CHAMADA DO 28º NÚMERO DA RASCUNHOS CULTURAIS

2023-02-11

Por enquanto é tempo de corpos “inconvenientes”: a voz de sujeitos ecoando na literatura e em outras linguagens artísticas

 

Organizadores:

Cláudia Nigro (UNESP)

Flávio Adriano Nantes (UFMS)

 

O atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, o professor Silvio Almeida, em seu discurso de posse, convocou para o seu ministério a responsabilidade em relação a sujeitos que haviam sido preteridos durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua ministra Damares Alves. Essas pessoas colocadas à margem, não reconhecidas e sem proteção efetiva do Estado-nação puderam respirar aliviadas quando ouviram de Almeida: “Como primeiro ato quero dizer o óbvio que foi negado nos últimos quatros anos [...] pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são muito valiosas para nós”. Compete a nós, a sociedade como um todo, re-pensar o modus operandi letal que ainda atinge determinados sujeitos nos limites geográficos brasileiros, pois o Brasil ocupa, segundo os relatórios mais recentes da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o 1º lugar no ranking mundial em assassinato a mulheres trans por quatorze anos consecutivos.

Diante de um quadro de violência extrema, a literatura e outras linguagens artísticas podem se insurgir como força contrária, i.e., perpetrar um discurso que caminhe na contramão da necropolítica (Mbembe, 2017): a morte de sujeitos que não são protegidos pelo Estado-nação, logo, o assassino é, ainda que indiretamente, o próprio Estado. Estar na contramão do discurso hegemônico social significa repetir as palavras do atual ministro dos Direitos Humanos; significa afirmar categoricamente que todos os sujeitos, sem exceção, têm direito a uma vida vivível, respirável, digna. Não à toa tomamos de empréstimo e parafraseamos as últimas palavras de A hora da estrela, de Clarice Lispector, para pensar um dossiê temático que abarque os sujeitos elencados por Silvio Almeida, ademais de acrescentar negros, indígenas, mulheres cis, entre outros.

A escritora brasileira, em seu último romance, tratou de dar voz a uma mulher nordestina, migrante na cidade grande, pobre, fora dos padrões hegemônicos de beleza (um amontoado de dissidências), que ao final sofre um acidente letal. A personagem poderia ter tido qualquer outra morte, pois não importa o meio, o que prevaleceria seria o corpo “sem importância”, o corpo abjeto, o corpo que não pode ser amado, o corpo que não tem direito ao luto e ao pranto social (Butler, 2020), como é o corpo de Macabéa. Na esteira da escritura de Lispector, queremos pensar o quanto a literatura tem se prestado a um posicionamento insurgente, indagando, as razões pelas quais ainda há vidas que não importam; reclamando por parte do Estado-nação proteção efetiva; arguindo por que há pessoas que sofrem violências, assédios, injúrias por ser quem são; e mais, por que a sociedade como um todo ainda não se deu conta de que a vida humana é urgente, imperante, sem precedentes?

Determinados corpos, sobretudo os subalternizados/minorizados, em diversas sociedades ao redor do mundo, sofrem atrocidades – injúrias, assédios, violência física e/ou letal – que podem ser transmutadas para o texto literário, tal como fazem, entre outras/os escritoras/es, uma Patrícia Melo (Mulheres empilhadas); uma Conceição Evaristo (Olhos d’água); um Marcelino Freire (Angu de sangue); um Bernardo Kucinski (A nova ordem); uma Bernardine Evaristo (Garota, mulher, outras). E nisto, na articulação poética entre o factual para o ficcional, está centrada a possibilidade de reflexão. O leitor consegue inferir, a partir das obras exemplificadas ou em tantas outras, que nos dois mundos – no empírico e no literário – há uma política de morte e uma política de vida, i.e., há corpos que são protegidos (os brancos, cis, héteros, sem deficiência, urbanos) e corpos que não o são os (os “inconvenientes”).

Relacionando, então, o político e o literário – políticas literárias, convocamos pesquisadoras e pesquisadores para enviar contribuições cujo objeto seja o corpo “inconveniente”, “inadequado”, subalternizado/minorizado, aquele que não pode circular de forma democrática nos espaços públicos sem passar por sanções, como assédios, injúrias, violências, pensado por intermédio do texto literário e, desta forma, articularmos em conjunto um produto acadêmico-intelectual que vise a um pensamento na busca de obstruir a hierarquização, subalternização, minorização de determinados corpos.

Os trabalhos poderão ser escritos em português, inglês ou espanhol e submetidos até 20 de setembro de 2023. Os originais deverão obedecer às normas da Revista.