente, destacam que a fragmentação do conhecimento
e a ênfase em informações desarticuladas contribuem para a massificação da
ignorância, afastando a educação das realidades sociais e históricas essenciais
ao desenvolvimento humano. Ontologicamente, a educação neoliberal apaga a
história e humanidade dos indivíduos, reforçando a ideia de que a pobreza e as
desigualdades são culpa pessoal, sem reconhecer as causas estruturais que as
geram. No plano econômico, essa educação reforça a exploração capitalista ao
adotar o discurso meritocrático, que ignora as desigualdades e perpetua uma
sociedade com “vencedores” e “perdedores”, mantendo o sistema intacto. Assim,
ao invés de emancipar, a educação acaba mantendo o status quo de desigualdade
e exploração.

O discurso sobre “educação de qualidade” defendido por organismos
internacionais, bancos de financiamento, organizações não governamentais,
empresários, mídia, etc, é apresentado como uma bandeira para garantir o
mínimo, na defesa da primazia do direito de toda criança ter acesso ao “básico” e

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de assegurar os “direitos de aprendizagem”. Entretanto, tal discurso mostrou-se
uma armadilha discursiva ideológica, pois os sentidos mobilizados têm servido
para transpor a educação da esfera dos direitos sociais para a esfera do mercado,
transformando a educação em um campo de negócios. Ora, o que temos, de fato, é
destruição da educação básica em sua dimensão pública e democrática. Ou seja,
trata-se de um discurso que serve para deteriorar o direito humano à educação.

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CADERNO ESPECIAL

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QUEM TEM MEDO DE MADONNA?

WHO’S AFRAID OF MADONNA?

Antonio Ricardo Calori de Lion1

https://orcid.org/0000-0001-6746-2240
http://lattes.cnpq.br/8651248987276573

Recebido em: 08 de março de 2025.
Revisão final: 15 de março de 2025.

Aprovado em: 16 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22948

1  Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) - Câmpus de Rondo-
nópolis. Mestre e Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Professor da rede básica da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEDUC/SP).
É membro do LEDLin - Laboratório de Estudos em Diferenças e Linguagens (UFMS/Aquidauana).
E-mail: antonio.lion@unesp.br

RESUMO: Com o espetáculo The Celebration
Tour, Madonna levou para a praia de Copacabana um
espetáculo que transcendeu o mero entretenimento.
O seu show abordava sua carreira e vida, em
retrospecto, contendo muitos temas sociais e
políticos. O que se seguiu após sua passagem
pelo Brasil lançou luz em debates que, novamente,
tentaram ser monopolizados e polemizados pela
direita radical brasileira, mas que não foi bem-
sucedido. A crítica do texto se debruça, sobretudo,
sobre as dinâmicas em torno da artista e das
discussões em torno de gênero e sexualidade, em
perspectiva sociopolítica.
Palavras-chave: Madonna, The
Celebration Tour, gênero, feminismo.

ABSTRACT: With The Celebration Tour, Madonna
took to Copacabana beach a show that transcended
mere entertainment. Her show addressed his career
and life in retrospect, containing many social and
political themes. What followed after his visit to
Brazil shed light on debates that, once again, the
Brazilian radical right tried to monopolize and create
controversy, but were unsuccessful. The text’s
critique focuses on the dynamics surrounding the
artist and the discussions surrounding gender and
sexuality, from a sociopolitical perspective.

Key words: Madonna, The Celebration Tour,
gender, feminism.

CADERNO ESPECIAL

306 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Então aqui está minha história
Sem risco, sem glória

Um pouco de sobe, e desce, e ao redor
É tudo uma questão de sobrevivência
2

Dallas Austin e Madonna, Survival, 1994

“Uma festa. Um pandemônio. Tem público de todas as tribos, de todos os tipos”. Essa
frase poderia ter sido facilmente proferida pela passagem de Madonna com a The Celebration
Tour, no Rio de Janeiro, em maio de 2024, mas na verdade se trata de uma descrição sucinta
da repórter Sandra Moreyra, para o Jornal Nacional, em 06 de novembro de 1993, quando a
cantora se apresentou pela primeira vez, no Brasil, com a The Girlie Show Tour (Jornal
Nacional - Madonna no Maracanã...,1993). Entre 1993 e 2024, Madonna fez muitas coisas,
se reinventou, se transformou, mas a essência de estar em torno de grupos marginalizados e
de auxiliar a lançar luz sobre eles, jamais deixou de estar em seu horizonte e prática artísticos.

Figura 1 – Multidão assiste ao show de Madonna, destaque para adolescentes tentando ver o palco.

Fonte: Página Madonna Brasil, no Facebook. Foto Alexandre Woloch.

O espetáculo musical apresentado pela artista estadunidense na praia de
Copacabana, no Rio de Janeiro, foi um marco para a cidade, e também para sua
carreira com um público de 1,6 milhão de pessoas, superando as expectativas que
a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro tinha, em relação ao alto investimento no

2  No original, em inglês: “So here’s my story (my story)/No risk, no glory (no glory)/A little up and/
down and all around/It’s all about survival”.

CADERNO ESPECIAL

307 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

evento (Freire, 2024).3 O show tinha o claro objetivo de ser um marco econômico
para a cidade, no meio do entretenimento e do turismo cultural. Para a artista, se
tratava do encerramento de sua turnê comemorativa de 40 anos de carreira, em
que por meio do espetáculo multimídia, apresentava sua autobiografia em um
espetáculo musical único, um formato até então inédito de show entre popstars.

Figura 2 – Foto aérea da praia de Copacabana durante o show The Celebration Tour in Rio (2024)

Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro. Foto: Fabio Motta.

O objetivo deste texto não é discutir sobre as relações entre indústria cultural
e cultura de massas, ou ainda os recordes e afins conquistados pela artista e pela
Prefeitura do Rio de Janeiro, embora esses temas sejam transversais ao longo da
crítica, mas sim estabelecer uma reflexão em torno do debate iniciado, a partir
do show, em âmbito social.

Madonna sempre esteve na vanguarda do mainstream desde o lançamento
de seu segundo álbum Like a Virgin, em 1984. A artista conseguiu capitanear, por
décadas, o espírito juvenil disruptivo e transportar isso para videoclipes, músicas
e shows de forma sempre a provocar os limites em torno de um pretenso status quo.
A sua maior ousadia, no sentido do uso da imagem e da performance, sem sombra
de dúvidas foi o uso da conotação sexual e da liberdade feminina, com elementos

3  Embora tenha havido controvérsia em relação ao número de pessoas presentes no evento, os dados
oficiais apontam a superação de 1,5 milhão de espectadores. Cf. Nascimento, 2024.

CADERNO ESPECIAL

308 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

profundos do universo homoerótico, sobre qualquer outra coisa imposta por uma
sociedade conservadora, misógina, machista e cisheteronormativa.

A combinação de elementos sexuais à religião, seja em conteúdos líricos
ou na construção midiática de sua performance, a colocou como um modelo
de artista pop que vai além do mainstream, sem pudores pela indústria do
entretenimento, sem maneiras despolitizadas de transportar a realidade vivida
para os palcos. Foi nessa sintonia que, em 1993, Madonna criou um show erótico/
sensual transportando para o palco a dureza da repressão e medo da liberdade
sexual tocando em espinhosos assuntos “controversos” para uma sociedade
conservadora: epidemia de HIV/aids, diversidade sexual, empoderamento do
corpo feminino e fantasias sexuais. Esse coquetel explodiu em críticas quando
seu livro SEX foi lançado, em outubro de 1992, um ano antes de estrear The Girlie
Show, no Brasil.

Para bell hooks (2023, p. 40-41), no início dos anos 1990, Madonna transicionou
midiática e politicamente para um lado que se distanciava do feminismo mais
radical (pelo fim do sexismo e opressão sexista), deixando um ruído nas mulheres
que a viam, nos anos 1980, como uma mulher que não se reprimia e por atitudes
com riscos e rebeldia contra as opressões sexistas, traçava novos rumos para
uma geração de mulheres que não queriam mais se acomodar em padrões
machistas sociais e culturais.

Sob esse ponto de vista, a autora disseca uma fase “inglória” (do ponto de
vista social estadunidense) da cantora, quando estava trabalhando na divulgação
do álbum Erotica (1992) e de seu livro SEX (1992). As reflexões de hooks se baseiam,
sobretudo, na mudança de imagem de Madonna no âmbito da representação
feminina (ao qual a autora compara a um olhar pornográfico heterossexista guiado
por um estilo de “pornografia infantil”), dessa forma, isso “[…] expõe a maneira
como o envelhecimento da mulher em uma sociedade sexista pode comprometer
a fidelidade de qualquer uma às visões políticas radicais, ao feminismo” (hooks,
2023, p. 41).

A estrondosa primeira passagem, em novembro de 1993, com dois shows no
Brasil, causou muita controvérsia, confusão, mas sobretudo, interesse e reflexão.
Diferente do ponto de vista de hooks, no Brasil a passagem da cantora em meio ao
reboliço de sua carreira nas imagens envolvendo sexo e cultura sadomasoquista
homoerótica, teve outras impressões:

CADERNO ESPECIAL

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Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaría-
mos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tem-
pos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as
formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de
revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de, diga-
mos, fazer a coisa da maneira mental, não física — e portanto sem riscos. Madonna faz
no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo — um
crioulo (sic) fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que
todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que
chuchu na cerca!” (ABREU, 1993).

As palavras de Caio Fernando Abreu enaltecem a coragem de Madonna em
levar para o palco o desejo, o tesão sem pudores em uma era em que o medo da
prática sexual (sobretudo entre homens gays, trans e travestis) imperava. O amor
contado de várias formas no palco colocava Madonna como uma contracorrente
impetuosa naqueles anos, naquele tempo. Isso era o determinante contra o tal
status conservador cisheteronormativo.

Nas críticas de hooks à Madonna, principalmente na fase de SEX, o
inconveniente está em como ela deixou de incorporar o subversivo vindo da
subjetividade, colocando o que fosse “subversivo” ou radical, diante de uma
cultura sexista e homofóbica, como entretenimento de voyerismo massificado,
em que o homoerotismo é visto, lido, consumido, mas jamais submetido a um
status político contra a homofobia: “apresentada dessa forma, sua presença
convida leitores do status quo a imaginar que também podem consumir imagens
de diferença, participar das práticas sexuais retratadas e ainda assim permanecer
intocados — sem mudanças” (hooks, 2023, p. 47).

Noticiado por Cid Moreira, no Jornal Nacional, em 04 de novembro de 1993, a
Justiça do Estado do Rio de Janeiro teria proibido Madonna de “exibir, ostentar e
utilizar a bandeira do Brasil de forma atentatória à moral” e que se descumprisse a
ordem judicial poderia ser presa com pena de 01 a 15 dias de detenção (MADONNA
- The Girlie Show Tour em São Paulo, 1993).

De fato, Madonna utilizou os símbolos nacionais do verde e amarelo, a
bandeira e até vestiu a camisa da Seleção Brasileira de futebol ao fim do concerto,
mas não foi presa. Em um país que celebra e brinca o carnaval como o faz, os strip-
tease
do espetáculo e as simulações de sexo se tornavam ilustrações contidas.
Os mesmos elementos estéticos e simbólicos brasileiros foram utilizados pela
megastar, em 2024, tendo um valor sociocultural e político ainda maior.

CADERNO ESPECIAL

310 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Figura 3 – Drag queens na fila para o espetáculo The Girlie Show, em São Paulo, 1993

Fonte: O Estado de São Paulo. Foto: Edu Garcia. Disponível em: https://www.estadao.
com.br/acervo/a-primeira-vez-de-madonna-no-brasil/. Acesso em: 01 fev. 2025.

As multidões que aguardavam para assistir ao show transformou o Centro de
São Paulo e arredores do Estádio do Morumbi em verdadeiras paradas de desfile
e celebração da diferença e da diversidade, com inspiração na diva pop, em uma
mistura de moda, comportamento, performance e música. Era um espetáculo à
parte que tomou as páginas de noticiários impressos e televisionados, colocando
um comportamento notadamente queer em perspectiva midiática. Uma drag
queen
disse sobre Madonna, em reportagem de Glória Maria para o Fantático, em
1993: “ela é toda a inspiração desse mundo drag”.

CADERNO ESPECIAL

311 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Figura 4 – Drag queens na fila para o espetáculo The Girlie Show, em São Paulo, 1993

Fonte: O Estado de São Paulo. Foto: Agliberto Lima. Disponível em: https://www.estadao.
com.br/acervo/a-primeira-vez-de-madonna-no-brasil/. Acesso em: 01 fev. 2025.

Na interpretação de bell hooks sobre a Madonna dos anos 1990, solteira,
sem filhos e arrastada para uma enxurrada de críticas a partir — justamente —
do seu livro SEX, se afasta sobre como a cantora era vista e referenciada por
drags no Brasil, em 1992. Se para hooks, drag era uma construção generificada
para que uma mulher assumisse uma persona mais masculina (hooks, 2023, p.
57), — no caso de a mulher parodiar uma figura masculina — a imaginação cultural
e social sobre o constructo performático de drags e transformistas se apoiam
não na ideia de se “passar por”, mas de reforçar ou se distanciar de padrões
de gênero. Da mesma maneira, talvez um pouco mais ácida, foi vista em 2024,
com seu espetáculo autocentrado, um show-biografia em que a vida, a morte,
a superação, os direitos, a luta contra o extremismo, e, sobretudo, a força do
feminino é cultuada em uma representação de quase exorcismo, pelo menos no
que tange o contexto brasileiro.

A meteórica passagem da artista com um grande produto cultural, como foi
seu espetáculo de divulgação do álbum Erotica, em 1993, lançado mundialmente
em outubro de 1992, lançou luz a muitos assuntos. Pautar sobre homossexualidade,
nudez feminina, aids, diversidade sexual e amor foi um escândalo para uma
sociedade muito “careta”, como diria Rita Lee.

Madonna parece ter encarnado a “vaca profana” e com suas divinas tetas
dos cones icônicos de Jean-Paul Gaultier, atendido o pedido de Caetano Veloso
e Gal Costa: derramou o leite bom em nossas caras que andavam angustiadas
pelo sequestro dos símbolos nacionais brasileiros por uma ala neofascista sul-

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americana, mas também derramou o leite ruim na cara dos caretas — e muito!

Figura 5 – Madonna durante apresentação do show Celebration Tour in Rio, 04 de maio de 2024.

Fonte: Live Nation. Foto: Kevin Mazur.

Da importância cultural e midiática que tomou forma com a passagem da
artista pelo Brasil, no início dos anos 1990, 30 anos depois voltou a ser um frisson
com a sua passagem, pelo Rio de Janeiro, com o show de celebração de sua
carreira. Nesse contexto, uma efervescência queer tomou conta de Copacabana
a um nível extraordinário levando diversas demonstrações de preconceito e ódio
contra o público majoritariamente LGBTQIA+:

Jesus, Copacabana tá chovendo viado. Viado e lésbica. Olha, tem mil viado por metro
quadrado, uma torre de viado! Tá subindo um em cima do outro e dando um prédio de
300 andares. O maior prédio do mundo, que está em Dubai... porque tá tendo que em-
pilhar. Deus me livre! (Fortuna, 2024).

Se em 1993 a concentração das narrativas midiáticas se dava pelos
jornais, revistas, rádio e televisão, em 2024 a polêmica ganhou dimensões
sem precedentes, por meio das redes sociais. No caso da mensagem acima
transcrita, de um suposto áudio postado por uma moradora de um condomínio em
Copacabana, em um grupo de moradores no aplicativo de mensagens WhatsApp,
é explícita o teor LGBTfóbica presente em sua fala. Contudo, o assunto “show da

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Madonna” extrapolou bastante os núcleos jornalísticos e de fãs, ao longo do mês
que sucedeu a sua transmissão televisionada, sendo comentado e tendo virado
polarização político-partidária em conversas cotidianas, nas ruas.4

Houve muita confusão em torno do que foi apresentado no show. Putaria?
Um Cabaré ao vivo? Suruba na TV aberta? Satanismo? Bruxaria? Ode ao demônio?
Todas essas acusações foram feitas e distribuídas em dezenas de páginas online,
depreciando a artista e a sua mensagem, utilizando a polarização política para
atribuir à esquerda o que essas pessoas (tal qual a senhora que disse a mensagem,
acima transcrita) classificou como “corrupção de menores”, “desperdício de
dinheiro público”, “culto ao inimigo”, “imoral”, etc.5

Durante o início da transmissão do show, pela Rede Globo, o apresentador
Marcos Mion disse que o clima na cidade e, em especial, em Copacabana e
imediações se parecia muito com o que tinha acontecido quando da primeira
passagem de Madona pelo Rio de Janeiro, em 1993. A festa, a liberdade entre
os fãs, a alegria, a celebração da vida cultural, colocavam o frisson novamente
em foco, pela mesma artista nessa situação, nos anos 1990. Contudo, os tempos
atuais são tão obtusos quanto o da época do auge da epidemia de HIV/aids.

Eu nunca tinha presenciado, em 10 anos de magistério, minhas alunas e
alunos começarem a debater sobre um show de maneira política. Tanto as crianças
do ensino fundamental do 6º e 7º anos, quanto os adolescentes da 2ª e 3ª séries
do ensino médio, começavam a debater — até a brigar verbalmente — por seus
pontos de vista. De um lado, aquelas pessoas que pensavam ser desnecessário
e completamente imoral um show mostrar “nudez”, palavras de baixo calão, e
símbolos religiosos de forma “desrespeitosa” em TV aberta, com “criança na sala”.
De outro, pessoas que diziam se tratar de um espetáculo artístico que falava sobre
a vida, sobre a carreira da artista, e que assistia quem queria e que o show não era
feito para crianças, portanto não eram para estar na sala no horário destinado a
transmiti-lo.

Por vezes, eu fiquei surpreso e amedrontado com as falas reacionárias e
conservadoras por parte de estudantes de uma geração muito mais conectada

4  É interessante notar que o local onde ocorreu o espetáculo de Madonna é historicamente um reduto
LGBTQIA+, sobretudo gay. Cf. GREEN, 2000, 263-264.
5  Como se pode notar, a desinformação e ignorância (ou a desonestidade) foram bem rasas, pois o
maior patrocinador do evento foi um banco privado, exaustivamente propagandeado ao longo do pe-
ríodo em que antecedeu o show.

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e atualizada do que a minha. Isso foi recorrente, e durou várias semanas. Mas
comecei a pensar em que realmente estava embutida a discussão, o que um
grupo — que não tinha assistido ou nunca tinha ouvido falar de como era uma
turnê da artista — detestava de fato, de onde vinha o ódio.

A resposta estava, sobretudo, em como a informação chegava para esse
grupo: TikTok e grupos do WhatsApp, com a desinformação. O que mais me
deixou surpreso e — devo dizer — muito entristecido foi em como as “críticas”
eram de cunho conservador e reacionário, pois o problema central era ter sido
um espetáculo que mostrava a realidade a partir de um ponto de vista claramente
progressista, no campo da esquerda.

Depois do último fim de semana, aquela analogia com a primeira vinda de Madonna ao
Brasil nos mostra que o mundo era, sim, outro — mas nem tão diferente quanto parece.
Algumas coisas continuam as mesmas, e Madonna, apesar da passagem cronológica
do tempo, é uma delas: aos 65 anos de idade, permanece perfeitamente capaz de em-
prestar sua própria jovialidade e desobediência a uma geração que, bem como em 93,
precisa dela. Sua rebeldia e vontade de mudar parecem se fazer particularmente ne-
cessárias para uma juventude que, carente de verdadeiros ícones, se torna cada vez
mais conservadora, complacente e, mais preocupante ainda, plenamente careta. Mais
espantosas e indecentes do que qualquer ato de Madonna, por sinal, foram as declara-
ções feitas por jovens influenciadores e políticos associando o espetáculo com a tra-
gédia climática que vem assolando o sul do país (Mothé; Rufino, 2024).

Todo o espetáculo levantou questões sobre resistência, liberdade, luta
e coragem, além de diversidade. Do elenco presente no palco, das imagens
selecionadas, das músicas e da performance, tudo foi um nó muito bem dado
num cordão que segurava a mensagem de celebração da vida e da batalha contra
a opressão. Dançarinos LGBTQIA+, corpos negros, coreografias que tem origem
em grupos marginalizados (como o voguing), e a própria performance de Madonna,
que vem lutando contra o etarismo há décadas.

Um momento em especial chamou a atenção para a perspectiva da artista
sobre a vida e a sociedade, no show. Enquanto cantava a canção Music (lançada
pela artista em 2000), a drag queen Pabllo Vittar subia ao palco para dançar
ao lado de Madonna e várias/os dançarinas/os, ao passo que no telão eram
mostradas imagens de pessoas que lutaram por direitos civis, liberdade de
expressão e tinham evidentemente seu posicionamento político à esquerda,
tais como Daniela Mercury, Gilberto Gil, Mano Brown, Marina Silva, Erika Hilton,
entre outras/os. Enquanto tudo isso ocorria, os versos da música escolhida
para o momento ressoavam por Copacabana: “a música une as pessoas/

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a música mistura a burguesia e os rebeldes”6.

Figura 6 – Mano Brown (esquerda) e Erika Hilton (direita) em fotos transmitidas no telão do palco principal

Fonte: Gshow. Foto: reprodução. Disponível em: https://gshow.globo.com/cultura-pop/noticia/fa-
mosos-homenageados-em-show-da-madonna-agradecem-por-serem-lembrados-que-honra.ghtml.

Acesso em 12 fev. 2025.

As referências sobre gênero no show, assim como a participação de pessoas
trans e as drags incendiou discursos sobre “falta de vergonha” em rede nacional.
O “perigo” representado por pessoas da comunidade LGBTQIA+ se transcreveu
em “homossexualizar” crianças e pessoas indefesas em suas casas, que não se
sabe porque estariam com a TV ligada assistindo a tudo (mesmo que tivesse o
medo de se “enviadescer”, como na canção de Linn da Quebrada) através de um
show de Madonna…Nesse caso, Judith Bulter (2024, p. 11-12) explica que:

Quando o “gênero” absorve uma série de medos e se torna um fantasma totalizante
para a direita contemporânea, as variadas condições que de fato dão origem a esses
medos perdem seus nomes. O “gênero” reúne e incita esses medos, impedindo-nos de
refletir mais claramente sobre o que há a temer e como, para início de conversa, surgiu
a atual percepção de que o mundo está em perigo.

O “pânico moral” em torno do gênero e de representações de vida outras que
não as cisheterocentradas em figuras estáticas e conservadoras de mulheres
cisgênero submissas e homens viris dominadores, foram colocadas a baixo no

6  No original: “music makes the people come together/ music mix the bourgeoisie and the rebel” (Madonna,
Ahmadzaï, 2000).

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espetáculo de Madonna, tendo ela como protagonista, mas por vezes, em muitos
momentos do show, outras/os sujeitas/os ganham a cena, e sempre contra o
pretenso cistema, mesmo que a artista seja uma mulher branca, cisgênero e
tendo por sua casa os Estados Unidos.

O “fantasma do gênero”, como Bultler trata (2024, p. 12-13), consume de
religiões, principalmente nos discursos papais católicos, grande energia na
comparação como “armas de destruição em massa”, causando esse pânico
contra toda e qualquer ação progressista que alinhe políticas públicas de grupos
marginalizados por séculos. Madonna já foi tida como “o diabo loiro” pela Igreja por
ser e representar a mulher subversiva, radical, da qual bell hooks havia adorado,
durante os anos 1980.

Agora, novamente, provoca arrepios com sua “radicalidade” no palco, em
que gênero e modos de vida se tornam “armas” de destruição em massa… do ódio
causado pela direita. Os perigos de um mundo assombrado por um fantasma não
estão no gênero, mas sim no neofascismo e na radicalidade de grupos políticos
ultraconservadores que angariam projetos para um “Estado forte”, em que o
maior objetivo, em verdade, é querer ganhar lucro acima de tudo — e de todos.

O projeto de reconduzir o mundo a um tempo anterior ao “gênero” promete o retorno
a uma sonhada ordem patriarcal que pode nunca ter existido, mas que ocupa o
lugar da “história” ou da “natureza” – uma ordem que apenas um Estado forte pode
restaurar (Bultler, 2024, p. 12-13).

O show traz muitas referências, muitas conexões e apropriações de
subculturas LGBTQIA+, sobretudo gay e trans, dos Estados Unidos e de imigrantes
radicados em Nova Yorque. O protagonismo de Madonna é óbvio, centralizando
tudo em sua própria perspectiva. Contudo, a situação narrativa do show é
diferente das já abordadas por ela outrora, o fio condutor (puxado por um mestre
de cerimônia tal qual os antigos “compadres” dos espetáculos de teatro musical
do século XIX e XX, vivido por Bob the Drag Queen) de sua própria história é a
mensagem principal após sua quase-morte, em 2023: ela ainda está viva, ainda
está por aí e ainda pode falar por si mesma e lutar. No caso, a maior injustiça posta
nos últimos anos contra ela é o etarismo. Disso, ela tem sido figura importante
no entretenimento de massa, diante de padrões midiáticos no mainstream pop
que ela mesma posicionou dos quais bell hooks comentou e analisou, no início da
década de 1990.

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Figura 7 – Madonna e Pabllo Vittar performando Music, no palco da Celebration Tour in Rio, vestindo cami-
setas inspiradas na Seleção Brasileira

Fonte: FeedTV. Foto: reprodução. Disponível em: https://feedtv.news/musica/pablo-vittar-
-se-derrama-apos-participacao-no-show-de-madonna-sempre-serei-grata/. Acesso em: 12

fev. 2025.

O espetáculo todo serviu para unir boa parte de grupos que andavam bem
enfraquecidos culturalmente, colocando muita visibilidade — certamente
— sobre causas e efeitos sociais de gênero e sexualidade, mas também
propiciou um ato político simbólico ao trazer as narrativas de vidas e pessoas
no campo progressista, pelo conjunto de imagens e enunciados construídos nas
performances, conquistando, assim, um lugar político interessante. A celebração
era da carreira da artista, mas acabou sendo também uma imensa festa de
reapropriação de símbolos nacionais e que, felizmente, não se deixou cair nas
estratégicas de geração de polêmicas online agitadas e disseminadas pelo
bolsonarismo. Concluo com Caio Fernando Abreu (1993), com uma percepção
sobre Madonna que se encaixa, novamente, muito bem ao nosso tempo:

A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente
precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados
(as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a
Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saú-
de, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada:
viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela
também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não
bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo
da luz, compreende?

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ABREU, Caio Fernando. Na cama por causa da Madonna. Folha de São Paulo, 14
de novembro de 1993. Disponível em:
https://semamorsoaloucura.blogspot.com/2013/08/na-cama-por-causa-de-ma
donna.html. Acesso em: 10 fev. 2025.

BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? Tradução de Heci Regina
Candiani. São Paulo: Boitempo, 2024.

FORTUNA, Maria. 'Torre de viado': áudio que critica público de Madonna viraliza e
inspira meme com nome de bloco de carnaval Rio de Janeiro. O Globo, Rio de
Janeiro, 06 maio 2024. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/05/06/recebido-do-zap-audio-v
iraliza-e-inspira-meme-com-nome-bloco-de-carnaval-fora-de-epoca.ghtml.
Acesso em: 10 fev. 2025.

FREIRE, Tâmara. Madonna supera expectativa de público e encerra turnê em
grande estilo. EBC, Rio de Janeiro, 05 05 2024. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2024-05
/madonna-supera-expectativa-de-publico-e-encerra-turne-em-grande-estilo.
Acesso em: 10 fev. 2025.

GREEN, James Naylor. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no
Brasil do século XX. Tradução de Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo:
Editora UNESP, 2000.

HOOKS, bell. Poder para a buceta: nós não queremos ser um idiota vestido de
drag. In: hooks, bell. Cultura fora da lei: representações de resistência.
Tradução de Sandra Silva. São Paulo: Elefante, 2023.

JORNAL Nacional - Madonna no Maracanã (Globo/1993). Rio de Janeiro: Rede
Globo, 1993. 1 vídeo (2min44s). Disponível em:
http://youtube.com/watch?v=ykWrR1PLolo. Acesso em: 02 fev. 2025.

MADONNA - The Girlie Show Tour em São Paulo (Jornal Nacional) (1993). Rio de
Janeiro: Rede Globo, 1993. 1 vídeo (1min59s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=v-E-pWPZvLI. Acesso em: 13 dez. 2024.

MOTHÉ; João Victor; RUFINO, Victor. Na praia com Madonna. Moodgate, 10 maio
2024. Disponível em:

REFERÊNCIAS https://moodgate.com.br/2024/05/10/na-praia-com-madonna/. Acesso em: 11
fev. 2025.

MUSIC. Intérprete: Madonna. In: MUSIC. Compositor: Madonna Ciccone; Mirwais
Ahmadzaï. Intérprete: Madonna. Los Angeles: Warner, 2000.1. Disponível em:
https://open.spotify.com/intl-pt/track/27cXevtj5VflsCUAZwr9eI?si=8fb4291c816
84b8b. Acesso em: 12 fev. 2025.

NASCIMENTO, Nadine. Espaço de show de Madonna no Rio comporta no máximo
875 mil pessoas, segundo estimativa do Datafolha. Folha de São Paulo, São
Paulo, 10 mai 2024. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2024/05/espaco-de-show-de-madonn
a-no-rio-comporta-no-maximo-875-mil-pessoas-segundo-estimativa-do-dataf
olha.shtml. Acesso em: 10 fev. 2025.

CADERNO ESPECIAL

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https://moodgate.com.br/2024/05/10/na-praia-com-madonna/. Acesso em: 11
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a-no-rio-comporta-no-maximo-875-mil-pessoas-segundo-estimativa-do-dataf
olha.shtml. Acesso em: 10 fev. 2025.

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A EMERGÊNCIA E DESENVOLVIMENTO DA JUSTIÇA TRANSICIONAL COMO CAMPO DE
PESQUISA E DE APLICAÇÃO PRÁTICA1

THE EMERGENCE AND DEVELOPMENT OF TRANSITIONAL JUSTICE AS A FIELD OF
RESEARCH AND PRACTICAL APPLICATION

Thomas Fischer2

https://orcid.org/0000-0003-1464-7561

Tradução de Rafael Morato Zanatto3

https://orcid.org/0000-0001-6623-4668
http://lattes.cnpq.br/0473516658198812

Recebido em: 13 de novembro de 2024.
Aprovado em: 12 de janeiro de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22637

1  Título original: Die Entstehung und Entwicklung von Transitional Justice als forschungs- und
anwendungspraktisches Feld. Tradução: Rafael Morato Zanatto
.
2  Doutor em História pela Universidade de Berna. Professor da Universidade Católica de Eichstätt,
na Cátedra de História da América Latina. E-mail: th.fischer@ku.de
3  É graduado (2010), mestre (2013) e doutor (2018) em História pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e realizou, com o amparo da FAPESP, estágios de pesquisa na
Cinémathèque Française (Paris, 2012) e na Deutsche Kinemathek (Berlim, 2017). E-mail: rafael_za-
natto@hotmail.com

RESUMO: O texto traz uma visão geral da
formação, da importância e da transformação da
Justiça Transicional, discutindo a aplicação prática
de justiça/direitos e verdade, através dos quais
sua localização em contextos históricos é realizada.
A partir do apontamento dos principais atores
e instituições do campo, é descrito a dimensão
acadêmica do campo da Justiça Transicional,
identificando as interfaces e demarcações dos
estudos sobre paz (Peace Studies) e pesquisas
sobre desenvolvimento (Development Studies). O
autor também faz um balanço dos estudos históricos
nesse campo. Por fim, são identificadas as áreas
problemáticas e é feito uma avaliação crítica. Isso
também levanta a questão de até que ponto a
Pesquisa Histórica sobre Paz e Conflitos (PHPC) e
Justiça Transicional podem trabalhar melhor em rede
e até que ponto a PHPC pode se beneficiar da Justiça
Transicional.
Palavras-chave: Justiça Transnacional,
pesquisas sobre desenvolvimento, Pesquisa
Histórica sobre Paz e Conflitos.

ABSTRACT: The text provides an overview
of the formation, importance and transformation
of Transitional Justice, discussing the practical
application of justice/rights and truth, through which
their location in historical contexts is achieved.
Based on the identification of the main actors and
institutions in the field, the academic dimension
of the field of Transitional Justice is described,
identifying the interfaces and demarcations of Peace
Studies and Development Studies. The author also
takes stock of historical studies in this field. Finally,
problematic areas are identified and a critical
assessment is made. It also raises the question of to
what extent Historical Peace and Conflict Research
(PCR) and Transitional Justice can better work
together and to what extent PCR can benefit from
Transitional Justice.

Key words: Transitional Justice, Peace
Studies, Development Studies.

TRADUÇÃO

321 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Desde que os processos de democratização ocorreram na maioria dos
estados latino-americanos na década de 1980 e, posteriormente, em muitos
estados africanos, do leste asiático e do leste europeu, especialistas, juristas e
decisores (as) políticos (as) se perguntaram sobre qual papel os passados ​​violentos
desempenharam e deveriam desempenhar na implementação das transições
democráticas. Em sua opinião, a construção de um futuro sustentável dependia da
resposta a esta pergunta. Eles nomearam, analisaram e avaliaram as atrocidades
e fizeram recomendações sobre como lidar com elas. Nunca antes se tinha feito
tanto esforço político, jurídico e jornalístico em todo o mundo para superar os
crimes contra os direitos humanos. Em vista dos inúmeros processos judiciais,
comissões da verdade e outras medidas e do número crescente de projetos,
pesquisas e publicações sobre o assunto em todo o mundo, a historiadora russa
Nanci Adler fala de uma “Era de Justiça Transicional” (ADLER, 2018, p. 1). O conceito
“Justiça Transicional” (daqui em diante JT), que reúne medidas e abordagens da
política, da justiça e do meio acadêmico para lidar com o passado ​​violento, foi
estabelecido em meados da década de 1990 e ainda está presente hoje. Um artigo
introdutório da Agência Federal Central para a Educação Política4 coloca desta
forma: “‘Lidar com o passado [Vergangenheitsarbeit]’ ou JT representa todas
as medidas destinadas a recuperar, reconhecer e punir as injustiças cometidas
durante a ditadura e a guerra” (ZUPAN, 2016). Deve-se acrescentar que a JT é
vista como um complemento e apoio às medidas institucionais e estruturais
no contexto dos processos de democratização. Ao se concentrar na violência
perpetrada contra as vítimas, os Estados (e a população) são responsabilizados
como beneficiários [Adressaten]. Os direitos humanos são o parâmetro para
avaliar os crimes. Ao lidar com o passado de forma sustentável, o presente deve
ser influenciado e uma contribuição deve ser feita para garantir que tais crimes
não ocorram novamente no futuro.

Embora existam muitas interfaces temáticas, conceituais e metodológicas,
a JT tem recebido pouca atenção dos (as) historiadores (as) em geral e da pesquisa
histórica sobre paz e conflitos em particular. Para muitos (as) historiadores (as),
isso pode ter algo a ver com a ação política e administrativa cientificamente
apoiada que é constitutiva da JT. Isso mudou desde então: Não apenas os (as)
historiadores (as) estão oferecendo cada vez mais seus conhecimentos no campo

4  Bundeszentrale für politische Bildung.

TRADUÇÃO

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da JT, como também seus conhecimentos especializados estão sendo cada vez
mais solicitados pela comunidade da JT no curso da expansão interdisciplinar.
Há uma necessidade de conhecimento histórico especializado no campo de
conhecimento da JT, particularmente nas áreas que lidam com crimes que
ocorreram há muito tempo (em “comissões de historiadores (as)”), a classificação
histórica de crimes violentos (por exemplo, em análises de época e periodizações),
a preservação de longo prazo de fontes em arquivos acessíveis ao público, cultura
histórica (especialmente museus), história pública e didática histórica. Na
Alemanha, essas atividades historiográficas ocorrem principalmente ao tratar
dos crimes nazistas, das violações dos direitos humanos da ditadura da RDA e
do colonialismo. Entretanto, os (as) historiadores (as) que veem as transições
como processos de longo prazo geralmente só intervêm quando as transições
no sentido mais restrito já foram concluídas há muito tempo. Então, quais são
as consequências do fato de as medidas praticadas nas fases de transição para
apoiar o processamento de crimes contra os direitos humanos serem resumidas
no termo JT? Como a JT pode ser caracterizada? E qual é o papel da

A seguir, apresentarei primeiro uma visão geral da formação, da importância
e da transformação da JT. Em seguida, discuto a aplicação prática dos
componentes de justiça da JT: justiça/direitos e verdade, através dos quais sua
localização em contextos históricos é realizada. Os principais atores e instituições
do campo são citados. Em seguida, descrevo a dimensão acadêmica do campo
da JT, identificando as interfaces e demarcações dos estudos sobre paz (Peace
Studies) e pesquisas sobre desenvolvimento (Development Studies). Em seguida,
dou uma olhada [werfe ich einen Blick] nos estudos históricos nesse campo. Por
fim, identifico as áreas problemáticas e faço uma avaliação crítica. Isso também
levanta a questão de até que ponto a Pesquisa Histórica sobre Paz e Conflitos
(PHPC) e JT podem trabalhar melhor em rede e até que ponto a PHPC pode se
beneficiar da JT.

O QUE É JUSTIÇA TRANSICIONAL? E O QUE ELA NÃO É?

O termo JT surgiu em meados da década de 1990 no contexto histórico
específico de “transições democráticas” que ocorreram em diversas regiões do
mundo nas décadas anteriores. Entre 1974 e 1990, mais de 30 países em todo

TRADUÇÃO

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o mundo fizeram uma transição de ditaduras militares e regimes autoritários,
bem como de estados devastados pela guerra civil, para sistemas de governo
democráticos liberais. Estas convulsões ocorreram no contexto de uma “imensa
concentração de iniciativas políticas de direitos humanos”, o que aumentou a
pressão mundial para ancorar permanentemente os direitos humanos na prática
política (ECKEL, 2015, p. 343). Os movimentos de democratização começaram
com o fim das ditaduras no sul da Europa (Portugal 1974, Grécia 1974, Espanha
1975/1976). Na América do Sul, os regimes autoritários entraram em colapso a
partir do final da década de 1970 (Equador 1979, Bolívia 1979/1982, Peru 1980,
Argentina 1983, Brasil 1985, Uruguai 1985, Paraguai 1989, Chile 1989/1990). Este
processo continuou na América Central, no México e no Caribe até boa parte
da década de 1990. Desde o início da década de 1980, os processos de reforma
democrática também surgiram na Europa Oriental, começando na Polônia,
depois na Hungria e – com Mikhail Gorbachev como Presidente da União Soviética
– também nas outras partes do Bloco Oriental. A RDA e os Balcãs também foram
afetados por este processo. A década de 1990 assistiu a transições democráticas
no continente africano, na Ásia e, finalmente, no Oriente Médio. Neste contexto, o
influente cientista político americano Samuel Huntington, que leciona e pesquisa
na Universidade de Harvard, no seu livro A Terceira Onda – Democratização no Final
do Século XX5
(HUNTINGTON, 1991, p. 16), publicado em 1991 e que rapidamente
ganhou notoriedade ao reconhecer uma “onda de democratização” globalmente
eficaz. Na sua opinião, estes processos de transição foram precedidos por duas
“ondas” semelhantes, as de 1828 a 1926 e de 1943 a 1962.

De acordo com o especialista em África Ocidental Dustin N. Sharp, da Escola
Kroc de Estudos da Paz da Universidade de San Diego (SHARP, 2015, p. 150), a
justiça transicional não emergiu como uma abordagem independente, mas,
com algum atraso, como serva [handmaiden] da investigação de transição já
estabelecida.

O momento inicial do vocabulário da JT foi, sem dúvida, a publicação em
1995 da coleção de três volumes Justiça Transicional. Como as Democracias
Emergentes se reconciliam com os Antigos Regimes6. Ela foi financiada pelo
governo e desenvolvida em Washington D.C. pelo Instituto para a Paz dos EUA

5  The Third Wave - Democratization in the Late Twentieth Century.
6  Transitional Justice. How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes.

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(USIP)7, especializado em aconselhamento político responsável; O advogado
e consultor político Neil Kritz atuou como editor dos 224 textos principais
publicados. Richard H. Solomon, presidente da USIP, expressou no prefácio a
esperança de que a publicação em três volumes se tornasse “uma referência
padrão para governos, organizações privadas, pesquisadores e outros indivíduos
preocupados com este assunto difícil” (SOLOMON, 1995, XV). No seu prefácio, o
presidente sul-africano Nelson Mandela expressou desejos semelhantes; ele viu
a coleção como “um incentivo para estabelecer uma comunidade internacional
dedicada à dignidade humana e à justiça” (MANDELA, 1995, p. XI). Como figura
principal numa transição pacífica no Sul Global, Mandela deu à publicação o
capital simbólico necessário para a percepção pública. Contudo, o trabalho não
forneceu uma descrição exata do que se entendia por JT. Na introdução, intitulada
Os dilemas da Justiça Transicional8, Kritz levantou principalmente questões
e evitou uma definição da JT (KRITZ, 1995, p. XIX – XXX). Com base em suas
descrições de casos relacionados a problemas da história e do (então) presente,
pode-se pelo menos deduzir que ele considerava o tratamento de crimes contra
os direitos humanos cometidos em ditaduras e guerras civis como constitutivos
da transição para democracias estáveis e sociedades liberais. Além disso, Kritz
considerava importante a visão geral global das graves violações dos direitos
humanos. Portanto, esse tópico também foi abordado pelas contribuições que
se seguiram à sua introdução, a partir de perspectivas de diferentes áreas.

A publicação foi precedida por conferências maiores e menores,
principalmente internacionais. Nestes congressos participaram políticos
renomados, altos funcionários e um núcleo semelhante de cientistas, a maioria
deles advogados e cientistas políticos. Os marcos foram a conferência Crimes de
Estado: Punição ou Perdão
?9, com foco na América Latina, organizada em 1988
pelo think tank não comercial Instituto Aspen10 em Maryland. Ela foi sucedida
em 1992 pela conferência Justiça em Tempos de Transição11 sobre a Europa
Oriental, em Salzburg (Áustria), patrocinada pela Open Society Foundation de
George Soros, que posteriormente estabeleceu uma espécie de mito fundador

7  United States Institute of Peace – USIP.
8  The Dilemmas of Transitional Justice.
9  State Crimes: Punishment or Pardon?
10  Aspen Institute.
11  Justice in Time of Transition.

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da comunidade da JT. Dois anos depois, as conferências realizadas na Cidade
do Cabo (África do Sul) tiveram um propósito semelhante. Lá, os especialistas
discutiram e sistematizaram diversas experiências e estratégias, bem como o
papel do direito e da justiça com vista às transições em curso e futuras na África
(ZUNINO, 2019, p. 183; MOURALIS, 2014, p. 90-93).

Como afirma a socióloga Anne Krüger em seu panorama para o público
de língua alemã interessado em história contemporânea, a publicação de Kritz
estabeleceu o JT como “um novo objeto de investigação”. A JT tornou-se um
“conceito independente que desenvolveu um ponto de referência para pesquisa
e prática” (KRÜGER, 2013, p. 4). Krüger defende, portanto, uma compreensão
histórico-conceitual da JT. De acordo com Paige Arthur, especialista em
consolidação da paz do Centro Internacional de Justiça Transicional12 (ICTJ) de
Nova Iorque, o surgimento, a consolidação e a mudança da JT podem ser melhor
reconstruídos com uma abordagem histórica conceitual (ARTHUR, 2009, p. 321-
367).

Então, o que é JT se não for um conceito analítico e não for possível
estabelecer uma definição precisa do instrumental da JT? O historiador
Guillaume Mouralis entende que este é um termo com uma função tática. Para
ele, a JT é uma palavra introduzida como uma marca no mercado acadêmico e
político. Segundo Mouralis, a coleção de Kritz é uma prova de como um objeto
relativamente heterogêneo pode ser promovido através da criação de uma marca
unificadora e, assim, resumido de uma nova maneira (MOURALIS, 2014, p. 85; 96).

Mas é claro que TJ é mais do que apenas uma marca de marketing. Há amplo
consenso de que se trata de um campo independente (diferenciado de outros
espaços de conhecimento) com atores que assumem, defendem e desenvolvem
posições (BOURDIEU, 1996; LENGER; RHEIN, 2018, p. 71-117). O advogado Marcos
Zunino (2019) pesquisa o surgimento desse campo com uma análise do espaço
discursivo considerando os objetos da JT e o participante do discurso. Segundo
o advogado argentino, o que é característico do campo da JT é a sua abertura
a novos desenvolvimentos com base empírica, relacionados ao contexto e
refletidos academicamente. Ele também é multi ou interdisciplinar. Por fim, tem
uma dimensão prática e uma dimensão acadêmica.

Os atores que definiram os pilares do emergente campo da JT queriam

12  International Center for Transitional Justice.

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aproveitar a oportunidade. Já na conferência de decisores políticos, altos
funcionários governamentais e economistas dos EUA e da América Latina,
organizada pelo Instituto Peterson de Economia Internacional13 e realizada em
Washington em 1989, foi alcançada uma espécie de consenso sobre a reorganização
econômica (MARANGOS, 2009, p. 350-384). Este “ajuste” com medidas definidas
para áreas individuais da economia na América Latina foi chamado de Consenso
de Washington. Os adeptos do liberalismo também esperavam soluções baseadas
no consenso a nível político. O que uniu os apoiantes da JT foi – comparável ao
Consenso de Washington – a convicção de que estavam num ponto de viragem
na história mundial e de que estavam entrando numa era uniforme, econômica
e politicamente liberal. O ponto de referência narrativo para esta crença foram
as teses do cientista político Francis Fukuyama, da Universidade de Stanford,
que ele formulou em seu sensacional ensaio O Fim da História?14 (1989). Para a
primeira geração da JT, O Fim da História foi uma espécie de manifesto. Para eles,
o liberalismo significava o destino final da humanidade, a história do progresso
no Ocidente deveria ser encerrada como um destino universal após o fim da
Guerra Fria. Para que essa etapa final em direção à realização fosse concluída, a
janela de oportunidade que se abriu poderia, na verdade deveria, ser ativamente
apoiada.

O direito e a ciência política desempenharam um papel importante no
surgimento do campo da JT. Gradualmente, porém, outras disciplinas foram
acrescentadas, como a etnologia e a antropologia e a sociologia. Como já foi
indicado, este espaço de conhecimento teve inicialmente os seus centros de
gravidade acadêmicos nos EUA – uma grande proporção dos participantes veio
deste país e novos membros foram continuamente qualificados lá – mas cada vez
mais participantes (e cada vez mais participantes do sexo feminino) juntaram-se
a partir de outras partes do mundo, de modo que o campo adquiriu cada vez mais
uma dimensão transnacional – embora com porta-vozes acadêmicos dos EUA e
algumas porta-vozes femininas. A lingua franca da comunidade permaneceu o
inglês; O espanhol, o português e o francês logo foram utilizados, especialmente
na América Latina e na África. O campo da JT estava próximo da política, “emergiu
diretamente de uma série de interações entre ativistas, advogados e juristas,

13  Peterson Institute for International Economics.
14  The End of History?

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políticos, jornalistas e especialistas em política comparada preocupados com
os direitos humanos e com as ‘transições para a democracia’” (ARTHUR, 2009, p.
324). Desde 1997, as unidades das Nações Unidas que lidaram com o papel dos
passados ​​violentos nas convulsões democráticas também adotaram o nome JT.

Como enfatizam Anne Krüger e o historiador Stephan Scheuzger (2007, p.
143) a rede cada vez mais densa promoveu a sistematização, generalização e
padronização do conhecimento da JT, o que facilitou a transferência de lições
aprendidas, boas práticas e diretrizes em todo o mundo. Embora esta observação
sobre a comunidade da JT seja indubitavelmente verdadeira, não creio que deva
ser superestimada. Independentemente das tendências de homogeneização
observadas por Krüger e Scheuzger (2007), as práticas da JT na realidade diferem
significativamente das especificações do modelo devido a condições contextuais
locais divergentes.

VERDADE

As medidas recomendadas e/ou efetivamente tomadas pelos peritos em
JT focam-se nomeadamente em dois aspectos centrais: a verdade e a justiça/
direito. Estes objetivos devem ser alcançados, em particular, através de medidas
de punição, restituição, reparações, descoberta da verdade e reforma das
instituições (as forças de segurança e o poder judicial) (ARTHUR, 2009, p. 321-
367; ROHT-ARRIAZZA; MARIEZCURRENA, 2006, p. 2). O fato de essas (e não outras
medidas e instrumentos) terem prioridade na estrutura da JT se deve ao paradigma
da transição liberal-democrática e da paz, às tradições caracterizadas pelos
direitos humanos e criminais, bem como à natureza conceitual e institucional do
campo (WALDORF, 2012, p. 173).

No entanto, as medidas aplicadas em casos individuais variaram dependendo
da constelação de transição. As transições de décadas em Espanha e no Chile,
por exemplo, foram o resultado de negociações entre velhas e novas elites.
O fato de grupos de liderança militares e civis, ou seja, os perpetradores e os
seus apoiantes, terem sido incluídos nas negociações de transição decorreu
da manutenção do seu poder. Conseguiram colocar sob pressão governos civis
eleitos democraticamente e extrair-lhes concessões significativas (ROHT-
ARRIAZZA; MARIEZCURRENA, 2006, p. 2). Essas concessões também foram

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feitas na Argentina, onde a quarta junta militar teve de abdicar após a Guerra
das Malvinas. Raúl Alfonsín (1983–1989), o primeiro presidente eleito após a
ditadura, manifestou-se a favor da investigação legal das violações dos direitos
humanos cometidas durante a ditadura. Mas depois de 1986, o Congresso aprovou
disposições de anistia de longo alcance para os perpetradores. Só em 2005 é que
os julgamentos criminais recomeçaram e os indultos concedidos pelo Presidente
Carlos Saúl Meném (1989–1999) foram retirados. No Uruguai, ambas as câmaras
do parlamento também aprovaram uma lei de anistia em 1986; Em 1989, a mesma
foi confirmada por um referendo (FUCHS, 2010, p. 81-298). Mesmo nos países
em guerra civil, como Guatemala, El Salvador e Nicarágua, os perpetradores da
violência dificilmente foram responsabilizados pelas atrocidades pelas quais
foram responsáveis. Além disso, um processo criminal abrangente por parte do
poder judiciário nacional teria sobrecarregado em muito o reestruturado sistema
jurídico.

Nos estados de transição, nos quais continuava a existir o exercício do
poder pelas elites civis-militares responsáveis ​​pelos crimes, os decisores
democraticamente legitimados encontravam-se geralmente num conflito entre
o que Max Weber chamou de comportamento ético de responsabilidade e o
comportamento ético de condenações (NOLTE, 2000, p. 291-310). Os governos
e as instituições dos estados redemocratizados que realizaram apenas uma JT
leve, ou seja, nenhum processo minucioso contra os perpetradores, geralmente
se justificaram dizendo que seu escopo de ação era limitado em vista do poder
contínuo dos criminosos. A punição abrangente dos perpetradores é, portanto,
secundária em relação ao objetivo global de democratização e estabilidade.
Simplesmente ofereceram às vítimas a reconstituição da verdade. M. Cherif
Bassiouni, um dos principais especialistas mundiais em direito penal internacional
e fundador do Instituto Internacional de Direito dos Direitos Humanos15 em
Chicago em 1990, questionou essa abordagem. Lamentou que, apesar do elevado
nível de vitimização nas ditaduras e nas guerras desde a Segunda Guerra Mundial,
e mesmo nas violações do Jus Cogens, como o genocídio, os crimes contra a
humanidade, os crimes de guerra e a tortura, a ação penal contra os infratores
quase nunca é levada a cabo de forma exaustiva, tanto a nível nacional como
internacional. Se apenas a reconstituição da verdade ou nenhuma JT ocorrer,

15  International Human Rights-Law-Institute

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parece que “a justiça [...] está sendo trocada por acordos políticos” (BASSIOUNI,
1996, p. 11). Na verdade, até ao início da década de 1990, quase não existiam
estados de transição em que ambos os instrumentos para lidar com o passado
fossem utilizados de forma igual. Sim, a justiça legal tem sido frequentemente
deixada de lado devido ao poder contínuo dos perpetradores e dos seus apoiantes.
Na América Latina, em particular, a maioria dos estados criou comissões da
verdade como parte dos processos de transição. A Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas16 (CONADEP, 1983-1984) argentina, que, como o
próprio nome sugere, se preocupava principalmente com os desaparecimentos
de pessoas durante a ditadura, serviu de modelo para as comissões chilenas e
sul-africanas subsequentes; Estas, por sua vez, transferiram as conclusões para
outras comissões (ENGEL, 2017, p. 363).17 A “verdade”, juntamente com a “justiça/
lei”, a exigência central dos direitos humanos e das organizações de vítimas,
tornou-se agora cada vez mais um postulado inegociável nos processos de
transição entre o crescente grupo de especialistas mais próximos da política e
de redes transnacionais.

A Comissão Argentina, como todas as subsequentes, surgiu devido a
necessidades locais. Até então, não havia teoria e/ou conceito sobre os benefícios,
o projeto e o impacto das comissões da verdade. Os membros da comissão não
tinham nenhum modelo a seguir.18 Como mostra o estudo da autora e ativista
Priscilla B. Hayner (2001), especializada em crimes contra os direitos humanos
e comissões da verdade, as comissões da verdade criadas nos anos seguintes
diferiram consideravelmente devido as exigências locais e condições iniciais
divergentes no que diz respeito à legitimação política, à estrutura institucional,
ao financiamento, ao mandato, à composição da comissão, aos métodos de
trabalho e à duração do mandato. No entanto, as seguintes semelhanças podem
ser mencionadas:

Em contraste com os julgamentos judiciais, as comissões da verdade não
“punem” os (as) perpetradores (as) através da privação de liberdade, mas sim
documentando e publicitando os seus crimes violentos. Ao mesmo tempo,

16  Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas.
17  Anne K. Krüger deu uma visão geral das comissões da verdade entre 1974 e 2011 no livro Comis-
sões da verdade. A disseminação global de um modelo cultural
(2014).
18  As origens, a justificativa, o estabelecimento e o desenvolvimento do método dessa comissão
ainda são pouco pesquisados.

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pretendem reconhecer a violência sofrida pelas vítimas e tomar medidas para
restaurar a sua dignidade. Ao reconstruir e dizer a “verdade”, elas se concentram
nas vítimas prejudicadas e nos seus ferimentos físicos, emocionais e materiais.
As comissões da verdade não se dirigem apenas às vítimas e aos perpetradores
(quase sempre são homens), mas também tentam utilizar o seu relatório para
influenciar o nível de percepção e sensibilização de toda a população. Os relatos
da verdade são frequentemente precedidos por uma interpretação histórica
oficial. Explica à população porque é que o conflito se intensificou e, como
resultado, ocorreram os crimes violentos, que dimensões assumiram e quem
foram os perpetradores e quem foram as vítimas. Desta forma, invalidam a
interpretação dos (as) perpetradores (as), que é reforçada através da violência
(censura, perseguição de jornalistas críticos), e fortalecem a perspectiva
reprimida das vítimas; Expandir o espaço de possibilidade das vítimas através
do estabelecimento de narrativas alternativas é um pré-requisito importante
para as tentativas de superar traumas individuais e coletivos e de recuperar a
confiança das pessoas afetadas, a fim de moldarem conjuntamente o futuro e os
processos posteriores de reconciliação.

O trabalho das comissões da verdade é democraticamente legítimo
porque são nomeadas por governos eleitos.19 Os seus relatórios finais devem
ser recebidos e divulgados pelos governos eleitos e as recomendações neles
formuladas devem ser implementadas para proporcionar reparação material
às vítimas e prevenir futuras violações. As comissões da verdade procuram
testemunhas (e perpetradores) e classificam os crimes. Embora apenas parte
do material recolhido seja disponibilizada ao público, a documentação tem como
objetivo garantir que a verdade sobre o ocorrido não possa ser manipulada ou
esquecida no futuro. Para além de outras medidas como a criação de memoriais, a
nomeação de locais e ruas ou a abertura de exposições em museus, as comissões
da verdade são locais com os quais se pretende uma “transição” sustentável da
memória coletiva. São – na terminologia da JT – um componente central para a
restauração da ordem, que é entendida como justa (justiça restaurativa). Deverão
contribuir para garantir que os crimes do passado não se repitam no futuro
(KRÜGER, 2014; HAYNER, 2001; FISCHER, 2000; FISCHER, 2022).

19  Contudo, como mostra a cientista social Fatima Kastner, utilizando o exemplo marroquino, a
influência externa é muitas vezes significativa e pode haver um forte envolvimento internacional
(KASTNER, 2015, p. 306-314).

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As comissões da verdade são compostas predominantemente por
advogados, cientistas políticos e, por vezes, antropólogos (as) ou etnólogos (as).
Idealmente, estes vêm de dentro do país. Em estados particularmente fracos
com uma população polarizada ou até mesmo fragmentada, como El Salvador ou
Guatemala, também foram nomeados membros estrangeiros para a comissão.
Para que os relatórios da verdade tenham impacto em uma grande parte da
população, especialmente em sociedades fragmentadas, é ainda mais importante
que pelo menos os membros da comissão possam concordar com um relatório
que seja apoiado por todos. A historiadora Nina Schneider vê, portanto, os relatos
da verdade como uma “‘narrativa de consenso’ dos membros da comissão, que
estão comprometidos com outros objetivos que não o esclarecimento científico,
histórico-factual (traçar o perfil do governo ou de si mesmo, estabilidade política,
reabilitação das vítimas, reconhecimento internacional)” (SCHNEIDER, 2017, p.
110).

Em alguns países de antigas ditaduras ou de guerra civil, ainda não foi
criada uma comissão da verdade. No que diz respeito ao antigo Bloco de Leste,
Krüger afirmou: “que na maioria dos casos nem as comissões da verdade nem os
processos criminais foram realizados sistematicamente” (KRÜGER, 2014, p. 9).
A antologia Justiça Transicional e a antiga União Soviética: revendo o passado,
olhando para o futuro20
, editada pelas cientistas políticas Cynthia M. Horne e
Lavinia Stan, confirma esta conclusão (HORNE; STAN, 2018). O acesso aos arquivos
é praticamente mais difícil em qualquer lugar, especialmente os dos aparelhos
de vigilância, das forças de segurança e dos campos de prisioneiros. Apenas na
Alemanha reunificada os crimes contra os direitos humanos cometidos na antiga
RDA, especialmente as atividades do Ministério da Segurança do Estado (“Stasi”)
e as ordens dos guardas de fronteira para disparar, foram sistematicamente
examinados (DOSSIER STASI, 2018). A situação é também muito difícil nos Estados
sucessores da antiga Iugoslávia. Um projeto transnacional da sociedade civil, a
“Comissão Regional para Estabelecer os Fatos sobre Crimes de Guerra e Outros
Crimes Graves contra os Direitos Humanos no Território da Antiga Iugoslávia”
(REKOM) assumiu as rédeas porque os decisores nacionalistas nos estados
sucessores não queriam concordar com uma cooperação estreita (NIEßER,
2020).

20  Transitional Justice and the Former Soviet Union: Reviewing the Past, Looking the Future.

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JUSTIÇA/DIREITO

Direito/justiça é a segunda grande preocupação da JT. Para garantir uma
coexistência pacífica sustentável em sociedades pós-conflito, não se trata
apenas de reconstituir a verdade sobre crimes graves de forma tão abrangente
quanto possível (justiça restaurativa), mas também de lidar judicialmente com
passados ​​violentos e punir os perpetradores (justiça retributiva).21 Na virada do
milênio, a acusação criminal dos perpetradores aumentou significativamente, o
que, segundo a especialista internacional e em direitos humanos Ruti G. Teitel,
deveu-se à internacionalização (TEITEL, 2003, p. 89).

Para garantir que os perpetradores não fiquem impunes em situações difíceis
de transição interna, a comunidade internacional criou tribunais penais em Haia
para a ex-Iugoslávia (Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, TPII, 1993)
e para Ruanda (Tribunal Penal Internacional para Ruanda, TPIR, 1994). Em vista
da violência flagrante em ambos os casos, que era visível para o mundo inteiro,
esses tribunais se concentraram no julgamento e na condenação dos autores
dos crimes mais graves contra os direitos humanos; a soberania nacional, que já
era precária nesses países que haviam entrado em guerra civil, pôde, portanto,
ser ignorada (KRÜGER, 2014, p. 8; ROHT-ARRIAZZA; MARIEZCURRENA, 2006,
p. 6; BASSIOUNI, 1996, p. 11)22. Argumenta-se frequentemente que os tribunais
internacionais mencionados são complicados, lentos, imperfeitos no seu trabalho
e pouco convincentes em termos do seu efeito dissuasor. Contudo, o exemplo do
TPII mostra que as críticas fundamentais são descabidas. Afinal, o Tribunal Penal
da ex-Iugoslávia emitiu 161 acusações até ao final da sua atividade em 2017; 84
réus foram finalmente condenados. O julgamento contra Slobodan Milošević foi
único na história jurídica recente; o antigo presidente sérvio (e Iugoslavo) morreu
sob custódia em 2006, pouco antes do final do seu julgamento.

O TPII e o TPIR não só trataram de crimes graves, mas também iniciaram
reformas de grande alcance no que diz respeito à aplicação do direito humanitário
internacional em nível interno. São também considerados os precursores do

21  Outro componente do TJ é a justiça reparativa, que não é discutida aqui, nem a lustração (remoção
de funcionários acusados ​​de crimes contra direitos humanos). (WEIFFEN, 2017, p. 87-90).
22  Em Ruanda, também havia tribunais Gacaca na mesma época (prática jurídica comunitária lide-
rada pelos anciãos da aldeia).

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Tribunal Penal Internacional de Haia (TPI), que está em funcionamento desde
2002. Esta é a autoridade mais visível da comunidade internacional e investiga
crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio quando os tribunais
nacionais não podem ou querem (PENSKY, 2006). Desde 2018, o TPI também
exerce jurisdição sobre o “crime de agressão”, com base no qual estão envolvidos
membros de famílias políticas e militares. As elites de liderança de um estado
podem ser responsabilizadas pela agressão militar contra outro estado.

Pode-se dizer que nos últimos anos o direito e a prática jurídica se
desenvolveram no sentido de uma obrigação de punir, ainda que sob a
denominação da JT (MACULAN; GIL, 2020, p. 134). A execução de processos
judiciais contra os perpetradores, o que era impensável há três décadas, tornou-
se agora um direito (GREIFF; DUTHIE, 2020, p. 252). No entanto, isso não pode
ser implementado em qualquer momento e em qualquer lugar porque nem todos
os países ainda assinaram o estatuto. Ausentes importantes são a China, a Coreia
do Norte, a Índia, o Paquistão, a Turquia, o Irã e Cuba, que colocam a soberania
nacional acima das opiniões da comunidade internacional, incluindo questões de
direitos humanos. Esses estados têm resistido repetidamente e com sucesso à
democratização. Mas os EUA e Israel também se recusaram a ratificá-lo até hoje,
o que reduz significativamente o alcance da ação penal internacional. Assim,
embora a acusação criminal de crimes graves tenha tido alguns sucessos, o
balanço a nível mundial é pouco entusiasmante.

O que a punição de criminosos por tribunais criminais pode realmente
alcançar em termos de processos de democratização? Com relação ao impacto
social das medidas punitivas internacionais na antiga Iugoslávia, Janine Natalya
Clark chega a uma conclusão que deixa pouco espaço para otimismo (CLARK,
2014). Na percepção subjetiva de muitas pessoas, a condenação dos responsáveis
por crimes não é vista como um meio adequado para alcançar a justiça. Em
sociedades divididas, este instrumento de JT traz poucos benefícios para a
coexistência pacífica sem outras medidas de acompanhamento. A situação será
provavelmente semelhante em muitos países africanos e do antigo Bloco de Leste.
Pelo menos é assim que se podem interpretar os estudos de caso da antologia O
impacto dos processos judiciais de direitos humanos: Insights de sociedades pós-

TRADUÇÃO

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conflito europeias, latino-americanas e africanas (2020)23, editada pela cientista
política Rosario Figari Layús e pelo especialista em memória coletiva Ulrike
Capdepón.

Contudo, se olharmos para as vítimas, pode-se traçar um quadro diferente:
recorrendo à Argentina, Figari Layús mostra que a acusação por tribunais
nacionais confirma a capacidade das vítimas de exigir e exercer os seus
direitos civis (LAYÚS, 2019, p. 4); as medidas legais tiveram, portanto, um efeito
fortalecedor sobre eles. Outro estudo apresentado por Eva van Roekel utiliza
uma abordagem fenomenológico-antropológica para mostrar como feridas não
curadas foram reabertas na Argentina após a retomada dos julgamentos por
crimes contra os direitos humanos, e quão emocionantes são os “sentimentos
relacionados ao passado” para todos os envolvidos (ROEKEL, 2020). A holandesa
sublinha que é difícil para as vítimas que estão na vanguarda das políticas e
medidas da JT (re)conquistarem justiça e dignidade, especialmente porque
os próprios procedimentos dão sempre aos responsáveis ​​pelos crimes a
oportunidade de se retratarem e de apresentarem o seu ponto de vista. Por fim,
devem ser apontadas falhas na persecução criminal. Uma antologia publicada
por Laura García Martín, especializada em direitos humanos, documenta de
forma convincente que as empresas que se beneficiaram e apoiaram regimes
autoritários violaram massivamente os direitos humanos sociais; no entanto,
este aspecto não foi sistematicamente abordado (MARTÍN, 2020).

Não são apenas os difíceis contextos nacionais, as persistentes linhas
divisórias no seio das sociedades e o poder ininterrupto dos atores violentos que
impedem a aplicação duradoura das medidas da JT. O problema, afirma o sociólogo
Mikkel Jarle Christensen, também está enraizado na própria JT (CHRISTENSEN,
2020, p. 464-482). Seu estudo revela que as comissões da verdade e o sistema
de justiça criminal não estão suficientemente sincronizados nas suas ações. O
fato de os agentes reunidos no campo da JT terem uma formação disciplinar
por vezes heterogênea e, por conseguinte, trabalharem de forma diferente na
investigação e na prática não é uma constatação nova para quem trabalha nesse
campo. No entanto, o estudo de Christensen deve ser levado a sério como um
apelo a uma maior aproximação da prática do direito penal da TJ, que é percebida

23  The Impact of Human Rights Prosecutions: Insights from European, Latin American and African
Post-Conflict Societies (2020).

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como hermética, com a das comissões da verdade e outras medidas de justiça
restaurativa, no sentido de uma reconciliação integrada com o passado.

JUSTIÇA TRANSICIONAL COMO CIÊNCIA

Apesar de reservas de longa data, particularmente no domínio da história,
o termo JT estabeleceu-se no discurso público e na maioria das disciplinas
acadêmicas desde a virada do milênio como uma denominação interdisciplinar
para a análise do passado em Estados em vias de democratização com um
passado ditatorial ou de guerra civil. Neste processo, formou-se uma área de
conhecimento independente sob a designação de JT, que podia ser distinguida
de outros campos acadêmicos e estabelecer prioridades em termos de conteúdo,
método, espaço e tempo.

Desde o início, muitos dos atores que trabalham sob a designação da JT
afirmaram abordar o seu tema de uma perspectiva científica (ROHT-ARRIAZZA;
MARIEZCURRENA, 2006, p. 1). Por outro lado, os conhecimentos práticos
adquiridos contribuíram gradativamente com a pesquisa acadêmica de base. Isso
permitiu que a comunidade em rápido crescimento expandisse e desenvolvesse
o campo, cooptasse os conhecimentos de outras disciplinas e o defendesse
contra a concorrência potencial de outros campos. Isso também melhorou sua
reputação entre colegas de outras áreas e lhes deu acesso a financiamento de
pesquisa e contratos lucrativos de consultoria.

No início da pesquisa em JT, os especialistas envolvidos eram principalmente
formados em universidades “ocidentais” com conhecimentos gerais de ciência
política e direito, mas nas últimas duas décadas, a comunidade quase sempre
exigiu competências na área para além deste conhecimento básico. Isso significa
que os contextos regionais e locais são levados mais a sério do que nos primeiros
tempos da JT. Este fato não só aumentou os conhecimentos especializados dos
pesquisadores do Sul Global, como também as abordagens de investigação se
tornaram mais interdisciplinares. Foram acrescentados estudos etnológicos,
antropológicos e de ciências sociais, particularmente no campo das comissões
da verdade.

É algo surpreendente que o campo acadêmico da JT se tenha estabelecido
como um espaço de conhecimento independente e não dentro de áreas de

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investigação existentes, relacionadas com políticas, com competências na
mudança de sociedades em conflito, tais como estudos sobre paz e conflitos ou
a investigação para o desenvolvimento. Uma razão para isso pode ter sido o fato
de que os dois campos mencionados estavam preocupados consigo mesmos na
década de 1990: a investigação sobre a paz e os conflitos, que se preocupava
fortemente com as principais questões internacionais e interestatais durante a
Guerra Fria, sofreu uma mudança de perspectiva diante dos numerosos conflitos
internos que vieram à tona; nesse ajustamento, reconciliar-se com o passado não
foi a primeira prioridade. Em igual medida, a investigação para o desenvolvimento
também teve de se reinventar na ausência de sucessos convincentes. As reformas
socioeconômicas de cima para baixo derivadas de “grandes teorias” geralmente
caíram numa grande crise, de modo que os “grandes” projetos e narrativas
mestras foram abandonados (MENZEL, 1992). Após o fim do conflito Leste-Oeste,
o conflito Norte-Sul, que de forma alguma tinha sido superado, veio à tona. As
críticas pós-coloniais responderam aos poderosos ensinamentos do Norte
Global, especialmente dos principais institutos dos EUA. O livro Encontrando o
Desenvolvimento: A construção e a desconstrução do Terceiro Mundo
(1995), de
Arturo Escobar, por exemplo, formulou um duro acerto de contas com o discurso
hegemônico do desenvolvimento. As reservas do antropólogo colombiano-
americano sobre a abordagem eurocêntrica e científica do mundo não europeu
poderiam facilmente ter sido aplicadas ao discurso inicial da JT.

De acordo com Anne K. Krüger, a pesquisa de JT desenvolveu-se em três
direções desde a década de 1990: Um primeiro conjunto de investigações
consiste em estudos de caso de determinados países, nos quais são examinadas
a história/causas, formas e curso da violência, as medidas da JT e seu impacto.
Um segundo grupo foca-se em medidas individuais, como as comissões da
verdade, que são geralmente examinadas comparativamente para identificar
analogias e diferenças. Uma terceira direção trata das condições de base a fim
de tirar conclusões sobre as medidas “corretas” (KRÜGER, 2014, p. 15; ANM; p. 70-
72).

O processo de estabelecimento da pesquisa em JT avançou através da criação
de institutos, cátedras e cátedras individuais, bem como da implementação de
congressos especializados, painéis em congressos disciplinares, workshops
e escolas de verão. Periódicos nas áreas de direito internacional, direito penal,
direitos humanos, pesquisa sobre paz e conflitos e estudos de desenvolvimento

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também se abriram para o tema da JT.

Um marco no processo de institucionalização acadêmica foi a fundação
do Centro Internacional para Justiça Transicional24 (ICTJ) em 2001. Ele tenta
combinar conhecimentos empíricos e acadêmicos como nenhuma outra
instituição da JT. Ao mesmo tempo, os responsáveis estão se esforçando para
equilibrar o conhecimento local com o conhecimento global; por outro lado,
o conhecimento global deve ser transferido para o nível local. A organização
internacional sem fins lucrativos apoia Estados, decisores (as) e vítimas de
crimes nas transições democráticas e promove projetos de investigação em JT.
A investigação refere-se a estudos nacionais e estudos temáticos nas seguintes
áreas: Desarmamento, Desmobilização e Reintegração; Gênero e Reparações;
Identidades em Transição; Divulgação; Reparações; Justiça Transicional e
Desenvolvimento; Justiça Transicional e Deslocamento; Justiça Transicional,
Cultura e Sociedade; Verificação25. Entre outras coisas, os membros fundadores
se conheciam por seu trabalho na Comissão da Verdade da África do Sul. Muitos
rostos conhecidos da comunidade de JT fazem parte da diretoria e do conselho
consultivo.26 Institutos adicionais, como o Instituto Transicional da Universidade
de Ulster (THI)27, em 2003, seguiram o ICTJ.

Outro alicerce no estabelecimento da JJ foi a fundação da Revista
Internacional para Justiça Transicional
28 na Universidade de Oxford em 2007 (OUP
Academic 2021). O conselho editorial e o conselho consultivo científico incluem
guardiões da comunidade que estabelecem padrões, definem agendas e garantem
a implementação de um vocabulário comum (https://www.ictj.org/about/board).
A série Estudos Routledge em Paz e em Resolução de Conflitos29, publicada pelo
Departamento de Estudos para a Paz da Universidade de Bradford30 desempenha,
desde 2006, um papel semelhante na publicação de monografias e antologias.

24  International Center for Transitional Justice.
25  https://www.ictj.org/research
26  International Center for Transitional Justice 2011; https://www.ictj.org/about/board . [24.6.2021].
27  Ulster University’s Transitional Institute (THI).
28  International Journal for Transitional Justice.
29  Routledge Studies in Peace and Conflict Resolution.
30  Department of Peace Studies der University of Bradford.

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Tais instituições são os locais onde o conhecimento se configura, se
desenvolve, se apropria e circula sob a marca da JT. Parte do conhecimento
gerado é transferido para processos de JT em andamento. O conhecimento
também chegou às Nações Unidas. A ONU criou o cargo de Relator Especial
para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantia de não recorrência
em 2012. Até 2018, o primeiro titular foi o conselheiro colombiano do ICTJ, Pablo
de Greiff. A partir de 2020, a área de memória também fará parte do escopo do
cargo. Por último, importa referir que também recentemente foram promovidos
jovens talentos sob a marca da TJ. Por exemplo, a Academia de Genebra oferece
desde 2020 (por um bom dinheiro) o Mestrado em Justiça Transicional, Direitos
Humanos e Estado de Direito31.

JUSTIÇA TRANSICIONAL E HISTORIOGRAFIA

Nas explicações anteriores, o conhecimento historiográfico desempenhou
um papel secundário. Os (as) historiadores (as) que trabalham com crimes contra
os direitos humanos e transições democráticas hesitaram inicialmente em utilizar
o termo JT. Dos textos que passaram pelo filtro seletivo da coletânea de Kritz de
1995, apenas um foi escrito por um historiador: Peter Novick, da Universidade
de Chicago. Novick era especialista em lidar com os colaboradores de Vichy
na França do pós-guerra e em memória coletiva do Holocausto nos Estados
Unidos. A participação de historiadores em congressos, workshops e painéis sob
a marca da JT também foi limitada durante a fase de formação da JT. Durante
muito tempo, os (as) historiadores (as) também eram raramente encontrado(a)
s nos discursos publicados. Entre 2003 e 2008, Laurel Fletcher e Harvey M.
Weinstein pesquisaram os principais periódicos de língua inglesa em busca de
artigos sobre temas da JT e encontraram apenas três artigos da área de história
(FLETCHER; WEINSTEIN, 2015, p. 183; SCHNEIDER, 2017, p. 108). Isso mudou nos
anos seguintes: de 578 autores, pelo menos 31 historiadores publicaram artigos
(incluindo revisões coletivas) na Revista Internacional de Justiça Transicional32
entre 2007 e 2020.33

31  Transitional Justice, Human Rights and the Rule of Law.
32  International Journal for Transitional Justice.
33  Essas informações são baseadas em um levantamento feito por Katharina Danisch.

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Durante muito tempo, os historiadores trouxeram os seus conhecimentos
para o campo da JT, principalmente nas áreas de reconstrução, avaliação e
documentação dos crimes do fascismo europeu e do estalinismo. Como mostra
a pesquisa de Guillaume Mouralis (2008; 2019), Sanya Romeike (2016) e Annette
Weinke (2002; 2006; 2017), Nesse contexto, a pesquisa sobre o confronto
do sistema de justiça criminal com o passado violento em conexão com as
transformações políticas fez grandes progressos de acordo com as premissas
historiográficas. Embora não tenha havido uma grande comissão da verdade
na Alemanha, vários comitês individuais lançaram luz sobre o comportamento
institucional do Estado. A Comissão Histórica Independente (UHK)34, criada em
2005, por exemplo, investigou o papel do Serviço de Relações Exteriores durante
a era nacional-socialista e como isso foi tratado após o restabelecimento do
Ministério das Relações Exteriores. E a Comissão Histórica Independente,
criada em 2016 para investigar a história do Ministério da Alimentação do Reich
e a continuidade das autoridades nazistas, tratou de questões semelhantes em
outro ministério. As relações da Alemanha com os países vizinhos durante a era
nacional-socialista também foram investigadas por comissões de historiadores
(as) (CORNELIßEN; PEZZINO, 2017). Mesmo que o vocabulário da JT não seja
utilizado em conexão com os exemplos mencionados, eles são uma prova de que
o conhecimento historiográfico está em demanda nas áreas da JT orientadas
para a aplicação. No entanto, este é particularmente o caso de processos
concluídos, distantes e definíveis. Por outro lado, muitos historiadores preferem
precisamente esta constelação porque podem então realizar uma avaliação
global em diferentes níveis a partir de múltiplas perspectivas, tendo em conta
o material de origem acessível. No entanto, este tipo de pesquisa é demorado e
não é adequado para comparações globais.

Na era atual da JT, as competências históricas são cada vez mais procuradas.
Durante os processos judiciais, os historiadores (as) auxiliam os investigadore(a)s
e juíze(a)s no fornecimento e contextualização da interpretação do material. Eles
também descrevem e interpretam o percurso e os resultados dos procedimentos.
O historiador sérvio Vladimir Petković escreveu um artigo perspicaz sobre o tema
(PETKOVIC, 2018). O(a)s historiadore(a)s também poderiam desempenhar um
papel mais importante do que anteriormente nas comissões da verdade. O motivo

34  Unabhängige Historikerkommission.

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pelo qual o conhecimento histórico é frequentemente excluído do trabalho de
tais comitês e o que os historiadores pensam sobre isso mereceriam um estudo
separado.

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O(a)s historiadore(a)s desempenham um papel muito mais importante no
campo da memória coletiva do que em relação ao direito/justiça e à verdade nos
processos de JT. Desde a década de 1990, a cultura histórica e a história pública
experimentaram um enorme crescimento.35 Eles são interdisciplinares, embora
com um forte envolvimento da ciência histórica, e se beneficiaram enormemente
em termos teóricos, conceituais e metodológicos do campo em expansão dos
estudos da memória, que se desenvolveu em diálogo com o estabelecimento de
locais memoriais, museus e centros de documentação. Seu compromisso com o
quê e como também é necessário na didática da história, ou seja, na comunicação
da história para as gerações futuras.

Acima de tudo, porém, quando se trata do conteúdo do passado e de sua
avaliação, a ciência histórica pode, e de fato deve, usar seus métodos para realizar
pesquisas básicas. Nas sociedades em transição, o passado é contestado. O
modo de debate é altamente emocionalizado, os argumentos são frequentemente
apresentados de forma polêmica e com intenção tática. Nessas condições, o
conhecimento histórico apresentado de forma prudente que não queira ser
politicamente instrumentalizado corre o risco de não ser percebido. Como mostra
a historiadora Marina Franco, recorrendo ao exemplo da Argentina (FRANCO,
2018), é quase inevitável que os (as) cientistas das sociedades pós-ditadura e
pós-conflito sejam associados a um campo ou a outro. A história contemporânea
geralmente entra nesse espaço de discussão ou discurso com um atraso ou seja,
em um momento em que os representantes de outras disciplinas já marcaram
há muito tempo (embora não tenham medido) os principais pontos e tópicos
sobre o passado utilizando seus próprios métodos, publicando monografias,
artigos de periódicos e artigos de opinião em jornais, bem como entrevistas de
rádio e televisão. Nessas condições, a competência da história contemporânea
é indispensável para questionar ou diferenciar a desconstrução de opiniões que
os grupos de interesse (organizações de vítimas, exército etc.), as comissões da
verdade, os atores políticos ou a mídia trouxeram ao mundo. No que diz respeito
à Argentina, Franco constata uma verdadeira “explosão histórica” desde meados
da primeira década do novo milénio; há, portanto, uma necessidade de discussão
sobre o passado. De acordo com Franco, o principal tópico que ainda domina a

35 Consulte também o capítulo 2 dessa antologia de Susanne Schregel, Jan Hansen e Daniel Gerster.

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pesquisa e o discurso atualmente é a “ditadura”. Nesse contexto, a historiografia
(que inclui todos os estudos acadêmicos que lidam com o passado violento) tem
trabalhado com termos como “terrorismo de Estado” ou “genocídio”. O vocabulário
da ditadura está sendo apresentado com adjetivos; as pessoas discutem se
a ditadura foi mais “militar-corporativa” ou “civil-militar-eclesiástica”. Outra
controvérsia, de acordo com Franco, está relacionada aos componentes centrais
da JT, ou seja, “direito” versus “verdade” ou “direito” e “verdade”. As implicações
de tais disputas em situações de transição ou pós-conflito são consideráveis, e é
por isso que é ainda mais desejável que os pesquisadores mantenham distância
do objeto de pesquisa e dos (as) protagonistas, seus pensamentos e suas ações,
a fim de intervir nas disputas como um fator corretivo. (FRANCO, 2018, p. 148)

Independentemente das condições de trabalho muitas vezes difíceis nas
sociedades pós-ditadura e pós-guerra civil, o conhecimento baseado na ciência
histórica pode dar um contributo importante. Os historiadores se beneficiam da
virada cultural e global, mas também do reajuste praxeológico do sujeito desde
o início do desenvolvimento do campo da JT. Muitos estudos de JT escritos por
não-historiadores falam e escrevem sobre processos de JT sem examinar em
detalhe os processos entre o ponto de partida e o resultado. Além da dimensão
discursiva e representativa, a ciência histórica também leva a sério as ações das
pessoas, ou seja, o que elas fazem e como o fazem, conforme rotinizado por regras
e determinado por constelações históricas. Nada substitui a descrição densa,
que só se torna explicativa no espaço social e cultural através da contextualização
histórica. A investigação histórica vê os processos como abertos (SCHNEIDER,
2017, p. 115, 120). E, em geral, adota uma perspectiva de prazo mais longo do que
os estudos vinculados à pesquisa de transição restrita.

A história do direito penal, há muito negligenciada pela corporação
histórica, recebeu um novo impulso através destas inovações. Em sua tese de
habilitação publicada em 2019, O momento Nuremberg. O processo internacional,
os advogados e a questão racial
36, Guillaume Mouralis, por exemplo, examina o
“Projeto Nuremberg” como um processo moldado por advogados, promotores,
investigadores, consultores jurídicos, historiadores e intérpretes. Ele vê os
resultados como uma consequência das negociações interculturais e da

36  Le moment Nuremberg. Le procès international, les lawyers et la question raciale (2019). Dispo-
nível em: http://www.pressesdesciencespo.fr/fr/livre/?GCOI=27246100484670

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aproximação entre as pessoas delegadas pelas potências aliadas vitoriosas.
Diferentes formações acadêmicas e pós-acadêmicas e influências e inovações
culturais divergentes desempenharam aqui um papel central. O “momento
Nuremberg” foi certamente suficiente para proporcionar uma abordagem
internacional para a punição de crimes contra a paz, a humanidade, a participação
em conspirações e a formação de organizações criminosas. Mas a janela de tempo
foi muito curta para gerar um ambiente transnacional com normas jurídicas, de
direito internacional e processuais internacionais, especialmente porque os
interesses políticos eram onipresentes ao lado dos critérios jurídicos. Não só a
formação do bloco que estava surgindo logo dificultou o estabelecimento de uma
cultura penal internacional/universal, como também houve reservas no “Ocidente”
democrático. Os EUA expressaram reservas quanto a uma internacionalização
forçada do crime contra a humanidade porque isso ameaçava minar o monopólio
da interpretação em seu próprio país, que ainda estava estruturado em uma
base racista (MOURALIS, 2019, p. 119). No entanto, as organizações de direitos
civis dos EUA têm se referido a “Nuremberg” desde então. O estudo de Mouralis
culturaliza os procedimentos do tribunal criminal. O estudo lida com o problema
do universalismo versus particularismo. Ainda há uma grande necessidade
de pesquisas históricas básicas bem fundamentadas em todos os estados
de transição recentes. Nesse contexto, só podemos concordar com o apelo
de Susanne Schregel, Jan Hansen e Daniel Gerster para o estudo das forças
armadas nas sociedades no capítulo 2 da coletânea Pesquisa histórica sobre
paz e conflitos: a quadratura do círculo?37 (2023). Ainda existem poucos estudos
sobre esse assunto nos países e partes do mundo que mencionei neste ensaio. A
justificativa frequentemente ouvida de que as forças de segurança não gostam
de tornar seus arquivos acessíveis não é realmente uma desculpa convincente.
Afinal de contas, a história contemporânea quase sempre pode encontrar outras
maneiras de trabalhar. As estruturas e culturas autoritárias também precisam
ser investigadas, e em períodos que vão muito além da versão resumida dos
processos de transição. Por fim, a história contemporânea deve se esforçar mais
para levar em conta as transições em pesquisas históricas gerais.

37  Historische Friedens- und Konfliktforschung: Die Quadratur des Kreises? (2023).

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ÁREAS PROBLEMÁTICAS E ÁREAS DE TENSÃO

As considerações anteriores mostraram que o campo da JT mudou e se
abriu nas últimas décadas. Quanto maior se tornou a experiência com a JT, mais
claro ficou que a transição para sociedades democráticas liberais apoiadas por
medidas da JT para lidar com crimes graves no passado e superá-los não poderia
ser alcançada tão rápida e facilmente como as vozes otimistas acreditavam na
década de 1990.

A crescente comunidade de especialistas em JT foi, portanto, forçada
a revisar os pressupostos e instrumentos básicos anteriormente válidos e a
aprimorar as abordagens para superar a violência a partir de uma perspectiva
de TJ. Pablo de Greiff resumiu esse desafio em uma frase: “A justiça transicional
não levou em conta o contexto de forma suficiente, [ela é] muito formulaica
[formelhaft] e tecnocrática” (GREIFF, 2020, 255). O diagnóstico de De Greiff de
que circunstâncias diferentes exigem abordagens diferentes e que é necessário
mais pragmatismo no futuro está correto, mas deveria ser formulado de forma
mais concreta.

Portanto, gostaria de concluir mencionando cinco áreas problemáticas
interconectadas que estão sendo trabalhadas atualmente na pesquisa e
na prática: Universalidade versus particularidade, temporalidade estreita
versus ampla, mono versus multidisciplinaridade, falta de participação versus
participação e centralidade no Estado versus desnacionalização.

Universalidade versus particularidade: Como cada transição tem um ponto
de partida diferente, um curso diferente e, portanto, resultados diferentes, não
existe um caminho certo. No entanto, isso não significa que o principal objetivo da
JT de restaurar os direitos e a dignidade das vítimas em todo o mundo, apoiar os
processos de democratização e promover a coexistência deva ser abandonado.
A crítica dos partidários de Fukuyama não é sobre a validade global dos direitos
humanos, mas sim sobre a ingenuidade histórica desta geração sobre o que era
possível e sua atitude eurocêntrica presunçosa em relação aos métodos que
devem ser usados para moldar o futuro. Neste contexto, foi criticado, com razão,
o fato de ter sido dada pouca consideração aos contextos nacionais e locais
(WOLFF, 2022). A Colômbia está atualmente mostrando que as coisas podem
ser diferentes. Este país, comprometido com a “paz territorial”, tornou-se um
verdadeiro laboratório para perspectivas e abordagens locais da JT (DIAZ et. al;

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2021, p. 106-116).
Temporalidade restrita versus ampla: a suposição de que as medidas da

JT poderiam ser limitadas a um curto período de tempo para produzir o efeito
desejado também questionou uma segunda suposição básica da geração de
Fukuyama. Hoje, é um fato bem documentado que os processos de transição
levam muito tempo, não raramente demoram muito, e podem estar associados
a constantes retrocessos. É necessário, mas não suficiente, aplicar medidas
restaurativas e retributivas, promover processos de democratização e
proporcionar justiça e direitos às vítimas. São necessárias várias gerações
para que sociedades divididas aprendam a viver juntas. Conforme mencionado
acima, não são apenas o(a)s especialistas que se debatem sobre como avaliar o
passado. Mesmo décadas após o fim das guerras civis e das ditaduras, o passado
geralmente é altamente politizado. Portanto, as transições acompanhadas por
medidas da JT duram muito mais do que se supunha na década de 1990. Um
passado violento é doloroso. Ele não desaparece com o passar das gerações,
não pode ser “apagado” “deixando a grama crescer” ou “pondo uma pedra [einen
Schlussstrich zieht
] sobre ele” porque o debate público é caracterizado por
tensões, novos pontos focais e questões que surgem repetidamente (JELIN,
2017). Mas, sem surpresa para o(a)s historiadore(a)s especializado(a)s, o ponto
de partida também é frequentemente questionado, por exemplo, quando os
movimentos sociais perguntam sobre culturas ou estruturas de violência cujas
origens são muito mais antigas. Nas ex-colônias, em particular, é (também) uma
questão de lidar com legados sociais, econômicos e culturais.38 Portanto, Sharp
apontou corretamente que é vital para o campo da JT emancipar-se da transição
“paradigmática”, que é sempre projetada para o curto prazo. É preciso romper
com pressupostos básicos universalistas, descartar um habitus neocolonialista
e arrogante e expandir os instrumentos limitados (“reducionistas”) da JT. (SHARP,
2013, p. 163)39 Isso leva tempo.

Mono versus multidisciplinaridade: Sharp e outros reformadores consideram
que a produção de conhecimento sobre paz, conflitos e desenvolvimento, bem

38  Esse autor examina o direito internacional, ao qual atribui a continuidade do colonialismo mesmo
em contextos pós-coloniais. Ele considera o uso e a distribuição de terras, bem como o tratamento de
minorias, como uma área central de responsabilidade. Temas como a questão da terra só podem ser
tratadas em longo prazo.
39  Ver McAuliffe (2021, p. 817-847).

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como os estudos culturais em geral, são fundamentais para poder analisar e
aconselhar em um campo tão expandido e renovado (HODDY; GREADY, 2021;
BAKER; WOCHNIK, 2016; SHARP, 2013). Trata-se, portanto, de incluir outros
campos ou disciplinas, a fim de combinar competências adicionais sob a égide
da JT. Poderiam surgir aqui sinergias com a investigação contemporânea e
histórica sobre a paz e os conflitos. O investigador da paz Johan Galtung já tinha
criticado duramente a “abordagem de paz liberal” na sua publicação de 1976, Três
abordagens realistas para a paz: Manutenção da paz, pacificação e construção
da paz40
, e apelou a uma perspectiva abrangente e de longo prazo levando em
consideração as variáveis ​​socioeconómicas e culturais. Sob o termo construção
da paz, ele resumiu medidas que se centraram na sustentabilidade através da
mudança dos contextos socioeconômicos e do nível de percepção e consciência.

Essa abordagem, que também renovou a pesquisa sobre paz e conflitos
porque poderia ser aplicada ao número crescente de conflitos intraestatais,
só se concretizou de fato na ONU após o fim da Guerra Fria. Da mesma forma,
a renovada pesquisa sobre Desenvolvimento41 – que agora se concentrava na
participação, nas capacidades, nos direitos e no desenvolvimento humano –
também forneceu um impulso importante para a pesquisa mais recente sobre JT.
Nesse contexto, o projeto transnacional Justiça Transicional e Desenvolvimento:
Fazendo conexões42, liderado por Pablo de Greiff e Roger Duthie e sediado no
ICTJ, é particularmente digno de nota (GREIFF; DUTHIE, 2009, p. 18). Ele tentar
utilizar as convergências entre a JT e Desenvolvimento e explorar o potencial de
sinergia de ambos os campos.

Falta de participação versus participação: o campo da JT também mudou
significativamente em relação aos agentes envolvidos. Embora os Estados
centralizados tenham sido inicialmente o principal ponto de contato na área da JT
para o desenvolvimento e a implementação de medidas, também houve aqui uma
mudança. Os tecnocratas da JT da geração de Fukuyama tiveram que suportar a
acusação de agir muito longe das pessoas mais afetadas pelos conflitos – grupos
étnicos, minorias como a comunidade LGBTQIA+ e, em muitos países, também
mulheres e crianças – e, portanto, negar-lhes a participação e não promover
adequadamente suas opções para lidar com a violência e a autodeterminação

40  Three Realistic Approaches to Peace: Peacekeeping, Peacemaking and Peacebuilding (1976).
41  Development Studies.
42  Transitional Justice and Development: Making Connections.

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(HODDY; GREADY, 2021, p. 2; SHARP, 2013, p. 169-170). Até a Resolução 1325 do
Conselho de Segurança das Nações Unidas de 2000, que forma a base para o
programa Mulheres, Paz e Segurança (WPS)43 das Nações Unidas, os círculos de
JT também pararam de ignorar a violência baseada em gênero e suas origens
estruturais nas agendas internacionais de JT e de Construção da Paz44. Essas
abordagens diferenciadas, que levam em conta o gênero, a idade ou a etnia das
vítimas, são utilizadas, mas, na opinião de muitos observadores da área, elas
devem ser mais desenvolvidas no futuro, estendidas a grupos como a comunidade
LGBTQIA+ e refletidas de forma consistente em medidas localmente concretas
(SCHULZ, 2020, p. 691-710).

Centralização no Estado versus desnacionalização: O último ponto de
crítica, que está intimamente ligado ao aspecto anterior da falta de participação,
ou seja, excesso de burocracia e centralismo estatal, também é conhecido de
outros contextos. Galtung (1976) já havia abordado esse aspecto quando pediu
uma abordagem de baixo para cima em vez de uma abordagem puramente de
cima para baixo.

Em termos de implementação, isso significa aplicar consistentemente
métodos baseados na comunidade para levar em conta as necessidades, ideias
e tradições locais. Portanto, a virada local também deve ser implementada na
JT (KOCHANSK, 2018). Assim, trata-se de questionar a eficácia do conhecimento
científico “ocidental”, adaptando-o aos contextos locais, lidando com “outras”
ideias de justiça, por exemplo, e permitindo que mulheres, grupos étnicos
marginalizados e outras minorias, sobretudo as populações (outrora) colonizadas,
participem (BRUNNER, 2020, p. 79). Nesse contexto, também é necessário
desconstruir a terminologia que foi predominantemente inventada no mundo
anglo-americano. Nessa forma de promover a justiça restaurativa, os (as)
“especialistas” são, acima de tudo, mediadores (as).

Na Colômbia, por exemplo, onde o conflito armado sempre foi travado em
territórios indígenas, uma equipe de pesquisa intercultural da Universidade
do Rosário45 (Bogotá) está trabalhando com métodos (“Pesquisa de Ação
Participativa”) que tem recebido pouca atenção no processo de paz nacional,
como o mapeamento corporal, dança e canto na interface entre gênero e etnia. O

43  Women, Peace and Security (WPS).
44  Peacebuilding.
45  Universidad del Rosario.

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348 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

grupo apoia as mulheres indígenas a trazerem suas perspectivas e epistemes, que
raramente são representadas em público, como vítimas e como perpetradoras no
contexto do trabalho da Comissão da Verdade. O objetivo é evitar “uma hierarquia
sexual e racial hegemônica e uma perspectiva deslocalizada da JT” (SANTAMARÍA
et. al, 2020, p. 56-79). Para possibilitar a comunicação apesar de sistemas
epistemológicos, visões de mundo, modos de comunicação e perspectivas
fundamentalmente diferentes, os métodos interculturais e artísticos estão
cada vez mais ocupando espaço no discurso prático e teórico sobre a JT. As
experiências de violência e suas consequências, que em determinados contextos
culturais são indescritíveis, dolorosas demais ou dificilmente explicáveis para
pessoas de fora, podem ser expressas em trabalhos criativos, geralmente não
verbais. Isso as torna visíveis e decifráveis para os “outros” e, portanto, forma
uma base para uma aproximação baseada no respeito mútuo (COHEN, 2020, p.
1-13).

CONCLUSÃO E PERSPECTIVAS

De modo geral, pode-se dizer que nas últimas duas décadas o campo da JT
ganhou importância em todo o mundo, apoiado por um processo considerável
de institucionalização. Isso se explica pelo fato de que o “fim da história” não foi
alcançado de forma alguma e os conflitos e sistemas autoritários ainda estão na
ordem do dia. Transições bem-sucedidas e sustentáveis apoiadas por medidas da
JT são a exceção e não a regra. As maiores decepções ocorreram recentemente
no Afeganistão, na Síria e no Iraque, onde as circunstâncias simplesmente não
permitem um impacto duradouro da JT. Os atores no espaço de conhecimento
da JT reagiram de forma criativa aos fracassos: o campo está se abrindo,
adotando cada vez mais uma abordagem multiperspectiva, tentando combater o
eurocentrismo por meio de abordagens participativas, pós-coloniais e abertas a
gênero e etnia, harmonizando diferentes interesses e percepções em nível local e
nacional, ampliando a visão das estruturas históricas profundas e desenvolvendo
perspectivas para futuros mais distantes. No momento, não é possível prever
com certeza se a JT perderá sua própria identidade com a caça furtiva em outros
campos e disciplinas (EVANS, 2018; GREADY; ROBINS, 2019) ou se será capaz de
se reinventar com sucesso.

TRADUÇÃO

349 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Independentemente disso, o conhecimento da Pesquisa Histórica sobre Paz
e Conflitos (PHPC)46 ganhou importância com o surgimento dos campos práticos
da didática histórica, da cultura histórica e da história pública. No entanto, o
conhecimento de historiadores especializados também é solicitado quando se
trata de interpretar passados violentos. Encontrar maneiras de sair de passados
violentos requer análises e descrições precisas. É nesse ponto que a PHPC e a
JT se encontram. Em programas de estudo, instituições, comissões da verdade
e cultura histórica, a experiência acumulada pelos historiadores tem sido (muito)
pouco utilizada até o momento, sobretudo em relação a estudos de casos
históricos e abordagens metodológicas (especialmente ao lidar com fontes). Por
outro lado, a PHPC também poderia se beneficiar mais da JT no futuro, revisando
suas conclusões de inúmeros estudos sob a marca da JT com base em processos
de paz anteriores.

Nesse contexto, um exame mais intensivo da pesquisa na e sobre a África e,
acima de tudo, na e sobre a América Latina me parece particularmente valioso.
A PHPC também pode aprender com os estudos sobre a dimensão étnica e de
gênero, os processos de reconhecimento e as descobertas sobre a dimensão
intergeracional dos conflitos (primeira, segunda e terceira geração) ao lidar
com guerras civis e ditaduras. Nessa perspectiva, os estudos de área poderiam
assumir cada vez mais uma função de ponte.

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RESENHA

355 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

CORPO E ANCESTRALIDADE NO TEMPO QUE TRANSMUTA, RECRIA E SE IGUALA EM
DIFERENÇA: ENSINAMENTOS A PARTIR DE PERFORMANCES DO TEMPO ESPIRALAR DE

LEDA MARIA MARTINS

BODY AND ANCESTRALITY IN TIME THAT TRANSMUTES, RECREATES AND EQUALS IN
DIFFERENCE: TEACHINGS FROM PERFORMANCES OF SPIRAL TIME BY

LEDA MARIA MARTINS

Maria Eduarda Durães Martins1

https://orcid.org/0009-0003-3531-7796
http://lattes.cnpq.br/0319220609450456

Recebido em: 19 de novembro de 2024.
Primeira revisão: 23 de fevereiro de 2025.

Revisão final: 01 de março de 2025.
Aprovado em: 16 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22297  

Resenha de: MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do
corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

Se para Leda Maria Martins escrever é uma dádiva, a leitura de Performan-
ces do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela é, para nós, um gozo! Nossa
Rainha-Escriba opera uma transmutação epistemológica, nos redimindo da
tirania de Chronos e de toda a ideologia do tempo linear, evolutivo, cindido,
restituindo-nos à experiência tempo em sua forma espiralar, com suas curvas
e dobras, gestos e sonoridades, vocalidades e ritmos. Um tempo que dança no
corpo bailarina. Uma perfomance que se apresenta como ética; uma ética que
se incorpora como bem, oferenda e dádiva. Reinado do paradigma ético-esté-
tico desenhando a ancestralidade inscrita na tríade tocar-cantar-dançar (e a
partir de Leda, escrever); oralitura prenhe de encruzilhada; encruzilhada que,
no risco, é epifania criativa. Cultura Negra transcriada na aventura do conhe-
cimento em movimento. O tempo da impermanência é o ventre que protege
o segredo da Criação. O tempo-ancestralidade que afasta o fetiche da racio-
nalização do tempo e nos devolve ao prazer de sua fruição. Cartografia dos
Saberes. Cartografia dos Prazeres afrografados como poiesis e como poética
do nosso tempo.

Eduardo Oliveira

1  Mestranda em História Cultural, Memórias e Identidades no Programa de Pós-graduação em História
pela Universidade de Brasília (UnB), com bolsa CNPq. Licenciada em História pela Universidade
Federal de Jataí (UFJ). Pesquisadora sobre a Ancestralidade e Afrofuturismo nas obras Ladrão (2019)
e O Dono do Lugar (2022), do artista mineiro Djonga. E-mail: org.eduardaduraes@gmail.com

RESENHA

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Estas são palavras potentes que abrem a obra “Performance do tempo
espiralar - poéticas do corpo-tela
”, de Leda Maria Martins, uma publicação da
Editora Cobogó que integra a coleção Encruzilhada, coordenada por José
Fernando Peixoto de Azevedo, lançada em 2021 e relançada em 2022. Incorporada
por sete composições, sendo I) Teosofias, tempos e teorias; II) Os tempos curvos da
memória; III) Poéticas da oralitura; IV) O meu destino é cantar, a gesta mitopoética
dos Reinados
; V) Lírica dos afetos, o canto-imagem Maxakali; VI) Um corpo-tela,
uma poética vaga-lume e VII) Escrever o outro; o livro é finalizado com Ntunga,
que apresenta Do tempo espiralar, condensações.

Colhendo informações nos últimos vinte anos de sua existência enquanto
intelectual, desde meados dos anos 90 do século XX, a anciã Leda Maria Martins,
apresenta a possibilidade de pensar, experimentar e modificar as experiências
das temporalidades que a autora denomina como tempo espiralar. Segundo Leda
Martins (2021), uma das motivações da sua escrita é recolher as reflexões dos
últimos vinte anos e apontar alguns elementos de como se manifesta este tempo
em espirais, que ela denomina como um tempo curvo e reversível, e busca, a partir
do livro, elucidar esse movimento espiralar, seja nas artes, nos cromatismos,
luminosidades, aromas, teatro, ética, na corporeidade, entre outros aspectos
possíveis.

Maria Leda Martins (2022), refletindo sobre as temporalidades, negritude e
a noção de corpo, aponta que este é o local de inscrição de um conhecimento
ancestral que se grafa nas coreografias dos movimentos, nas escritas e partituras
peculiares, nos ritmos e timbres da vocalidade e das sonoridades, na memória,
sendo uma episteme que não apenas repete um hábito, mas que também institui,
interpreta e revisa a ação, evento ou acontecimento reapresentado. Segundo
ela, nessas poéticas, a corporeidade negra como subsídio teórico, conceitual
e performático e como episteme, fecunda as cenas, expandido os escopos do
corpo como lugar e ambiente de produção e inscrição de conhecimento, de
memória, de afetos e de ações. Um corpo pensamento, um corpo bailarina, já que
“em seus movimentos funda o ser no tempo, inscrevendo-o como temporalidade”
(Martins, 2022, p. 21). Afinal, o corpo em sua instituição e constituição, mostra-
se como um “corpo-tela, um corpo-imagem, acervo de um complexo de alusões e
repertório de estímulos e de argumentos, traduzindo certa geopolítica do corpo:
o corpo pólis, o corpo das temporalidades e espacialidades, o corpo gentrificado,
o corpo testemunha e de registros” (Martins, 2022, p. 162). Portanto, “o corpo

RESENHA

357 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

dança o tempo e dançar é como inscrever, que é como estar no tempo curvo do
movimento. O evento criado no e pelo corpo que inscreve o sujeito e a cultura
numa espacialidade refletida, espelhando as temporalidades” (Martins, 2022, p.
88).

Um corpo historicamente conotado, que personaliza as vozes que denunciam e no-
meiam o itinerário de violências de nossa rotina cotidiana, mas que, sem tréguas, ca-
vam vias alternas para uma outra existência, mais plena e cidadã. Um corpo/voz inven-
tário que limpa, restabelece, restitui, reivindica, respira e inspira, em perene processo
de cura, escavando vias alternas de outros devires possíveis, sempre desejoso de
transformações do corpus social. Um corpo político, autofalante arauto do ainda não
dito ou repetido, porque antes interditado, censurado, excluído; arauto do que não se
explicava de modo pleno, do que se mantinha dissimulado, do que não se mencionava,
do que não se declarava, do que se evitava; arauto daquilo que não se enuncia, que não
se pronunciava, que não se proferia, e que se impuseram como o silêncio que apavora.
À interdição e à pedagogia da ausência e da exclusão se interpõe uma outra corporei-
dade que argui, postula, propõe, expressa (Martins, 2022, p. 162).

Através deste corpo é que “os sujeitos e as formas artísticas que daí
derivam são tecidos de memória, escrevem história” (Martins, 2022, p. 210).
Neste contínuo processo de deslocamento e ressignificação, o corpo é a
própria “geografia, paisagem de dicções e enunciados, território de palavras
pronunciadas, continente sem fim trespassado de polifonias e melopeias. Um
corpo em permanente processo de cura” (Martins, 2022, p. 173). Ao relacionar
temporalidade, arte, política, história e negritude com o conceito de corpo-tela,
sabe-se que “toda memória do conhecimento é instituída na e pela performance
ritual por meio de técnicas e procedimentos performáticos veiculados pelo
corpo” (Martins, 2022, p. 48).

Nas inúmeras especulações sobre o tempo, a palavra em especial, ocupa um lugar
singular. Nem tudo, no entanto, parece ser expresso apenas pelas palavras, em seu
estatuto de escrituras. As concepções africanas do tempo, por exemplo, potencializam
a palavra proferida como locus de expressão da experiência temporal, mas a incluem
em um amplo prisma de elaboração fônica e sonora das linguagens que se processam
e se traduzem pelo corpo, alinhadas e compostas por outras percepções que no e pelo
corpo as traduzem (Martins, 2022, p. 32).

Leda Maria Martins aponta que diferentemente do Ocidente, para os africanos
e para as Filosofias Africanas, ignorada pelos teóricos ocidentais, “várias noções
de tempo são também arguidas e fundantes do pensamento filosófico, e nelas
se encontram argumentos sobre o tempo, como especulação teórica e como
experiência cultural, muito diversas das concepções e fabulações ocidentais”

RESENHA

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(Martins, 2022, p. 27).
Apresentando que a África sempre teve textualidade escrita e textualidade

oral, mas sem hierarquia dos modos de inscrição, mesmo nas mais antigas
escritas de palavras, como a egípcia, a suméria e a chinesa, Leda Martins (2022),
aponta que “a filosofia africana leva em conta toda a gama de conhecimentos
da performance oral como significativa para a inscrição das experiências de
temporalidade e para sua elaboração epistêmica” (Martins, 2022, p. 32). Porém,
diante o privilégio da escrita introduzido em África e nas Américas pelos
colonizadores europeus fez com que fosse substituído um modo de inscrição
por outro e colocando-a como fonte exclusiva de conhecimento, se impondo,
excluindo e apagando os “saberes considerados hereges e indesejáveis pelos
europeus” (Martins, 2022, p. 34), se instalando como veículo instrumental de
ostracismo, segregação e estigmatização.

A autora afirma ainda que tanto os africanos quanto os colonizados
mantiveram, desenvolveram e transmitiram suas epistemes a partir de práticas
performáticas, constituindo uma pletora de conhecimento que se inscreve
ainda hoje no mundo de maneira cinética e sinestésica. Mesmo que oprimidos,
censurados, cerceados e perseguidos, os povos escravizados encontraram
maneiras de elaborar e retransmitir saberes e valores das culturas africanas a
partir de “códigos sensoriais, cinéticos, olfativos, gustativos, visuais, repleto de
música e dança” (Martins, 2021, p. 118).

Mas a imagem não se retém nas paisagens sensíveis do visível, pois também pode
compor-se uma qualidade sonora que exige a escuta, entregando-se a nós também na
sua qualidade auditiva. Nas estéticas negras avizinham-se essas qualidades possíveis
das imagens, estilisticamente convergentes e complementares, pois, em suas diversas
propriedades, a imagem pode ser também constituída pelos sons e suas propriedades
sígnicas. Aliando o tônus visual ao sonoro, esse corpo de visualidades luminosas é
imantado pelas sonoridades, no qual o corpo-tela torna-se um corpo vozeado, no
qual o dizer, desdizer e dizer de novo é axioma significativo, como emanação. O uso
da voz faz-se assim instrumental, pois cria nos processos e técnicas de produção das
linguagens fônicas variadas gravuras da voz (Martins, 2022, p. 176).

Segundo Leda Maria Martins (2022, p. 79), “o corpo-tela é um corpo-imagem,
constituído por uma trança de articulações que se enlaçam e entrelaçam,
onduladas com seus entornos, imantadas por gesto e sons, vestindo e compondo
códigos e sistemas”. Ele é fundamentado por “condensações, volume, relevo e
perspectivas, superfície, fundo e película, intensidades e densidades” (2022, p.
79). E ele “engloba movimentos, sonoridades e vocalidades, coreografias, gestos,

RESENHA

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linguagem, figurinos, pigmentos ou pigmentos e grafites, lumes e cromatismos,
que grafam esse corpo/corpus estilisticamente como locus e ambiente do saber
e da memória” (2022, p. 79). Afinal, corporeidades é a “linguagem constituída pelo
corpo em performance, pelo corpo vivo que, em si mesmo, estabelece e apresenta
uma noção cósmica, ontológica, teórica e também rotineira da apreensão e da
compreensão temporais” (Martins, 2022, p. 22), pois “antes de uma cronologia, o
tempo é uma ontologia, uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo, uma
andança anterior à progressão, um modo de predispor os seres no cosmos. O
tempo inaugura os seres no próprio tempo e os inscreve em suas rítmicas
cinesias” (Martins, 2022, p. 21).

Refletindo sobre as danças rituais negras e sua relação com o corpo, Maria
Leda Martins (2022), apresenta que policromado pelos seus diversos cruzamentos
simbólicos constitutivos, o corpo é o local de um saber em contínuo movimento de
recriação, remissão e transformações perenes do corpus cultural e do tempo que
o concebe e estrutura. É nzila, caminho, repertório de pensamentos que grafam
esse corpo/corpus, estilística e ontologicamente, como locus e ambiente de
saber, de memória e de história. Essas ideias e concepção são também grafadas
em uma das mais importantes inscrições africanas nas religiões afro-brasileiras,
os cosmogramas, pontos riscados, cartografias dessas ontologias, signos dos
cosmos e de suas derivações.

O corpo bailarina o tempo que se grafa em seus movimentos. O corpo em
performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz esse conhecimento,
grafado também na memória do gesto. O gesto, poiesis do movimento, esculpe e
delineia no ar as sonoridades ondulantes. Dá forma visual à música e ao complexo
rítmico das sonoridades ondulantes. Dá forma visual à música e ao complexo
rítmico das sonoridades e vocalidades, criando “no espaço a forma externa do
poema”. Assim, “um bom dançarino é aquele que conversa com a música, que
claramente ouve e sente as batidas, e é capaz de usar diferentes partes do corpo
para criar a visualização dos ritmos”. Ou como concorda ao evocar Sodré, na
cultura negra “a interdependência da música com a dança afeta as estruturas
formais de uma e de outra, de tal maneira que a forma musical pode ser elaborada
em função de determinados movimentos de dança, assim como a dança pode ser
concebida como dimensão visual da forma musical. Esse índice de visualidade
compõe as escritas grafadas no corpo, aquilo que como inscrição constitui uma
imagem, um signo cultural estilístico. Um corpo hieróglifo (Martins, 2022, p. 209).

RESENHA

360 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

A filosofia africana leva em conta toda a fama de conhecimentos da performance
oral como significativa para a inscrição das experiências de temporalidade e para
sua elaboração epistêmica. A palavra oraliturizada se inscreve no corpo e em suas
escansões. E produz conhecimento. Ao contrário do pensamento preconceituoso
europeu que desqualificava África como continente pensante. Esse tipo de raciocínio
excludente deve-se em muito à falsa dicotomia entre a oralidade e a escrita, enfatizada
pelo Ocidente, que prioriza a linguagem discursiva escrita como modo exclusivo e
privilegiado de postulação e expansão do conhecimento. Esse modo se institui pela
primazia da concepção linear e progressiva do tempo e se realiza, como pensamento,
pelo quase absoluto domínio da escrita alfabética como plataforma de grafias de
fixação de sua narratologia e de suas escrituras ignorando ou preterindo outros modos
de fixação dos saberes, dentre eles os que se perfazem pela voz em suas ressonâncias
nas corporeidades (Martins, 2022, p. 32).

A poética e reveladora noção de tempo espiralar é uma importante
contribuição de Leda Maria Martins (2022), apresentando que as temporalidades
são curvas, simultâneas, distantes mas próximas, sempre em movimento fundado
pela ancestralidade. Segundo ela, a referida noção espiral do tempo “funda-se no
lugar de privilégio do ancestral que preside, como Presença, as espirais do tempo,
habitando a temporalidade transiente, o ilimitado passado, per si composto de
presente, passado e futuro acumulados, o pote Kalunga, núcleo de energia vital
em movimento” (Martins, 2022, p. 58).

De acordo com Leda Maria Martins (2022, p. 133), “o movimento do corpo-
voz, do corpo-chão, do corpo-mastro, ocupa o espaço em círculos desdobrados,
figurando a noção ex-cêntrica e espiralar das temporalidades simultâneas”. Dessa
forma, através “dessa evocação constitutiva, o gesto e a voz da ancestralidade
encorpam o acontecimento presentificado, prefigurando o devir, numa concepção
genealógica curvilínea, articulada pela performance” (Martins, 2022, p. 133-134).
A ancestralidade, segundo a anciã Leda Martins (2022, p. 204), “é clivada por um
tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar que retorna, restabelece
e, também, transforma, e que em tudo incide”. “A ancestralidade é a responsável
por definir de modo estruturante a cosmopercepção negro-africana, dispersa
pelas suas inúmeras e diversas culturas” (Martins, 2022, p. 58) e por regulamentar
a existência e experiência temporal no própio tempo e nas temporalidades.

Canal da força vital, a concepção ancestral, como um novelo, inclui, no mesmo circuito
fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos fí-
sicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma
complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir.
No seu âmbito tudo se estabelece em relações interdependentes e mutuamente cons-
titutivas (Martins, 2022, p. 203).

RESENHA

361 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

Assim, Leda Maria Martins (2022), conclui que o tempo espiralar, também
chamado de tempo ancestral, não se contém nos limites de uma linearidade
progressiva, em direção a um fim e a um páthos inexaurível, e nem se modula em
círculos centrípetos fechados de repetições do mesmo. De acordo com a autora,”
em suas espirais tudo vai e tudo volta, não como uma similaridade especular,
uma prevalência do mesmo, mas como instalação de um conhecimento, de uma
sophya, que não é inerte ou paralisante, mas que cineticamente se refaz e se
acumula no Mar-Oceano” (Martins, 2022, p. 206)

Indeterminado do tempo ancestral, o tempo Kalunga, o tempo de Nzâmbia
e de Olorum, um em si mesmo, íntegro e pleno, cuia recheada por instâncias de
presente, passado e de futuro, sem elisão, sem forclusão, sem sobressaltos, sem
fim dos tempos. Um tempo espiralar. Um tempo onde “retornar não é repetir como
um mesmo ou uma mesmidade a experiência vivida (Martins, 2022, p. 206), afinal,
são “nas andanças dessas composições que nos vestimos de ancestralidades”
(Martins, 2022, p. 203), já que a ancestralidade é a responsável por definir “de
modo estruturante a cosmopercepção negro-africana, dispersa pelas suas
inúmeras e diversas culturas” (Martins, 2022, p. 58).

Uma gnose poderosa, a ancestralidade, em curvas e ritornelos, se instala e se expande.
Princípio mater relacional, interliga tudo o que no cosmos existe e a tudo recobre em
ondas de radiação e de transmissão da energia vital que garante a existência ao mesmo
tempo comum e diferenciada de todos os seres, nos quais se inclui a pessoa e seus
entornos, na variedade e diversidade de sua natureza. Canal da força vital, a concepção
ancestral, como um novelo, inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades,
a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que
ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementaridade necessária,
em contínuo processo de transformação e de devir. No seu âmbito tudo se estabelece
em relações interdependentes e mutuamente constitutivas (Martins, 2022, p. 203).

A ancestralidade age então, buscando melhores condições futuras e
valorizando por meio da memória, das ações e do culto, aqueles que antecederam
a caminhada. Essa potente força agrupa muitos valores e fundamenta-se como
princípio magno que, segundo a autora, ordena as relações sociais, as dimensões
religiosas, metafísicas e seculares, as dinâmicas de produção, os valores éticos
e estéticos, as medidas e intercâmbios, interlocuções e interdependência
entre todos os entes e seres e dos seres no cosmos, as interlocuções com as
divindades, a acoplagem dos princípios de existência genérica e individual, a
aliança necessária entre vida e morte, a distribuição da energia vital; tudo, enfim,

RESENHA

362 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

se ordena e se estrutura no seio da concepção ancestral, fundante dos frisos
civilizatórios.

Porque, de acordo com Leda Martins, “contemplam em si os princípios
masculino, feminino e coletivo em relação complementar; porque restituem a
força vital aos seus descendentes, tanto aos anelados por vínculos consanguíneos
quanto aos constituídos e agregados por relações familiares de escopo mais
amplo” (Martins, 2022, p. 59), sendo transpassados por aspectos imaginários
e simbólicos constituindo redes de pertencimento já que marcam a vivência
espiralar das temporalidades e do espaço; “o princípio filosófico da ancestralidade
é motriz do corpo individualizado, do corpo coletivo e do corpus cultural, de todo
o pensamento sobre a condição humana, de toda a plumagem ética e estética,
de toda a produção de conhecimento, em todos os âmbitos em que a mesma
acontece” (Martins, 2022, p. 59), sejam os aspectos técnicos ou aqueles mais
transcendentais e rotineiros.

Sendo a cultura negra uma cultura das encruzilhadas, Leda Martins
(2022, p. 52), aponta que “nas elaborações discursivas e filosóficas africanas
e nos registros culturais delas também derivados, a noção de encruzilhada é
um ponto nodal que encontra no sistema filosófico-religioso de origem Iorubá
uma complexa formulação”. Este sendo um lugar de encontro e de interseções,
é comandado pelo senhor das encruzilhadas, das portas e das fronteiras, “Èsu
Elegbara, princípio dinâmico mediador de todos os atos de criação e interpretação
do conhecimento. Como mediador, Esu é o canal de comunicação que interpreta
a vontade dos deuses e que a eles leva os desejos humanos (Martins, 2022, p.
52). Onde “nas narrativas mitológicas, mais do que um simples personagem, Èsu
figura como veículo instaurador da própria nação” (Martins, 2022, p. 52).

Èsu surge do movimento. É o próprio movimento. É aquele quem abre os
caminhos, portanto é quem os conhece melhor que ninguém. É quem participa
e está sempre entre os primeiros. É o mensageiro, um grandioso comunicador,
pedagogo, educador. É quem brinca com as lógicas e movimenta tudo que é vivo. É
quem vê a desordem como potência e inverte a ordem. Èsu é quem se movimenta
e se transforma, porque é quem conhece, propõe e mostra os caminhos. Èsu é
o dono das encruzilhadas, lugar sagrado das intermediações entre sistemas e
instâncias de conhecimento diversos, “é o que apresenta e que assenta a ontologia
do tempo na cosmogonia Iorubá, pois é, em si mesmo, a própria ontologia, tempo
que simultaneamente curva-se para a frente e para trás” (Martins, 2022, p. 53).

RESENHA

363 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

De acordo com Maria Leda Martins (2022), a ideia de encruzilhada como base
de pensamento e de ação, agente tradutor e operador de princípios estruturantes
do pensamento negro, é cartografia basilar para a constituição epistemológica
balizada pelos saberes africanos e afrodiaspóricos. Que nos oferece a possibilidade
de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emerge dos processos
interculturais e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam - nem
sempre amistosamente - práticas performáticas, concepções e cosmovisões,
princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. Maria Leda Martins,
é uma grande ancestral e anciã viva que utiliza desde 1991, encruzilhada “como
conceito e como operação semiótica que nos permite clivar as formas que daí
emergem” (Martins, 2022, p. 50).

Marcela Pedersen (2024) em um artigo que reflete que São Muitas as
Possibilidades e Impossibilidades que Habitam Esse Mundo: Uma Reflexão Sobre o
Tempo Espiralar e a “35.ª Bienal de São Paulo”
elucida que o trabalho desenvolvido
por Leda Maria Martins publicados nos anos de 1997, 2003, 2021, “são forças e
movimentos desobedientes que não se deixam paralisar, pois a poeta, ensaísta,
dramaturga e professora brasileira convoca-nos para a vida, para o movimento,
para o refazimento, trazendo a ancestralidade como lugar de sabedoria e de
companhia” (Pedersen, 2024, p. 03). Desenvolvendo uma epistemologia do tempo
espiralar como uma celebração da potência e da complexidade das práticas,
poéticas e pensamentos Negros é que Leda Maria Martins traz a luz que o tempo
espiralar vai-e-volta, sendo feito de ritornelos, descontinuidades e dobras do
tempo, utilizando-se da oralitura. Marcela Pedersen (2024) demonstra que a
“oralitura”, cunhada por Martins (2021), é um gesto que repara, retorna e restaura
as resistências epistemológicas a toda a opressão e dominação ocidental
hegemônica. Segundo ela, o pensamento da autora nos mostra que “apesar
de todo projeto de destruição e apagamento moderno colonial, as práticas
performáticas são gestos políticos e de resistências que carregam formas de
produzir, alimentar e proliferar epistemes Negras” (Pedersen, 2024, p. 08), sendo
a própria autora uma prova dessa potencialidade.

Leda Maria Martins (1997, 2003, 2021) emerge como uma das primeiras mulheres negras
a conquistar o título de doutora no Brasil. Sua trajetória é marcada pela ruptura das
expectativas de referenciais eurocêntricos no campo de estudos do teatro e das artes
performativas. A pensadora desvela saberes e estéticas das culturas e corporeidades
Negras, entendendo-as não somente como contributos teóricos, conceituais e
performáticos, mas, sobretudo, como episteme. Sua influência é fundamental
no contexto do teatro negro brasileiro, lançando luz sobre o legado africano e as

RESENHA

364 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

comunidades afrodiaspóricas, e afirmando um posicionamento político de luta e
resistência, colocando sempre em questionamento as categorias binárias instauradas
pela episteme ocidental. Neste texto, o interesse é percorrer os pensamentos de
Martins (2021) no que diz respeito ao tempo e à experiência da temporalidade como
espirais, enquanto uma epistemologia enraizada nas práticas, poéticas e pensamentos
Negros. Através de uma escrita que se constrói pela repetição modificada por
um novo sentido, seu livro Performances do Tempo Espiralar, Poéticas do Corpo-
Tela(Martins, 2021) configura-se como uma celebração da potência, da sofisticação e
da complexidade das artes Negras, conforme menciona Martins (Livraria Megafauna,
2022). A abordagem do tempo espiralar representa uma reviravolta epistemológica em
relação à ideologia hegemônica do tempo linear, progressivo e substitutivo. Martins
(2021) restitui e resgata uma percepção mais ampla e diversa, parte da filosofia
africana, afro diaspórica e indígena, que se manifesta através de temporalidades
curvilíneas, permeadas por gestos, vocalidades e ritmos (Pedersen, 2024, p. 06).

Este é um livro onde se realiza e alcança objetivos importantes, coletivos
e necessários, dando continuidades as potências das ancestralidades e
possibilitando melhor qualidade de vida para a população negra brasileira, muito
bem apontados na noção de tempo espiralar e ancestral da Maria Leda Martins
(2022). Apesar da noção ancestral que rege esse tempo, também completa
tais temporalidades, questões que são completamente transpassadas por um
passado ainda vivo, baseado na escravidão, no racismo e em diversas outras
violências silenciadas, sendo “a falta de tempo” – leia-se falta de condições
- também uma enorme preocupação e determinadora de existência (ou não)
no Brasil e no mundo, que não se deve ser ignorada ao apresentar a noção de
tempo espiralar. Para além das questões exclusivas da população negra, há
também envoltos nesses tempos, questionamentos e propostas coletivas sobre
a participação e interferência humana na(s) experiência(s) temporal(is) que
vem causando sentimentos de ‘não futuro’ e de catástrofes, como a noção de
capitoloceno, antropoceno, neoliberalismo, fim de mundo, entre outros tempos
não esperados, mas totalmente provocados pelo Ocidente e alguns grupos da
humanidade.

Tais sistemas também são (a)temporais, históricos políticos e sociais e
operam fomentando inúmeras outras violências cotidianas, como as de gênero,
classe, religiosa, carcerária, à diversidade sexual, direito à terra, entre outros
direitos humanos que são afetados diariamente e constantemente. Com base no
conceito de heterocronias (multiplicidade dos tempos históricos), nota-se todas
essas questões totalmente interpeladas com as experiências da multiplicidade
desses tempos históricos, apresentada por Leda Maria Martins como caminhar
também importante no processo. Onde, ao mesmo tempo em que se há tantas

RESENHA

365 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

violências, também há um tempo de avanços significativos para a população
negra brasileira, como a consagração e firmamento de diversos movimentos
de resistência, mostrando-se em paralelo com um tempo espiralar, ancestral,
ambiental, afrofuturista e que apesar de não ser literalmente tocado e interferido,
é possível de ser sentido e pode ser perceptível.

REFERÊNCIAS

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2021.

PEDERSEN, Marcela. São Muitas as Possibilidades e Impossibilidades que Habitam Esse Mundo:
Uma Reflexão Sobre o Tempo Espiralar e a “35.ª Bienal de São Paulo”. Revista de Cultura Visual,
n. 13, 2024.

RESENHA

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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA ABJEÇÃO RACISTA NO BRASIL

THE HISTORICAL CONSTRUCTION OF RACIST ABJECTION IN BRAZIL

Cassio Rodrigues da Silveira1

https://orcid.org/0009-0007-3104-3360
http://lattes.cnpq.br/4683142165747767

Recebido em: 01 de março de 2025.
Aprovado em: 16 de março de 2025.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22930

Resenha de: BENTO, Berenice. Abjeção: a construção histórica do racismo. São
Paulo: Cult Editora: 2024. 349 páginas.

O livro Abjeção, de Berenice Bento,
publicado pela Editora Cult em 2024, analisa,
como o próprio subtítulo deixa claro, a
construção histórica do racismo
no Brasil.
Com uma organização coerente, a autora
divide a obra em três partes. Na primeira
parte, um capítulo é dedicado à apresentação
de suas fontes centrais, que são os discursos
parlamentares produzidos durante a discussão
do Projeto de Lei do Ventre Livre, de 1871, e
outro, à apresentação dos principais conceitos
elaborados pela autora a partir de seus estudos.


1  Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2003), instituição na qual
também cursou o mestrado em História, cujo título foi obtido em 2008, e o doutorado, defendido em
2015. E-mail: cassiofil@gmail.com

RESENHA

367 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

No primeiro capítulo, Lei do ventre livre: Política de promoção da morte, os
discursos dos parlamentares contrários à implementação da Lei que daria fim
ao princípio romano adotado no Brasil partus sequitur ventrem (o parto segue o
ventre), são ilustrativos de uma diversidade de lógicas que atravessaram nossa
história. Em primeiro lugar, uma preocupação em apresentar a escravidão no
Brasil como mais branda do que a que ocorreu em outros países, menos violenta,
imagem que estaria presente, inclusive, em teorias relevantes produzidas no país,
como as imagens do “homem cordial”, forjada por Sérgio Buarque de Holanda, ou
do “mito da democracia racial”, produzido, sobretudo, a partir de algumas leituras
de Gilberto Freyre. Daí a ideia de que não seria tão urgente aprovar uma lei que
interferisse de forma tão acintosa no direito de “propriedade” (assim os escravos
eram compreendidos) dos indivíduos, bruscamente.

Nesse ponto, um segundo elemento importante na estrutura da nossa
história, qual seja: a necessidade de que a abolição fosse realizada de forma
controlada e gradual, para que pudesse ser segura. A autora nos mostra que,
desde sempre, as camadas dominantes da nossa sociedade estiveram no
controle das transformações sociais para que fossem realizadas da maneira mais
segura possível para elas mesmas, ou seja, para que não produzissem mudanças
significativas nas estruturas de poder. O mesmo discurso viria a ser usado, como
sabemos, no nosso processo recente de redemocratização.

Um terceiro elemento interessantíssimo apresentado por Berenice Bento
como um traço de continuidade em nossa estrutura política é o medo da
implementação do comunismo no país, que poderíamos erroneamente vincular à
divisão posterior do mundo em dois blocos, ocorrida no século XX. A autora nos
mostra, a partir dos discursos dos parlamentares, que esse medo nos chegou em
função da implementação, na França, da Comuna de Paris, que ocorreu durante
a discussão do projeto de Lei do Ventre Livre no nosso parlamento, e reforçou
a percepção dos escravizados compreendidos como propriedades, ameaçadas
pelas percepções comunistas vindas da Europa. Tal fantasma vem nos assolando
desde então, sendo utilizado nas mais diversas ocasiões para justificar toda sorte
de autoritarismos.

Um quarto elemento, que fornece o gancho para o segundo capítulo, é o
discurso dos parlamentares de que a escravidão acabaria por si mesma, sem a
necessidade de legislação específica sobre isso, dados os índices de mortalidade
da população negra e o impedimento legal de substituição dessa mão-de-obra.

RESENHA

368 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

O que eles omitem, propositadamente, e Bento discutirá posteriormente, é que
a mortalidade absurda das crianças negras se devia, entre outros fatores, à falta
de leite e cuidado maternos, já que os corpos das mulheres escravizadas eram
utilizados para amamentar as crianças brancas, dos seus proprietários. A partir
das falas dos parlamentares, portanto, a autora mostra qual era o verdadeiro
projeto de Brasil que se desenhava, e que nunca deixou de se implementar: o
genocídio da população de origem africana, em nome do embranquecimento
populacional do país, por meio do ingresso de trabalhadores brancos europeus
que viriam a ocupar os postos de trabalho livre.

Nesse ponto adentramos naquele que é, a meu ver, o capítulo central da obra,
o segundo, A guerra demográfica: Genocídio, genocidade e necrobiopoder. É nessa
parte do texto que Berenice nos oferece as principais contribuições conceituais
para a compreensão da questão do racismo no Brasil. As leis aprovadas antes da
abolição no país, Ventre Livre e Sexagenário, tiveram como resultado o oposto do
que aparentavam ser. Na aparência seriam leis para beneficiar os negros recém-
nascidos e idosos. Na prática, serviram para deixar desprotegidos os indivíduos
mais vulneráveis dessa população no Brasil. Os parlamentares falavam dos altos
índices de mortalidade da população negra, mas nenhum discurso apontou
formas de amenizar esses números trágicos.

É nesse momento do texto que Berenice nos apresenta o conceito de
genocidade, para que possamos compreender as políticas adotadas com
relação à população negra no país, e que a autora define como uma “microfísica
da produção continuada da morte” (p. 100), que não se diferencia do genocídio
em seus fundamentos, mas em seus mecanismos atualizados para a produção
da morte. Segundo a autora, são três as suas características: “1) atua com uma
temporalidade alargada; 2) volta-se, principalmente, para as relações que se
dão na esfera micro; 3) combina múltiplas técnicas de produção continuada
de sofrimento físico e psíquico” (p. 100). Tais técnicas são mais nítidas quando
percebemos a falta de cuidado deliberado por parte do Estado brasileiro com
as populações negras mais vulneráveis, ainda antes da abolição, mas que
seguiram sendo realizadas na perseguição constante a práticas culturais de
origem especificamente africanas, historicamente criminalizadas, e persistem
até hoje no tratamento diferenciado das forças policiais aos diferentes espaços
das nossas cidades, aplicando uma violência desmedida nas periferias mais
afastadas, espaço hegemônico de habitação dos descendentes dos indivíduos

RESENHA

369 albuquerque: revista de história - v. 16, n. 32, ago. - dez. 2024 I e-issn: 2526-7280

escravizados na história do país.
É a partir desse tratamento diferenciado às populações que a autora

nos apresenta o segundo conceito fundamental do capítulo, qual seja, o de
necrobiopolítica, que articula as noções de biopolítica (Michel Foucault), de
necropolítica (Achille Mbembe) e de Homo sacer (Giorgio Agamben). Retornando
aos discursos dos parlamentares na ocasião da discussão sobre a Lei do Ventre
Livre, Berenice nos mostra que, enquanto essa ideia de deixar morrer (necro)
os descendentes de africanos para substitui-los por mão-de-obra branca era
debatida de um lado, diversas políticas de cuidado (bio) com as populações
brancas, os proprietários de escravos, assim como os imigrantes, também eram
debatidas e implementadas.

É nesse ponto que a autora chega ao centro de sua argumentação: foi
produzida, ao longo da história do Brasil, por meio de uma infinidade de técnicas,
práticas e discursos, uma relação de abjeção das populações em geral com
relação aos africanos, em um primeiro momento e, posteriormente, aos seus
descendentes. Tal relação insere os corpos negros fora das relações “eu/outro”,
que caracterizam a composição das subjetividades humanas. Os africanos e seus
descendentes, ao serem, na maior parte da história do Brasil, compreendidos como
propriedade, energia, energia, peça, sofreram um processo de desumanização
que é central para que compreendamos o racismo e a naturalização da violência e
da morte dos corpos negros na nossa sociedade ao longo de toda a nossa história.

Na segunda parte, dividida em três capítulos, é apresentada outra das
teses centrais da autora na obra, qual seja: a insuficiência da categoria gênero
na análise da condição das mulheres escravizadas na história do Brasil. A partir
disso, nos capítulos Gênero: uma categoria útil de análise e Diferença sexual e
abjeção: Qual o gênero das negras escravizadas
é realizada uma crítica aos limites
da própria noção de interseccionalidade, tal como vem sendo operada, por mera
adição de componentes identitários (gênero, raça e classe, por exemplo). Isso
porque, para Berenice Bento, as negras/escravizadas/propriedades/peças
não se encontravam nas mesmas condições de gênero das mulheres/brancas/
proprietárias. O corpo coberto e honrado da mulher branca, sua fragilidade,
passividade, ingenuidade, seu potencial para a maternidade, nada disso é
considerado atributo das negras escravizadas. Estas teriam os corpos fortes
para o trabalho duro e cotidiano, incapaz para a maternidade, daí ser utilizado
para amamentar os filhos das brancas/proprietárias e, em função de sua

RESENHA

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sensualidade “natural”, inverteriam o jogo de forças com os homens/brancos/
proprietários. Estes, evidentemente mais fortes que as mulheres/brancas/
proprietárias, suas esposas, eram fracos diante da lascívia e poder sedutor dos
corpos desnudos das negras escravizadas, o que inclusive seria um elemento
“amenizador” da responsabilidade da infinidade de estupros realizados, elemento
também, infelizmente, aparentemente estruturante da nossa cultura, assim
como a facilidade que homens têm de não assumir a paternidade dos filhos das
mulheres negras. Havia, portanto, um pacto óbvio entre as mulheres/brancas/
proprietárias e os homens/brancos/proprietários, articulado em torno do
sentimento de abjeção com relação aos corpos das negras escravizadas, que
resultava na negação de qualquer componente significativo de humanidade.
Elas eram meras peças, bios, energia, e mesmo seus componentes biológicos
femininos eram considerados a partir de avaliações de caráter utilitário, ancas
largas para procriar, seios para amamentar, braços fortes para realizar as tarefas
que lhes eram atribuídas.

A partir dessa reflexão, de forma bastante coerente, a autora nos conduz ao
terceiro capítulo da segunda parte, Guerra feminista: Limites das categorias de
gênero e patriarcado
, para fazer uma análise dos dilemas dentro do feminismo
contemporâneo. A autora contrapõe, nesse momento, o que ela denomina
de feministas patriarcalistas, que trabalham com o “patriarcado” como uma
categoria universal (como é típico de teorias eurocentradas) que atingiria todas
as mulheres, de qualquer etnia, da mesma maneira, ao feminismo negro, que
coloca necessariamente em evidência a categoria raça. Em função de tudo que
foi apresentado anteriormente, no sentido de que não foi permitido à negra
escravizada efetivar uma vivência do feminino nos mesmos moldes daqueles
que eram vivenciados pela mulher branca proprietária, Bento nos mostra porquê
existem limites para a associação de mulheres brancas e mulheres negras,
e porquê essas últimas precisam evidenciar a categoria raça, muitas vezes,
antes da categoria gênero, fazendo, inclusive, alianças com homens negros
incompreensíveis para mulheres que elegem o patriarcado como elemento central
de articulação da luta. Para mim, sobretudo, essa parte do livro foi extremamente
esclarecedora de questões que, por vezes, acompanhamos na prática concreta
dos movimentos sociais, mas que são de compreensão complexa quando não
nos inteiramos de elementos fundamentais para a reflexão.

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A terceira parte tem dois capítulos. No primeiro, Quando a história começa?
Lutas e revoltas negras durante a escravidão no Brasil
, a autora retoma as lutas
políticas dos negros na história do Brasil, na busca de questionar uma certa
percepção defendida por intelectuais brasileiros, tais como Caio Prado Júnior,
citado por ela, de que essa população, ao longo da maioria de sua trajetória no
país, não poderia ser compreendida como dotada de protagonismo histórico,
dada uma pretensa passividade desses sujeitos ou uma dificuldade de adotar
condutas disciplinadas, o que dificultaria a organização coletiva. Ora, se assim
era, o Estado ou os proprietários não teriam questões colocadas de fato por
essas populações às quais se deveria dar respostas. A autora demonstra, por
meio da apresentação de processos judiciais, lembrando as fugas isoladas, os
suicídios, chegando à organização complexa dos Quilombos e ao movimento
abolicionista, que esses sujeitos jamais estiveram passivos diante de sua
situação. Portanto, ao apresentá-los dessa maneira, a intelectualidade brasileira,
assim como na concepção de “homem cordial” ou de “mito da democracia racial”,
propositadamente ou não, acabou por reforçar estereótipos que colaboraram
com a manutenção da abjeção e do racismo no país.

O último capítulo, denominado Qual a família da psicanálise? Entre a abjeção
e a psicose cultural, é uma reflexão sobre os limites dessa linha de pensamento,
corrente que orientou e ainda orienta em grande medida as percepções intelectuais
no ocidente, para compreender as questões concernentes às populações negras
na história do Brasil. Um primeiro dado apresentado pela autora é a ausência
perceptível de pessoas negras atuando como psicanalistas ou inseridas no
tratamento psicanalítico, o que ela articula muito bem no primeiro subtítulo do
capítulo, “Racismo e psicanálise ou o racismo da psicanálise”. Berenice Bento
insere uma questão fundamental para que consideremos os limites da psicanálise
para compreender as famílias negras, sobretudo no contexto da escravidão, que
consiste na centralidade da figura paterna na composição da subjetividade,
sendo ela a responsável pelo segundo corte do cordão umbilical, separando
definitivamente criança da mãe por meio da castração. Tal centralidade é
problemática quando nos lembramos que à negra escravizada era negado o
direito de ser mãe, e que seu filho jamais seria assumido por uma figura que
ocuparia o lugar de pai. Compreendendo que a estrutura familiar utilizada por esta
corrente para a compreensão da formação da subjetividade não se aplicou aos

RESENHA

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negros na maior parte da nossa história, ainda hoje há problematizações a esse
padrão vertical de família. Enquanto a psicanálise não se propuser a reavaliar as
ferramentas, inserindo o elemento raça como categoria importante, ela pode ser
um instrumento de reforço das percepções racistas na nossa sociedade.

Após essa breve explicitação da estrutura da obra, espero ter demonstrado
a relevância dos objetos e conceitos apresentados por Berenice Bento para a
compreensão da construção do racismo em nossa sociedade, da normalização
da violência sobre os corpos negros, e dos limites de certas categorias e
ferramentas de tendência universalizante, seguindo tendências de explicação
europeias, para a compreensão da complexidade das relações de dominação
seculares que marcam a história do Brasil.

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Claudelir Correa Clemente

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PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO

REVIEWERS OF THIS ISSUE

albuquerque: revista de história. Aquidauana, v. 16, n. 32, ago./dez. 2024.

https://doi.org/10.46401/ardh.2024.v16.22945

Colaboraram com este periódico nos pareceres dos manuscritos submetidos
pelo sistema de avaliação dupla às cegas por pares (Double-Blind Peer Review):
Collaborated with this journal in the manuscripts reviews by Double-Blind Peer
Review:

Alcides Freire Ramos (ad hoc) - Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil

Eduarda Maria de Souza Fernandes (ad hoc) - Universidade Estadual Paulista “Jú-
lio de Mesquita Filho” (UNESP), Brasil

Eglen Silvia Pipi Rodrigues (ad hoc) – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
Brasil

Eva Teixeira dos Santos (ad hoc) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), Brasil

Ítalo Nelli Borges (ad hoc) - Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Brasil

João Alberto da Costa Pinto (ad hoc) - Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

João Pedro Rosa Ferreira (ad hoc) - Centro de História do Além Mar (CHAM), Por-
tugal

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Claudelir Correa Clemente

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Marcos Antonio de Menezes – Universidade Federal de Jataí (UFJ), Brasil

Maria do Carmo Luiz Caldas Leite (ad hoc) - Universidade Católica de Santos (UNI-
SANTOS), Brasil

Mírian Cristina de Moura Garrido (ad hoc) - Universidade de Taubaté (UNITAU),
Brasil

Pamela Peres Cabreira (ad hoc) - Universidade Nova de Lisboa (NOVA), Portugal

Peterson José de Oliveira – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Brasil

Rafael Morato Zanatto (ad hoc) - Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil

Renilson Rosa Ribeiro (ad hoc) - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
Brasil

Róbson Pereira da Silva - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
Roger Luiz Pereira da Silva (ad hoc) - Universidade Tecnológica Federal do Para-
ná (UTFPR), Brasil

Thaís Leão Vieira - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil