ENTRE O SILÊNCIO E A NEGLIGÊNCIA: MARCAS DE APAGAMENTO NO MUNDO DE JOÃO

Resumo

Ao amanhecer de uma quinta-feira encharcada pela melancolia da chuva, a inércia mantinha-me cativa na cama. Porém, a atração por experiências outras me arrancou bruscamente dela. Levantei-me com determinação, ingeri meu café meio amargo e adentrei no ônibus lotado, tal como em qualquer dia típico em cidade grande. Essa era a nossa quinta jornada na sala de aula. Foi então que nos deparamos com João, um jovem surdo oralizado, de cor parda, com seus dezessete anos e morador em um bairro periférico. Destaco que não tenho a intenção de construir perspectivas audistas, mas busco relatar como aquele ambiente linguístico me atravessou e constituiu minhas subjetividades como futura professora. À sombra da surdez, inventada pela normalidade, ele encontrava refúgio em seus fones de ouvido, transitando de canções serenas até a pulsação vibrante do funk. No instante em que a surdez se manifestou, uma linha invisível foi traçada, separando espaços afetivos e afastando-o de sua mãe, levando João a buscar refúgio nos braços acolhedores de seus avós maternos. Ali encontrou segurança, zelo e afeto. Os dias fluíam serenamente, até que a pandemia da COVID-19 eclodiu em 2020, trazendo consigo uma atmosfera tensa e escassas informações. Em 2021, aqueles que o haviam acolhido não puderam mais estar presentes. Tornaram-se vítimas desse implacável vírus impiedoso. Assim, João regressou à convivência com sua progenitora. De acordo com relatos, esses recentes eventos moldaram um novo João, atravessado por outras subjetividades, nas quais o silêncio em sala se tornou convidativo e seguro. É nesse universo particular que ele começa a vislumbrar cores outras e tons que forjam sua personalidade. Ao chegar à escola, sinto a brisa nostálgica ao acariciar meu rosto. As salas estão mais silenciosas que o comum, muitos alunos faltaram por conta da chuva. O intérprete de João prontamente se aproxima de mim, notificando-me que hoje não poderá estar presente na sala, pois participará de um curso. Manifesto minha gratidão a ele e adentro na sala da turma do 3° ano. Percebo que João sentou-se ao lado de um colega, estabelecendo um vínculo comunicativo por meio das mensagens digitadas em seus celulares, além de recorrerem à linguagem oralizada quando necessário. O professor inicia a aula, introduzindo o tema das razões trigonométricas. Enquanto o professor explica, João se distrai com seu celular, envolve-se em conversas com seu colega e, por vezes, parece imerso em seus próprios pensamentos. Tudo desperta sua atenção, exceto a matemática. João era atravessado por uma política pública educacional que não atendia às imperativas demandas linguísticas e culturais, como discorrem Campello e Rezende (2014). A aula escorre como um rio no leito da escola que busca ser inclusiva, onde o professor parece não se importar com o progresso de João sem a presença de um intérprete, nem com o desenvolvimento dos demais alunos não-surdos. João volta seu olhar para o quadro repleto de números e fórmulas, copiando apenas uma parte antes de retornar às conversas com seu colega. Os minutos passam e a aula chega ao fim. Ao retornar para casa, mergulho em pensamentos sobre o que testemunhei, questionando-me se João está realmente inserido na escola inclusiva ou se está apenas integrado a ela. E, ao final do dia, uma pergunta persiste em minha mente: quantos Joãos existem neste mundo?

Publicado
2023-10-25
Seção
Resumo Expandido – Pôster - XVII SESEMAT - 2023